Resumo: O presente artigo tem como propósito examinar em diferentes períodos a noção do interesse público e identificar com maior propriedade balizas conceituais que caracterizam o referido interesse no contexto atual. A investigação ora proposta apresenta a seguinte problemática: é possível identificar balizas conceituais contemporâneas sobre interesse público, tendo em vista a sua indeterminação jurídica? A metodologia utilizada neste estudo consistirá em uma investigação exploratória da doutrina jurídica, especificamente acerca de como o referido interesse é interpretado nas seguintes perspectivas: no primeiro capítulo, no período em que havia uma preocupação com a garantia das liberdades individuais; no segundo capítulo, ocasião em que predominou o intervencionismo estatal acentuado; e, no terceiro capítulo, a atual busca pela compatibilização com os interesses privados, em valorização ao contexto democrático. [1]
Palavras-chave: Interesse Público; Indeterminação Jurídica; Identificação de balizas conceituais contemporâneas.
Sumário: Introdução. 1. Interesse público na perspectiva do Estado Liberal. 1.1. Estado como garantidor das liberdades individuais. 1.2. Individualismo. 2. Interesse público na perspectiva do Estado Social. 2.1. Estado Interventor. 2.2. Organicismo e Utilitarismo. 3. Interesse público na perspectiva do Estado Democrático de Direito. 3.1. Processos de interconexão social: alteração da configuração piramidal em rede. 3.2. Novas tendências no Estado Democrático de Direito. 3.3. Valorização do Consenso. 3.4. Personalismo. 3.5. Flexibilização da noção de Supremacia do Interesse Público. Conclusão.
Introdução
O regime jurídico-administrativo, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, extrai seu fundamento de validade da supremacia do interesse público e, por consequência, da indisponibilidade deste interesse[2].
Tendo como ponto de partida o fundamento de validade do regime jurídico-administrativo apontado pelo referido autor, este estudo tem como objetivos principais: examinar em diferentes períodos a noção do interesse público e identificar com maior propriedade balizas conceituais que caracterizam o referido interesse no contexto atual.
De antemão é indispensável anotar que não se trata de tarefa simples, considerando, sobretudo, que o interesse público não pode ser enxergado sob uma ótica estática e juridicamente determinada, conforme se depreende da lição de Marçal Justen Filho, quando aduz que: “Não é fácil definir ‘interesse público’, inclusive por sua natureza de conceito jurídico indeterminado, o que afasta uma exatidão de conteúdo. Mas a função primordial ao interesse público exige contornos mais precisos”[3].
Em semelhante sentido, Jorge Luis Salomoni tece as considerações adiante transcritas:
“O conceito do interesse público referencia sempre a uma concepção do Estado, da sociedade e do indivíduo, em um determinado território e em um recorte histórico, e se manifesta na construção de um determinado ordenamento jurídico. A realidade verificada demonstra que nos últimos anos, a perda dos limites entre os sujeitos, Estado – sociedade – indivíduo, tem transformado os ordenamentos jurídicos, diluindo também a separação tradicional entre interesse público e interesse privado, residindo nos particulares diversos interesses públicos setoriais (…)” [Tradução própria]. [4]
Portanto, a investigação ora proposta apresenta a seguinte problemática: é possível identificar balizas conceituais contemporâneas sobre interesse público, tendo em vista a sua indeterminação jurídica?
Assentadas estas premissas iniciais, a metodologia utilizada neste estudo consistirá em uma investigação exploratória da doutrina jurídica, especificamente acerca de como o referido interesse é interpretado nas seguintes perspectivas: no primeiro capítulo, no período em que havia uma preocupação com a garantia das liberdades individuais; no segundo capítulo, ocasião em que predominou o intervencionismo estatal acentuado; e, no terceiro capítulo, a atual busca pela compatibilização com os interesses privados, em valorização ao contexto democrático.
O presente estudo é justificável, notadamente em razão do importante alerta feito por Gustavo Binenbojm, ao enfatizar que o interesse público é um conceito vago e que historicamente sempre conferiu ao Poder Público ampla liberdade na sua efetivação, e justamente por isso, viabilizou a supremacia do referido interesse sobre os interesses particulares.
Adicionalmente, o autor em comento expõe, como exemplo disso, a doutrina da segurança nacional, qualificando-a como eloquente e irresponsável, pois, no seu ponto de vista, um princípio que tudo legitima não se presta a legitimar absolutamente nada[5].
1. Interesse público na perspectiva do Estado Liberal
O interesse público no âmbito do período liberal teve, em linhas gerais, a finalidade de salvaguardar o exercício das liberdades individuais que outrora foram sobrepujadas pelos governos absolutos.
A ideologia da vontade geral neste período teve como pauta, no ponto de vista do discurso erigido pela classe burguesa, a consecução, sobretudo, de dois fatores: liberdade na condução das regras do jogo econômico e no direito de propriedade/contratar[6]. Ao Estado resguardou-se, portanto, bases mínimas de atuação[7].
Este cenário é apontado por Emerson Gabardo e Daniel Wunder Hachem:
“A percepção do que seria o interesse público na perspectiva do Estado Liberal burguês estava estreitamente vinculada com os direitos fundamentais de matriz liberal, que neste período eram vistos como proteções individuais dos particulares contra as arbitrariedades da Administração. O respeito ao interesse público estava na inexistência de obstáculos impostos pelo Poder Público ao exercício das liberdades, notadamente na esfera econômica, mas não só. A concepção liberal do interesse público refletia-se pela garantia dos interesses privados, ideia largamente difundida pela classe dominante. O interesse privado se colocava diante do interesse público, eis que o bem comum não era algo materialmente definido pelo Estado ou pela coletividade: ele estaria no livre desenvolvimento das vontades individuais, limitadas às fronteiras estabelecidas pela lei”[8].
Certo é que, alguns fatores cooperaram, sobremaneira, para a concretização do desenvolvimento do exercício de interesses eminentemente privados – mas como fruto de uma vontade geral; destaca-se, principalmente, a crescente insatisfação social suscitada contra as arbitrariedades perpetradas pelas monarquias absolutas[9], ante as políticas instituídas no lastro do intenso intervencionismo.
Dentre outros fatores, também podem ser mencionados: a política do laissez faire presente na pregação libertária das revoluções liberais ocorridas, notadamente, nos séculos XVIII e XIX, com destaque para a Revolução Francesa (de 1789) sob a bandeira da liberdade, igualdade e fraternidade; as teorias pautadas no esclarecimento e na racionalidade – com ênfase no progresso e na perfectibilidade humana – disseminadas, à época, pelos filósofos Iluministas[10]; a importância exarcebada depositada na figura do indivíduo, também denominada como individualismo; a notoriedade dos códigos oitocentistas, especialmente o Código Napoleônico de 1804 e o Código Comercial francês de 1807.
O interesse público no panorama liberal se apoiou no viés de resgatar o homem considerado em si mesmo, de tal forma que passou a ser aceitável, pelo menos em tese[11], progredir socialmente por meio da liberdade tanto de escolhas quanto do exercício de atividades econômicas; o que, frise-se, na senda absolutista representava uma ameaça ao poder do soberano e, por isso, não se cogitava esta possibilidade.
Tanto é assim, que Jane Reis Gonçalves Pereira menciona a existência de uma mudança na ordem política e social com a Revolução de 1789, detalhando que, em virtude da incorporação do raciocínio de que todos nascem livres, foram suprimidas certas prerrogativas – corporativas, clericais e nobiliárquicas – e a mutação da forma como a sociedade passou a se relacionar.
Dentro deste contexto, a autora supradita expõe que: “Nessa perspectiva, os ideais de igualdade e liberdade dão origem a um acervo de princípios que repercutem tanto na esfera pública como na órbita privada”[12].
1.1. Estado como garantidor das liberdades individuais
Para garantir as liberdades individuais, o interesse público, ainda encarado sob a perspectiva liberal, passou a ser balizado nos ditames legais, já que: “Não bastava transferir a titularidade do poder monarca ao povo; a grande novidade trazida por essas transformações foi restringir o exercício do poder com fundamento na lei, considerando-a como expressão da vontade geral do povo”[13].
