Pode o juiz condenar alguém sem
que a materialidade do delito esteja devidamente demonstrada pela prova dos
autos? Segundo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em se tratando do delito
do art. 14 (associação para tráfico) da Lei 6.368/76, isto é perfeitamente
possível, porque não se trata de crime que deixa vestígios.[1]
Permissa venia, tal decisão não tem juridicidade alguma, porque é inadmissível que
se sustente, em
um Estado Democrático de Direito como se pretende ser o
nosso, que alguém possa ser condenado sem prova da existência do crime a si
imputado. Condição sine qua non para
que a sanção penal seja imposta a alguém é que a materialidade da infração
esteja cumpridamente provada, pois em nosso sistema ninguém pode ser condenado
sem que haja prova da existência do crime.
É certo que, para o reconhecimento
do crime de associação para tráfico, não se exige a realização de exame de
corpo de delito, já que, de ordinário, tal crime não deixa vestígios materiais
a serem observados através do exame pericial. Mas daí a dizer que é despicienda
a prova da materialidade de tal crime vai uma distância enorme.
Não raro acontece, como na decisão
acima mencionada, confusão entre prova da materialidade do delito e exame de
corpo de delito. A primeira é a prova da própria existência do delito; o
segundo é o exame pelo qual o perito (pessoa com qualidades ou conhecimentos
técnicos em condições de esclarecer os fatos ainda não aclarados) verifica a
existência dos elementos objetivos do tipo penal, para constatar a existência
do resultado de que depende a existência do crime (CP, art. 13, caput). Serve,
pois, o segundo, para demonstrar a existência da primeira, nos casos em que a
infração deixa vestígios.
Mas, o que vem a ser materialidade
do delito?
Material é aquilo que diz respeito
à matéria, em seu aspecto físico e corpóreo. Materializar, portanto, é tornar
material alguma coisa, isto é, tornar alguma coisa sensível, com um corpo que
possa ser apreciado. Ela revela a “existência real das coisas, que se vêem,
se apalpam, se tocam, porque se constituem de substância tangível”.[2]
No caso de infração penal, a materialidade diz respeito à prova que traz a lume
o corpo de delito, isto é, os elementos que caracterizam o tipo penal imputado
ao acusado e que, portanto, tem de ser demonstrada pelo julgador, sob pena de
absolvição do acusado por falta de prova da existência da infração (art. 386,
II, do CPP).
A prova da materialidade é
indispensável para a condenação em todo e qualquer delito e não apenas naqueles
que deixam vestígios. Como ensina JUAN JOSE GONZALEZ
BUSTAMANTE, “comprobar el cuerpo del delito es comprobar su materialidad.”,
sendo que “La base en todo procedimiento del orden criminal, es la
comprobación plena del cuerpo del delito.”[3]
Se se afirma que existe a
materialidade, está-se dizendo que a existência do crime está provada, ou seja,
a infração está evidenciada por elementos corpóreos capazes de serem observados
ou apreciados sensorialmente. Estando demonstrada a materialidade, está o corpo
de delito comprovado, isto porque “corpo de delito” nada mais é que “o registro
sobre a existência do crime, com todas as suas circunstâncias, tornando-se, por
essa forma, a base para o procedimento penal. E por isso, por ser a prova material do crime (sem grifo no
original), que se fixa nela, para conservá-lo sempre em evidência, torna-se
peça substancial do processo.”[4]
É o corpo de delito o “fenômeno revelador do ilícito penal,
produzido no âmbito do relacionamento humano, e apreciável sensorialmente”,
como diz ROGERIO LAURIA TUCCI[5],
que ensina:
“Em
epítome, na sua acepção estritamente processual, corpo de delito, – expressão multissecular e, não obstante,
imperfeitamente adotada para significar, ao invés do objeto da constatação, a própria
atividade constatatória, – diz com a necessidade de cognoscer e documentar,
procedimentalmente, mediante a observância de regras específicas, a prática
criminosa.”
Na mesma obra acima, em nota de
rodapé, ROGERIO LAURIA TUCCI adverte:
“também quanto aos “facta transeuntes” deverá ser, oportunamente,
procedida à comprovação do corpus delicti, para que se possa impor a punição ao
imputado de prática criminosa. A injúria verbal, por exemplo, será provada por
testemunhos, ou outro meio admitido em Direito, como a prova complementar
consistente numa gravação – um dos métodos da moderna técnica eletrônica de
perpetuação do som.”[6]
Para FREDERICO MARQUES, “corpo de delito se identifica com o que
MEZGER denomina de “elementos objetivos da figura típica, ou, então, ao que o
art. 66 menciona, por conversão de sentido, como existência material do fato.”[7]
De outra feita, escrevendo sobre
conceitos jurídicos, asseverou FREDERICO MARQUES que “com os estudos dogmáticos-jurídicos sobre a “tipicidade”, a noção
processual do “corpo de delito” se tornou clara, coerente e simples. O antigo
corpus delicti não passa do fato típico comprovado. Daí o que JIMENEZ DE ASÚA
denomina de “valor processual da tipicidade.”[8]
Corpo de delito é, portanto, o
fato em sua própria materialidade. Aliás, é isso que ensina NICOLA FRAMARINO
DEI MALATESTA, quando diz que “é corpo de
delito tudo que consiste na materialidade do meio imediato, ou de efeito
imediato do delito.”[9]
Ele é, no dizer desse mesmo autor, constituído pela “materialidade”,[10]
sem a qual não há crime.
