Ney Moura Teles – um dos mais renomados e promissores criminalistas contemporâneos – está coberto de razão ao afirmar que:
“A privação da liberdade não intimida e, o que é mais grave, não só não recupera o condenado, com também o transforma negativamente. Não podia ser diferente, pois não se ensina a viver em liberdade, respeitando os valores sociais, suprimindo a liberdade do educando. É como desejar ensinar um bebê a caminhar atando-lhe as pernas. Ele jamais vai conseguir” (Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2004, v. 1, p. 52).
Pude constatar isso durante a primeira saída temporária que obtive após quase uma década de enclausuramento absoluto. As impressões desse episódio de minha vida constituem esta crônica que também trás noções elementares sobre o benefício enfocado.
Prevista nos artigos 122 a 125 da Lei de Execução Penal (nº 7.210, de 11 de julho de 1984), a autorização para saída temporária pode e deve ser concedida aos condenados que cumprem pena privativa de liberdade no regime semi-aberto. A legislação prevê três hipóteses de saída temporária, a saber: para visita à família; para freqüência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do segundo grau ou superior; e, para participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social. Em qualquer caso, a concessão da autorização depende da satisfação de três requisitos: comportamento adequado; cumprimento mínimo de um sexto da pena, se o condenado for primário, ou de um quarto, se reincidente; e, compatibilidade do benefício com os objetivos da pena.
Mas não é só. Antes de conceder a autorização para saída temporária, o juiz da execução consulta a administração penitenciária a respeito da conveniência do pedido e solicita ao representante do Ministério Público um parecer sobre a concessão, ou não, do benefício.
Como no meu caso concreto aqueles pressupostos estavam satisfeitos, consegui a autorização. A finalidade da saída: visitar meus familiares em virtude das comemorações de Natal e de Ano Novo. E as emoções começaram antes mesmo da data e do horário da saída. Iniciaram-se com a ciência do deferimento do pedido. Não dá para descrever a alegria que senti, mas posso afirmar que foi algo semelhante ao que experimentei quando conquistei a progressão ao regime semi-aberto – sem a qual eu não conseguiria a autorização para a saída temporária.
Uma vez liberado e já a caminho de casa, um turbilhão de fatos vieram-me à mente. Talvez a expressão “pássaro fora da gaiola” defina bem como eu me sentia. O ar da liberdade pareceu-me muito mais puro do que aquele que há instantes atrás eu respirava no cárcere.
Antes de entrar no veículo que me conduziria de Mogi Mirim para a capital de São Paulo – local onde eu moro – fiz uma silenciosa prece de gratidão. A viagem transcorreu tranqüila e já na primeira parada constatei o quanto eu estava desatualizado. Na lanchonete havia um sistema de comandas eletrônicas – até a época que antecedeu minha prisão esses controles eram feitos por meio de fichas de papel ou de cartolina. Surpresa semelhante tive com os ônibus de transporte coletivo que – já faz algum tempo – operam com bilhetes também eletrônicos. Ainda com relação a equipamentos eletrônicos, devo destacar que fiquei espantado com a quantidade de pessoas, inclusive crianças pequenas, que utilizavam telefones celulares – mas esses aparelhos, por maiores que tenham sido os esforços das autoridades, não permaneceram do lado de fora dos portões dos presídios de nosso país, como todos sabem.
Ao chegar em casa tive uma crise de choro. Ali constatei que a pena privativa de liberdade de longa duração, a ser cumprida única e exclusivamente no regime de maior severidade – qual seja: o integralmente fechado –, constitui-se numa verdadeira monstruosidade, semelhante – a meu ver – à prática dos hediondos crimes que pretende punir. No caso dos condenados que – como eu – não ostentam periculosidade, ou seja, que não são perigosos, a situação se agrava ainda mais, pois tal medida mostra-se extremamente exagerada e desnecessária. Há muito tempo sabemos que o exagero punitivo nunca produziu, como, de fato, não produz, nem nunca produzirá, resultados satisfatórios. Muito pelo contrário, revolta, avilta, embrutece o ser humano.
