Resumo: Este trabalho tem por escopo proceder a um estudo sobre as prerrogativas reconhecidas pelo Direito Internacional aos chefes de Estados quando se encontrem no território de um terceiro Estado, com o intuito de garantir o pleno desempenho de suas funções na qualidade de representante estatal. A análise pauta-se, fundamentalmente, na doutrina, jurisprudência internacional e nos documentos legais relativos ao tema. Leva-se em consideração a questão das imunidades e privilégios que gozam os chefes de Estados quando estejam em visita oficial, privada ou incógnito, bem como com relação aos antigos chefes de Estado. Ademais, leva-se em consideração o estudo acerca das imunidades dos chefes de Estados em matéria de crimes internacionais.[1]
Palavras-chave: chefe de Estado – jus reprasentationis omnimodae – imunidade ratione personae – imunidade ratione materiae – privilégios – crimes internacionais
Abstract: This article discusses the prerogatives recognized by International Law to Heads of State when they are in foreign territory in order to ensure the performance of his/her official duties as a State representative. The analysis is guided primarily by legal doctrine, international jurisprudence and legal documents related to the subject. It will be demonstrated the main implications of immunities and privileges enjoyed by Heads of State when they are on official, privates and incognito visits, including former Heads of State. Moreover, it will be included in this article the study of immunity of Heads of States in respect of international crimes.
Keywords: Head of State – jus reprasentationis omnimodae – immunity ratione personae – immunity ratione materiae – privilégios – international crimes
Sumário: Introdução. 1. Chefes de Estados. 1.1. Aspectos gerais: conceito e categorias. 1.2. O reconhecimento da qualidade de chefe de Estado. 1.3. Jus Reprasentationis Omnidae. 2. Prerrogativas dos Chefes de Estados: Imunidades e Privilégios. 2.1. Conceitos de imunidade e inviolabilidade. 2.2. Teorias que explicam as prerrogativas dos chefes de Estado. 2.2.1 Teoria do caráter sagrado e o princípio do par in parem non habet imperium. 2.2.2 Teoria da extraterritorialidade. 2.2.3. Teoria do caráter representativo. 2.2.4. Teoria do interesse da Função. 2.3. Prerrogativas dos chefes de Estado em função. 2.3.1 Análise legal das Convenções Internacionais. 2.3.2. Visitas oficial, privada e incógnito. 2.4 Antigos chefes de Estado. 3. Imunidade dos chefes de Estados em matéria de crimes internacionais. 3.1 Tribunais Internacionais. 3.2 A imunidade perante tribunais estrangeiros. Considerações finais. Referências bibliográficas.
Introdução
A necessidade de se estabelecer relações entre os diferentes sujeitos de Direito Internacional existe desde tempos remotos[2]. Essas relações refletem os mais diversos níveis com uma crescente interdependência e complexidade entre os vários atores no âmbito da sociedade internacional. A própria estrutura desta comporta uma atividade intensa no que diz respeito às relações entre os Estados que são variadas e incluem, dentre outros aspectos, o estabelecimento de missões diplomáticas e consulares, a negociação e celebração de tratados internacionais e, também, a visita de representantes estatais a fim de tratar de assuntos de interesse comum.
Logo, os Estados por meio de seus órgãos e representantes, aos quais o seu direito interno atribui as competências necessárias para tanto desenvolvem suas atividades no âmbito externo. Neste contexto, por constituir uma das autoridades internas do Estado dotada da máxima competência para a condução da ação internacional e, consequentemente, considerado o principal representante estatal, necessário se faz analisar as prerrogativas que possuem os chefes de Estado no âmbito de suas relações internacionais, isto é, quando se encontram no território de um terceiro Estado. Constitui, assim, um dos órgãos que cumpre funções de especial relevância internacional no que se denomina de diplomacia direta[3] ou de cúpula[4].
O presente artigo consiste em identificar, sem pretensão de exaurimento, as imunidades e os privilégios diplomáticos dos chefes de Estado numa perspectiva jurídico-teórica, partindo de alguns conceitos e premissas essenciais para a análise do tema.
De início, o estudo incidirá sobre os aspectos gerais acerca do chefe de Estado, apresentando, deste modo, alguns conceitos doutrinários, bem como uma breve referência sobre o reconhecimento da qualidade de chefe de Estado. Neste capítulo compete elucidar, também, o princípio do jus reprasentationis omnimodae relativamente ao chefe de Estado, ao qual é presumido o direito de agir internacionalmente em nome do Estado que representa em todos os seus aspectos. A análise desses preceitos iniciais assume importância na identificação da posição do chefe de Estado em direito internacional e, consequentemente, na análise de suas prerrogativas quando se encontra no exterior.
Num segundo momento serão abordadas as imunidades e os privilégios diplomáticos do chefe de Estado, de maneira que ao desenvolver suas atividades em âmbito internacional goza de um regime de prerrogativas reconhecido pelo Direito Internacional, no entanto derivado principalmente do direito costumeiro com o objetivo de garantir o pleno desempenho de suas funções na qualidade de representante estatal.
Neste capítulo, analisar-se-ão os conceitos de imunidade incluindo-se as imunidades ratione materiae e ratione personae, bem como as definições de privilégio e inviolabilidade. Considerar-se-ão as teorias que explicam as prerrogativas conferidas aos chefes de Estado em razão de qualidade oficial que estes possuem. Imprescindível, dessa forma, o estudo acerca da imunidade de jurisdição penal, civil e administrativa da análise doutrinária e jurisprudencial, bem como das convenções internacionais sobre o tema quando o chefe de Estado se encontra em visitas oficial, privada ou incógnito. Por fim, o estudo centra-se com relação aos antigos chefes de Estado.
Em prosseguimento adentrar-se-á no tema das imunidades dos chefes de Estados em matéria de crimes internacionais. Para a análise deste assunto que certamente apresenta um grau de complexidade é preciso considerar duas situações distintas: os Tribunais Internacionais e a referida imunidade perante os Tribunais estrangeiros, a partir da análise doutrinária e jurisprudencial. Dentro de cada uma dessas perspectivas, levar-se-ão em consideração as imunidades dos antigos chefes de Estado e daqueles que estejam em exercício.
Apresentadas estas considerações que procuram, preliminarmente, dispor sobre as perspectivas abordadas no decorrer do estudo, insta esclarecer que a pesquisa, de modo geral, baseia-se nas seguintes questões: Quais os fundamentos das prerrogativas concedidas aos chefes de Estados? Estas prerrogativas encontram-se numa categoria sui generis? Como conciliar a necessidade de garantir as prerrogativas desses agentes como meio essencial para condução das relações exteriores e, ao mesmo tempo, a proteção das normas de direito humanos, punindo, dessa forma, aqueles que cometem crimes internacionais?
1. Chefes de Estado.
1.1 Aspectos gerais: conceito e categorias
O Direito Internacional não define a natureza ou qualidade de chefe de Estado. De fato, a natureza do cargo desta figura é uma questão em que cada Estado determina e qualifica em seu ordenamento jurídico interno[5]. Logo, os Estados definem qual agente é competente para exercer os poderes executivos substantivos de governo, e qual deles é responsável pelas funções essencialmente formais, isto é, de representação.
Embora não haja uma definição formal no Direito Internacional no que tange ao chefe de Estado, é sem dúvida verdade que a prática internacional reconhece a capacidade deste para atuar em nome do Estado na ordem externa[6]. Sobre o assunto, a Corte Internacional de Justiça na sentença relativa ao caso dos testes nucleares entre França e Austrália, afirmou que as declarações feitas pelo então Presidente francês eram consideradas como atos do próprio Estado que o agente representa[7].
A Convenção de Viena de 1969 sobre o Direito dos Tratados estabelece que os chefes de Estados são considerados representantes do seu País em virtude das suas funções e independem de apresentação de plenos poderes, concedendo-os diretamente as competências para adoção ou autenticação de um tratado ou para exprimir o consentimento do Estado em ficar vinculado por uma convenção internacional[8]. Nesse sentido, independente das limitações que o direito interno impõe aos seus poderes, certamente o chefe de um Estado soberano é “tomado pelo direito internacional como gozando de plenos poderes de vinculação jurídico-internacional do Estado que representa[9]”.
