Resumo: Trata-se resenha do livro de GIORGIO AGAMBEN, Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I, na qual se busca apresentar os principais pontos da obra.
Palavras-chave: Biopolítica – Tanatopolítica – Vida Nua – Estado de Exceção.
Na teoria política de Aristóteles, o homem, como qualquer outro ser vivente, é zoé (vida nua = mera existência biológica), mas que em razão de uma sua qualidade, que outros seres viventes não têm – a linguagem -, tem, também, uma existência política: é a linguagem que torna possível ao homem passar de zoé a politikòn zôon (animal político), vale dizer, lhe possibilita uma vida política (bíos políticos).
É desta condição específica – zoé, mas também politikòn zôon – que Michel Foucault elabora a sua teoria da biopolítica, cujo limiar é o surgimento da modernidade e a constituição do Estado de População: “Por milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente” (FOUCAULT, 2005/134).
É naquele “além disso” captado pelo poder soberano moderno que se funda a biopolítica.
Em que consiste, pois, este Estado de População? Consiste na inclusão da via biológica – vida e saúde, sexualidade e trabalho etc – nos cálculos e mecanismos de poder do Estado. Antes, a preocupação do Estado era a de manter e administrar o seu espaço territorial (Estado Territorial), sendo que, com a modernidade e a conseqüente constituição do Estado de População, a vida e a saúde dos súditos passou a ser a preocupação central do poder soberano, com o fim de torná-los corpos dóceis, na medida em que nesta mesma modernidade se faz a convergência entre poder político e capitalismo. Nisto, pois, se aclara a afirmação de Foucault: “Resulta daí uma espécie de animalização do homem posta em prática através das mais sofisticadas técnicas políticas. Surgem então na história seja o difundir-se das possibilidades das ciências humanas e sociais, seja a simultânea possibilidade de proteger a vida e de autorizar seu holocausto” (Apud AGAMBEN, op. cit., p. 11).
Interessante notar, segundo Agamben, que a teoria biopolítica de Foucault converge com aquela desenvolvida por Hannah Arendt em “A Condição Humana”, segundo a qual, a progressiva importância que o animal laborens passa a ocupar na sociedade faz com que a vida nua ocupe o vértice das relações de poder, derruindo, com isto, o espaço público. Fato é, no entanto, que apesar da convergência entre o pensamento de Foucault e de Arendt, ambos jamais foram desenvolvidos de modo a ensejar uma interpretação conjunta e harmônica das relações políticas na modernidade. Este, pois, então, é o fim a que se lançou Giorgio Agamben ao lançar-se à série intitulada Homo Sacer (RAULFF, 2004/609)[1].
É a inserção da vida nua na pólis problemática? Não se se resgatar a teoria primeva que a fundamenta. Com efeito, Aristóteles afirma que o homem não ingressa na pólis por qualquer motivo, mas sim para “bem viver”: é a euemería (o belo dia) o fim último da existência política do homem, uma vez que, sendo a pólis uma criação racional do homem, esta é teleológica, existindo, portanto, para um fim específico: propiciar o bem viver.
Dá-se que a prática desvirtuou o fim, e aquele “belo dia” jamais se realizou. Qual a causa deste fracasso? Segundo Agamben, a própria natureza do poder soberano impõe o esquecimento daquele fim dantes colimado.
Retomando o conhecido fundamento político-teológico de Carl Schmitt sobre a soberania, segundo o qual, soberano é aquele quem tem o poder de decidir em ultima ratio sobre o estado de exceção, Agamben demonstra a verdadeira face da biopolítica: como o soberano é aquele que tem o poder de legislar sobre o caos, bem como de decidir se a vida em sociedade está normal ou não, encontra-se numa posição sui generis, a saber: está dentro e fora, ao mesmo tempo, do ordenamento jurídico (paradoxo do dentro-fora).