Daí a concepção de que os Estados modernos passaram a ser de Direito, considerando a substituição do livre-arbítrio da vontade do soberano pelo parâmetro legal. Não à toa, os direitos fundamentais de 1a geração ou negativos são fruto da axiologia cristalizada no Estado mínimo (liberal)[14].
O interesse público era refletido como forma de valorizar o indivíduo por meio das leis[15] que não tivessem uma conotação atentatória contra as liberdades individuais e, não só isso, mas que também fossem justas para garantir a vontade geral do povo, bem como limitar o poder político do Poder Executivo. Aliás, este panorama é identificado no artigo 4º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789[16].
1.2. Individualismo
A fim de exemplificar a valorização da concepção individual na era liberal, Bobbio[17] traz à tona o fato de que em virtude do primado do direito privado sobre o público, tornar-se-ia possível a oposição do cidadão com base no direito de propriedade perante eventuais ingerências do soberano.
Tal hipótese não era sequer cogitada, muito menos posta em prática, na vigência das monarquias absolutistas, cuja marca residia em uma intervenção excessiva tanto na sociedade quanto nos mercados. Por isso a esfera privada tinha representada a concepção de superioridade em relação ao todo, ao público, de modo que a vontade dos “indivíduos” era livre e exercida sem ingerência estatal – independente dos riscos da concentração de renda, desregulação dos mercados, exploração do trabalho humano, dentre a incidência de outras mazelas decorrentes da “supervalorização” do indivíduo em detrimento do todo.
Consoante Emerson Gabardo e Daniel Wunder Hachem: “O individualismo, originado na confluência das correntes iluministas europeias, representa uma visão atomizada da vida social, na qual o homem é compreendido como um ser ilhado e desconectado dos demais, cuja existência se esgota em si mesmo” [18].
É evidente que o espírito presente no período liberal, cujas raízes se solidificaram nos ideais do individualismo extremado, na sistematização dos códigos oitocentistas, bem como nos axiomas iluministas e revolucionários, afastou a ingerência do Estado nas atividades sociais e econômicas.
2. Interesse público na perspectiva do Estado Social
Embora a concepção de interesse público no período anteriormente examinado tivesse como escopo resguardar as liberdades individuais, não deve ser olvidado, por outro lado, que foi gerada uma profunda desigualdade social[19], fruto do sistema de dominação da classe economicamente mais fraca, e acima de tudo, exploração do trabalho humano em razão do acelerado crescimento das demandas de produção, cujo processo implicou, de modo derradeiro, na Revolução Industrial.
Nesse passo, Odete Medauar assevera que:
“As críticas mais amenas apontam, nos aspectos gerais, por exemplo, a contradição de um Estado com força coercitiva absoluta, mas que não dirige o mercado e a sociedade civil, nem tem a função de dirigi-la; é a expressão de máxima potência, pois detém o monopólio da força e coação e, ao mesmo tempo, é a expressão da máxima impotência em relação à sociedade, pois não decide os conteúdos dos conflitos; mencionam, ainda, a negação, na realidade prática, de premissas básicas do sistema. Apreciações mais exasperadas lhe atribuem a origem de tragédias duras e sanguíneas e da exploração do trabalho humano (também de mulheres e crianças) no período da Revolução Industrial; a criação de estruturas de dominação de uma classe sobre toda a coletividade; o uso de pele de cordeiro, isto é, a pregação dos valores de liberdade, garantia de direitos, do Estado submetido ao direito, para ocultar o lobo, isto é, a verdadeira intenção de domínio”[20].
Além da Revolução Industrial, é digno de nota, igualmente, a quebra da Bolsa de Nova Iorque (em 1929) como outro fator importante para o naufrágio da política do Estado mínimo. Isto, porque resultou no abandono da visão de que assim como a sociedade os mercados tinham plena capacidade de exercer, sem mazelas, a vertente da autorregulação. Aliás, os resultados devastadores gerados com a ocorrência das duas Grandes Guerras Mundiais, também serviram como fundamento para que o Estado tenha buscado exercer uma presença – mais incisiva – na sociedade e na economia.
Neste contexto, Cristiana Fortini adverte que a Constituição também passa a assumir uma função normativa e não meramente de cunho organizacional do aparelho de estado, de sorte que: “ganha força após as guerras mundiais e passa a reclamar uma leitura do ordenamento jurídico hierarquizadora, principiológica e voltada para o alcance da eticidade, desprezada no período liberal” [21].
Dessa forma, Marcos de Campos Ludwig faz a seguinte advertência: “Trata-se, justamente, do nascimento do Estado Social, apresentando, em síntese, uma nova conformação para o princípio da supremacia da Constituição”[22].
2.1. Estado Interventor
Portanto, a partir do início do século XX os Estados em sua maioria deixaram de focar as atenções na individualidade do homem, para se preocupar com a dignidade humana e a satisfação dos anseios clamados pela sociedade. Neste período, portanto, denominado de Estado Social[23], o interesse público passou a ganhar contornos de notoriedade sob a vertente de bem-estar geral.
Sendo assim, o Estado brasileiro no intuito de corrigir as falhas provocadas pela ampla liberdade dos agentes na condução do ordenamento econômico e social, adotou, ao contrário da política regulatória estadunidense do New Deal, uma política corretiva mais ativa. A pretensão do referido modelo estatal consistiu na preservação do interesse público por uma política baseada no paternalismo.
Ostentou-se, no Brasil, um controle mais acentuado da economia e das funções desempenhadas no seio social, tendo em vista a assunção da execução de inúmeras atividades que até então eram destinadas ao encargo dos particulares. O Estado brasileiro passou a se caracterizar como um verdadeiro Estado Interventor.
Na definição de Paulo Luiz Lôbo Netto[24]: “O Estado Social caracteriza-se exatamente por controlar e intervir em setores da vida privada, antes interditados à ação pública pelas constituições liberais”.
O Estado passa a ser responsável pela correção dos desequilíbrios econômicos e sociais, ostentando a qualidade de provedor do bem-estar e assumindo o compromisso de garantir o mínimo para todos os indivíduos, como produto de uma cultura igualitária.
Sob este ângulo, Eugênio Facchini Neto alerta o abandono da ética do individualismo pela ética da solidariedade, em que há uma relativização da tutela da autonomia da vontade e, na mesma medida, um reforço da proteção da dignidade da pessoa humana[25].
Dessa forma, é na paisagem político-institucional em comento que o primado do público sobre o privado se consolida, considerando que o Estado foi novamente se apropriando do espaço destinado à burguesia no período liberal[26].
Nesta arena o interesse público é alçado numa relação de superioridade em relação aos interesses individuais – egoísticos –, o que se justifica plenamente em razão da clarividente necessidade de o Estado reunir condições para contornar a situação insustentável, na área econômica e social, deixada como herança pelo liberalismo.
Conforme Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
“O direito administrativo nasceu no período do Estado liberal. Por isso mesmo, impregnou-se, em parte, do cunho individualista que dominava as várias ciências humanas. Mas, paradoxalmente, o direito administrativo trouxe em si traços de autoritarismo, de supremacia sobre o indivíduo, com vistas à consecução de fins de interesse público. Pode-se dizer que o princípio do interesse público se desenvolveu no período do Estado Social de Direito, quando a atuação do Estado cresceu em todos os setores, com o objetivo de corrigir profunda desigualdade social gerada pelo liberalismo”[27].
Daí porque, e levando em consideração o objetivo principal do Estado Social brasileiro – correção das mazelas sócio-econômicas –, é razoável que a relação mantida com os particulares tivesse sido trilhada sob a vertente da autoridade, traduzida no axioma de supremacia do interesse público e, por via de consequência, na indisponibilidade deste interesse.
A relação jurídica de potestade do Estado mantida com os administrados – verticalidade dos atos estatais – é enaltecida neste cenário interventivo. Tal relação autoritária se solidifica pelo influxo dos atos administrativos que, dentre outras, têm como características a imperatividade e a auto-executoriedade.
Não é demais lembrar, outrossim, que neste período se justificou a inclusão indiscriminada nos contratos firmados entre os particulares e o Estado, das cláusulas denominadas exorbitantes, que possibilitam, por exemplo, o poder de o Estado fiscalizar, modificar e rescindir unilateralmente o contrato, além de sancionar o contratado.