Portanto, quando se fala em
materialidade do delito, obviamente não se está falando de exame pericial, como
parece ter entendido o v. acórdão acima mencionado, porque exame de corpo de
delito é apenas o “exame inspecional do fato”, sendo unicamente um dos meios
usados para retratar o corpo de delito. Este existirá sempre que algum crime
ocorrer; já aquele, só será viável quando se tratar de infração que deixa
vestígios.
No caso específico do crime de
associação para tráfico, a prova da materialidade há de ser feita pela colheita
de prova de fatos que revelem a união ou reunião dos criminosos para a prática
dos crimes tipificados pelos arts. 12 e 13 da Lei 6.368/76.
É pacífico o entendimento, tanto
da doutrina como da jurisprudência, como adverte VICENTE GRECO FILHO, que para
a caracterização do crime do art. 14 da Lei 6.368/76, “Haverá necessidade de um animus associativo, isto é, um ajuste prévio
no sentido da formação de um vínculo associativo de fato, uma verdadeira
societas sceleris, em que a vontade de se associar seja separada da vontade
necessária à prática do crime visado.” Por isso, continua o citado autor, estará excluído “o crime, no caso de convergência ocasional
de vontades para a prática de determinado delito, que determinaria a
co-autoria.”[11]
Associar significa unir, juntar,
reunir, aliar, combinar. A associação é a ação ou efeito de associar. Como diz
GERALDO GOMES, “uma associação, via de
regra, se estabelece, quanto aos seus fins, para um determinado conjunto de
propósitos que primam pela reiteração na identidade de causas e fins, ou pelo
estabelecimento de um mercado consumidor que lhes dê vazão ao mercado
fornecedor constante.”[12]
A associação é, pois, revelada por
atos e fatos devidamente provados que mostrem a “existência de um liame
associativo vinculando os parceiros, ocasionais ou estáveis, naquele sentido
próprio da demanda, em torno da recepção pelo mercado fornecedor da mercadoria
clandestina e sua colocação no mercado consumidor.”[13]
Esse liame associativo, sendo elemento do tipo legal, não pode ser presumido,
devendo ser cumpridamente provado pela acusação, o que poderá ser feito pela
demonstração, por exemplo, do conluio dos agentes visando a prática criminosa,
“pela cooperação material, financeira, intelectual, ou laboral” entre os
vários agentes[14],
pelo acordo de vontades para a prática dos crimes, pelas “reuniões prévias
ou locais de reuniões…, …fixação das bases de lucro ou comissões”[15],
pela distribuição das tarefas de cada um, pelas formas de cooperação entre os
membros do grupo, programas de ações gerais e específicos, montagem das
operações delituosas, adesão de cada um à empreitada proposta, seja
pessoalmente ou através de emissários, os planos e projetos criminosos,
corretagens, fixação de pontos de distribuição, “esforços para
comercialização … divisão de tarefas … e partilha de preço”[16],
dentre outros.
Dessa forma, forçoso é concluir
que em nenhuma hipótese pode ser dispensada, para a condenação, a prova da
materialidade da infração penal, seja ela material, formal ou de mera conduta,
visto que a materialidade nada mais é que a própria demonstração da realidade
da existência do crime. O que pode ser dispensado, conforme a hipótese, é o
exame de corpo de delito, pois a infração pode não deixar vestígios.
Cuidando-se de crime de associação
para tráfico, é dispensável, para o seu reconhecimento, a realização de exame
de corpo de delito, pois ele nem sempre deixa vestígios. A prova da
materialidade pode ser feita através de elementos fáticos que demonstrem a
vinculação, o interesse comum entre os parceiros, no sentido de, com uma certa permanência da societas criminis, e cada um cooperando a seu modo (colaboração
material, financeira, intelectual, ou laboral) para o sucesso da atividade
criminosa, receber do mercado fornecedor as substâncias proibidas, para repasse
ao mercado comprador. Não é cabível, entretanto, em qualquer hipótese, a
dispensa da prova da sua materialidade em decisão condenatória, pois se não há
tal prova é porque a existência do crime não está demonstrada.
Notas:
([1]) Segundo
consta do acórdão, “A não demonstração da materialidade do crime atribuído ao
apelante, alegada pela defesa, não obstante sua referência nas fls. 1780,
torna-se despicienda, porquanto não se exige exame pericial para o delito do
art. 14 da Lei de Tóxicos, o qual, como é sabido, não deixa vestígios.” (sic).
Mais à frente, o relator, Des. Edelberto Santiago, seguido dos Des. Luiz Carlos
Biasutti e Zulman Galdino, afirma que “A materialidade exigida pela defesa,
conforme dito na preliminar, é desnecessária para o referido delito, pois o
mesmo não deixa vestígios”.
([5])
Do Corpo de Delito no Direito Processual Brasileiro, Saraiva, 1978, p. 16;
([7])
“Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro” de Pimenta Bueno, RT, 1959,
p. 344;
([11])
GRECO FILHO, Vicente. “Tóxicos prevenção – repressão”, SP: Saraiva, 5. ed., p.
105. Veja, também, a propósito, dentre tantas outras, as decisões: TJMG, Ap. Crim. n. 20.541, rel. Des. Rubens Lacerda, Jurisprudência
Mineira, vol. 106, p. 304; TJSP, Ap. Crim. n. 210.395-3/9, rel. Des. Emeric
Levai, RT 742:615.)
Juiz de Direito aposentado em Minas Gerais e Professor da UNIVALE.
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