Incentivos fiscais. Limitações constitucionais e legais


Sumário: 1. Introdução. 2. Limitações constitucionais. 3. Limitações legais. 3.1. Requisitos para concessão de incentivos fiscais e tributários. 3.2 Diversas modalidades de renúncia de receitas públicas. 3.3 A questão da isenção específica e a superveniência da Lei de Responsabilidade Fiscal. 3.3.1 Generalidades. 3.3.2 As isenções por tempo certo outorgadas anteriormente ao advento da Lei de Responsabilidade Fiscal podem ser ignoradas pelo poder público concedente? 4 Hipóteses excepcionais de inaplicação do art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. 5 Conclusões.


1 INTRODUÇÃO


Incentivo fiscal é um conceito da Ciência das Finanças. Situa-se no campo da extrafiscalidade e implica redução da receita pública de natureza compulsória ou a supressão de sua exigibilidade. É um instrumento do dirigismo econômico; visa desenvolver economicamente determinada região ou certo setor de atividade.


Como mais adiante veremos, a Lei de Responsabilidade Fiscal enumera as diversas espécies de incentivos ou benefícios de natureza tributária. Mas, convém, desde logo, pontuar que o incentivo fiscal não se confunde com a isenção tributária, mesmo na hipótese  que implique total exoneração do tributo. É que a isenção tributária não é um instrumento de intervenção na economia tal como o incentivo fiscal (SUDENE, SUDAM, SUFRAMA, FLORESTAMENTO, REFLORESTAMENTO etc.)


Isenção tributária é um instrumento de Direito Tributário significando, para a maioria dos doutrinadores, hipótese de não incidência legalmente qualificada. Difere do incentivo fiscal, quer quanto ao seu campo de abrangência (campo de atuação maior), quer quanto à sua motivação. Ela é concedida em função de certos bens (isenção objetiva), ou de certas pessoas (isenção subjetiva), mas sempre em função do interesse público. A  finalidade da isenção não é a de desenvolver determinada região do País, nem a de incrementar certa atividade econômica, como ocorre com o incentivo fiscal. A motivação da isenção, pode-se dizer, é semelhante a da imunidade pela qual a Constituição retira o poder tributário em relação a certos bens, serviços ou pessoas. Só que, enquanto a imunidade atua no campo da definição de competência, a isenção atua no campo do exercício da competência tributária. Consoante já escrevemos quando “a motivação da isenção coincide com a do incentivo fiscal é porque estamos diante não de uma isenção pura, mas de isenção condicional, sujeita a termo certo de vigência. É a isenção com as feições contratuais, em que o sujeito passivo tem que arcar com ônus determinados. Daí a irrevogabilidade desse tipo de isenção”[1].


O objetivo deste trabalho é o de demonstrar que a Constituição Federal e a Lei de Responsabilidade Fiscal introduziram requisitos rígidos para a concessão de incentivos fiscais e tributários que antes vinham sendo outorgados de forma desordenada, afetando o equilíbrio das contas públicas. Outrossim, este estudo procura comprovar que isenções tributárias por tempo certo, concedidas antes da LRF, devem ser respeitadas. Por fim, analisa as hipóteses de insubmissão de determinados incentivos às restrições da LRF.


2 LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS


Durante a vigência da ordem constitucional antecedente era usual as três entidades políticas (União, Estados/DF e Municípios) concederem incentivos, principalmente, os de natureza tributária no bojo de uma lei genérica cuidando de diversas matérias, o que facilitava a ação dos lobistas interessados na redução ou exoneração da carga tributária. Não havia, pois, transparência nesse tipo de renúncia de receita pública, que nem sempre atendia ao interesse público.


Por isso, o legislador constituinte de 1988 inseriu o § 6º, no art. 150, da CF com a seguinte redação:


“§ 6.º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição[2], sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g.”.  