Neste contexto de conceituação, assinala Manuel Diez de Velasco[10] que chefe de Estado é o órgão de superior categoria política e administrativa do Estado, dotado de um desdobramento funcional, mas que corresponde ao direito interno estabelecer sua forma de designação e suas competências, inclusive no que tange às relações internacionais[11]. Na mesma linha, Arthur Watts[12] confere a este agente a função de governante constitucional e titular do Estado podendo, entretanto, combinar as funções de chefe do Poder Executivo, atribuições qualificadas pela lei interna do País[13].
Sendo assim, pode-se definir chefe de Estado como uma autoridade que exerce – de jure ou de facto – as mais altas funções em um Estado[14], que podem corresponder na capacidade de celebrar tratados e atos internacionais e acreditar representantes diplomáticos estrangeiros, tratando-se de uma figura que, segundo o professor Jorge Miranda[15], assume a condução ou direção das atividades do Estado, devendo submeter-se à autoridade da Constituição.
De se destacar que em alguns países a qualidade de chefe de Estado pode ser conferida a uma única figura ou por um órgão formado pela pluralidade de pessoas[16]. De fato, os Estados adotam diferentes estruturas e denominações no que diz respeito a esses agentes. Tradicionalmente distingui-se entre as formas de governo republicano e monarquista, caracterizando os chefes de Estado dentro da estrutura dos sistemas presidencialista ou parlamentarista.
Contudo, não cabe neste trabalho uma análise densa acerca desses sistemas, devendo-se ressaltar que atualmente não se tem feito uma distinção quanto ao tratamento substantivo entre as diferentes denominações de chefe de Estado[17] – monarca, rei, sultão, emir, presidente, dentre outros. Isto é, a doutrina unânime não faz distinção entre as diferentes categorias de chefes de Estado, em observância ao princípio da igualdade soberana dos Estados reconhecido pelo Direito Internacional.
O principio segundo o qual todos os chefes de Estado possuem a mesmo status no Direito Internacional não concerne somente à distinção entre monarquias e repúblicas, mas se aplica do mesmo modo ao interior dessas categorias, de maneira que todos têm o mesmo tratamento independentemente do título que possuem.
Sobre o tema, Francis Hamon e Michel Troper[18] distinguem os órgãos do poder executivo em monista e dualista. Segundo os autores, nos sistemas modernos o dualismo do executivo, correspondente ao chefe de Estado e ministros, conduz a uma repartição das tarefas entre os sujeitos. Ou seja, aquele assume uma função de representação enquanto que o governo detém a realidade do poder e gestão cotidiana. Nesse caso, o chefe de Estado pode ser um indivíduo – rei ou presidente – ou ainda um colegiado e o chefe de Governo pode ter denominações diversas, tais como Primeiro Ministro, Presidente do Conselho e Chanceler.
Vários são os exemplos que se têm no que tange aos chefes de Estados unipessoais ou investidos por um órgão colegial. Assim, na Suíça a autoridade diretiva e executiva suprema da Confederação é exercida pelo Conselho Federal Suíço, composto por sete membros eleitos para um mandato de 04 anos pela Assembleia Federal. Ainda, nos Emirados Árabes Unidos o órgão designado como a mais alta autoridade é o Conselho Supremo da Federação, composto pelos chefes de sete Estados. Interessante, também, o exemplo histórico ocorrido no Uruguai nos anos 50 em foi introduzido um sistema onde a autoridade suprema do Estado era exercida por um Conselho Nacional de Governo, composto por noves membros, responsável pela nomeação dos agentes diplomáticos uruguaios, além de deter o poder de declarar guerra e de concluir e assinar tratados internacionais.
Ademais, a qualidade de chefe de Estado pode ser conferida a um órgão com relação a mais de um Estado, a exemplo da situação do Reino Unido. Logo, a Rainha da Inglaterra é igualmente considerada chefe de alguns estados do Commonwealth. Portanto, no Canadá onde o sistema de governo é uma monarquia constitucional, a Rainha da Inglaterra é Rainha do País e chefe de Estado, de modo que o governador geral é seu representante no Canadá. Entretanto, na prática, este tem exercido todos os deveres de chefe de Estado não apenas no Canadá, mas também no estrangeiro.
1.2 O reconhecimento da qualidade de Chefe de Estado
Questão pertinente é a situação da determinação da qualidade de chefe de Estado de facto e de jure que pode ter consequências práticas quanto reconhecimento de imunidades e privilégios diplomáticos por um Estado. Conforme anteriormente se confirmou, a determinação quanto à intitulação de uma pessoa como chefe de Estado é assunto que especialmente corresponde ao direito doméstico dos Estados.
Sobre o assunto, Alvaro Borghi[19] ressalta que é preciso considerar como chefe do órgão estatal aquele que realmente carrega os mais altos cargos dentro do Estado, independentemente de ocupar essa posição legitimamente sob a lei ou pela força[20]. O autor afirma que o reconhecimento não somente do Estado, mas também de seu governo tem sido uma prática de alguns Estados, podendo, inclusive, conduzir a uma recusa à qualidade de chefe de Estado a pessoa que detenha um simples poder de fato, e, consequentemente, tratada como um cidadão comum.
A Corte Internacional de Justiça no Caso Relativo à Aplicação da Convenção das Nações Unidas sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio[21], analisou a questão do reconhecimento do chefe de Estado nomeadamente da Bósnia-Herzegovina pela ONU, observando que de acordo com o direito internacional não há dúvida de que cada chefe de Estado se presume ser capaz de agir em nome do Estado em suas relações internacionais[22].
Nesse contexto, cabe destacar o não reconhecimento pelo governo norte-americano da condição de chefe de Estado – de jure – do General Manuel Antonio Noriega do Panamá. Assim, ainda em 1990, Noriega foi condenado a 40 anos de prisão por tráfico de drogas pela Corte Norte-Americana. Na ocasião, com base na imunidade de chefe de Estado, o acusado requereu o indeferimento das acusações, alegando ser chefe de Estado de facto do Panamá.
Entretanto, a Corte responsável por analisar a questão rejeitou o pedido baseada no fato de que o Governo norte-americano nunca reconheceu Noriega como o legítimo governante de seu País, afirmando que “in order to assert head of state immunity, a government official must be recognized as a head of state”[23].
Conforme se observa, encontra-se alguma doutrina no sentido de que não incumbe ao Estado estrangeiro apreciar arbitrariamente a legitimidade de um chefe de Estado, uma vez que a escolha do mesmo é reservada ao domínio interno, pela aplicação do princípio da autodeterminação dos povos[24]. Assim, há quem entenda que a prática do reconhecimento dos chefes de Estado e, consequentemente, de fazer depender tal reconhecimento o direito a um tratamento privilegiado, parece criticável conforme o Direito Internacional comtemporâneo[25].
Por outro lado, a prática internacional já demonstrou a negação de um Estado ao reconhecimento de um chefe de Estado para fins de aplicação de imunidade. Neste contexto, afirma-se que uma pessoa que é efetivamente o governante de um Estado, no entanto, sem o ser de direito ou reconhecido como o chefe titular do Estado ou do Governo não tem direito ao tratamento enquanto tal.
Ocorre que, é sem dúvida verdade que a posição dos chefes de Estado no Direito Internacional é por vezes difícil e complexa, vez que embora certos aspectos estejam regulados por alguns tratados ainda reside essencialmente uma questão do direito internacional costumeiro. Logo, poder-se-ia considerar uma categoria sui generis, sobre a qual a prática estatal é esparsa e depende do costume bem como das regras de direito internacional[26].
1.3. Jus Representationis Omnimodae
Conforme anteriormente ressaltado, os chefes de Estado possuem o direito de representar o Estado internacionalmente em todos os seus aspectos[27]. Historicamente, assimilava-se o Estado à pessoa de seu chefe de forma absoluta. O soberano tinha, portanto, uma prerrogativa particularmente forte representada pelo jus representationis omnimodae, em virtude do qual ele podia representar e vincular seu país em todas as circunstâncias.
As atribuições do chefe de Estado no plano internacional consistem, classicamente, neste jus representationis omnimodae[28], isto é, na alta direção da política exterior do Estado, na capacidade de negociar e aderir aos tratados internacionais sem a necessidade de ‘plenos poderes’, ou, ainda, no poder de declarar guerra e concluir acordos de paz e na faculdade de enviar, receber e acreditar agentes diplomáticos[29].