Tais cláusulas, propositadamente, teriam o escopo de traduzir um desequilíbrio natural em favor do Estado na relação contratual; o que concebe uma inegável relação de superioridade, ao revés dos contratos celebrados entre particulares, cuja relação é mantida de forma paritária.
Como se observa no Estado Social, o regime jurídico-administrativo apoiado no discurso autoritário dos princípios da supremacia do interesse público e da indisponibilidade deste interesse, foi necessário para a retomada da ordem social e econômica estável, bem como para garantir uma sensação de bem-estar.
1.2.2. Organicismo e Utilitarismo
Segundo Daniel Sarmento[28] a supremacia do interesse público corporificada no Estado Social, ainda que não conte com a sua aquiescência, pode ser justificada no prisma com base em duas teorias morais: o organicismo e o utilitarismo. Tais teorias, em que pese não coincidentes, salvaguardam o espírito do todo em detrimento do individual.
O organicismo estabelece que o todo deve se sobrepor ao individual, às partes, na medida em que o indivíduo faz parte de um todo social; sendo certo que, o todo só é atendido quando assegurado o bem comum.
Enfim, segundo a filosofia organicista a sociedade, vista no seu todo, representa um valor fundamental independente das vontades individuais e, portanto, deve ser considerada como uma realidade superior. Logo, infere-se que não há valores individuais que devem preponderar em relação ao todo.
Não se questiona, nessa esteira, o fato de que os interesses individuais dos membros da sociedade devem ser deixados em segundo plano, pois a finalidade gira em torno de um propósito maior, do que tão somente em um interesse de natureza egoística.
Para Daniel Sarmento o organicismo é uma teoria que:
“concebe as comunidades políticas como uma espécie de “todo vivo”, composto por indivíduos que nela desempenhariam papel semelhante a um órgão dentro do corpo humano. Para o organicismo, as comunidades políticas possuem fins, valores e objetivos próprios, que transcendem aqueles dos seus integrantes. Trata-se de concepção que prima pela rejeição à ética liberal, valorizando sempre o público em detrimento do privado. Se, para o individualismo, a primazia axiológica é do indivíduo, sendo ele o fim que justifica a existência das sociedades políticas e do Estado, para o organicismo dá-se justamente o inverso: prioriza-se o Estado e a comunidade política em detrimento do indivíduo, partindo-se da premissa de que a realização dos fins coletivos, sob a responsabilidade do organismo superior encarnado pelo Estado, deve constituir o objetivo máximo de cada componente da comunidade. Portanto, a perspectiva organicista traz em seu bojo uma justificativa para a ideia da supremacia do interesse público sobre o privado”[29].
O autor exemplifica que assim como existem órgãos diferentes que realizam atividades diversas no corpo humano, dentre os quais possuem alguns com maior relevo em comparação a outros, mas todos igualmente necessários. Também aos indivíduos, caberiam funções e tarefas distintas na vida social, buscando efetivar o bom funcionamento do corpo coletivo[30].
Já no que tange ao utilitarismo, a busca consiste na materialização do bem-estar por meio da valorização da maioria dos interesses particulares. A ação do Estado, portanto, só se legitima ao passo em que se produza a maior quantidade de bem-estar.
Condensando a filosofia utilitarista, Gustavo Binenbojm – sem se posicionar a favor – anota que projetos e ações coletivas só são justificativas plausíveis sob o ponto de vista moral se houver meios para que ocorra a maximização dos interesses de uma parcela correspondente à maioria dos indivíduos. Do contrário, segundo o autor, os privilégios seriam efetivados em detrimento de um conjunto maior de pessoas[31].
Em consonância com esta teoria, não se admite práticas individuais que persigam apenas os interesses dos seus titulares à custa dos demais integrantes da sociedade, bem como independente das consequências que daí possam decorrer.
Até porque, a visão utilitarista tem por finalidade justamente evitar que o indivíduo busque maximizar o atendimento dos seus próprios interesses e, em contrapartida, minimizar os interesses do corpo social; o que, seguramente, não se ampara na ética do utilitarismo que prega pela valorização do bem-estar.
Muito embora sejam distintas as teorias organicista e utilitarista[32], constata-se que ambas sustentam a valorização da supremacia do interesse público sobre o privado e, por tal motivo, opõem-se ao individualismo – valorização do indivíduo como um fim em si mesmo.
A diferença fundamental do utilitarismo em relação ao organicismo, segundo Gustavo Binenbojm, consiste no fato de que não há que se cogitar de um organismo coletivo, o qual seja detentor de interesses variados e considerados superiores aos indivíduos. Muito pelo contrário, o interesse público se revela somente pelo formato que, na hipótese fática, potencializa racionalmente o bem-estar, o prazer, a felicidade ou o ganho econômico do maior número de pessoas.
Daí é possível explicar que no período estatal marcado predominantemente pela força e imperatividade, sustentar a incidência das referidas teorias filosóficas morais (organicismo e utilitarismo) se desvenda coerente, uma vez que, corrobora os meios para o alcance das finalidades pretendidas pelo Estado Social.
1.3. Interesse público na perspectiva do Estado Democrático de Direito
A assunção de responsabilidades pelo Estado Social (com foco no caso do Estado brasileiro) se tornou, com o passar dos anos, extremamente excessiva e, assim, a sociedade (ao invés de “caminhar” com passos próprios) passou a ficar cada vez mais dependente da prestação estatal.
Emergiram inúmeras críticas e questionamentos, considerando que a máquina administrativa se tornou: inchada, burocrática, ineficiente, geradora de altos custos e, sobretudo, não atrativa para o aporte de capitais estrangeiros. O fato é que, diante disso, o Estado se afastou da sua finalidade precípua – servir como um meio ou um instrumento da realização dos anseios sociais –, voltando-se mais para os seus próprios interesses.
Não deve ser olvidado, inclusive, que o Estado brasileiro atravessou um longo período ditatorial no decorrer do século XX, sendo que as bases democráticas foram reinseridas tão-somente a partir de 1985. De acordo com Marcelo Douglas de Figueiredo Torres, como consequência da consolidação do regime democrático no país, houve um campo propício para mobilização e organização da sociedade civil, e, cada vez mais, uma cobrança incisiva por serviços públicos melhores e mais eficientes[33].
Diogo de Figueiredo Moreira Neto enfatiza este cenário nos trechos de sua lição abaixo transcrita:
“No século XX, depois de um breve período coincidente com a eclosão das grandes guerras e das grandes ideologias de massa, a estatização das atividades econômicas reduziu a necessidade das contratações, pois empresas do Estado eram criadas para garantir-lhe o máximo de autonomia econômica vis-à-vis à sociedade. Foi um período de retrocesso e breve reacebder das teses autocráticas, mas o término da era das confrontações globais coincidiu com o advento da chamada Revolução das Comunicações, passando a redespertar os anseios democráticos em sociedades que se tornam cada vez mais conscientes de seus direitos e da necessidade de reduzir o poder do Estado para torná-lo delas instrumento e não um fim em si mesmo. O refluxo da economia ao mercado livre e a reposição do Estado na condição de instrumento dos interesses legítimos das sociedades foram dois outros fatores que reabriram inúmeros canais de relação entre sociedade e Estado e possibilitaram, no processo, o ressurgimento da contratualidade administrativa, tal como hoje se apresenta, notadamente com a transferência de várias atividades, antes conduzidas atipicamente pelo Estado, para a iniciativa privada”[34].
É evidente que a sociedade mais esclarecida e consciente dos seus direitos passa a exigir, nomeadamente, no final do século XX, ante o desenvolvimento da cidadania no Brasil[35] – influxo do processo de redemocratização –, a implementação de uma Administração Pública mais eficiente e responsável.
1.3.1. Processos de interconexão social: alteração da configuração piramidal em rede
Nos últimos anos é evidente que o conhecimento e a informação se alastram com extrema rapidez e facilidade, em decorrência – em grande medida – da globalização; fenômeno que foi viabilizado, de modo geral, pelo inconteste avanço das tecnologias, velocidade dos transportes e das comunicações, assim como pelo desmedido processo de informatização. A união destes aspectos fez gerar uma demasiada ausência de barreiras e simplicidade na integração, no seio das áreas econômica, social e política.