Como se verifica, somente uma lei específica pode conceder incentivos fiscais ou tributários, de sorte a trazer transparência e segurança jurídica, livrando o aplicador da lei da tarefa de manusear infindáveis normas espalhadas na legislação ordinária. Lei específica significa que a ementa da lei deve indicar, em destaque, o incentivo fiscal ou tributário objeto de concessão. Da mesma forma, a revogação do incentivo, quando cabível, deve ser feita por lei específica[3].


O dispositivo constitucional sob exame excepciona as isenções do ICMS que devem seguir a prescrição da lei complementar, conforme disposto no art. 155, § 2º, XII, g, da CF. A Lei Complementar nº 24, de 7-1-1975, que dispõe sobre convênios para a concessão de isenções do ICMS, foi recepcionada pela Constituição de 1988.


3 LIMITAÇÕES LEGAIS


A Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF – veio à luz para servir de instrumento básico para a consolidação do Programa de Estabilização Fiscal reclamado por organismos internacionais, sob a coordenação do FMI. Objetiva, pois, drástica redução do déficit público e a estabilização do montante da dívida pública.


Para tanto, de um lado,  introduziu mecanismos de combate a duas grandes despesas tradicionais: despesas com pessoal e despesas com serviços da dívida que absorvem a maior parte das receitas, pouco deixando para as despesas de capital, notadamente, as de investimentos, comprometendo a qualidade de vida das gerações futuras.


De outro lado, visou aperfeiçoar o mecanismo de arrecadação tributária e condicionar a concessão de incentivos tributários que vinham sendo concedidos desordenadamente, sob diferentes modalidades.


De fato, esses incentivos, às vezes, tinham aplicação no próprio exercício em que introduzidos, concorrendo para o desequilíbrio das contas públicas.


Qualquer medida que implique redução discriminada de tributos enquadra-se no conceito de incentivos tributários.


3.1 Requisitos para concessão de incentivos fiscais e tributários


A LRF limita a ação do legislador na concessão de incentivos de natureza tributária nos termos do art. 14, que assim prescreve:


Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:


I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;


II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.


§ 1o A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.


§ 2o Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de  trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso.


§ 3o O disposto neste artigo não se aplica:


I – às alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do art. 153 da Constituição, na forma do seu § 1o;


II – ao cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança.”


Como se vê, esse art. 14  objetiva alcançar as metas previstas no art. 1° da LRF, por meio de uma gestão fiscal responsável, planejada e transparente, a fim de prevenir situações de desequilíbrio orçamentário.


Por isso, impõe limites e condições para a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício que implique renúncia de receita pública. Não interfere, nem cria obstáculos à concessão de benefícios ligados às receitas não tributárias, como é o caso dos privilégios outorgados aos usuários de serviços públicos concedidos.


A LRF limita o poder de renunciar tributos que é corolário do poder de instituir, fiscalizar e arrecadar tributos. A criação de tributos encontra limitações de ordem constitucional, enquanto que a renúncia de tributos encontra limitações de natureza legal.


Para abrir mão de receita tributária, em aparente contradição com o princípio da generalidade (todos devem pagar impostos) e com o princípio da universalidade (todos os bens, serviços e rendas devem ser tributados), que regem o fenômeno tributário, é preciso que esteja presente o interesse público direcionando a ação do governante no sentido de renunciar à parcela de receita  para consecução do bem comum. É o caso, por exemplo, de incentivos fiscais referidos no art. 151, inciso I, da Constituição Federal destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do país. Esse princípio tem aplicação nos âmbitos estadual e municipal, por força do princípio da simetria. O que não se admite são as “guerras tributárias”, infelizmente, arraigadas na cultura dos governantes e que acabam agravando os desníveis regionais.


O nível de imposição tributária, ou a concessão de incentivos fiscais não se inserem na seara do direito tributário, mas no campo da política tributária. A confusão dessas duas realidades tem conduzido a situações peculiares como a propositura de ação judicial para obrigar o poder público a corrigir a tabela do IR, implicando atividade legislativa do Judiciário na fixação de determinado indexador quando acolhida a ação. E mais, a decisão judicial, nesse caso, implica redução de imposto sem lei, violando o princípio da legalidade tributária.


