Resumo: A massificação das relações intersubjetivas demanda maior atenção por parte dos órgãos estatais, fazendo-se necessário viabilizar instrumentos aptos a defender os interesses da coletividade. Neste sentido, a regulamentação e defesa dos denominados interesses transindividuais, que extrapolam a esfera meramente particular dos indivíduos, consiste em realização da justiça social.
Palavras-chave: Interesse; Legitimação; Direitos difusos; Direitos Coletivos.
Sumário: 1. Considerações gerais – 2. Direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos – 3. Interesse e legitimação – 4. Referências bibliográficas.
1. CONSIDERAÇÕES GERAIS
Hodiernamente, observa-se uma tendência reducionista da esfera do direito privado, buscando-se a edição de normas capazes de assegurar uma maior igualdade nas relações intersubjetivas, a despeito das diferenças sociais, econômicas e culturais Normas que socorram os mais fracos e desarmem os poderosos, organizando a vida em sociedade com maior atenção aos princípios da justiça distributiva. A concentração de capital e poder nas mãos de poucos, com a conseqüente criação de problemas pessoais e patrimoniais que atingem a todos; a crescente padronização do modo de vida, transformando em questão coletiva o que outrora pertencia à esfera individual. Todas estas constatações, somadas a tantas outras, demandam uma atuação cada vez mais efetiva do Estado. Para alcançar uma verdadeira socialização do Direito, é mister recorrer à força estatal, pois compete ao Estado atender às exigências do bem comum, as quais não podem estar relegadas a interesse particulares ou à boa vontade de cada indivíduo; devem ser previstas em lei, constituindo verdadeiras obrigações impostas à toda coletividade.
Esclarece André Franco Montoro (1999, p.221) que a essência do bem comum, na doutrina de São Tomás Aquino, consiste na vida dignamente humana da população, onde todos os membros da sociedade estão aptos a desenvolver suas faculdades e exercer suas virtudes, como a cultura e a vida familiar. Seu instrumento são os bens materiais mínimos para exercer tais virtudes, como moradia e alimentos para realização de uma vida digna. Conclui o pensamento tomista que a condição do bem comum é a paz, o mínimo de tranqüilidade e segurança sem a qual a sociedade inexiste.
A justiça social deve estar calcada, pois, na ordenação da atividade social para o bem comum, devendo se fazer presente enquanto inspiração para a elaboração normativa, estimulando o senso de solidariedade humana na população, com ajustamento da conduta do indivíduo e seu bem particular à satisfação dos interesses de todos. Embora guardem semelhanças, não se confundem o interesse público e o interesse social. Assevera Fernando Rodrigues Martins (2000, p. 63) que este último traduz um anseio da sociedade na preservação do bem comum, e seus desejos visualizados em conjunto, estando presente ou não o Estado. Por seu turno, o interesse público realça a função do estado como responsável pelo atendimento das necessidades da coletividade, a ele incumbindo zelar dos anseios populares.
Na lição de Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 47), “ao tomar decisões na suposta defesa do interesse público, nem sempre os governantes fazem o melhor para a coletividade: políticas econômicas e sociais ruinosas, guerras, desastres fiscais, decisões equivocadas, malbaratamento dos recursos públicos e outras tantas ações daninhas não raro contrapõem governantes e governados, Estado e indivíduos”. Concluindo o autor que nem sempre o interesse do estado coincide com o bem geral da coletividade, distingue o interesse público primário, que é o bem geral, interesse da sociedade como um todo, do interesse público secundário, que consiste no modo pelo qual os órgãos da Administração Pública percebem o interesse público e traçam seus planos de ação.
2. DIREITOS DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
O Estado, em busca da viabilização dos interesses que não são necessariamente estatais, passa a reconhecer questões comuns a toda coletividade, compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas. Trata-se dos interesses transindividuais, os quais transcendem o âmbito puramente individual, mas não consistem exatamente em interesse público.