Por isso, é que tem desmesurada relevância o Estado Democrático de Direito buscar outras formas de atuação, que não apenas pela simples materialização de atos autoritários e imperativos. Tais atos, por sua vez, fornecem substrato de validade para os princípios da supremacia (prerrogativas[36] conferidas ao Estado e relação de superioridade perante os particulares[37]) e indisponibilidade do interesse público (impossibilidade de o ente estatal transigir direitos sobre os quais é mero curador). No entanto, a forma imperativa de atuação não mais se mostra coerente com o crescimento da complexidade nas relações estabelecidas entre o global, o nacional e o local; a economia, a sociedade e a política, na era da informação[38].
Para Floriano de Azevedo Marques Neto as transformações ocorridas na sociedade e no Estado contemporâneo, evidentemente, põem em xeque clássica noção de prevalência absoluta e indesviável do Estado sobre a sociedade, da Administração Pública em relação ao administrado[39].
Essa mudança de postura, na visão do autor espanhol Manuel Castells, perpassa, principalmente, pela consolidação do que denomina de Estado-Rede, o qual se caracteriza por compartilhar autoridade por meio de uma série de instituições (no seu exemplo, é o que ocorre na Europa, em que há a União Europeia, a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu, o Tribunal Europeu, o conselho de presidentes de governo e chefes de Estado, os comitês de ministros, as instituições de cooperação em matéria de defesa e etc.). Baseado nesse ponto de vista, o autor frisa que o Estado-Rede não possui um centro específico decisório, mas sim nós de dimensões variadas e com relações de natureza internodais, as quais, não raro, são assimétricas[40].
Sendo assim, o citado autor conclui que:
“O funcionamento em rede, assegurando descentralização e coordenação na mesma organização complexa, é um privilégio da era da informação. O grau de eficiência das administrações estatais de diferentes hierarquias dependerá, em boa medida, de sua capacidade para processar informação e assegurar o processo de decisão compartilhada – o que implica capacidade tecnológica, recursos humanos adequados e uma estrutura administrativa apta para assimilar esse funcionamento flexível de uma geometria variável da política. Ainda que, por razões históricas, a União Europeia e, além da estritamente definida, as instituições políticas europeias são as instituições políticas que mais se aproximam do modelo de Estado-rede, essa nova lógica institucional está se desenvolvendo em todas as áreas do planeta, a partir do triplo processo de crise do Estado-nação, desenvolvimento das instituições supranacionais e transferência de atribuições e iniciativas aos âmbitos regionais e locais”[41].
O Estado-Rede não pode estar alheio aos fatores relativos à sociedade globalizada, muito pelo contrário, deve estar atento à complexidade das relações, bem como aos diversos problemas e conflitos que delas podem se originar. Principalmente, porque, deverá apresentar soluções compatíveis e adequadas aos eventuais conflitos decorrentes desta complexidade.
Por questão de lógica, se as relações sociais e econômicas são complexas no contexto estatal contemporâneo, os conflitos e as correspondentes soluções deverão ser, naturalmente, envolvidas em um formato de complexidade. Daí porque, a autoridade e a imperatividade não remetem aos paradigmas supracitados que constituem o Estado-Rede, mas sim em uma relação decisória pautada na hierarquia e subordinação, próxima de uma estrutura piramidal.
Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
“Nas democracias formais, instituídas nas sociedades monoclasse e biclasse, que caracterizaram o estado moderno até meados do século XX, era suficiente o consenso colhido para a escolha dos agentes políticos. O surgimento das sociedades pluriclasse, a revivência do humanismo ao cabo de duas guerras mundiais, com o fim da virulência das ideologias totalitárias, e, notadamente, o advento da Revolução das Comunicações, tornou as cidadanias mais esclarecidas e exigentes, buscando ampliar o consenso político além da formalidade da escolha de governantes – e quem deverá governar – para a escolha de políticos – de como deverão governar.
Essa democracia substantiva, em construção nas sociedades contemporâneas, vem a ser a resposta da Era da Informação, como precisamente a denomina Manuel Castells, à imensa complexidade e diversidade dos problemas contemporâneos, que reclamam soluções políticas com grau de diferenciação suficiente para atender as especificidades dos diversos subgrupos sociais reivindicantes em uma sociedade pluralista, o que representa uma diferença sumamente importante para aferir-se não apenas o grau de eficiência juridicamente estimável destas políticas, como e principalmente, o seu grau de efetividade social”[42].
De acordo com Onofre Alves Batista Júnior, a realidade contemporânea permite a efetivação da explosão do conhecimento como um fator de produção e expressão do poder, o que, no seu modo de ver, propiciou a ampliação do conhecimento da consciência dos indivíduos sobre os múltiplos interesses presentes na sociedade. Diante disso, o autor assevera que houve a formação de uma sociedade pluralista, em que nela se expandem os interesses individuais e públicos em dimensões que são surpreendentes[43].
Adiante o citado autor enfatiza em sua lição que no modelo estatal moderno, cada vez mais, é exigida a melhoria no funcionamento dos órgãos decisionais do Estado, bem como uma implementação de procedimentos que garantam maior eficiência à máquina pública.
Mas, para tanto, o autor julga relevante que exista negociação além de um amplo e aberto diálogo entre os grupos sociais e estes com os órgãos estatais por meio de debates de cunho permanentes. O autor destaca fundamental no cenário democrático que “a fórmula legítima e adequada para a composição otimizada de interesses reclama máxima participação dos cidadãos, em debates e compromissos abertos, além da necessária abertura à adoção de soluções administrativas consensuais e acordadas”[44].
Como efeito destes fatores que exigem uma nova forma de agir eficazmente do Estado Democrático de Direito, Diogo de Figueiredo Moreira Neto realça que os processos sociais não mais permanecem conectados por intermédio de uma estrutura piramidal, os quais se afeiçoavam perfeitamente às sociedades estamentárias.
De outro lado, na atualidade todos os processos sociais se “interconexionam” e, assim, passam a ser organizados em redes, tornando possível que as especificidades complexas dos grupos e subgrupos sociais tenham os seus interesses atendidos com eficiência e efetividade[45].
Floriano de Azevedo Marques Neto também aponta esta mudança do formato de agir da Administração Pública em decorrência da conexão entre os processos sociais na quadra contemporânea: “parece razoável que o Poder Público migre de uma estruturação piramidal para uma nova configuração, em que os poderes são ordenados como uma rede, articulada com os entes sociais”[46].
Contudo, segundo Manuel Castells, para sintetizar o processo de construção do Estado-Rede devem ser observados, na prática, oito princípios de funcionamento administrativos, conforme se expõe adiante.
O primeiro princípio consiste na atuação estatal subsidiária, pois o Estado deve se substituir pela sociedade em tudo aquilo que a sua presença não for necessária. O segundo princípio é o da flexibilidade na organização e atuação da administração, na medida em que, sem isso, o Estado não poderá atuar eficazmente em um mundo em constante mudança.
Já o terceiro princípio é o da coordenação, uma vez que uma administração capaz de coordenação deve estabelecer mecanismos permanentes de cooperação com as administrações locais, regionais, nacionais e supranacionais de todas as instituições presentes na rede operada no Estado.
A participação cidadã contempla o quarto princípio, na medida em que sem isso a democracia irá se esvaziando de conteúdo para amplos setores da população. Por sua vez, transparência administrativa se qualifica como o quinto princípio, considerando que não se pode pensar em um governo de anjos, mas sim em mecanismos de controles eficazes que assegurem o mínimo nível de corrupção e nepotismo.
Ademais, a modernização tecnológica perfaz o sexto princípio, tendo em vista que é essencial investimento em equipamentos e, acima de tudo, em recursos humanos, alfabetização informática dos cidadãos e o redesenho de instituições do Estado, para capacitar a absorção do funcionamento em rede aberta.
A transformação dos agentes da administração consiste no sétimo princípio, visto que apenas um setor trabalhista administrativo reduzido, porém bem remunerado e com elevado nível profissional, terá a possibilidade de, verdadeiramente, transformar a ação do Estado nas novas condições históricas.