O dispositivo sob comento deixa claro que a renúncia tributária, onde se insere a tradicional isenção, é um instrumento de planejamento das finanças públicas. O fim visado não é beneficiar o seu destinatário que apenas usufrui desse benefício por via indireta. Lamentavelmente, na prática, a ação de lobistas de diversos setores da economia tem conduzido a uma política de favorecimento tributário deste ou daquele setor, inclusive, quebrando a espinha dorsal do regime econômico da livre iniciativa, fundado no princípio da livre concorrência (art. 170, IV, da CF).


As regras previstas nos incisos I e II, do art. 14 sob exame dificultam a concessão de incentivos tributários por “encomendas” dos interessados.


O inciso I condiciona o ente político concedente do benefício à demonstração prévia de que a renúncia pretendida foi considerada na estimativa da receita na Lei Orçamentária Anual – LOA – na forma do art. 12 da LRF, e que não afetará as metas dos resultados fiscais previstos nos anexos da Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO. A LDO, ao orientar a elaboração da LOA, deve dispor sobre alterações da legislação tributária considerando os aumentos e reduções legais de tributos para possibilitar a correta estimação de receitas no orçamento anual.


O inciso II exige que a proposta de renúncia esteja acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio de aumento da carga tributária mediante elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo.  Prescreve o § 2°, do art. 14, que a vigência do incentivo ou benefício, decorrente de medidas de compensação da perda de arrecadação fica condicionada à efetiva implementação dessas medidas, de sorte a não provocar qualquer desequilíbrio nas contas públicas. É a constatação da sabedoria do velho ditado popular: quando alguém deixa de pagar imposto outro alguém passa a pagar em dobro. O princípio da justiça fiscal, na verdade, impõe a observância dos princípios da generalidade e da universalidade da tributação.


Com as exigências previstas nos dois incisos comentados torna-se impossível, juridicamente, a supressão pura e simples do encargo tributário, para atender aos diversos interesses políticos divorciados do verdadeiro interesse público.


Porém, na prática, as três esferas impositivas vêm concedendo incentivos tributários sem o cumprimento dos requisitos do art. 14 retro analisado. E mais, os Estados-membros vêm outorgando benefícios tributários unilateralmente em relação ao ICMS, não só, com a violação do citado art. 14 da LRF, como também, com a afronta ao art. 155, XII, g, da CF que submete essa questão à regulamentação por Convênios firmados pelos Estados integrantes da Federação Brasileira, na forma da lei complementar[4]. São as chamadas “Guerras Tributárias” que tantos transtornos vêm causando aos contribuintes em geral, que vêm suportando os efeitos maléficos desses incentivos ilegais e inconstitucionais mediante a glosa dos créditos apropriados, sempre que originados de Estados-membros que concederam unilateralmente o benefício tributário.


Nessas hipóteses de transgressões legais e constitucionais cabe ao Poder Judiciário decidir, quando provocado por quem de direito. Infelizmente, a resposta que a Corte Suprema vem dando a esses incentivos de manifesta inconstitucionalidade por descumprimento literal da disposição constitucional pertinente tem sido bastante lenta, por submeter o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADIs – ao regime do art. 12 da lei de regência, deixando da apreciar o pedido de medida cautelar. Esse fato tem estimulado a ação de alguns governantes estaduais que vêm concedendo incentivos fiscais de forma unilateral para atrair a aplicação de capitais em seus respectivos Estados-membros, sempre contando com a modulação de efeitos em casos de declaração de inconstitucionalidade do benefício fiscal outorgado.