Felizmente, consegui – no meio do percurso, isto é, após ter cumprido quase a metade da pena de vinte anos de reclusão que me foi imposta (em retribuição à participação indireta que tive num crime de roubo que resultou na morte da vítima) – a progressão ao regime semi-aberto. Agora, talvez, conseguirei minimizar aqueles efeitos negativos aos quais se referiu o professor Ney Moura Teles. Agora, quem sabe, conseguirei minorar as conseqüências do processo despersonalizador e dessocializador ao qual fui submetido.
Explico: é que após tantos anos convivendo num ambiente tão hostil como a prisão, acabei “esquecendo” as regras de convivência em sociedade e estando livre passei a me sentir como um “peixe fora d’água”. Por essa razão, durante o período em que estive “livre”, a todo instante eu ficava me policiando, observado se estava me comportando de forma adequada. É muito difícil – senão impossível – tentar agir com naturalidade quando sua própria natureza foi subvertida, transformada. Talvez isso explique porque, no cárcere, muitas vezes eu me senti como um animal enjaulado.
Na rua eu observava a tudo e a todos atentamente. Era como se eu tivesse vindo de um outro planeta, muito distante da Terra. Perguntava os preços dos produtos, especulava sobre alguns assuntos, etc. Mas, por outro lado, também fui “alvo” de uma enxurrada de perguntas por parte de alguns familiares e “amigos”. Eu queria esquecer minha condição de “licenciado”, mas algumas pessoas – talvez sem o perceber – me faziam lembrar constantemente. A alternativa era sair, conhecer pessoas diferentes. Estas, por mais incrível que possa parecer, me tratavam melhor do que alguns membros da família. Foi muito difícil ter que engolir o preconceito velado por parte de alguns “entes queridos”.
Por outro lado, eu me diverti com as justificativas apresentadas por alguns familiares para o meu “afastamento”. Alguns diziam que eu tinha ido estudar fora do Brasil, outros que eu havia me mudado para o interior do estado, como se o fato de eu ser presidiário fosse algo vergonhoso para eles. Pode até ser, de certo modo, mas sou o que sou: o resultado de minhas escolhas, sejam boas, sejam más. Isso nem eles, nem ninguém pode mudar. Além disso, mais vergonhoso seria se eu não tivesse aprendido a lição.
Aqui vale um parêntese para enfatizar que a maior das lições que eu aprendi sobre as leis nestes dez anos de estudos autodidatas diz respeito à lei natural mais evidente: a de causa e efeito ou de ação e reação. Assim sendo, reconheço que atualmente colho o que plantei no passado, ao passo que semeio o que ceifarei no futuro.
Voltando aos meus relatos, destaco que também me diverti com a “vigilância” ostensiva que foi feita sobre mim – mais rigorosa do que a do presídio, eu diria. Minha mãe, com toda a razão, “tomou conta de mim”. E eu, como filho que aprendeu a lição da forma mais dura – ou seja, por meio da dor –, procurei compreendê-la (o que não impediu algumas pequenas discussões geradas pela divergência de opiniões e que, nem por isso, tiraram a alegria desse primeiro reencontro em liberdade). Senti-me como um adolescente ao ter que dizer aonde iria, com quem iria e a que horas retornaria. Tal preocupação não foi por minha parte interpretada como desconfiança, mas sim como um bem-querer, um zelo de uma mãe amorosa.
Minha família aumentou consideravelmente durante esses anos em que “estive fora”. Foi maravilhoso ver alguns familiares que eu não conhecia – a não ser por meio de fotos. Adorei meus novos primos e meus novos sobrinhos. O mais importante é que eles, em sua inocência infantil, não opuseram qualquer barreira ao relacionamento. Ao contrário, adoraram conhecer esse “novo” parente e só queriam brincar. Mas fiquei admirado ao perceber que algumas dessas crianças sequer sabiam que eu existia. Também foi muito bom rever meus avós – todos já bem idosos, mas saudáveis e lúcidos –, meu tios e meus irmãos.