Por fim, a retroação na gestão se caracteriza como o oitavo princípio que deve ser observado pelo modelo de Estado-Rede, pois, permite às unidades administrativas corrigir seus próprios erros, em um processo de prova, erro e correção. Este princípio, de acordo com o autor em referência, já é aplicado nas empresas mais dinâmicas e o que é ignorado na maior parte das administrações públicas[47].
1.3.2. Novas tendências no Estado Democrático de Direito
No Estado Democrático presente há um esforço para construir uma democracia sólida, próspera e eficiente. Tanto é assim que a Constituição de 1988 no art. 3º a Constituição traz como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Não custa lembrar que, no intuito de lograr novos horizontes de prosperidade e de crescimento, o Estado brasileiro – em contraposição ao espírito vigente no período social – teve que redefinir a sua ideologia.
Assim, na prática teve que esquadrinhar novos caminhos, o que fez nomeadamente por meio da efetivação dos planos de reforma (econômica; administrativa e previdenciária; judiciária e processual; fiscal e tributária; relações trabalhistas; e política)[48] e reengenharia (em função desestatizações cujo gênero comporta, por exemplo: as privatizações, concessões e permissões)[49] a partir do final do século XX.
Este contexto favoreceu, em demasia, a abertura para um novo período liberal, no qual não mais se prestigia a intervenção direta na ordem econômico-social. Adota-se, contudo, uma linha de ação cooperativa entre o Estado e a sociedade, com destaque para: a valorização dos direitos fundamentais (em ascensão desde o 2º pós-guerra); a constituição como ordem de valores (vide os fundamentos, art. 1º, assim como os objetivos fundamentais, art. 3º, da República, presentes na Constituição Federal); a subsidiariedade (valorização da livre iniciativa); a desconcentração e descentralização da atividade administrativa; a formação de novas parcerias na área econômica (por exemplo, parceria público-privada) e social (tais como as organizações sociais e as organizações da sociedade civil de interesse público).
Neste contexto, Diogo de Figueiredo Moreira Neto registra que:
“Foi, contudo, como já se recordou, sob o influxo dos dramáticos acontecimentos que marcaram a Segunda Guerra Mundial e das conquistas prodigalizadas pela Revolução das Comunicações, que as sociedades se mobilizaram para varrer definitivamente os restolhos do antigo regime, que até meados do século vinte parecia ter apenas substituído o poder absoluto do rei pelo poder absoluto do Estado, mantendo o imenso distanciamento da sociedade que caracterizava a relação com súditos.
Mas esse súdito, já no segundo Pós-Guerra, logo se transformaria em cidadão, com a recuperação dos valores liberais dominantes e dos valores democráticos substantivos no Direito Público, encerrando-se um interregno de guerras e ideologias radicais, em que esses valores ficam limitados e comprometidos pelo decisionismo político e pelo formalismo jurídico. Com efeito, caberia a um novo constitucionalismo espelhar essa realidade sociopolítica, com a afirmação, nas Cartas das novas democracias emergentes da catástrofe bélica, de quatro pilares principiológicos que passariam a marcar a virada do século: os direitos fundamentais, a subsidiariedade, a participação e o conceito de Constituição como ordem de valores”[50].
Não à toa, consoante apontado por Marcelo Douglas de Figueiredo Torres, o modelo gerencial atual está voltado para o cidadão, ante a aposta na descentralização e desconcentração estatal, norteada por institutos mais flexíveis de gestão e até mesmo por estratégias inovadoras de gestão utilizada por empresas privadas. A Administração Pública em vez de interventiva passa a ser vista num viés gerencial, cooperativo e regulador, compatibilizando-se de tal forma com a ideia de eficiência consolidada – definitivamente – no cenário nacional pela Emenda Constitucional nº 19/98[51].
O autor ilustra, ainda, que o “impulso” gerencial adveio, fundamentalmente, com a ascensão dos governos de Thatcher em 1979 e Reagan em 1980, os quais implementaram políticas de cunho reformador e modernizador[52].
Na esfera administrativa é cada vez mais nítido que não há espaço para uma visão dicotômica entre interesse privado e interesse público[53], isto é, relativiza-se a ideia de que há um universo exaustivo e uma divisão total entre ambos os interesses[54].
Torna-se difícil delimitar as esferas do público e privado, em decorrência do arrefecimento das “zonas cinzentas” dos interesses, pois, a título de ilustração, a iniciativa privada passa a intervir de forma priorística em atividades econômicas até então livres ao Estado, por meio do aparato administrativo respectivo. Em oposição, o Estado também começa a buscar novas fórmulas e a expertise necessária no âmbito privado para atender de forma eficiente e efetiva as demandas sociais.
Há, diante disso, uma intercomunicação muito forte entre o que antes se evidenciava nitidamente como interesse público ou privado. Este, aliás, parece ser o entendimento de Odete Medauar, quando ressalta que existem outros fatores que ensejam mudanças na forma de encarar a dualidade interesse público/privado e na homogeneidade do primeiro.
A autora ilustra seu entendimento ao expor a ação privada das concessionárias e permissionárias na prestação de serviço público; e, além disso, menciona o surgimento de entidades descentralizadas na organização administrativa com a pulverização de interesses públicos, provocando a mescla dos referidos interesses dos mais amplos aos mais restritos[55].
Nessa esteira é oportuna a lição de Onofre Alves Batista Júnior, para quem a ideia de Estado Democrático de Direito decorre das consequências do modelo estatal liberal e paternalista. Por tal razão o autor destaca que: “O Estado, sem deixar de ser Estado de Direito, defensor das liberdades individuais, sem deixar de Estado Social, passou a ser Estado Democrático”[56].
A compatibilidade entre interesse público e privado é facilmente visualizada na atual quadra do Estado brasileiro, seja pela Administração Pública enfatizando valores individuais, ou por meio da iniciativa privada prestigiando interesses em prol do todo em detrimento do individual.
Como forma de demonstrar isto, destaca-se: a formulação de políticas públicas, notadamente no campo da saúde, em que a Administração Pública, de forma recorrente, credencia leitos da rede privada para o atendimento de usuários do Sistema Único de Saúde-SUS; a regulação de serviços públicos, considerando a existência de autarquias em regime especial que elaboram normas e diretrizes na condução de determinadas atividades econômicas; atos normativos editados pelo Poder Legislativo com escopo cooperativo, vide as leis das organizações sociais, das organizações da sociedade civil de interesse público e das parcerias público-privadas.
Por seu turno, também há entidades eminentemente privadas que são criadas no intuito de atender o interesse público, como se constata na hipótese das associações, criadas com o objetivo, por exemplo, de amparar o meio ambiente, direitos do consumidor, direitos de deficientes físicos; isso sem se esquecer dos sindicatos, que objetivam proteger, em linhas gerais, direitos sociais e econômicos dos trabalhadores urbanos e rurais[57].
O próprio Código Civil vigente também é exemplo da busca de compatibilidade entre o interesse público e o privado, com vistas à promoção do interesse coletivo. Isso porque, o artigo 422 do mencionado diploma legal, faz menção à obrigatoriedade de as relações contratuais serem regidas sob as bases do princípio da boa-fé objetiva, ou seja, o contrato não deve mais ser cumprido cegamente, deve ser considerado se a sua execução não gera vantagem excessiva para uma parte em detrimento da outra.
Inclusive, este argumento ganha reforço com o escopo traduzido no princípio da função social dos contratos, cristalizado no artigo 421 do Código Civil, considerando que, o contrato já não produz efeitos e deve ser contemplado apenas por aqueles envolvidos diretamente na relação contratual.
Segundo Gustavo Tepedino a função social como um elemento contratual interno estabelece aos contratantes a obrigação de buscar não só os seus interesses, mas também os interesses extracontratuais relevantes assim considerados pela Constituição Federal. Aduz o autor, em seguida, que caso tal conduta não seja adotada desta forma, as partes não serão merecedoras da tutela do exercício da liberdade de contratar[58].