Fala-se em interesses transindividuais para significar a parcela de interesses pertencentes a um número razoavelmente extenso de pessoas unidas por circunstâncias comuns, situando-se em terreno intermediário entre o direito privado e o direito público. Os estudos iniciais sobre o tema são creditados a Mauro Cappelletti (1988, p. 49): “A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos interesses difusos. O processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre estas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema”.
De fato, o mundo contemporâneo revela uma série de questões que transcendem a esfera de interesse dos particulares. Num primeiro momento histórico, a principal preocupação do ordenamento jurídico era cuidar dos chamados direitos fundamentais de primeira dimensão, surgidos com o Estado liberal do século XVIII, atinentes à liberdade, à igualdade e à propriedade, impondo ao Estado uma abstenção, um afastamento para permitir o exercício dos direitos de cada cidadão. Já na fase do Estado social, surgem os direitos de segunda dimensão, de cunho positivo, exigindo melhoria da qualidade de vida e trabalho do cidadão, aí incluídos o direito à saúde, à educação e ao trabalho como instrumentos necessários para implementação efetiva dos direitos individuais. A terceira dimensão, por sua vez, rompe com a titularidade exclusivamente individual dos direitos e interesses, demandando ativa participação do cidadão na defesa da coletividade. Esta dimensão abrange o direito à paz, à solidariedade, ao ambiente sadio, os direitos do consumidor, ou seja, interesses massificados, coletivos, metaindividuais.
Para André Ramos Tavares (2006, p. 414), “a conseqüência mais veemente do reconhecimento desta categoria foi a de pôr a descoberto a insuficiência estrutural de uma Administração Pública e de um sistema judicial calcados exclusivamente no ideário liberal, que apenas comporta a referência individual, incapaz que é de lidar com fenômenos metaindividuais”. A doutrina inclusive já sinaliza com a quarta, quinta, sexta e até sétima dimensões de novos e novíssimos direitos, tratando do direito ao pluralismo, à informação, ao patrimônio genético, questões de biodireito e biossegurança, direitos virtuais, dentre outros, todos carecedores de atenção e normatização adequadas. No que tange aos retromencionados interesses transindividuais, o primeiro avanço decorreu da modificação da Lei de Ação Popular (Lei 4717/65), que passou a tutelar como patrimônio público os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico e turístico. A seguir, a lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6938/81) tratou da responsabilidade objetiva por danos ambientais, legitimando o Ministério Público para ação de reparação de danos. O marco decisivo coube à Lei de Ação Civil Pública (Lei 7347/85), que tratou da legitimação ativa coletiva, pluralista e concorrente para proteção do ambiente, do consumidor e dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Com o advento da Constituição Federal de 1988, os direitos coletivos foram alçados à categoria dos direitos e garantias fundamentais, expressos em seu artigo 5º, ao lado dos direitos individuais.
Defende Gregório Assagra de Almeida (2008, p. 398) que a clássica summa divisio romana que divide o direito em público e privado não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, a despeito de nosso ordenamento seguir as tradições romanísticas. Ao dispor sobre direitos individuais e coletivos como direitos e garantias fundamentais, o texto constitucional acaba por relativizar a dicotomia anteriormente consagrada entre o interesse público e o interesse privado. Em suas palavras, “na nova summa divisio constitucionalizada no país não há regra prévia de preferência de um direito ao outro. Ambos, direito coletivo e individual, encontram-se inseridos como direitos constitucionais fundamentais. Nas hipóteses concretas podem surgir pontos de tensão entre eles; nesses casos, o princípio (ou postulado) da proporcionalidade é o caminho a ser trilhado em busca da solução do impasse”.