3.2 Diversas modalidades de renúncia de receitas públicas


O § 1°, do art. 14 nomina, de forma exemplificativa, as variadas espécies do gênero renúncia de receita pública. A anistia está regulada nos arts. 180 a 182, do CTN. Significa perdão do crédito tributário e da infração tributária. A remissão, que pode ser total ou parcial, nos termos do art. 172, do CTN, significa perdão apenas do crédito tributário. Subsídio é a quantia ou o auxílio que o Estado dá ao particular por força de convênio ou acordo para desenvolvimento de atividade de interesse social. Crédito presumido é o valor estimativo, fixado pelo poder público a favor do contribuinte de imposto de natureza não-cumulativa em função dos insumos e da combinação de fatores de produção (matérias-primas, materiais secundários consumidos no processo de industrialização, energia consumida etc.) que entram na produção final de bens ou serviços. Concessão de isenção de caráter não geral é aquela que se concede caso a caso, mediante exame da autoridade administrativa competente, nos termos do art. 179, do CTN. Apesar de resultar de lei, esse tipo de isenção assume feição contratual, à medida que representa um privilégio fiscal condicionado ao atendimento, por parte do contribuinte, de certos requisitos de interesse público. Por isso, é outorgada por prazo determinado não cabendo sua revogação, conforme jurisprudência pacífica dos tribunais. As isenções gerais, que são incondicionadas, estão fora do alcance da norma sob comento. Finalmente, a alteração de alíquota ou redução da base de cálculo diz respeito ao aspecto quantitativo do fato gerador da obrigação tributária encontrando-se  sob reserva de lei (art. 97, II, do CTN).


 Enfim, quaisquer outros benefícios que refogem dos  princípios da generalidade e da universalidade da tributação estão abrangidos pelas restrições do art. 14 da LRF. É o caso, por exemplo, da tributação por alíquota zero, que surte o mesmo efeito de uma isenção, e que tanta discussão judicial tem trazido aos nossos tribunais em relação aos créditos do IPI, cujo caráter não cumulativo não está sujeito à flexibilização por legislação infraconstitucional a exemplo do seu similar, o ICMS estadual.


3.3 A questão da isenção específica e a superveniência da Lei de Responsabilidade Fiscal


Um assunto que vem despertando controvérsia é o de saber se a isenção específica ou por tempo certo, concedida antes do advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, pode ser desrespeitada pelo poder público concedente em face da aparente incompatibilidade superveniente.


3.3.1 Generalidades


Como se sabe, isenção é hipótese de não incidência tributária legalmente qualificada. Após descrever o fato gerador da obrigação tributária, hipótese legal de incidência do tributo, o legislador retira desse campo de incidência certos fatos ou atos que passam a ser insuscetíveis de tributação.  A hipótese de isenção implica modificação do aspecto nuclear do fato gerador da obrigação tributária, ou seja, da norma legal que define a hipótese tributária.


A doutrina clássica costuma conceituar a isenção como dispensa do pagamento do tributo devido, conceituação essa violentamente combatida pela doutrina moderna em termos de teoria geral do direito, porque não seria possível pressupor prévia incidência de norma jurídica de tributação para, ao depois, incidir a norma jurídica de isenção.  Dessa forma, ela se confundiria com a não-incidência expressamente prevista em lei, para alterar parcialmente o conteúdo da hipótese de tributação. Quando a não-incidência estiver prevista na Constituição, deve entender-se como imunidade, segundo a doutrina e jurisprudência unânime. Entretanto, em relação a não incidência do ICMS prevista no art. 155, § 2º, X, b da CF (operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica) o Supremo Tribunal Federal firmou a tese no sentido de que não se trata de imunidade, mas de não incidência conforme dispõe a própria norma constitucional. No entendimento da Corte Suprema a norma constitucional apontada não visa favorecer o consumidor por configurar, no caso, uma operação interna, mas objetiva beneficiar o Estado-membro consumidor. Nesse sentido é remansosa a jurisprudência da Corte[5].


Seja como for, tudo indica que o Código Tributário Nacional prestigiou a doutrina clássica, ao incluir a isenção e a anistia no rol do art. 175 do CTN, que as elege como hipóteses de exclusão do crédito tributário. E exclusão do crédito tributário pressupõe a preexistência da obrigação tributária. Daí a afirmativa corrente: não se concede isenção a quem não estiver sujeito à tributação, da mesma forma que não se anistia quem nada deve.