É fundamental ter em mente, ainda, que no escopo democrático se afigura mais importante o Estado atender de forma legítima os reais anseios da sociedade por meio dos valores, princípios e comandos normativos constitucionais de uma forma geral, do que ter apego extremado aos paradigmas da legalidade estrita – que estava presente, com maior intensidade, nos paradigmas vigentes no Estado Social.
Esta tendência brotada no presente contexto é denominada de juridicidade ou legalidade em sentido amplo. Para Daniel Sarmento na atualidade a vinculação do administrador à lei se substituiu pela subordinação ao ordenamento jurídico de uma forma geral, cujo destaque consiste nos preceitos da Constituição e seus princípios.
O autor esclarece que houve uma mitigação da exigência de lei formal para autorização da ação administrativa, de tal forma que: “a Administração Pública encontra-se vinculada não apenas à lei, mas antes a todo um ‘bloco de legalidade’, que incorpora princípios, objetivos e valores constitucionais” [59].
De igual modo Cristiana Fortini enfatiza que: “O parâmetro de legitimidade requer que as condutas estatais, qualquer que seja a esfera produtora, contemplem os anseios da sociedade, adequando-se aos valores por esta reconhecidos”[60].
1.3.3. Valorização do Consenso
É imperioso deixar assentado, no entanto, que não se quer afirmar neste ponto que tais objetivos de prosperidade também não tenham sido contemplados (ou pelo menos em grande parte) pelo Estado Social. Tampouco, de outro lado, que o Estado Democrático de Direito na atualidade tenha se arvorado na consecução de outra finalidade que não a de proporcionar bem-estar e, assim, poder naturalmente negar a supremacia do interesse público – e, como efeito, disponibilizar sem nenhum critério este interesse.
Irene Patrícia Nohara é enfática ao afirmar que se for levada à radicalidade a supremacia do interesse público, o papel do Estado como promotor do bem-estar comum restará fulminado. O que não tem justificativa, considerando que o Estado Democrático de Direito ao incorporar os objetivos do Estado Social promoveu tão-somente uma filtragem da pretensão totalitária do fenômeno estatal[61].
Por certo a trilha autoritária erigida no Estado Social não foi seguida com a mesma intensidade no Estado Democrático de Direito – apesar de não abandonada integralmente –, consoante se depreende da lição de Alexandre Santos de Aragão:
“apenas uma diferença de maior ou menor intensidade no uso deste ou daquele mecanismo na sua relação com a economia (intervenção direta como agente econômico versus intervenção indireta como regulador), diferença decorrente das mudanças econômicas, sociais, políticas e tecnológicas, de cunho global, verificadas nos últimos.
O que se deve frisar é que a diferença entre ambos, dada à própria estrutura pluralista do poder político (sufrágio universal) não concerne aos fins (proteção da dignidade humana, redução das desigualdades sociais, proteção dos hipossuficientes frente ao poder econômico…), mas sim as estratégias para se tentar alcançá-los”[62].
Em oportunidade adiante, o autor robustece o seu posicionamento, sob o argumento de que não houve mudança em relação ao fim do bem-estar coletivo, mas sim: “a possibilidade de realizá-lo com os seus instrumentos verticais e hierárquicos tradicionais, sendo atualmente ingente a busca de novos instrumentos, mais fluidos, flexíveis e consentâneos com a lógica econômica privada[63]”.
Surge, a partir disso, uma expressiva tendência de a Administração Pública deixar em segundo plano a costumeira forma de exteriorizar a sua pauta argumentativa, até então trilhada sob a ótica da imperatividade dos atos administrativos no Estado Social. Para Fernando Dias Menezes de Almeida[64]: “a evolução do Direito Administrativo, na democracia, seja a substituição dos mecanismos de imposição unilateral – tradicionalmente ditos de ‘império’ – por mecanismos de consenso”.
Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto[65]: “a face imperativa do Poder só deve aparecer quando absolutamente necessário e no que for absolutamente indispensável”. Portanto, à medida que o foco é desviado da autoridade para o cidadão, a relação de superioridade e desigualdade deixa de fazer sentido.
A lição de Patrícia Irene Nohara é escorreita para demonstrar a linha raciocínio em tela, tendo em mira que na sua percepção, propiciar mecanismos de participação direta da população na condução de assuntos coletivos, além garantir maior grau de consenso, traduz a oportunidade dos movimentos sociais e os administrados serem tratados como sujeitos e não como meros objetos da ação estatal.
A autora prossegue explicitando que o reconhecimento de interesses é algo que deveria fazer da agenda do Estado, que: “deve trazer para si as reivindicações da sociedade civil e tomar, portanto, medidas cada vez mais afinadas com os valores sociais concretos, isto é, com os valores legitimados em um dado contexto histórico”[66].
Imbuída desta mesma visão, Dinorá Adelaide Musetti Grotti expõe que:
“O momento consenso-negociação entre Poder Público e particulares, mesmo informal, ganha relevo no processo de identificação e definição de interesses públicos e privados, tutelados pela Administração. O estabelecimento dos primeiros deixa de ser monopólio do Estado, para prolongar-se no espaço do público não-estatal, acarretando com isso uma proliferação dos chamados entes intermediários. Há um refluxo da imperatividade e uma ascensão da consensualidade; há uma redução da imposição unilateral e autoritária de decisões para valorizar a participação dos administrados quanto à formação da conduta administrativa. A Administração passa a assumir o papel de mediação para dirimir e compor conflitos de interesses entre várias partes ou entre estas e a Administração. Disto decorre uma nova maneira de agir focada sobre o ato como atividade aberta à colaboração dos indivíduos”[67].
A “filtragem da pretensão totalitária ou autoritária” adotada em consequência das estratégias atualmente lançadas na consecução das expectativas sociais no panorama da Administração Pública contemporânea pode ser evidenciada, por exemplo, pela insurgência de alguns fatores, como por exemplo: a formação de novas parcerias com os particulares (com e sem finalidade econômica) e cada vez mais decisões negociadas (com destaque para instrumentos como a arbitragem e a mediação).
Diferente do quadro instituído no Estado Social, que assumiu, de maneira isolada e na trilha do autoritarismo, a tarefa de contornar e promover ajustes no legado – instável e desestruturado – liberal.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto destaca vantagens da consensualidade, tais como: (i) vantagem em razão do potencial criativo e operativo dos entes presentes na constelação social (colaboração); (ii) vantagem proporcionada pelo potencial criativo e operativo dos próprios entes da constelação social (cooperação); (iii) vantagem gerada pela redução de custos tanto para o Estado quanto para a sociedade (economicidade); (iv) vantagem ocasionada com a simplificação da máquina que faz a gestão do Estado (racionalidade); (v) vantagem com o reforço da máquina que regula o Estado (publicização); (vi) vantagem com a renovação das modalidades que prestam serviços a cargo do Estado (modernização); (vii) vantagem no que tange ao atendimento das demandas reprimidas após o fracasso da formatação dos Estados monoclasse do Welfare State e do Socialista (eficiência); (viii) vantagem com a racionalização da atribuição de competências ao Estado (subsidiariedade); e (ix) vantagem com a racionalização da atribuição de competências dentro do Estado (subsidiariedade)[68].
1.3.4. Personalismo
São por esses motivos que as teorias morais, organicista[69] e utilitarista[70], cujos sustentáculos se entrelaçam na ideia de que há uma supremacia do interesse público sobre o privado, não se coadunam com o espírito de valorização da consensualidade.
Nesse passo, as referidas teorias foram esvaziadas atualmente na era globalizada e informatizada, como mencionado, principalmente em razão da crescente valorização dos direitos fundamentais no âmbito do Estado Democrático de Direito, bem como da complexidade dos processos que forçam a construção de um novo formato de relacionamento na sociedade contemporânea – em que a subordinação cede espaço à interconexão.
Assim, no tocante ao organicismo, Gustavo Binenbojm verbera que há uma incompatibilidade com a democracia, pois: “o organicismo hegeliano representou a matriz teórica dos grandes sistemas políticos totalitários que varreram o mundo no século XX: o nazi-fascismo e o comunismo”[71].