Isto quer significar, primeiramente, numa negação da teoria contratualista, segundo a qual a sociedade civil surge do consenso entre os homens, e segundamente na afirmação da natureza pré-jurídica do viver humano: antes da decisão soberana há o caos (ausência de ordenamento jurídico), sendo soberano aquele que tem o poder de criar o ordenamento jurídico. Por ser soberano, tem ele também o poder de decidir sobre a normalidade ou anomia da vida social, e com isso, de decretar o estado de exceção, que significa nada menos do que a suspensão da vigência da lei: apesar de válida, a lei não vige.
Vê-se, assim, que o soberano tem o poder de exclusão-inclusão: ao legislar sobre o caos, capta a vida nua, dando-lhe existência política. O homem ingressa na vida política através de uma inclusão-exclusiva: ingressa na pólis através de sua exclusão do mero existir biológico. Mas como também pode decidir sobre o estado de exceção, tem o soberano o poder de excluir do direito a sua vigência: o direito é incluído pela sua exclusão.
Assim, o conhecer a natureza do poder soberano, bem como do estado de exceção, é condição necessária para que se possa distinguir efetivamente, e não somente de forma retórica, o totalitarismo da democracia. Ocorre que, não obstante a retórica, a prática política na modernidade demonstra que entre totalitarismo e democracia não existe diferença nenhuma, já que aquela euemería de que falava Aristóteles não foi alcançada em nenhum destes regimes, originando aquilo que Walter Benjamim caracteriza como um permanente estado de exceção.
Se esta afirmação soa teratológica, é porque se torna claro o “[…] indício não só da consumada separação entre cultura filosófica e cultura jurídica, como também a decadência da segunda […]” (AGAMBEN, 2004/59). Com efeito, quer o homem viva sob um regime totalitário quer sob um regime democrático, o exercício do poder político sobre a sua vida torna-o sujeito a ser despido de sua humanidade (atributo conferido pelo direito), tornando-se, assim, em mero ser vivente. Isto assim se dá porque a decretação do estado de exceção torna a força de lei em força de lei (AGAMBEN, 2004/61).
A continuidade do estado de exceção enunciada por Walter Benjamim se torna mais clara ainda quando se toma em linha de raciocínio que, enfim, o problema central da soberania não é “quem” a exerce (a querela entre Schmitt e Kelsen sobre quem deve ser o guardião da constituição é um exemplo bastante eloqüente deste ponto), mas sim sobre “o quê” ela é exercida: sendo o estado de exceção uma inclusão-exclusiva, é a própria vida a sua preocupação última.
Com efeito, duas doutrinas modernas tornam bastante evidente este paradigma. O primeiro é a doutrina kantiana da pura forma da lei, que pode ser caracteriza como uma estrutura ontológica do dentro-fora: a tese benjaminiana de um estado de exceção permanente coincide com a idéia kantiana de “uma pura forma da lei”, cuja validade decorre não de seu conteúdo, mas sim do simples fato de a mesma conter um significado “moral”: por ter a forma de lei, deve ser obedecida. Assim, conforme narrado por Kafka na lenda Diante da Lei, é a lei a porta aberta na qual o homem já está: ele não entra porque sempre esteve abarcado por ela na sua perene exclusão; nasce sob a vigência da lei. Disto pergunta Massimo Caccciari: “Como podemos esperar ‘abrir’ se a porta já está aberta? Como podemos esperar entrar-o-aberto? No aberto se está, as coisas se dão, não se entra […]” (Apud AGAMBEN, 2002/57). Este tipo de relação implica num perpétuo estado de exceção porque gera uma indiscernibilidade entre a vida e a lei: o homem é a-bandonado à pura lei, e por pertencer, deste modo, ao bando soberano, não é mais homem, mas mera vida nua.