Logo, considerando-o como autoridade suprema do Estado nas relações internacionais[30] vez que, ordinariamente, corresponde a este órgão a competência de declarar a vontade do Estado com relação a outros – mesmo que esta seja atribuída pelos ordenamentos internos em colaboração com outros órgãos estatais como as Câmaras ou os Senados.
Entretanto, tem-se alegado que este poder máximo ou absoluto ”de engajar o Estado[31]” representando pelo jus representationis omnimodae, tem sofrido certa limitação[32] em razão do processo de democratização dos Estados nos últimos tempos, uma vez que o chefe de Estado age dentro dos limites fixados pela Constituição[33]. Contudo, embora as constituições de diversos países limitarem fortemente o poder de seus órgãos estaduais superiores é sem dúvida verdade a concessão de atribuições relevantes a tais figuras em matéria de relações internacionais.
É certo o reconhecimento pela prática internacional da capacidade do chefe de Estado para atuar em nome e por conta de seu País[34]. Não obstante as limitações constitucionais é sem dúvida verdade que esse agente político exerce um papel proeminente na representação externa do Estado[35]. Assim, por exemplo, já decidiu a Corte Internacional de Justiça em 1996 no caso relativo à aplicação da Convenção para Prevenção e Repressão de Crime de Genocídio, declarando que “tout chef d´Etat est presume pouvoir agir au nom de l´Etat dans sés relations internationales”[36]. No mesmo sentido, a Corte indicou no caso sobre os Testes Nucleares entre a França e Austrália a capacidade do chefe de Estado em comprometer seu país por meio de um ato unilateral[37].
2. Prerrogativas dos chefes de Estado: imunidades e privilégios
2.1. Conceitos de privilégio e imunidade
Durante o exercício de suas funções e para que haja o livre desempenho das mesmas, o chefe de Estado é beneficiado por um conjunto de prerrogativas reconhecidas quer pelo Direito Internacional consuetudinário quer pela comitas gentium [cortesia internacional], já que se trata de ‘pessoa internacionalmente protegida’. De modo geral, reconhece-se um status privilegiado aos chefes de Estado[38] de maneira que quando se encontra em um Estado estrangeiro, goza de privilégios, inviolabilidade e imunidades – material [ratione materiae] e pessoal [ratione personae] [39].
Deste modo, impõe-se ao Estado receptor a diligência e a proteção especial contra possíveis atos ilícitos que possam atingir os chefes de Estado. De fato, este órgão estatal goza de inviolabilidade[40] pessoal, ou seja, está isento de qualquer medida coercitiva – detenção ou prisão – que se estende à sua residência, propriedades, equipamentos e correspondência[41]. Sobre o tema, a Resolução do Instituto de Direito Internacional de 2001 sobre as Imunidades de Jurisdição e Execução do chefe de Estado e de Governo em Direito Internacional estabelece em seu artigo 1º que a pessoa do chefe de Estado é inviolável no território de um Estado estrangeiro, não podendo ser submetido a nenhuma forma de detenção, de modo que as autoridades do País estrangeiro devem tratá-lo com respeito e salvaguardar sua pessoa, liberdade e dignidade[42].
No que diz respeito aos privilégios, isto é, o tratamento especial concedido aos chefes de Estado, eles podem constituir em isenção de impostos pessoais, aduaneiros e de consumo, e duram enquanto o agente permanecer no cargo, embora algumas das vantagens possam ser aplicadas depois do término do mandato por razões de cortesia internacional[43].
Neste contexto, pelo conjunto das disposições previstas na Convenção de Viena de 1961 sobre Relações Diplomáticas, alguns dos privilégios são concedidos por medidas de cortesia internacional “a propósito das quais o direito internacional se exprime em termos permissivos e não imperativos, e que dependem desde logo, para a sua existência e o seu âmbito concretos, de textos internos[44]”-[45]. Vide, por exemplo, o disposto no artigo 36 da referida Convenção[46].
A imunidade internacional é a não aplicação da jurisdição nacional em matéria civil, penal ou administrativa[47]. Isto é, é a ausência de jurisdição de um Estado para submeter a julgamento ou à privação de liberdade um agente protegido.
Costuma-se diferenciar as imunidades em ratione materiae e ratione personae[48]–[49]. A primeira tem por finalidade garantir a não interferência nas atividades estatais e proteger a integridade da condução dos assuntos do Estado[50], isto é, tem por consequência a imunidade quanto aos atos praticados no exercício da função oficial[51], uma vez que esses atos se referem ao próprio Estado. Assim, um agente do Estado – tais como chefe de Estado e de governo, ministro das Relações Exteriores e agentes diplomáticos – não é responsável para os atos que realiza em sua capacidade oficial, que devem ser atribuídos ao Estado[52].
Por outro lado leva-se em conta, também, o respeito à pessoa do chefe de Estado e suas atividades. Isto decorre nomeadamente pela função peculiar de representante do Estado nas relações externas, persistindo, tal imunidade, enquanto o agente estiver no posto oficial[53]. Logo, a imunidade ratione personae quando aplicada aos representantes estatais diz respeito ao status desses agentes, ou seja, exclusivamente a categorias limitadas dos altos funcionários do Estado enquanto exercer suas funções oficiais[54]. Neste contexto, qualquer atividade de um chefe de estado ou de governo deve ser imune à jurisdição estrangeira para evitar aos Estados estrangeiros infringir as prerrogativas de soberania do País ou, ainda, interfirir nas funções oficiais do agente estatal estrangeiro, sob a alegação de lidar com um ato exclusivamente privado[55].
No mesmo sentido, a Comissão de Direito Internacional discorreu em 1991[56] sobre a imunidade de jurisdição do Estado e de seus bens, destacando que para além de imunidades ratione materiae, em virtude da atividade ou das funções oficiais de representantes estatais, tais agentes possuem o direito, ‘to some extent to their own right’, às imunidades ratione personae em relação a suas pessoas ou atividades que são pessoais para eles e desconectados com funções oficiais.
Esta imunidade, ao contrário da imunidade ratione materiae que continua após a cessação das funções oficiais, não será mais válida uma vez que o cargo público seja desocupado[57]. Logo, todas as atividades desses agentes que não digam respeito as suas funções oficiais estão sujeitas a revisão pela jurisdição local quando do seu término.
De acordo com Antonio Cassese[58], esta classe de imunidade refere-se ao direito processual – procedural law – estando o agente imune à jurisdição civil e criminal, abrangendo atos oficiais ou privados por ele praticados no exercício do seu mandato ou, ainda, realizados antes de assumir o cargo, mas que chega ao fim após a cessação de suas funções como agente oficial do Estado.
Portanto, tem-se discutido algumas exceções a essas imunidades, de modo que em alguns casos o chefe de Estado pode não ser protegido pelos atos praticados no exercício de suas funções. Isto é, sua imunidade – ratione personae – não seria levada em conta pela prática de atos privados, com exceção à imunidade civil e administrativa[59]. Ademais, nas situações em que o chefe de Estado é acusado de cometer crimes graves na esfera internacional, não se justificaria a proteção pela imunidade funcional ou pessoal.
De se destacar, aqui, que as terminologias ‘privilégio’ e ‘imunidade’ não são harmonicamente encontradas na doutrina internacionalista[60]. No entanto, adota-se neste trabalho que as noções de privilégios e imunidades integram o conjunto de prerrogativas concedidas aos agentes[61], no caso, aos chefes de Estado.
Feitas essas considerações gerais acerca dos privilégios e imunidades diplomáticas, cumpre, a seguir, analisar os fundamentos das prerrogativas concedidas aos chefes de Estado, a partir da análise de algumas teorias que as procuram justifcar, visto que a questão do tratamento – e do reconhecimento – privilegiado na ordem internacional concedido aos chefes de Estado quando estejam em território de terceiro Estado foi explicada pela doutrina ao longo do tempo por variados interesses e visões.
2.2. Teorias que explicam as prerrogativas dos chefes de Estado
2.2.1 Teoria do caráter sagrado e o princípio par in parem non habet imperium
Tradicionalmente, o representante estatal era considerado a personificação de seu Estado de modo que a expressão sovereign immunity referia-se tanto à imunidade deste quanto à imunidade do chefe de Estado[62]. Logo, os soberanos que se encontravam em território estrangeiro deveriam beneficiar-se da imunidade e, assim, não poderiam ser objetos de medidas de coerção por um Estado terceiro.