É possível, contudo, conciliar a doutrina tradicional com a doutrina moderna. Quando se diz que na isenção há “dispensa do pagamento do tributo devido, feita por disposição expressa da lei e por isso mesmo excepcionada da tributação”, como sustentado por Ruy Barbosa Nogueira[6], está a significar o ato do legislador de não inserir no campo da incidência tributária o fato ou ato que seria normalmente alcançado pelos princípios da generalidade e da universalidade da tributação. Inegável, no entretanto, que na doutrina moderna prevalece o entendimento de que a isenção é hipótese de não-incidência legalmente qualificada, o que implica a exclusão do fato gerador. Isenção é uma exceção à norma jurídica de tributação. Só que em termos de direito positivo não há como negar que na isenção existe a obrigação tributária que nasce com a ocorrência do fato gerador (incidência de norma jurídica de tributação), mas que não chega a ser formalizada pelo lançamento tributário. A isenção exclui o crédito tributário tanto quanto a anistia.


A isenção, diz o art. 111 do CTN, deve ser interpretada literalmente, exatamente porque é uma exceção à regra geral de tributação.


A isenção por prazo certo tem origem contratual.  Há um pacto entre o sujeito passivo e o sujeito ativo no sentido de o primeiro desenvolver determinadas atividades no território do segundo, objetivando a expansão da economia local ou regional.


 É comum o Município conceder isenção de tributos municipais por 10 anos ou mais, para as empresas industriais se localizarem em seu território, com vistas ao crescimento da produção, geração de empregos, expansão da economia e conseqüente aumento da arrecadação tributária direta e indireta.  Não raras vezes, o Município arca, ainda, com os custos de implantação da indústria não só financiando os maquinários e equipamentos necessários, como também  doando a área do terreno para construção do parque industrial.


 Essas isenções têm feição contratual à medida que a lei específica deverá detalhar as condições para sua fruição, discriminando os tributos por elas abrangidas, bem como assinalando o prazo de sua duração, nos termos do art. 176 do CTN.


3.3.2 As isenções por tempo certo outorgadas anteriormente ao advento da Lei de Responsabilidade Fiscal podem ser ignoradas pelo poder público concedente?


Quanto às isenções por tempo certo, a partir da vigência da LRF não haverá problema algum, pois pressupõe-se que elas sejam outorgadas com observância dos requisitos do art. 14, que já examinamos.


O problema surge em relação às isenções previstas em leis anteriores ao advento da LRF. Nesses casos, as isenções prevalecem ou elas podem ou devem ser ignoradas pelo poder público concedente? A tese da revogação pura do benefício fiscal não é de ser aceita, pois a revogação se dá por motivos de oportunidade e conveniência, hipótese em que se impõe o pagamento da respectiva indenização ao prejudicado por esse ato discricionário.


Inúmeros Municípios, alegando que essas isenções contrariam as disposições supervenientes da Lei de Responsabilidade Fiscal, não vêm cumprindo a sua contrapartida, prejudicando o empresário que fez investimentos contando com os incentivos.


No fundo, essas recusas revelam astúcia do governante, que procura respaldo na legislação superveniente, para não honrar o compromisso assumido. Isso porque, se a isenção atendeu ao interesse público, e não pode haver renúncia tributária sem interesse público, ela levou em conta o crescimento da economia local ou regional, conforme o caso, a propiciar, ipso fato, aumento de arrecadação tributária. O crescimento da economia em razão do incentivo fiscal, por si só, bastará para assegurar o equilíbrio orçamentário do ente político, que é o objetivo principal da LRF.


Ainda que assim não fosse, temos uma isenção por tempo certo que, embora expressa em lei, resultou da negociação entre o sujeito ativo e o sujeito passivo do tributo, no pressuposto de que tal ajuste consultaria o interesse público. 