Fiquei feliz com a facilidade que tive em conseguir um emprego. Talvez minha facilidade de comunicação tenha me favorecido durante algumas conversas informais e em especulações que fiz. É evidente que tais oportunidades de trabalho não tinham – como, de fato, não têm – muito a ver com o que eu havia idealizado, mas já era um começo. Nestas ocasiões, raciocinei: o baixo salário é certamente melhor do que nada.
Achei legal andar de metrô após tantos anos. Mas a melhor parte desse passeio foi quando o trem parou na estação Carandiru. Senti um misto de alívio e de felicidade ao ver que no local onde havia a antiga Casa de Detenção “Professor Flamínio Fávero” – palco do terrível massacre de 111 detentos pela tropa de choque da polícia militar – está sendo construído um centro cultural. É difícil acreditar que um lugar onde aconteceram tantas desgraças está sendo transformado no palco de transformações sociais, de aprendizado, de formação e qualificação profissional.
Pode parecer engraçado, mas durante a saída temporária não senti vontade de consumir bebidas alcoólicas, nem de comer algum prato especial. O que eu queria era permanecer ali – livre! A sensação de poder escolher nunca foi tão valiosa para mim. Reassumir, ainda que temporariamente, o direito de ir e vir ou ficar foi uma experiência indescritível.
Há muito mais ainda para contar, mas a exigüidade de espaço não o permite. Por isso, e para finalizar, relatarei o meu retorno e tecerei elogios ao benefício por mim usufruído.
Ao longo dos anos me acostumei a ouvir, de meus colegas de infortúnio que saiam, queixas no sentido de que o momento de retornar ao presídio era dramático, terrível. Muitos diziam que “dá a maior neurose” ter que voltar para a prisão “com as próprias pernas”, isto é, por conta própria. Tal pensamento reflete a “pressão” que esses reeducandos sofrem por parte de seus pares. Em alguns casos a tortura psicológica é tamanha que o reeducando não volta, justamente pelo fato de ter medo de sofrer possíveis – e até comuns, vale destacar – represálias.
Numa das penitenciárias pelas quais passei havia uma regra não escrita, imposta pela massa carcerária, segundo a qual aquele que retorna para o presídio após a saída temporária tem que ceder sua cama (“burra”, “jega” ou “galhada”, na linguagem prisional paulista) para outro preso que dorme no chão (dormir no chão sempre foi, é e talvez sempre será algo comum no sistema penitenciário brasileiro). Além disso, o recluso que volta perde o “direito” a todo e qualquer tipo de reclamação. Isso porque ele, antes de sair, já conhecia as condições – muitas vezes lastimáveis – do local para onde retornou por imposição de sua própria “consciência” ou mesmo por pressão de familiares que, não raras vezes, ameaçam abandoná-lo à própria sorte caso não volte e quite sua dívida para com a Justiça. Assim sendo, aquele que – seja lá por qual motivo for – retorna para o cárcere após a “saidinha” tem que suportar calado o tempo que resta até obter uma nova progressão ou o livramento condicional.
Mesmo assim, com todas as dificuldades e apesar das severas e injustas críticas que recebe, o benefício ora enfocado é legítimo e extremamente benéfico para o reeducando e para seus familiares (hipótese enfocada neste texto). É lógico que o retorno gradativo trás melhores resultados que a reinserção social direta, abrupta; principalmente se o reeducando for condenado a uma pena privativa de liberdade de longa duração. Por essa razão, sou totalmente favorável ao sistema progressivo e aos benefícios a ele inerentes – mesmo no caso dos condenados pela prática de crimes “rotulados” como hediondos, ainda que com outros critérios para a ultrapassagem de estágio.