A teoria moral do utilitarismo, para Daniel Sarmento, também não possui adequação ao espírito democrático vigente, pois: “parece-nos que numa ordem constitucional como a brasileira, centrada no princípio da dignidade da pessoa humana, o utilitarismo não configura a filosofia moral adequada para lidar com os conflitos entre interesses privados e coletivos”[72].
Ante o contexto, Marçal Justen Filho conclui que: “Qualquer invocação genérica ao ‘interesse público’ deve ser repudiada como incompatível com o Estado Democrático de Direito”[73].
Também não deve ser desconsiderado que a teoria moral do individualismo (corporificação do Estado Liberal) não se amolda ao Estado Democrático de Direito, em especial, com a Constituição Federal de 1988.
Por isso, Daniel Sarmento esclarece que:
“Em síntese, na leitura estritamente individualista, a igualdade jurídica é a mera igualdade formal, com a recusa a qualquer pretensão de utilização do Direito para fins redistributivos. A solidariedade não é um princípio normativo, mas apenas uma virtude humana, que escapa às considerações da ordem jurídica. E a liberdade é a não intervenção; a simples ausência de impedimentos externos para o comportamento individual, afigurando-se irrelevante a existência ou não da possibilidade real do agente de fazer suas escolhas e de agir em conformidade com elas. Mas não é preciso gastar muita tinta para demonstrar que tal visão não se compatibiliza com a Constituição de 1988. De fato, a Constituição de 1988 apresenta uma série de características que permitem que nela se divise uma típica Constituição social. Ela proclama, logo no seu art. 3º, que a República brasileira tem, dentre seus objetivos, “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (inciso I) e “erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (inciso III). Consagra um generoso elenco de direitos sociais (6º a 11) e condiciona a tutela da propriedade ao cumprimento da sua função social (arts. 5º, XXIII, e 170, II). Proclama que o objetivo da ordem econômica é “assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social” (art. 170, caput) e enuncia em seguida uma série de princípios interventivos, que temperam, com um condimento solidarista, os valores liberais que ela também hospeda. Trata-se, em suma, de uma constituição que “não se ilude com a miragem liberal de que é o Estado o único adversários do direito do homem”, não se baseando nos mesmos pressupostos ideológicos que erigiram uma separação entre Estado e sociedade civil”[74].
Sendo assim, ao contrário do individualismo (fundamento do Estado Liberal), do organicismo e utilitarismo (as quais justificam a supremacia do interesse público sobre o individual, sustentáculo da política do Estado Social), no Estado Democrático de Direito tais teorias morais cedem espaço para o personalismo.
Esta teoria traz a concepção de que a pessoa humana deve ser privilegiada, considerada per si, não como um “órgão integrante de um corpo humano” que, apesar de importante, não possui função indivualmente; o que não quer dizer a encampação do individualismo clássico liberal, uma vez que ao Estado é reconhecida a função de traduzir a integridade e os valores fundamentais de todos na sociedade.
Segundo Marçal Justen Filho é inconcebível que titulares do poder desempenhem a sua função sacrificando valores fundamentais e apresentem justificativas pautadas na conveniência do interesse público, pois: “O núcleo do direito administrativo não é o poder (e suas conveniências), mas a realização dos direitos fundamentais”.
O referido autor vai mais além, quando aduz que: “O que não se admite é a diluição dos direitos fundamentais (mesmo de minorias) em virtude da existência de incerto e indefinido “interesse público”[75].
Sendo assim e, tendo em mente a filosofia personalista, no Estado Democrático de Direito o interesse público deve ser vislumbrado como uma mola propulsora dos direitos fundamentais, sem permitir lugar nesta arena à concepção de que há superioridade a priori de quaisquer interesses (público ou privado).
Não é exagero afirmar que o interesse público no cenário atual deve preservar a pessoa humana e a axiologia unificadora consignada na Carta Constitucional de 1988, na medida em que deve ser atribuída à manifestação do Estado uma valorização ética em prol de procedimentos com contornos típicos de uma Administração Pública aberta, negocial, consensual e proporcional[76]; rejeitando, em contrapartida, o escopo administrativo que se revele fechado, autoritário e intransigente.
Neste contexto é salutar a lição de Joaquim Falcão, considerando no seu ponto de vista, cada vez mais no Brasil e no mundo resta evidente que o Estado não tem propriedade exclusiva do interesse público, do altruísmo social. O autor reforça o seu entendimento, pois, explicita que na sociedade liberal capitalista democrática, o interesse privado, representa mais do que um simples motor, trata-se de um valor que deve ser protegido e, sobretudo, estimulado[77].
Alexandre Santos de Aragão esclarece, em linha idêntica, que atualmente com a crescente identificação do interesse público em função da maior satisfação dos interesses dos cidadãos, o papel das prerrogativas do Estado com a exclusão do direito protetivo dos interesses individuais deve ser atualizado. Tal posicionamento, segundo o autor, justifica-se pelo fato de que o interesse público e o interesse dos cidadãos que antes eram distintos passaram a ser vistos como reciprocamente identificáveis[78].
Vê-se, dentro do contexto, com propriedade a lição de Maria Celina Bodin de Moraes, quando aclara que: “defronte de tantas alterações, direito privado e direito público tiveram modificados seus significados originários: o direito privado deixou de ser o âmbito da vontade individual e o direito público não mais se inspira na subordinação do cidadão”[79].
Dito isso, é imperioso deixar claro que não há dois ordenamentos jurídicos distintos, mas tão-somente uma única ordem jurídica que tem como norte interpretativo a axiologia estratificada na Carta Republicana de 1988.
1.3.5. Flexibilização da noção de Supremacia do Interesse Público
Revisitando o que já foi investigado neste estudo, não seria adequado muito menos democrático pretender salvaguardar o fim da supremacia do interesse público tornando o Estado totalmente desprovido de mecanismos que tenham por finalidade conduzir, de forma organizada e civilizada, a vida em sociedade e o bom funcionamento dos mercados.
Talvez se considerada a hipótese contrária, no lugar da consolidação de uma verdadeira sociedade democrática, estar-se-ia correndo o sério risco da implantação de valores liberais de exploração, os quais, certamente, encontram-se desconectados da realidade atual.
Por tais circunstâncias, Patrícia Irene Nohara alerta que a imperatividade ainda é um atributo essencial aos atos administrativos, sob pena de o Estado não ter mecanismo para impor determinações normativas aos particulares, no momento em que o comportamento destes tenha que se ajustar ao bem da sociedade. A autora enfatiza que, certamente, quase ninguém concordaria em ser penalizado ou ter mercadorias apreendias quando essencial e justificado para atender o interesse coletivo[80].
Porém, tendo em vista os paradigmas democráticos que estabelecem uma boa administração em respeito aos direitos fundamentais e valorização do consenso, também não pode ser desmerecida a reflexão sobre os meios com que o Estado, por intermédio da máquina administrativa, deve envidar os seus esforços ordinariamente na execução da sua função de bem atender – com eficiência, economicidade, legitimidade – os interesses da coletividade (incluindo os interesses individuais). Frise-se, sem recorrer como regra aos meios de autoridade, tal como ocorre quando se considera o interesse público, a priori, supremo.
Até porque, assim como na hipótese da extinção da supremacia do interesse público há um risco à sustentação da democracia, o seu manejo priorístico – afastado do interesse individual –, por outro lado, igualmente não se coaduna como fórmula colimada na axiologia democrática. Como se vê, trata-se de uma via de “mão dupla”, cujo exame, portanto, deve ser realizado com cautela e longe de resultados prontos.
Fato é que, em ajuste aos supraditos paradigmas atuais, o Estado deve, prioritariamente, atender os anseios complexos da sociedade não somente por meio da pauta autoritária, mas, sobretudo, incentivar o máximo “novos modelos da ação administrativa”, conforme instiga Diogo de Figueiredo Moreira Neto.
Nesta esteira, o autor verbera que devem ser cotejados modelos de organização com uma essência consensual e negocial, especialmente com vistas a lograr projetos em que reúna a iniciativa privada bem como entidades administrativas e, igualmente, viabilize a solução de conflitos entre os interesses envolvidos – público e privado[81].