Esta doutrina, baseada no princípio da soberania a e igualdade entre os Estados nas suas relações internacionais, foi defendida principalmente na grande parte do direito diplomático do século XVI. Dizia-se que o status privilegiado dos chefes de Estado fundamentava-se pelo caráter sagrado do soberano. Com efeito, historicamente o direito internacional reconhecia o princípio da imunidade absoluta dos Estados soberanos[63].
Neste contexto, como corolário do princípio da igualdade soberana dos Estados, o princípio do par in parem non habet imperium – ‘one equal entity does not have sovereign authority over another such entity’[64] -, designava a imunidade de jurisdição absoluta não somente aos Estados estrangeiros, mas aos seus chefes[65]. Assim, cada Estado é soberano sobre seu território e exercer a justiça é um atributo da sua soberania[66].
Esta teoria foi por muito tempo defendida de maneira absoluta refletindo a premissa fundamental de que os Estados são independentes e iguais perante o Direito Internacional e, consequentemente, sujeitar um Estado a uma jurisdição estrangeira seria inconsistente com a ideia da igualdade soberana[67]. Contudo, o fundamento absoluto da imunidade de jurisdição do Estado tem sofrido algumas restrições[68], principalmente no que concerne aos atos privados – comerciais[69] [jure gestionis ou jure privatorum].
2.2.2 Teoria da extraterritorialidade
A doutrina majoritária reconhece à Hugo Grotius[70] a origem da ideia de extraterritorialidade. A formulação das bases jurídicas desta teoria teria ocorrido ainda no século XVII, a qual repousava sobre uma ficção em que o agente diplomático deveria ser considerado como não tendo deixado o território de seu próprio Estado quando se encontrava no Estado acreditante no exercício de suas funções. Esta teoria, de acordo com Alvaro Borghi[71], remonta ao período no qual a diplomacia itinerante vai cedendo lugar às missões diplomáticas permanentes.
Esta teoria foi sendo criticada e rejeitada, ainda no século XIX, uma vez que assenta sobre uma ficção jurídica[72] que também se estendia aos locais da missão diplomática, considerada incapaz de explicar algumas situações jurídicas, mormente no que tange aos limites previstos aos privilégios e imunidades[73] dos agentes diplomáticos.OuvirLer foneticamente
2.2.3 Teoria do caráter representativo
Com a rejeição da teoria da extraterritorialidade buscou-se explicar as prerrogativas dos chefes de Estado no fundamento do caráter representativo desta figura. Isto é, os chefes do Estado possuem uma característica representativa como os agentes diplomáticos, mas com uma importante diferença de que aqueles representam vis-à-vis seu País e são, portanto, investidos das prerrogativas consagradas pelo Direito Internacional[74].
No entanto, esta teoria remonta ao período medieval onde as relações internacionais eram apresentadas como relações entre os chefes de Estado, uma vez que este era considerado propriedade do próprio soberano. Logo, ofender ao agente diplomático significava ofender ao soberano. Tal concepção perdeu força no período da Revolução Francesa, em que o agente diplomático passa a representar o próprio Estado e não mais o agente soberano[75].
Interesse destacar as lições de Hazel Fox[76] no sentido de que “as with State immunity, it is the independence of the State and the protection of the ability of its prime representative to carry out his international functions with prevents one State from exercising jurisdiction over the head of another independent State without the latter´s consent”, de maneira que esta é uma questão de Direito Internacional não apenas cortesia, concedida em razão de sua condição e não pelo desempenho de funções oficiais, na opinião do autor.
Assim, os chefes de Estado exprimem a política do seu País e, portanto, na sua qualidade de representantes que formalmente podem conduzir a atos que produzem efeitos jurídica no âmbito internacional, eles beneficiam das imunidades e dos privilégios à luz do Direito Internacional[77].
2.2.4 Teoria do Interesse da Função
A teoria do interesse da função, atribuída a Emmerich Vattel[78] ganha relevância no início do século XX sendo reconhecida em diversas convenções internacionais. Assim, por exemplo, observa-se no Preâmbulo da Convenção de Viena de 1961 sobre Relações Diplomáticas, ao dispor que “reconhecendo que a finalidade de tais privilégios e imunidades não é beneficiar indivíduos, mas sim a de garantir o eficaz desempenho das funções das missões diplomáticas, em seu caráter de representantes dos Estados […]”.
No mesmo sentido, estabelece a Convenção sobre Missões Especiais de 1969 em seu preâmbulo que “percebendo que a finalidade dos privilégios e imunidades relativas às missões especiais não é beneficiar indivíduos, mas assegurar o eficaz desempenho das funções de missões especiais, como, missões de representação do Estado[79]”.
Esta teoria é construída na ideia de que os privilégios e imunidades são fundados sobre a necessidade do exercício independente da função diplomática. Logo, o tratamento privilegiado reconhecido aos agentes, incluindo os chefes de Estado, se limita ao que for necessário para permitir o livre e independente exercício de suas funções[80].
Utilizando a terminologia teoria do serviço público – théorie du service public – Paul Guggenheim[81], ao tratar sobre o status jurídico do agente diplomático discorre que os representantes diplomáticos a fim de cumprir sua missão, devem ser liberados em grande medida da submissão ao estado legal do local onde se encontram. Assim, essa a liberdade de ação baseia-se nas necessidades do serviço público internacional.
O Instituto de Direito Internacional afirmou na Resolução de Agosto de 2001 sobre as Imunidades de Jurisdição e de Execução do Chefe de Estado e de Governo em Direito Internacional tal princípio, declarando que o tratamento particular concedido ao chefe de Estado, como representante do Estado, decorre não do seu interesse pessoal, mas porque é necessário para realizar seus deveres e suas responsabilidades de forma independente e eficaz[82]. Em sentido semelhante, também declarou a Comissão de Direito Internacional no Projeto de Julho de 1991[83] sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e seus Bens[84].
Portanto, de se destacar que o princípio da imunidade do chefe de Estado desenvolveu, originalmente, da ideia da imunidade do Estado soberano de modo que não decorria uma separação entre este e o seu representante. Ainda, o tratamento concedido aos chefes de Estado tem sido fortemente influenciado pelo princípio da imunidade diplomática[85], esta principalmente baseada na necessidade de salvaguardar a independência do exercício da função.
Por todo o exposto, neste trabalho adota-se a noção de que os fundamentos das imunidades e privilégios dos chefes de Estados encontram-se no reconhecimento de um grau de respeito desse agente político como símbolo representativo do Estado, bem como na necessidade de garantir o pleno desempenho de suas funções – diplomáticas – oficias quando se encontrem em Estado estrangeiro[86].
2.3. Prerrogativas dos chefes de Estado em função
Antes de se adentrar na análise legal dos privilégios e das imunidades concernentes aos chefes de Estado, é preciso destacar que a existência de uma determinada lacuna jurídica no que tange ao tratamento específico sobre as prerrogativas que beneficiam esses agentes políticos na ordem internacional.
Logo, em razão da falta de um tratado específico ao tratamento dos chefes de Estado é preciso considerar alguns documentos internacionais que dispõe sobre alguns aspectos das prerrogativas, a exemplo da Convenção sobre Missões Especiais de 1969. Ou, ainda, de outras Convenções que poderiam ser aplicadas por analogia.
Observa-se, entretanto, que tais prerrogativas estão essencialmente contidas em duas fontes[87], isto é, em razão das normas consuetudinárias e normas convencionais. No que diz respeito à primeira é sem dúvida verdade ser esta uma fonte primária e principal, assim reconhecida pela maioria da doutrina internacionalista[88].
Ademais, a Convenção de Viena sobre Representação dos Estados nas suas Relações com Organizações Internacionais de Caráter Universal de 1975 afirma que “as regras de direito internacional costumeiro continuam a regular as questões que não são expressamente reguladas pelas disposições da presente convenção” [89]. A doutrina[90] também destaca as fontes nacionais, ou seja, as legislações domésticas dos Estados que regulem, aos menos, alguns aspectos da imunidade dos chefes de Estado.
