Resumo: Estudo interdisciplinar pontual entre disposições do Código Civil e do Código Penal
Sumário: Introdução – Furto de Energia – A redução do prazo prescricional para os menores de 21 anos – Conclusões – Referências
1 – INTRODUÇÃO
O advento do novo Código Civil Brasileiro (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002) operou importantes alterações no cenário jurídico.
Suas irradiações não se reduzem ao âmbito civil, mas podem ensejar modificações em outras áreas do Direito, dentre as quais, a do Direito Penal.
Neste trabalho propõe-se o estudo de dois casos específicos dessa potencial influência das novas regras civis no campo penal: as questões do furto de energia (artigo 155, § 3o., CP) e da redução do prazo prescricional para os menores de 21 anos (artigo 115, CP).
2 – O FURTO DE ENERGIA
Clóvis Beviláqua conceitua objetivamente o Direito Civil como "o complexo de normas jurídicas relativas às pessoas, na sua constituição geral e commum, nas suas relações recíprocas de família e em face dos bens considerados em seu valor de uso."[1]
Com um espectro de atuação tão vasto e complexo, "determinados conceitos relativos a bens, interesses e situações jurídicas como posse, propriedade, casamento, família, parentesco são comuns", seja ao Direito Civil, seja ao Direito Penal.[2] Entretanto, algumas vezes a conceituação civil é alterada ou complementada no campo penal, conforme ocorria com a equiparação da energia elétrica e outras de valor economicamente apreciável a coisas móveis (art. 155, § 3o., CP).[3]
Sob a égide do Código Civil anterior (Lei 3071, de 1o.0l.1916), tal equiparação era indispensável, acaso se pretendesse a viabilidade da punição por furto daquele que subtraísse energia elétrica ou outras economicamente apreciáveis. Em não havendo a expressa equiparação legal do § 3o. do artigo 155, CP, o fato seria atípico, devido à falta de um elemento do tipo ("coisa móvel"). Isso ocorria porque o Código Civil de 1916 não previa em seus artigos 47 a 49 que as energias de valor econômico fossem bens móveis, fato este capaz de gerar sérias controvérsias interpretativas.[4]
O novo Código Civil tratou a matéria de maneira diversa. Em seu artigo 83, I, considerou expressamente como bens móveis "as energias que tenham valor econômico". Com isso, logrou a lei civil pôr cobro a eventuais controvérsias antes existentes e, até mesmo, tornar desnecessária a previsão do § 3o. do artigo 155, CP. Hoje, torna-se despicienda e redundante aquela equiparação antes valiosa à segurança jurídica, pois é induvidoso que as energias de valor economicamente apreciável constituem bens móveis e são potenciais objetos materiais do crime de furto (art. 155, "caput", CP). Contudo, considerando que o Direito é campo fértil para polêmicas e poderia surgir quem defendesse que o conceito de equiparação supra mencionado somente se aplica ao campo civil, não faz mal o legislador em manter a previsão do artigo 155, § 3º., CP.
3 – A REDUÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL PARA OS MENORES DE 21 ANOS
Estabelece o artigo 115, primeira parte, do Código Penal, que "são reduzidos da metade os prazos de prescrição quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 (vinte e um) anos (…)".
Trata-se de uma das modalidades daquilo que a doutrina denomina "prescrição etária ou redução do prazo prescricional em virtude da idade".[5]
O tratamento diferenciado mais benéfico para os menores de 21 anos, no que tange à contagem do lapso prescricional, reflete a adesão do diploma penal pátrio a uma política criminal e a uma corrente jurisprudencial liberais.[6] Atenta-se para o reconhecimento de uma "condição de inferioridade" do menor, "devido à falta de maturidade".[7]
Havia, durante o vigor do Código Civil de 1916, uma coerência sistemática no tratamento da matéria. O entendimento quanto à hipossuficiência dos menores entre 18 e 21 anos era ratificado pelas normas civis atinentes, que estabeleciam a incapacidade relativa de tais pessoas (CC, 1916, artigo 6o., I c/c art. 9o.).
A doutrina civil apontava para o reconhecimento de uma relativa inaptidão e imperfeito desenvolvimento intelectual desses sujeitos, aos quais, embora não vedada a capacidade de maneira absoluta, eram estabelecidas regras especiais ou peculiares, visando suprir aquela deficiência parcial.[8]
Toda essa homogeneidade no trato da matéria cai por terra com a disciplina do novo Código Civil.
A Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, demarca a maioridade civil aos 18 anos completos (art. 5o.) e a incapacidade relativa é fixada entre os 16 e os 18 anos incompletos (art. 4o., I).
Portanto, os relativamente incapazes estão hoje fora do alcance das normas penais incriminadoras e submetidos a legislação especial (Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8069/90), por força dos artigos 27, CP c/c 228, CF.