De outro lado, temos a disposição de ordem pública vedando o ente político de conceder essa isenção, sem prévio estudo do seu impacto orçamentário-financeiro no exercício de sua vigência e nos dois seguintes, além de exigir o atendimento da Lei de Diretrizes Orçamentárias e a adoção de providências para compensar a perda de arrecadação com o aumento da receita, por meio da majoração ou criação de tributos.


Costuma-se argumentar que disposições de ordem pública devem ser aplicadas imediatamente.


Contudo, esse entendimento não tem aplicação entre nós, onde o princípio do direito adquirido está previsto, não no nível legal, mas na Constituição Federal (art. 5º, XXXVI da CF), protegido, ainda, pela cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV da CF).  É diferente do ordenamento jurídico de outros países como o da França e o da Itália, por exemplo, onde o direito adquirido é protegido apenas no nível legal.


Dessa forma, a empresa favorecida pela isenção específica, ou qualquer outro tipo de incentivo fiscal, por tempo certo, tem direito adquirido à sua fruição até o final do termo previsto na lei, sem que possa o Município alegar contrariedade às disposições da LRF, e assim, deixar de cumprir a parte que lhe cabe.


A recusa do ente político em cumprir as suas obrigações decorrentes da lei específica de isenção por tempo certo abrirá caminho para a empresa prejudicada pleitear na Justiça o seu direito adquirido, insusceptível de supressão até mesmo por via de Emenda Constitucional.


4 HIPÓTESES EXCEPCIONAIS DE INAPLICAÇÃO DO ART. 14 DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL


O § 3° excepciona do âmbito de incidência do caput, do art. 14 os impostos federais de natureza regulatória que, por expressa disposição constitucional, não se submetem ao princípio da legalidade  tributária no que tange às alterações de suas alíquotas, nos limites e condições previstas em lei (§ 1°, do art. 153, da CF). Esses impostos (imposto de importação; imposto de exportação; imposto sobre produtos industrializados; e imposto sobre operações de crédito, câmbio, seguro e sobre operações relativas a títulos e valores mobiliários) existem, não com a finalidade arrecadatória, mas com o objetivo de regular as atividades econômicas. São conhecidos na doutrina como tributos extrafiscais, isto é, tributos fundados no poder de polícia em contraposição aos tributos fundados no poder fiscal.


O imposto de importação e o imposto de exportação têm por objetivo regular o comércio exterior, sempre sujeito às variações conjunturais e, às vezes, às injunções políticas de governos estrangeiros. Por isso, estão livres, tanto do princípio da anterioridade (§ 1º, do art. 151, da CF), como do princípio da legalidade no que diz respeito à alteração de alíquotas “nos limites e condições estabelecidas em lei” (§ 1º, do art. 153, da CF). A Constituição outorgou ao Executivo instrumento normativo ágil para, nos limites da lei, ofertar rápida resposta às situações anômalas supervenientes no plano do comércio exterior.


A função regulatória do IPI, igualmente dispensado da observância dos dois princípios constitucionais retroapontados, quer sejam, dos princípios da anterioridade e da legalidade tributária no que tange à alteração de alíquotas[7], repousa no caráter seletivo em função da essencialidade do produto, conceito que varia no tempo e no espaço. O que é essencial hoje pode ser supérfulo amanhã. E o que é essencial aqui, pode não ser em outra localidade.


O IOF tem a sua função ordinatória baseada na fixação da política de câmbio, crédito e seguro, e também de títulos e valores mobiliários. O efeito arrecadatório é mera conseqüência da função extrafiscal, por isso, o IOF está livre, tanto do princípio da anterioridade tributária, quanto do princípio da legalidade no que se refere à alteração de alíquotas[8].


Por tais razões, esses quatro impostos não se submetem ao secular princípio da legalidade tributária no que tange à alteração de alíquotas, nem ao princípio da anterioridade. Eles têm a missão de regular a economia em seus vários aspectos, a demandar um instrumento normativo célere e eficaz, o que não seria possível alcançar por meio de uma lei aprovada pelo Congresso Nacional que poderia demandar anos de discussão.