Portanto, insta salientar, em continuidade, as fontes internacionais convencionais acerca das prerrogativas dos chefes de Estado, ou seja, os instrumentos jurídicos internacionais onde se pode encontrar referência às imunidades e aos privilégios desses agentes políticos.
2.3.1 Análise legal das convenções internacionais
A Convenção de Nova York de dezembro de 1969 sobre as Missões Especiais é um instrumento jurídico internacional importante para a proteção dos chefes de Estado no estrangeiro. Isto é, significante no que diz respeito à determinação do estatuto dos chefes de Estado que se encontre em País terceiro no caso de visita oficial.
De fato, é previsto no artigo 21, n° 1 desde Tratado que “the Head of the sending State, when he leads a special mission, shall enjoy in the receiving State or in a third State the facilities, privileges and immunities accorded by international law to Heads of State on an official visit”. Reconhece-se, deste modo, a imunidade do chefe de Estado quando se encontra em missão especial no estrangeiro, sobre a qual é responsável[91]. Esta significa uma missão temporária tendo um caráter representativo do País enviada por um Estado junto de outro com o consentimento deste último para tratar de questões determinadas ou cumprir junto dele uma tarefa determinada[92].
A Convenção das Nações Unidas sobre Prevenção e Repressão de Crimes contra Pessoas Gozando de Proteção Internacional, incluindo os Agentes Diplomáticos de 1973, constitui a base principal do dever de proteção contra atentados ou atos às pessoas que gozam de proteção internacional. Este tratado faz referência ao chefe de Estado no artigo 1º, ‘a’, ao definir a expressão “pessoa gozando de proteção internacional”, entendendo-se por qualquer chefe de Estado incluindo os membros de um órgão colegial exercendo, em virtude da Constituição do Estado considerado, as funções de chefe de Estado. No entanto, conforme aponta Alvaro Borghi[93], a Convenção reproduz as normas costumeiras referentes a essa área “en ce qu’elle les renforce et les complete par des normes nouvelles”.
A Convenção de Viena sobre a Representação dos Estados nas suas Relações com Organizações Internacionais de Caráter Universal de Março de 1975 comporta um regramento global da situação jurídica das missões e delegações junto às Organizações Internacionais e suas Conferências. Este instrumento jurídico, à semelhança da Convenção sobre Missões Especiais, é suscetível de ser aplicado aos chefes de Estado que se encontrem no estrangeiro à frente de uma delegação, um órgão de uma organização internacional ou de uma conferência convocada por uma organização internacional.
O artigo 50, n º 1 expressamente estabelece que “the Head of State or any member of a collegial body performing the functions of Head of State under the constitution of the State concerned, when he leads the delegation, shall enjoy in the host State or in a third State, in addition to what is granted by the present Convention, the facilities, privileges and immunities accorded by international law to Heads of State”.
Já a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de Abril de 1961 é o instrumento jurídico que trata especificamente dos privilégios e imunidades dos agentes representantes dos Estados, não havendo referência expressa no que tange às prerrogativas dos chefes de Estado, dispondo de vários aspectos do estatuto privilegiado dos agentes diplomáticos quando se encontrem num Estado acreditante. Há quem entenda, contudo, que algumas disposições expressas neste documento podem ser levadas em consideração e estendidas, consequentemente, aos chefes de Estado uma vez que estes são por definição os mais altos representantes de seu País[94].
De se destacar, também, a Convenção sobre Imunidade de Jurisdição dos Estados e seus Bens de 2004[95], aprovada sob os auspícios das Nações Unidas, embora não se encontre ainda em vigor. Conforme estabelece o artigo 2, n° 1, ‘b’, “Estado” significa para fins da Convenção, (i) o Estado e seus vários órgãos do governo; e os (iv) representantes do Estado agindo nessa qualidade.
Logo, é reconhecido aos chefes de Estado as imunidades e privilégios quando atua em nome do País no cumprimento de suas funções, com a finalidade última de proteger o Estado além da pessoa que goza da imunidade. A Convenção explicitamente dispõe, ainda, que as disposições nela consagradas não prejudicam os privilégios e imunidades concedidos pelo direito internacional chefes de Estado ratione personae[96].
Feitas essas considerações, cumpre esclarecer, em seguida, as prerrogativas tradicionais dos chefes de Estado em função quando estejam em território estrangeiro nos casos de visita oficial, privada ou desconhecida – também denominada de incógnita.
2.3.2. Visitas oficial, privada e incógnito
Conforme anteriormente referido, o chefe de Estado quando se encontra no território de um terceiro Estado é pessoa internacionalmente protegida, no sentido de que este Estado deve assumir em favor daquele agente algumas obrigações especiais de proteção. Portanto, é certo que o chefe de Estado possui um status particularmente forte em razão da função que exerce e representa a nível internacional[97].
Neste contexto, a doutrina reconhece que em caso de visita oficial o chefe de Estado é beneficiado de um estatuto de imunidade reconhecido pelo Direito Internacional que é reforçado, mormente pelas Convenções sobre Missões Especiais e sobre a Prevenção e Punição de Crimes Praticados Contra as Pessoas Protegidas Internacionalmente.
Destacou-se, também, que o chefe de Estado goza de inviolabilidade pessoal[98], de seus arquivos e documentos[99], e do local da missão[100] e residência[101]. Certamente o Estado receptor deve tratar o chefe de Estado com o máximo respeito e tomar todas as medidas cabíveis para evitar qualquer ato ofensivo a sua liberdade.
O chefe de Estado possui, por conseguinte, o direito de corresponder livremente com seu governo[102]. Goza da mesma forma, de plena [absoluta] imunidade de jurisdição penal[103] perante os tribunais dos Estados terceiros[104]– salvo consentimento expresso de seu próprio Estado, bem como da imunidade de jurisdição civil e administrativa, isto é, isenção para ser demandado perante Tribunais estrangeiros por atos praticados no exercício de suas funções, com algumas exceções que, portanto, não atingem a dignidade do cargo.
Neste caso, a doutrina costuma diferenciar entre atos praticados no exercício das funções oficiais e atos fora desse âmbito – a exemplo de atividade profissional ou comercial, de maneira que somente com relação aos primeiros reconhece-se a imunidade de jurisdição civil e administrativa.
Sobre o tema, a Resolução do Instituto de Direito Internacional de 2001 afirma em seu artigo 3º que, em matéria civil e administrativa, o chefe de Estado não goza de nenhuma imunidade de jurisdição perante o Tribunal do Estado estrangeiro, salvo quando é atribuído em razão de atos praticados no exercício das funções oficiais; “dans ce dernier cas, il ne jouit pas de l’immunité si la demande est reconventionnelle[105]. Toutefois, aucun acte lié à l’exercice de la fonction juridictionnelle ne peut être accompli à son endroit lorsqu’il se trouve sur le territoire de cet Etat dans l’exercice de ses fonctions officielles”.
Logo, as exceções dizem respeito às situações que estiver em causa ações relativas a imóveis que o chefe de Estado possui como simples particular no estrangeiro, no caso de ações resultantes da posição de herdeiro ou legatário também em território terceiro, bem como de ação concernente à atividade profissional ou comercial exercida fora de suas funções oficiais; ou, ainda, de ação de reparação de dano causado pelo uso de um veículo fora das funções oficiais da pessoa interessada. Essas exceções estão previstas na Convenção sobre Missões Especiais e o artigo 31 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961.
Entretanto, consoante observa Arthur Watts[106], no que diz respeito à jurisdição civil e administrativa de um Estado estrangeiro a extensão da imunidade do chefe de Estado nesses casos é, por vezes, controversa e a prática estatal nem sempre é uniforme. Segundo o autor, nos casos que envolvem uma conduta realizada em uma capacidade soberana e oficial, o chefe de Estado terá direito à imunidade, seja ratione personae ou em virtude de sua conduta ser equiparada com a do Estado, de modo que as questões de imunidade são determinados com base em regras de imunidade do Estado.
Para além das visitas oficiais que comumente se efetua no estrangeiro é sem dúvida verdade que os chefes de Estado em exercício podem realizar visitas privadas, isto é, independentemente de suas funções oficiais, a fim de tratar de assuntos pessoais. No entanto, a problemática que surge, nessa situação, diz respeito ao contínuo benefício ou não da imunidade plena perante a jurisdição do Estado estrangeiro.