Quanto aos maiores de 18 anos, considerados penalmente imputáveis (art. 27, CP c/c art. 228, CF), a lei civil já não os trata de maneira diferenciada, nem lhes confere especial proteção no período compreendido entre os 18 e os 21 anos. São considerados plenamente capazes para a vida civil, todos os maiores de 18 anos. Isso certamente decorre de uma evolução do ordenamento jurídico que procura ajustar-se à nova realidade social.
Dessa maneira, verifica-se um descompasso entre a orientação da legislação civil em vigor e aquela que norteia o disposto no artigo 115, CP, primeira parte. Ora, uma interpretação que objetivasse a coerência sistemática do ordenamento jurídico, apontaria para a inconsistência da prescrição etária reduzida no campo penal. Isso porque atualmente não mais subsiste o motivo que fundava sua previsão, qual seja, o reconhecimento da hipossuficiência dos indivíduos entre os 18 e 21 anos de idade, com base no antigo tratamento da matéria no revogado Código Civil de 1916.
Realmente há que constatar-se esse flagrante contraste entre os campos penal e civil. Entretanto, não é ainda o momento para negar vigor ao disposto no artigo 115, CP. Embora conflitante com os fundamentos relativos ao tratamento das pessoas entre 18 e 21 anos no novo Código Civil (que não as aparta de outros maiores), não há falar-se em eventual revogação tácita da norma penal (art. 2o., § 1o., LICC). Isso em virtude do que determina o artigo 2043, do novo diploma civil:
"Até que por outra forma se disciplinem, continuam em vigor as disposições de natureza processual, administrativa ou penal, constantes de leis cujos preceitos de natureza civil hajam sido incorporados a este Código."
Tal mandamento, das disposições finais e transitórias do novel diploma civil, impõe que em casos como o ora versado, a alteração da lei penal somente poderá dar-se através de revogação expressa operada por norma especialmente elaborada para esse fim, qual seja, o do tratamento homogêneo e sistematicamente coerente dos temas comuns ou correlatos entre as diversas áreas do Direito.
Especialmente como ocorre no caso enfocado, tratando-se de dispositivo benéfico ao indivíduo, há que observar-se a máxima cautela, pois nem mesmo a disposição penal expressa mais rigorosa poderá retroagir aos casos pretéritos (artigo 5o., XL, CF).
Além disso, há que ficar atento ao fato de que o ordenamento penal se guia por um critério político na determinação de faixas etárias, enquanto que o ordenamento civil se guia pelo chamado critério do discernimento. Um exemplo é esclarecedor: se um menor de 18 anos é emancipado civilmente, nem por isso se torna imputável penalmente. Isso porque os critérios definidores da capacidade civil e da imputabilidade penal são diversos.
4 – CONCLUSÕES
1 – O novo Código Civil exerce influência com suas disposições também em outras áreas do Direito, inclusive a penal.
2 – Essa influência há que ser delimitada pelas regras constitucionais (art. 5o., XL, CF), do Código Penal (art. 2o., Parágrafo Único, CP) e do próprio Código Civil sobre o direito intertemporal (art. 2043, CC), no que se refere à reformulação de dispositivos penais para uma melhor coerência sistemática entre os diplomas respectivos.
3 – No caso do furto de energia, trata-se de mero reconhecimento da prescindibilidade do § 3o. do artigo 155, CP, devido ao advento do artigo 83, I, CC, não havendo alteração legislativa no âmbito penal e também não importando tal interpretação em ampliação do espectro punitivo da norma incriminadora do artigo 155, CP. Mesmo assim, há que ter cautela com a natureza polêmica ínsita ao Direito.
4 – A prescrição etária dos menores de 21 anos, com a redução pela metade do prazo prescricional, permanece incólume em face das novas disposições do Código Civil, por força do artigo 2043, CC c/c art. 5o, XL, CF, afora as divergências de critérios adotados para a capacidade civil (discernimento) e imputabilidade penal ou responsabilidade penal (político).
5 – Para uma maior coerência sistemática da legislação, seria aconselhável uma revisão da prescrição etária dos menores de 21 anos, prevista na primeira parte do artigo 115, CP, visando a compatibilização do Código Penal com os artigos 4o., I e 5o., do novo Código Civil.
6 – Entretanto, mesmo com o advento de eventual reforma do artigo 115, CP, por lei penal expressa, o tratamento mais rigoroso, consistente na possível eliminação da prescrição etária para os menores de 21 anos, somente teria aplicação aos casos posteriores à sua entrada em vigor, vedando-se a retroação da nova disciplina, por inteligência dos artigos 5o., XL, CF c/c 2o., Parágrafo Único, CP.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.
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