A segunda doutrina é aquela professada pelo neoconstitucionalismo, segundo a qual não existiria qualquer diferença entre o poder constituinte originário (a violência que põe o direito na acepção benjaminiana) e o poder constituinte derivado ou de reforma (a violência que conserva o direito)[2]. Sendo o poder constituinte originário aquilo do qual nasce o poder soberano, ele mesmo não é um fenômeno jurídico – é fato político -, donde, se de fato existir uma indistinção entre ele e o poder constituinte de reforma, vive-se num estado de exceção permanente, e não em um estado de normalidade (rule of law): toda e qualquer decisão deve ser tida como violência que põe o direito, e não como a que o conserva, estando, pois, o direito em contínua suspensão (vale, mas não vige).
Disto surge um questionamento relacionado à vida do homem numa sociedade que se encontra num contínuo estado de exceção: qual a relação existente entre pessoas tão diferentes e distantes no tempo e no espaço, bem como sujeitas a situações fáticas tão díspares como os presos dos campos de concentração nazistas, os condenados à pena de morte, os doentes terminais, os “detentos” de Guantánamo ou os refugiados nos campos “humanitários” na África, dentre outros casos?
A relação existente é que todos eles são pessoas reduzidas à mera existência biológica. São homo sacer entregues ao (a)bando(no) em razão daquilo que Foucault denomina de biopolítica, mas que Agamben melhor define como tanatopolítica: o poder que o soberano tem de decidir sobre quem tem o direito ou não de viver, ou seja, em decidir qual vida merece ser vivida. São pessoas insacrificáveis, porém matáveis.
De fato, a origem da indiscernibilidade entre vida política e vida nua tem seu limiar na figura do homo sacer, que era aquela pessoa condenada na vetusta comunidade romana em razão de haver cometido um determinado delito, e que em razão disto, não poderia ser sacrificada aos deuses; contudo, se alguém o encontrasse, poderia matá-lo, sem que ao seu algoz se imputasse a pena por homicídio: uma vida insacrificável, porém matável. Sendo, pois, o homo sacer aquele homem que se encontrava entre o ius divinum e o ius humanum, é uma vida sacra, no entanto matável.
E não é esta a principal característica do homem sob um regime de anomia (que não sendo mais exceção, é regra, portanto, todos somos homo sacer)? Que a vida humana é sacra, que os atributos da humanidade sejam todos eles sancionados pelo direito, não existe dúvida alguma. Não é corrente na doutrina constitucional a afirmação de que a vida é o direito fundamental primeiro que toda e qualquer pessoa detém pelo só fato de ser pessoa (artigo 5º, caput da CRFB/88)? Não obstante, é este mesmo ordenamento jurídico que estabelece o início da vida[3] e o seu término[4]; é este mesmo direito que estabelece quem pode ou não gozar de sua sexualidade, e como o fazer; é este mesmo direito que estabelece como, quando e de que forma se poderá exercer atividade laborativa. A lei capta de tal forma a vida humana, que ela mesma possibilita tanto a sua insacrificabilidade como a sua matabilidade.
Neste sentido, torna-se, pois, compreensível a seguinte passagem da Vontade de Saber: “O ‘direito’ à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o ‘direito’ de resgatar, além de todas as opressões ou ‘alienações’, aquilo que se é e tudo o que se pode ser, este ‘direito’ tão incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi a réplica política a todos estes novos procedimentos do poder” (FOUCAULT, 2005/136).
Assim, verifica-se a indistinção existente entre aqueles sujeitos de que acima se falou, apesar das alegadas diferenças entre os regimes políticos em que vivem. Se o campo de concentração é o local por excelência da bio(tanato)política, talvez o fato de o mesmo ter sido praticado em toda a sua crueza e inenarrabilidade por um regime totalitário como o nazista por si só responda aos questionamentos relacionados ao “como?”, ao “porque?” e ao “de que modo foi possível?”. Mas estas perguntas ficam sem respostas quando os Estados Unidos da América, que se atribui o posto de baluarte da democracia para o resto do mundo, pratica a mesma técnica de captação da vida nua em relação aos “detentos” de Guantánamo.