Sobre o tema, Eduardo Correia Baptista[107] entende que a imunidade dos órgãos estatais – no caso, dos chefes de Estado – continua “ainda que esteja a levar a cabo uma visita privada e não oficial”. No mesmo sentido, Alvaro Borghi[108] ressalta que diante da necessidade de assegurar o livre exercício de suas funções – fundamento principal do estatuto privilegiado que é concedido ao chefe de Estado -, a doutrina[109] reconhece a imunidade de jurisdição no caso de vista privada no exterior.
De se destacar, também, o entendimento da Corte Internacional de Justiça no Caso entre a República Democrática do Congo v. Bélgica[110]–[111] relativo à ordem de prisão internacional expedida pela Bélgica contra o então Ministro das Relações Exteriores Abdulaye Yerodia, no sentido de que “[…] immunity and inviolability protect the individual concerned against any act of authority of another State which would hinder him or her in the performance of his or her duties. The Court finds that in this respect no distinction can be drawn between acts performed by […] in an official capacity and those claimed to have been performed in a private capacity […]”.
Nesta linha de raciocínio, a Comissão de Direito Internacional declarou, em 1972, quando da elaboração da Convenção sobre Prevenção e Repressão de Crimes contra Pessoas Gozando de Proteção Internacional, incluindo os Agentes Diplomáticos, que um chefe de Estado tem direito a uma proteção especial quando se encontra no estrangeiro independente da natureza de sua visita, seja ela oficial ou privada. De fato, a Convenção não faz distinção quanto a isso, considerando pessoa gozando de proteção internacional o chefe de Estado que simplesmente se encontra em Estado estrangeiro[112].
Quando se trata de uma visita incógnito, ou seja, quando o chefe de Estado viaja de forma desconhecida ao Estado estrangeiro, este tem o dever de proteção no momento em que se tem conhecimento da estadia do agente em questão, de modo que “al Poder territorial incumbe el deber estricto de velar por que nada atente contra el normal desenvolvimiento de huésped tan elevado[113]” Logo, conforme declarou o Instituto de Direito Internacional conquanto não expressamente fazendo referência à expressão incógnito, as autoridades do Estado receptor devem, no instante em que a qualidade de chefe de Estado é conhecida, ter em conta as imunidades das quais ele têm direito[114].
2.4 Antigos chefes de Estado
Em razão da imunidade do chefe de Estado não ser concedida pelo próprio interesse do agente, mas sim do Estado que ele dirige e representa, costuma-se afirmar que a imunidade ratione personae – ou, também, procedural immunity – cessa de produzir efeitos quando o mandato finaliza[115].
Por outro lado, a imunidade rationae materiae subsiste após o término das funções oficiais, visto que esta protege os atos da função praticados pelo chefe de Estado[116], uma vez que tais atos repercutem diretamente no domínio jurídico do Estado. Assim, depois de terem cessado as suas funções não parece haver motivos sólidos para que apreciem qualquer imunidade em relação às capacidades particulares: a imunidade ratione personae chega ao fim, e os atos privados não beneficiam de imunidade ratione materiae. Neste contexto, os fundamentos das imunidades dos chefes de Estado decorrem principalmente em razão de garantir e facilitar o livre exercício das funções oficiais, isto é, pela teoria do interesse da função[117].
O antigo chefe de Estado goza de imunidade material – substantive immunity – no que tange aos atos praticados no exercício de sua função oficial, ou seja, com relação aos atos jus imperii. Logo, consoante afirma Hazel Fox[118], a imunidade material não impede procedimentos contra o antigo chefe com relação aos atos privados enquanto no exercício de suas funções, a exemplo dos crimes financeiros para benefício próprio e tráfico de drogas, como ocorrido com Manuel Noriega quando chefe do Estado do Panamá.
Neste sentido, a Resolução do Instituto de Direito Internacional destaca em seu artigo 13, n° 1 e 2 que “le chef d’Etat qui n’est plus em fonction ne bénéficie d’aucune inviolabilité sur le territoire d’un Etat étranger. Il n’y bénéficir d’aucune immunité de juridiction tant en matière pénale qu’en matière civile ou administrative, sauf lorsqu’il y est assigné ou poursuivi en raison d’actes qu’il a accmplis durante ses fonctions et qui participaient de leur exercise […]”.
A prática estatal reconhece aos antigos chefes algumas honras e privilégios por questão de cortesia, seja por motivo de visita oficial ou por alguma atividade diplomática ad hoc. Portanto, quando um antigo chefe de Estado desempenha as funções de chefe de uma delegação especial, por exemplo, goza das prerrogativas conferidas a um diplomata[119]. Assim, caso venha exercer alguma função especial nesse sentido, qualquer imunidade em questão é determinada com base na função que o antigo agente desempenha, ao invés de sua capacidade como um ex-chefe de Estado[120].
Ocorre que, a questão que se coloca é saber se os crimes cometidos pelos chefes de Estado durante o seu mandato devem ser considerados atos da função ou simples atos privados, ou ainda, como os distinguir. Sobre o tema, há quem entenda que no atual estágio do direito internacional os crimes internacionais e até mesmo delitos patrimoniais[121] não podem ser considerados como atos funcionais de maneira que os antigos chefes de Estado não gozariam de tal imunidade.
De se destacar, aqui, que nem todos os atos praticados durante o mandato devem ser considerados atos funcionais. Por conseguinte, resta, em seguida, adentrar no estudo sobre as imunidades dos chefes de Estado em matéria de crimes internacionais.
3 A imunidade dos chefes de Estado em matéria de crimes internacionais
É sem dúvida verdade que as imunidades concedidas aos chefes de Estado quando se encontram em território de um terceiro Estado apresentam várias justificativas, dentre as quais, procura-se garantir um adequado grau de respeito pelos líderes estrangeiros em razão da posição que ocupa, isto é, como símbolo ou representante pleno do Estado responsável por desenvolver relações internacionais com demais Países. Para além da observância do princípio da igualdade soberana entre os Estados os objetivos das imunidades procuram assegurar o exercício pleno de suas funções oficiais.
Certos autores argumentam não poder haver imunidade de jurisdição penal para a categoria de crimes classificados como crimes internacionais[122]. Algumas Convenções Internacionais excluem a imunidade dos chefes de Estado como a Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948[123], a Convenção Internacional de 1973 sobre a Eliminação e Repressão do Crime de Apartheid[124], bem como a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade de 1968.
Neste contexto, a questão relevante para o tema surge quando um chefe de Estado é acusado pela prática de crimes internacionais. Ou seja, crimes graves que transcendem as funções tradicionais do agente e que pela sua gravidade violam valores considerados importantes e fundamentais pela comunidade internacional como um todo[125], a exemplo do genocídio e dos crimes contra a humanidade.
Ocorre que, frequentemente, as pessoas acusadas da prática de crimes internationais alegam a imunidade de jurisdição a elas reconhecida pelo fato de desempenharem suas funções como verdadeiros funcionários do Estado.
Assim, surge a problemática no sentido de como conciliar a necessidade de garantir as prerrogativas desses agentes como ferramenta essencial para condução das relações exteriores e, ao mesmo tempo, a proteção das normas de direito humanos, punindo aqueles que cometem crimes internacionais. Logo, gozam os chefes de Estado de uma imunidade penal absoluta ou de prerrogativas sui generis quando esteja em causa um crime internacional?
3.1. Tribunais Internacionais
A noção acerca do princípio da ausência de imunidade em razão de crimes internacionais[126] desenvolveu-se principalmente a partir dos Tribunais de Nuremberg e Tóquio no pós-Segunda Guerra Mundial[127], visto que a partir destes Tribunais definiram-se os elementos típicos dos crimes de guerra e dos crimes contra a paz, permitindo “um impulso fundamental na afirmação no direito internacional da noção de crime internacional praticado por indivíduos[128]”.
Na sequência, com a instituição dos Tribunais Internacionais[129] Ad Hoc[130], nomeadamente para ex-Yugoslávia e Rwanda, desenvolveu-se a ideia de que a posição oficial de um indivíduo não deveria ser considerada como forma de isenção de responsabilidade pelos atos cometidos no exercício de suas funções oficiais. Deste modo, os Estatutos[131] destes Tribunais[132] estabelecem que a responsabilidade criminal individual recai sobre a pessoa que tenha planejado, instigado, ordenado ou cometido um crime, independentemente da posição oficial[133] que o acusado venha a ocupar, quer como chefe de Estado ou de Governo, por exemplo.