Do individualismo à tutela jurídica ampla e integral, o ordenamento jurídico vem acompanhando os ditames constitucionais e regulamentando interesses que dizem respeito ao bem geral da coletividade. Diversos diplomas legislativos tratam de questões essenciais para o pleno desenvolvimento social, tais como a proteção à pessoa portadora de deficiência, ao idoso, à criança e ao adolescente, ao consumidor, ao meio ambiente, à ordem econômica, ao patrimônio público, à biodiversidade, à ordem urbanística, dentre tantas outras. Percebe-se que os direitos transindividuais decorrem da massificação da sociedade e da complexização das relações intersubjetivas, ultrapassando os limites da esfera de direitos e obrigações de cunho individual e das finalidades egoísticas e projetando-se na ordem coletiva com finalidade altruística. No sistema normativo brasileiro, a divisão e conceituação de categorias de interesses transindividuais são ofertadas pelo Código de Defesa do Consumidor (L. 8.078/90) em seu artigo 81, que os diferenciam em direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Para o CDC, interesses difusos são transindividuais, de natureza indivisível, compartilhados por pessoas indeterminadas ligas por circunstâncias de fato. Para Hugo Nigro Mazzilli (2006, p.50), “são como um feixe ou conjunto de interesses individuais, de objeto indivisível, compartilhadas por pessoas indetermináveis, que se encontram unidas por circunstâncias de fato concretas”. Com efeito, verifica-se que o interesse difuso concerne a um amplíssimo universo.
Segundo Rodolfo Mancuso (1997, p. 79), suas características são: a) a indeterminação dos sujeitos, posto não possuírem titularidade individualizada, mas sim relacionarem-se a um conjunto indeterminável de sujeitos. A tutela jurídica não tem por base a titularidade, mas a relevância social do interesse em si, haja vista que os sujeitos encontram-se ligados por uma relação fática comum; b) indivisibilidade do objeto, determinada pela uniformidade de seu conteúdo, sendo que tais interesses são insuscetíveis de repartição em quotas atribuíveis a pessoas ou grupos preestabelecidos; c) a intensa litigiosidade interna, pois em virtude de serem soltos e desagregados, podem gerar conflitos ente interesses de grupos ligados às mesmas circunstâncias fáticas, não havendo parâmetro axiológico para definir qual posição é “certa” ou “errada”; d) transição ou mutação no tempo e no espaço, visto que se não exercitados, modificam-se, acompanhando o evento que os desencadeou. É possível ilustrar o tema, por exemplo, tomando-se o direito ao meio ambiente, compartilhado por um número de pessoas que não é possível precisar, não podendo ser fracionado entre os membros da coletividade, nem ser quantificado o dano sofrido por cada indivíduo.
Por seu turno, os chamados interesses coletivos, nos termos do CDC, artigo 81, II, são transindividuais, de natureza também indivisível, pertencentes a pessoas indeterminadas, porém determináveis, unidas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. Assim sendo, estão ancorados num portador concreto e determinado, pois seus titulares são sujeitos públicos ou privados, como é o caso das associações, sindicatos, entidades profissionais, dentre outros. Os interesses coletivos abrangem grupos, classes ou categorias de pessoas, ligadas não apenas por circunstâncias fáticas, mas pela identidade de relação jurídica básica. Ilustra a explanação o direito dos advogados possuírem representação na composição de tribunais.
Os interesses individuais homogêneos distinguem-se dos interesses difusos e coletivos tanto em termos subjetivos como objetivos. Quanto ao sujeito, este se encontra perfeitamente individualizado, e sua ligação com os demais sujeitos deve-se ao fato de estarem ligados a direitos com origem comum. O objeto da pretensão é passível de divisão, sendo possível precisar e quantificar o que é devido a cada lesado, embora tal lesão decorra de uma mesma origem. Exemplifica-se com o direito dos adquirentes de um produto viciado ao abatimento proporcional no preço da mercadoria.
É mister ressaltar que, dada a amplitude e a abrangência dos interesses transindividuais, é até por questões pertinentes à economia processual, faz-se necessário recorrer a uma tutela coletiva dos direitos massificados. O Estado Democrático de Direito pressupõe uma superação dos interesses individualistas e a busca efetiva da igualdade material, não permitindo passivamente a ocorrência de injustiças sociais.