No meu caso o retorno ocorreu sem qualquer tipo de problema. Isso porque assumi um compromisso com a minha própria felicidade e não iria – como, realmente, não vou – deixar que nada, nem ninguém, atrapalhe meus projetos futuros. Creio que minhas “experiências” na prisão me favoreceram, de certo modo. Além disso, o fato de eu estar cumprindo pena num Centro de Ressocialização – presídio destinado àqueles que realmente estão interessados em se ressocializar e no qual só são admitidos reeducandos que passam por um rigoroso processo de seleção – facilitou sobremaneira minha volta. Neste centro há, inclusive, um trabalho de preparação que antecede a saída temporária. Antes de sair, o reeducando é orientado por assistentes sociais e por psicólogas que lhe dão todo o apoio necessário. Por essa razão, todos os beneficiados retornam, resultando no índice de aproveitamento de 100%. No sistema penitenciário “tradicional” esse indicador cai um pouco, como veremos.
Nas ocasiões em que a autorização para a saída temporária para a visita à família é concedida em maior número (Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Pais, Dia das Crianças e Natal), geralmente vozes se levantam contra essa “regalia” – como a denominam seus opositores. Basta que algum beneficiado se envolva em alguma encrenca, ou pratique um outro crime durante o período da saída, para que os defensores da lei e da ordem se manifestem. Quando isso acontece, dizem que o Juiz concedeu licença para matar, roubar ou furtar, conforme o delito cometido. Também se enfurecem quando o beneficiado não volta, demonstrando que não estava preparado. Nessa hipótese dizem que a Justiça “soltou” um monte de bandidos.
Pois bem.
Como saber se o reeducando está realmente preparado para voltar ao convívio social sem antes testá-lo? A saída temporária é um desses testes que, como é de se esperar, comporta certo risco. O mesmo ocorre com o trabalho externo e com outros benefícios legalmente previstos para os presos que cumprem pena no regime semi-aberto.
Como bem destacou Julio Fabbrini Mirabete:
“As saídas temporárias servem para estimular o preso a observar boa conduta e, sobretudo, para fazer-lhe adquirir um sentido mais profundo de sua própria responsabilidade, influindo favoravelmente sobre sua psicologia” (Lei de Execução Penal: Comentários à Lei nº 7.210, de 11-7-1984. 11ª ed., rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2004, p. 507).
Assim, temos que a finalidade da saída temporária não é outra senão a de preparar, de forma adequada, o retorno daquele que, um dia e por algum motivo, delinqüiu.
Como importante etapa do sistema progressivo de execução da pena privativa de liberdade, a saída temporária reduz o caráter de confinamento absoluto. Ao mesmo tempo, serve como um autêntico meio de prova que permite verificar se o condenado já alcançou um grau de resistência que lhe permita vencer as “tentações” da vida livre e um sentido de responsabilidade suficiente para não frustrar a confiança que lhe é depositada ao se lhe deferir o benefício.
No Estado de São Paulo, segundo dados da Secretaria da Administração Penitenciária, em média, 10% dos condenados beneficiados não retornam para o presídio. Estes reeducandos demonstram que não estavam preparados, pois não cumpriram com o compromisso assumido. Por essa razão, passam a ser considerados foragidos da Justiça e, uma vez recapturados, perdem o direito ao regime semi-aberto.
Desta forma, para cada 1000 presos que saem, 100 deles não voltam. Um número assustador? Claro que não! Basta que se analise a questão por um outro ângulo. Um enfoque diferente mostra que, na hipótese aludida, a maioria dos beneficiados, ou seja, 900 reclusos, retornam para o estabelecimento penal. Estes números comprovam que o benefício é salutar e trás resultados promissores em relação à reinserção social dos condenados.
De todo modo, o aproveitamento do benefício depende sempre da concessão criteriosa, que somente deve ser deferida ao condenado que demonstre compatibilidade com a liberdade decorrente da saída temporária.
Por tudo isso, e parafraseando a inesquecível lição do professor Ney Moura Teles, ouso afirmar que:
“Só se ensina a viver em liberdade, respeitando os valores sociais, devolvendo gradativamente a liberdade do educando. Mais do que isso, é necessário que se lhe proporcione condições para a harmônica (re)integração social, tal como está escrito no artigo 1º da Lei de Execução Penal”.
É autodidata em Direito. Paletsrante.
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