De fato, diversos dirigentes políticos da época que estavam no poder foram formalmente acusados perante esses Tribunais, a exemplo do ex-presidente da República Federal da Yugoslávia, Slobodan Milosevic, pela prática de crimes de genocídio e outros graves delitos internacionais, e o ex-Primeiro Ministro de Rwanda Jean Kambanda, acusado de crimes contra a humanidade e de genocídio.
O Estatuto de Roma de 1998 que instituiu o Tribunal Penal Internacional consagrou o princípio da responsabilidade individual em vários aspectos, destacando a competência para processar e julgar pessoas físicas em seu artigo 25. Aduz, também, a responsabilidade dos chefes militares e outros superiores hierárquicos, isto é, a condição política do agente não serve como motivo de isenção para a responsabilidade penal do acusado[134].
O Estatuto, ao assim dispor, não confere qualquer imunidade aos órgãos superiores do Estado, deixando ter efeitos, portanto, eventuais imunidade e privilégios ou mesmo a posição ou os cargos oficiais que os acusados porventura ostentem. É o que dispõe o artigo 27, n° 2 no sentido de que “as imunidades ou normas de procedimentos especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa, nos termos do direito interno ou do direito internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa”.
Logo, a qualidade de oficial de chefe de Estado não se caracteriza como causa excludente de responsabilidade penal nem legitima redução de eventual pena atribuída ao agente em causa. Portanto, o fato de a pessoa assumir a condição institucional de chefe de um Estado soberano não constituiria, pelo Estatuto de Roma, obstáculo à sua responsabilização criminal[135].
Ocorre que, a problemática surge com relação aos Estados que não se vinculam ao Tribunal Penal Internacional. A princípio, a um chefe de Estado em exercício de um Estado não-Parte do Estatuto de Roma não se aplicaria o disposto no artigo 27 em função do não reconhecimento da jurisdição internacional do TPI.
Contudo, interessante destacar o caso do Sudão em que o TPI pela primeira vez decretou um mandato de prisão a um governante em exercício[136]. Sabe-se que o Sudão não é Estado-parte do Estatuto de Roma, não reconhecendo a jurisdição deste Tribunal Internacional.
Entretanto, o Conselho de Segurança por meio da Resolução 1593 (2005) decidiu no sentido de que “acting under Chapter VII of the United Nations Charter, the Security Council decided this evening to refer the situation prevailing in Darfur since 1 July 2002 to the Prosecutor of the International Criminal Court. Adopting resolution 1593 (2005) by a vote of 11 in favour, none against with 4 abstentions (Algeria, Brazil, China, United States), the Council decided also that the Government of the Sudan and all other parties to the conflict in Darfur would cooperate fully with the Court and Prosecutor, providing them with any necessary assistance” [137].
Neste contexto, pode-se afirmar que o TPI teve sua jurisdição prorrogada para julgar o presidente sudanês, Omar Hassan al-Bashir, em razão do artigo 13, “b” do Estatuto de Roma, o qual estabelece que o TPI poderá exercer jurisdição em matéria de crimes de genocídio, de guerra e crimes contra a humanidade, isto é, a qualquer um dos crimes a que se refere o artigo 5º, caso: “o Conselho de Segurança, agindo nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, denunciar ao procurador qualquer situação em que haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários desses crimes”;
De maneira semelhante ao disposto no artigo 27 do Estatuto de Roma, a Resolução do Instituto de Direito Internacional de 2001 não reconhece qualquer imunidade aos titulares de órgãos superiores do Estado – tais como chefes de Estado – perante Tribunais Internacionais quando tenham perpetrado crimes internacionais. Assim, o artigo 11 estabelece:
“1. Les dispositions de la présente Résolution ne font pas obstacle:
a. aux obligations qui découlent de la Charte des Nations Unies;
b. à celles qui résultent des statuts des tribunaux pénaux internationaux ainsi que de celui, pour les Etats qui y sont parties, de la Cour pénale internationale.
2. Les dispositions de la présente Résolution ne préjugent pas :
a. des règles déterminant la compétence du tribunal devant lequel l’immunité est soulevée;
b. des règles relatives à la détermination des crimes de droit international;
c. des obligations de coopération qui pèsent en ces matières sur les Etats.
3. Rien dans la présente Résolution n’implique ni ne laisse entendre qu’un chef d’Etat jouisse d’une immunité devant un tribunal international à compétence universelle ou régionale’’.
No entanto, se por um lado o princípio da irrelevância da condição oficial para fins de persecução e responsabilidade criminal em razão da prática de crimes internacionais foi consagrado nos mais diversos estatutos de Tribunais Internacionais, isto é, a imunidade que goza um chefe de Estado por sua condição de alto representante estatal não obsta eventual responsabilização criminal perante um Tribunal Internacional[138], tal assertiva não resulta clara e unânime quando se trata de jurisdição estrangeira.
Deste modo, em seguida o estudo pauta-se sobre a imunidade dos chefes de Estado perante tribunais estrangeiros quando estejam em causa crimes internacionais, ou seja, core crimes.
3.2. A imunidade perante tribunais estrangeiros
Certamente a imunidade dos chefes de Estado perante os tribunais estrangeiros é questão mais controversa na doutrina. A imunidade de jurisdição penal é, conforme anteriormente ressaltado neste relatório, mais acentuada de modo que a doutrina ainda se pauta no sentido de tratar-se de uma concepção absoluta, quer pela “prática de crimes à luz do direito doméstico quer pela prática de crimes internacionais[139]”.
Assim, perante os tribunais estrangeiros os crimes internacionais cometidos por um chefe de Estado durante o exercício das suas funções gozam de imunidade, ou seja, continua a beneficiar do estatuto da total imunidade de jurisdição penal – salvo consentimento expresso do Estado do agente, tendo em vista a ausência de qualquer hierarquia entre os Estados soberanos em consonância com o princípio par in parem non habet jurisdictionem e, também, por permitir o livre exercício de suas funções.
Entretanto, há quem defenda como Ghislaine Doucet[140] que o princípio da imunidade dos chefes de Estados estrangeiros em exercício sofre algumas exceções necessárias, a fim de torná-lo compatível com outros princípios fundamentais reconhecidos e exigidos pela comunidade internacional no campo dos direitos humanos e da dignidade humana.
Não obstante ainda permanecer a solução influente no sentido de se reconhecer uma imunidade absoluta, verificam-se algumas exceções doutrinárias e também jurisprudenciais que procuram restringir o alcance da imunidade de jurisdição penal.
Neste contexto, talvez um dos exemplos mais emblemáticos com relação a antigos chefes de Estado seja a decisão da Câmara dos Lordes de Março de 1999, a respeito do caso Pinochet em que foi denegada pela primeira vez[141] a imunidade para atos de tortura cometidos pelo ex-chefe de Estado chileno depois de 1988, isto é, foi decidido que a imunidade [substantive immunity ou rationae materiae] não poderia ser aceita em relação ao julgamento de crimes contra a humanidade[142].
Certamente o antigo chefe não gozaria de imunidade de jurisdição penal exceto para atos praticados durante o exercício da sua função. Neste sentido afirma o Instituto de Direito Internacional na Resolução de 2001 no artigo 13, n° 2. Ademais, quando se trata de crimes internacionais em razão da gravidade desses delitos não justificaria considerá-los no âmbito das funções e competências legítimas de um chefe de Estado[143].
Na verdade, o debate também recai sobre a definição de ato funcional, ou seja, ato de interesse do Estado e não do agente que o pratica. Logo, é possível considerar o ato criminoso de um chefe de Estado como ato praticado a título privado?
Para Eduardo Correia Baptista[144], não é possível considerar a prática de crimes como atos necessariamente cometidos a título privado. Em sentido parecido, Hazel Fox[145] afirma que um chefe de Estado em exercício goza de imunidade de jurisdição penal absoluta em relação aos atos praticados no exercício de suas funções oficiais ou atos particulares. Também enfatizou a Corte Internacional de Justiça em 2002 na decisão relativa à disputa do Congo contra a Bélgica que um chefe de Estado em exercício não pode depender se o crime alegado envolve atos privados ou não[146].