Neste diapasão, sustenta Gregório Assagra de Almeida (2003, p. 55-56) que o Estado “tem que atuar para se reestruturar, reestruturando também a sociedade. A sua atuação não é voltada para o indivíduo unicamente ou para o grupo simplesmente, mas para a comunidade, educando-a, conscientizando-a, além de ter que preservar a dignidade da pessoa humana em todos os aspectos da vida – econômico, político, jurídico, moral e biológico – e abrir igualmente as portas para a participação popular, como fator de sua legitimação político-democrática”.
3. INTERESSE E LEGITIMAÇÃO
Cabe ao Estado Democrático de Direito, pois, a disponibilização de instrumentos eficazes para tutela dos interesses coletivos, para que ocorra a proteção efetiva dos direitos e garantias fundamentais. A resolução coletiva de conflitos potencializa a transformação social, vez que mediante um único processo, o judiciário abarca um enorme contingente de sujeitos unidos por laços jurídicos ou fáticos comuns.
A defesa dos interesses em juízo se dá comumente por legitimação ordinária, pela qual o próprio lesado invoca a tutela jurisdicional para solução de sua lide. Contudo, em sede de interesses transindividuais, é preciso considerar a chamada legitimação extraordinária, para casos específicos em que o Estado permite que a defesa de um direito se faça por intermédio de quem não seja o próprio titular do interesse. É o que ocorre na substituição processual, onde alguns legitimados substituem processualmente a coletividade de lesados, comparecendo em juízo em nome próprio na defesa de interesse alheio.
Na observação de Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 60), “nas lesões a interesses de grupos, classes ou categorias de pessoas, seria impraticável buscar a restauração da ordem jurídica violada se tivéssemos de sempre nos valer da legitimação ordinária, e, com isso, deixar a cada lesado a iniciativa de comparecer em juízo, diante do ônus que isto representa (não só os relacionados ao custeio da ação, como os de caráter probatório)”.
Outrora desapercebido das repercussões práticas das ações coletivas, o legislador passou a discipliná-las em alguns poucos diplomas, como no caso dos dissídios coletivos da Justiça do Trabalho e na Lei de Ação Popular (L. 4.717/65). Com o advento da Lei de Ação Civil Pública (L. 7.347/85), da Constituição Federal de 1988 e, em especial, do Código de Defesa do Consumidor (L. 8.078/90), as ações coletivas alcançaram novos patamares.
Diversos são os legitimados ativos para a defesa dos interesses coletivos, como a União, Estados, Municípios, órgãos da Administração Pública direta e indireta, associações constituídas há pelo menos um ano, com fins de proteção a interesses socialmente relevantes, mas, a bem da verdade, talvez seja o Ministério público a instituição melhor preparada para a propositura de ações coletivas.
Regulamentado na Carta Magna no título “Da Organização dos Poderes”, inserido no capítulo das “Funções essenciais à justiça”, o Ministério Público erige-se como instituição de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, ganhando especial relevância no que tange à transformação da sociedade, efetivação da justiça social e do próprio Estado Democrático de Direito. Preconiza a Constituição Federal, em seu artigo 129, III, que é função institucional do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública, para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, ganhando a ação coletiva um destaque constitucional.
Mais do que um guardião da lei, o Ministério Público revela-se um guardião da sociedade, atuando ativamente na defesa dos interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, tanto na esfera preventiva como repressiva, cível ou criminal, buscando a manutenção da ordem pública e a viabilização do bem social. Sua participação é indispensável nas ações coletivas, ainda que não figure como autor das mesmas.
Docente efetiva da Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduada em Direito pela UFU (1997) especialista em Direito Processual Civil pela UFU (1999), mestra em Direito Obrigacional Privado pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (2005) e doutora em Educação pela UFU (2015)
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