Segundo Judith Butler, a negação da situação de prisioneiros de guerra (POWs) àqueles detentos, o que segundo a Doutrina Bush excepcionaria a aplicação do Tratado de Genebra[5], já que ele são “combatentes ilegais”, sem que nenhum organismo internacional, mesmo a ONU, tenha contestado juridicamente (e não retoricamente como se o fez) esta prática, lançou aquelas pessoas num verdadeiro “limbo” jurídico, na medida em que estão completamente destituídos da proteção de qualquer estatuto jurídico: são meras vidas nuas (BUTLER, 2002/1-9).
E também não é esta a situação dos refugiados nos campos da África? Ou dos moradores de Santana, Roraima, que recebiam a importância de R$ 7,00 (sete reais) ao mês, para servirem de cobaias humanas nos estudos sobre a malária ali realizados por pesquisadores brasileiros e estadunidenses?
Se o mundo moderno vive numa permanente situação de anomia, em que o campo de concentração, e não a pólis, é o local em que se decide qual vida humana merece ou não ser vivida, é fato que ele se encontra naquela situação denominada por Pierre Bordieu de “T.I.N.A.”, anagrama que quer significar “there in no alternative” (“não existe alternativa”) (SINGER, 1999/2).
Enquanto a indiscernibilidade entre a vida e a lei, entre o direito e o estado de exceção, entre a natureza e a cultura for regra, e não exceção, não será possível ao homem alcançar, em uma comunidade política, aquele “belo dia” de que falou Aristóteles, continuando a ser aquilo que Foucault afirmou: “[…] um animal vivente e, além disso, capaz de existência política […]”. Uma vida insacrificável, porém matável, afinal, como afirma Slavoj Zizek: “[…] a distinção entre os que se incluem na ordem legal e o Homo sacer não é apenas horizontal, uma distinção entre dois grupos de pessoas, mas, cada vez mais, também uma distinção vertical entre as suas formas (superpostas) como se pode tratar as mesmas pessoas – resumidamente: perante a Lei, somo tratados como cidadãos, sujeitos legais, enquanto no plano do obsceno supereu complementar dessa lei incondicional vazia, somos tratados como Homo sacer” (ZIZEK, 2003/47).
Notas sobre o autor:
Giorgio Agamben nasceu em Roma, 1942. É formado em Direito pela Universidade de Roma, onde defendeu tese sobre o pensamento político de Simone Weil. Foi aluno de Martin Heidegger nos Seminários em Le Thor nos anos de 1966 (Heráclito) e 1968 (Hegel). Foi responsável pela edição italiana da obra completa de Walter Benjamim. É professor de filosofia no Instituto Universitário de Arquitetura, em Veneza, Itália, sendo titular da cadeira Baruch de Spinoza na European Graduate School. Foi diretor do Collège International de Philosophie, Paris. É autor da série Homo Sacer [Homo sacer: O poder soberano e a vida nua I, Estado de exceção (Homo Sacer II.I), Que resta de Auschwitz: O arquivo e o testemunho (Homo sacer III), Il regno e la gloria. Per una genealogia teológica dell’economia e del governo (Homo sacer II.II)] e Il sacramento del linguaggio: Archeologia del giuramento [Homo Sacer II.III]; Profanações; A Linguagem e a morte: Um seminário sobre o lugar da negatividade; Il tempo che resta: un commento alla Lettera ai Romani; Infância e História. Destruição da experiência e origem da história; L’operto: L’uommo e l’animale; Mezzo senza fine; La comunità che viene; Estâncias: A palavra e o fantasma na cultura ocidental; Nudità, dentre outros títulos. Atuou no filme de Pier Paolo Pasolini, O Evangelho Segundo São Mateus, no papel do apóstolo Felipe.
Professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Rondônia. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia, turma de 1996. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
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