Contudo, ressalta ainda Eduardo Correia Baptista[147] a decisão de um dos juízes da House of Lords no caso Pinochet, no sentido de que “there to be strong ground for saying that the implementation of torture as defined by the Torture Convention cannot be a state function” [148].
Neste contexto, há quem entenda que o não reconhecimento da imunidade quando esteja em causa a prática de crime internacional encontra-se em harmonia com dois objetivos principais da doutrina da imunidade dos chefes de Estado, ou seja, o respeito pela igualdade soberana dos Estados e a promoção das relações diplomáticas, uma vez que crimes de tortura, genocídio e crimes contra a humanidade estão fora do âmbito do que se pode considerar funções de um agente estatal[149].
Sobre o tema, a CIJ[150] ressaltou estar claramente estabelecido em Direito Internacional que, além dos agentes diplomáticos e consulares, algumas pessoas ocupantes de cargo elevado em um Estado, tais como o chefe de Estado, de governo ou o Ministro das relações exteriores, gozam em outros Estados de imunidade de jurisdição, tanto civil quanto penal[151]. Para tais agentes, em razão das funções que ocupam – inclusive presumidamente assumem poderes para agir em nome do Estado – é necessário garantir plena imunidade de jurisdição penal[152]. Consequentemente, o exercício de suas funções seria seriamente dificultado se a imunidade foi limitada aos atos oficiais e para atos cometidos durante o período do mandato[153].
Esta sentença proferida pela CIJ foi criticada pelo fato de não ter tido em conta precedentes como o caso Pinochet[154], ou seja, “contrary to the direction of international law suggested by the Pinochet precedent, the Court found no indication in opinio juris or state practice that immunities are lifted in cases of war crimes or crimes against humanity” [155].
Para Stephen Wirth[156] há uma forte tendência no Direito Internacional para negar imunidade aos agentes estatais que cometeram os chamados core crimes. A imunidade ratione personae [procedural immunity] permanece mesmo nesses casos, mas apenas para os agentes em exercício de maneira que cessa seus efeitos quando do término do mandato oficial. Isto é, o chefe de Estado é protegido pela imunidade ratione personae enquanto permanecer no cargo, podendo ser posteriormente responsável por tais crimes[157]. Logo, ele estaria protegido apenas pela imunidade ratione materiae [substantive immunity] que deve ser interpretada, segundo o autor, como não aplicável quando se tratar de crimes internacionais.
De modo geral, ao considerar até que ponto existem exceções à imunidade de ex-chefes de Estado ou aqueles que estejam em exercício, a partir da análise dos tribunais nacionais dos Estados pode revelar duas visões conflitantes[158]. Por um lado, nega-se qualquer exceção à imunidade perante um tribunal nacional que não seja para atos praticados a título privado. Neste caso a problemática pode surgir quanto à uma definição precisa deste termo. Por outro lado, tem-se admitido alguma exceção em particular pela regra estabelecida no Direito Internacional de que o status oficial do agente não é motivo de isenção de responsabilidade quando se trata de um crime internacional[159].
É sem dúvida verdade a complexidade no que tange ao âmbito e à extensão das imunidades concedias aos chefes de Estado em exercício perante uma jurisdição estrangeira. Isto decorre pelo fato de que, conciliar um bom desenvolvimento das relações internacionais dos Estados soberanos com a não impunidade da responsabilização de um dirigente político pela prática de crimes considerados graves, torna-se uma questão dificultosa e controversa.
Considerações Finais
Analisou-se a natureza ou qualidade do cargo de chefe de Estado como questão que o Direito Internacional não define, isto é, cada Estado determina e qualifica em seu ordenamento jurídico interno sua forma de designação e competências em matéria de relações externas. Neste contexto, as atribuições do chefe de Estado no plano internacional consistem classicamente no jus representationis omnimodae.
Restou demonstrado que, por se tratar de “pessoa internacionalmente protegida”, ao chefe de Estado é garantido um conjunto de prerrogativas reconhecidas pelo Direito Internacional consuetudinário, bem como pelas regras cortesia internacional. Além disso, a obrigação de Estados terceiros em tratar a pessoa do chefe de Estado com respeito e preveni-lo de eventual ataque à sua pessoa, dignidade e liberdade surge quando do conhecimento de sua presença em território estrangeiro.
Nesta linha de raciocínio, o reconhecimento de um status privilegiado aos chefes de Estado[160] decorre principalmente para garantir o livre exercício de suas funções oficiais e diplomáticas. As prerrogativas apresentam, dessa maneira, sobretudo uma natureza jurídica funcional, pois é inerente às funções desempenhadas pelo chefe de Estado na sua qualidade de representante de um Estado soberano que formalmente pode conduzir a atos que produzem efeitos jurídicos no plano internacional.
Afirmou-se, ainda, que tais prerrogativas estão essencialmente contidas em duas fontes, ou seja, em normas consuetudinárias e normas convencionais, mas que a existência de uma determinada lacuna jurídica no que tange ao tratamento específico sobre as prerrogativas que beneficiam esses agentes políticos na ordem internacional é ainda uma realidade. Daí resulta, por exemplo, a existência de dúvidas quanto à aplicabilidade do princípio da ausência de imunidade com relação aos chefes de Estados.
Demonstrou-se que para além da imunidade ratione materiae, a qual subsiste após o término das funções já que protege os atos da função praticados pelo chefe de Estado, tais agentes gozam da imunidade ratione personae em relação às atividades que são pessoais e desconexas com as funções oficiais. Isto é, a imunidade ratione personae chega ao fim quando do término do mandato oficial, e os atos privados não beneficiam de imunidade ratione materiae.
Logo, o chefe de Estado em função se beneficia das imunidades ratione personae e materiae; já com relação ao antigo chefe de Estado, este goza desta última salvo no que tange aos atos praticados no exclusivo interesse pessoal.
No presente relatório verificou-se também que embora haja doutrina no sentido de reconhecer uma imunidade absoluta aos chefes de Estados, é possível encontrar algumas exceções que buscam restringir o alcance da imunidade de jurisdição penal. Assim, há quem entenda que o direito internacional moderno que sugere uma concepção absoluta da imunidade, mormente no que diz respeito à prática de crimes internacionais, é incompatível com os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos.
Entretanto, o princípio da irrelevância da condição oficial para fins de responsabilização criminal quanto à prática de crimes internacionais é patente nos diversos estatutos dos Tribunais Internacionais. De modo geral, com relação aos tribunais internacionais, especialmente ao TPI, o chefe de Estado – estando em exercício ou não, vide caso do Presidente do Sudão -, não goza de imunidade perante tal jurisdição.
Diferentemente, a convergência de opinião não ocorre quando esteja em causa a imunidade de jurisdição do chefe de Estado perante um tribunal estrangeiro. É sem dúvida verdade a falta de decisões nacionais sobre este ponto que possa remeter a uma prática comum e unânime, de maneira que o mecanismo da jurisdição universal especialmente quanto à acusação de chefes de Estado por crimes internacionais revela-se um fenômeno relativamente recente.
Se por um lado, defende-se que para a boa condução das relações internacionais sob autoridade da pessoa do chefe de Estado, bem como para não prejudicar o efetivo e pleno desempenho de suas funções, este agente quando esteja em exercício não pode ser criminalmente acusado por crimes graves; por outro, alega-se a não impunidade da responsabilização de um dirigente político pela prática de tais delitos, uma vez que o Direito Internacional não pode garantir as imunidades com relação a atos que o mesmo Direito condena como aqueles que atacam ou violam os próprios interesses da comunidade internacional no seu conjunto.
Diante dessa problemática que efetivamente tem sido objeto de estudos acerca das imunidades dos chefes de Estado pode-se afirmar que as prerrogativas concernentes a tais agentes situam-se numa categoria sui generis no Direito Internacional que, atualmente, tem sofrido críticas quanto ao seu caráter absoluto e amplo especialmente quanto à prática de crimes internacionais. Por tais motivos, deve-se sopesar o caráter representativo e jurídico-funcional do cargo que ocupa um chefe de Estado para fins de reconhecimento de imunidade de jurisdição, sobretudo no que diz respeito aos crimes internacionais.
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