São excluídas, também, do âmbito das restrições do art. 14, as hipóteses de cancelamento de créditos tributários, cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança, pois isso não irá acarretar desequilíbrio orçamentário, pelo contrário, poderá contribuir para o seu equilíbrio.


5 CONCLUSÕES


Os incentivos fiscais, que atuam no campo da extrafiscalidade como instrumento do dirigismo econômico, diferem das isenções tributárias puras (genéricas) que atuam no âmbito do Direito Tributário e têm campo de abrangência maior do que os primeiros. Porém, ambos se submetem ao princípio da especialidade previsto no § 6º, do art. 150 da CF.


As isenções condicionais ou por tempo certo, concedidas antes do advento da Lei de Responsabilidade Fiscal que trouxe restrições no que tange à renúncia de receitas públicas compulsórias, devem ser honradas pelo poder público concedente,  porque elas têm feição contratual impondo obrigações recíprocas, cumprindo papel próprio de incentivos fiscais destinados ao desenvolvimento econômico, nacional, regional, local ou setorial.


As reduções de alíquotas de impostos regulatórios não se sujeitam às restrições da Lei de Responsabilidade Fiscal.


 



Notas:

[1] Cf. nosso Dicionário de direito público. 2ª edição. São Paulo MP Editora, 2005, p. 224.

[2] Apesar de não mais restar dúvida quanto a natureza tributária da contribuição social, o legislador constituinte preso à antiga doutrina não considerou a contribuição como espécie tributária.

[3] A revogação tácita da isenção da COFINS dos profissionais legalmente regulamentados prevista na lei específica (art. 6º, II da LC nº 70/91) foi operada pelo art. 56 da lei genérica de nº 9.430/96. Contudo, o STF ao validar a norma do art. 56 da Lei nº 9.430/96 não abordou a questão à luz do § 6º, do art. 150, da CF que não foi suscitado pelas partes (RE nº 377.457-PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe nº 183. de 26.9.2008).

[4] A Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975 foi recepcionada pela Constituição de 1988.

[5] RE n° 358.956-3/RJ, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe n° 117, divulgado em 26-6-2008 e publicado em 27-6-2008. No mesmo sentido: RE n° 198.088, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 5-9-2003; RE n° 338.681 – AgRg-ED, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 3-2-2006; RE n° 201.703, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 14-12-2001; AI n° 749.431- AgR, Rel Min. Eros Grau, DJe n° 191 de 9-10-2009; AI n° 801149, Rel. Min. Cârmen Lúcia, DJe n° 112, divulgado em 18-6-2010.

[6] Curso de direito tributário. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p.  171.

[7] O art. 4º do Decreto-lei nº 1.199, de 27-12-1971, regula os limites e condições para que o Executivo possa alterar as alíquotas por decreto, respeitada a seletividade em função da essencialidade do produto. Promover majoração imotivada de alíquota, bem como instituir tributação por alíquota zero com o fito de burlar o princípio da legalidade da isenção, configuram desvio de finalidade a acarretar a nulidade do ato do Executivo.

[8] A Lei nº 8.894, de 21-6-1994, regulamenta o disposto no § 1º, do art. 153 da CF em relação ao IOF, de forma parcial, limitando-se a fixar a alíquota máxima de 1,5% ao dia sobre o valor das operações de crédito e relativos a títulos e valores mobiliários (art. 1º), e alíquota de 25% sobre o valor de liquidação da operação cambial (art. 5º), omitindo-se acerca das operações de seguro. As majorações imotivadas do IOF levadas a efeito pelos Decretos ns. 6.339, de 3-1-2008 e 6.345, de 4-1-2008 são inconstitucionais. No que se refere às operações de seguro a inconstitucionalidade é agravada por ausência de lei reguladora dos limites e condições para o Executivo promover a alteração de alíquotas.

Informações Sobre o Autor

Kiyoshi Harada

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.


Equipe Âmbito Jurídico

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