Exatamente como efeito dos fundamentos alocados na impossibilidade de o interesse público na atualidade ser, a priori, sobreposto ao interesse privado, e sem pretender por meio das considerações lançadas neste estudo anular a supremacia do interesse público, mas apenas flexibilizá-la visando ensejar a sua aplicação quando realmente necessária, é que o mecanismo da ponderação dos interesses[82] se notabiliza.
A ponderação como mecanismo manejado na superação de eventual colisão ocorrida entre interesses públicos e privado está, nitidamente, em plena consonância com o íntimo democrático da Carta Constitucional de 1988, na medida em que há uma maximização de todos os interesses postos em “jogo” – bem diferente do ocorrido com o protagonismo do interesse privado no Estado Liberal e do interesse público no Estado Social.
Gustavo Binenbojm também se posiciona no sentido apontado, quando enfatiza que: “o Estado-Administrador deverá se organizar para proteger, promover e compatibilizar direitos individuais e interesses gerais da coletividade” [83].
Para Humberto Ávila a ponderação deve primeiro especificar quais são os bens jurídicos abrangidos e as normas que são aplicáveis, e, segundo, buscar salvaguardar ao máximo tais bens. Logo, o autor menciona que este se trata de um caminho bem diverso do que estabelecer de antemão a interpretação das regras administrativas favoravelmente ao interesse público[84].
Na percepção de Paulo Ricardo Schier a ponderação de interesses é uma fórmula salutar para a solução de conflitos entre o interesse público e o privado, em contraposição a uma resposta acabada para incidência de determinado interesse.
Inclusive, o autor em referência salienta que a carta Constitucional de 1988 também tem como função solucionar, previamente, eventual colisão de direitos fundamentais, quando elege de modo abstrato ora interesse público ora interesse privado, conforme se observa no trecho abaixo transcrito da sua lição:
“Logo, diante disso, a função de unificação política se remete à ideia de unidade de valores, de princípios, de interesses. E unidade, aqui, possui claramente o sentido de pluralidade, de coexistência na diferença. De interesses diversos, como o público e o privado, ora em harmonia, sim, mas ora em conflito. E nesta última situação, por certo, o sentido democrático da Constituição não deve optar previamente pela prevalência de um ou de outro. A unidade público/privado deve remeter a solução de eventuais conflitos às dimensões concretas da vida. Quando a Lei Fundamental opta, in abstrato, pela predominância do público sobre o privado (por exemplo, como sucede no art. 5º, XXV) ou do privado sobre o público (como no caso do art. 5º, XI ou XII, onde a regra é a inviolabilidade dos direitos privados), toma esta atitude como técnica de solução prévia de colisão de direitos fundamentais, eis que, como lembrado pelos autores citados, isto também é função da Constituição. Mas quando a solução não é dada previamente pelo texto constitucional, a concepção de unidade impede que se atribua uma resposta pronta em favor deste ou daquele, mormente como o fazem aqueles que propugnam por uma hierarquia quase que absoluta do interesse público sobre o privado”[85].
Além disso, também há outros autores[86] que flexibilizam a aplicação priorística da supremacia do interesse público, sob a justificativa da ponderação dos diversos interesses conflitantes, em vista, principalmente, do ajuste da hipótese fática perante os critérios que giram em torno da proporcionalidade – adequação, utilidade e proporcionalidade em sentido estrito[87].
Como é sabido, no entanto, o direito não é uma ciência exata e, justamente por isso, sobre um mesmo tema, não raro, pairam diversas interpretações. Este é caso da ponderação como forma de solucionar eventual colisão entre interesses públicos e privados, pois, diferente da doutrina supramencionada, consoante delineado a seguir, há autores que não anuem com tal investida.
Considerando a supremacia do interesse público como substrato administrativo irretocável, Celso Antônio Bandeira de Mello expõe que o Poder Público se encontra em poder de comando em relação aos particulares, pois, é indispensável para a gestão dos interesses públicos postos em confronto. De tal maneira, a Administração Pública pode constituir os particulares em obrigações ou modificar relações já estabelecidas, com a prática de atos unilaterais[88].
Já Fábio Medina Osório em estudo específico sobre o tema da supremacia do interesse público no direito administrativo brasileiro, afirma que não existe no Brasil uma norma específica que consagre o interesse público como princípio geral da Administração Pública na Constituição Federal. Apesar disso, o autor entende que esta ideologia não pode ser afastada do cenário nacional, uma vez que tal princípio ostenta status constitucional pelo fato de representar uma finalidade indisponível e imperativa administrativa[89].
Para o referido autor, a prevalência do interesse público sobre o privado consagra uma norma constitucional direcionada, em primeiro lugar, voltada ao controle das atividades públicas, de modo que, não se pondera um privilégio da Administração Pública em detrimento dos interesses particulares (propriedade, liberdade)[90].
Já na concepção de José dos Santos Carvalho Filho, também não se afigura possível ponderar interesse público e privado, já que, a supremacia do interesse público é fruto desse tipo de interesse, e, por via de consequência, não há maior lógica do que a seguinte: se o interesse é considerado público, por certo deve preponderar sobre o particular quando estiverem em colisão. Logo, segundo o autor, seria o caos na organização social caso as demandas gerais não suplantassem as individuais[91].
Em que pese demonstrada a existência de entendimentos na doutrina que estão voltados contra a possibilidade da ponderação de interesses públicos e privados, quando, eventualmente, estejam em rota de colisão, também foi visto, de outro lado, outros autores que apóiam tal iniciativa.
Esta, por sua vez, se sustenta na ideia de que o interesse público não deve ser considerado supremo sem antes uma análise casuística, com base em critérios pautados na razoabilidade (compatibilidade entre os fins e os meios) e na proporcionalidade (balizada nos requisitos da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito).
O posicionamento da doutrina que defende a flexibilização da supremacia do interesse público, em vista da ponderação dos interesses – público e privado –, como investigado neste estudo, está mais próximo dos paradigmas presentes no Estado Democrático de Direito.
Logo, atualmente, o aparato administrativo do Estado deve atuar na busca por resultados com apoio nos parâmetros, em especial, da eficiência, economicidade, legitimidade e também da consensualidade, visando englobar todos os interesses (inclusive os individuais) e não a utilização de respostas prontas.
Na perspectiva de Patrícia Ferreira Batista não se mostra mais possível continuar repetindo, sem uma análise crítica, o dogma da supremacia do interesse público no direito administrativo, considerando a substancial mudança no quadro político-jurídico que gerou a sua formulação. Por essa circunstância, entende que: Os novos rumos tomados pela filosofia jurídico-política contemporânea, alicerçados na jurisprudência dos princípios e na teoria do discurso, apontam para uma revisão daquele axioma[92].
Mais uma vez se reforça que a busca não é pela extinção da autoridade e imperatividade administrativa, que deve prevalecer quando necessária; muito menos considerar plausível que existam interesses supremos no Estado Democrático de Direito, mas sim que a ação do Estado preserve em igualdade de condições o interesse público e individual. Para tanto, a ponderação entre tais interesses sobressai como um meio eficaz para que sejam originados resultados mais justos na ordem social.
Conclusão
Em função do processo de redemocratização ocorrido no país a partir do final do século XX, além do fenômeno da globalização efetivado notadamente pelo avanço da tecnologia, crescente informatização, velocidade dos transportes e das comunicações, fez com que a sociedade tenha se tornado mais esclarecida e consciente dos seus direitos. Razão pela qual a Administração Pública foi provocada para atuar de modo mais eficiente.
Os processos sociais, assim, não mais permanecem conectados com apoio em uma estrutura piramidal, na medida em que passam a se “interconexionar” a partir da formatação em rede. Assim, é evidente que a complexidade presente nos conflitos surgidos na sociedade organizada nesta formatação em rede, também deve ser levada em conta no momento da correspondente solução que será atribuída.
Como efeito das referidas tendências há a necessidade de uma “filtragem da pretensão totalitária ou autoritária” nas relações travadas pela Administração Pública, sobretudo em consequência das estratégias cooperativas consensuais atualmente adotadas, como no caso da formação de novas parcerias com os particulares.
No Estado Democrático de Direito a pessoa humana e a axiologia unificadora dos interesses (público e privado) consignada na Carta Constitucional de 1988, inevitavelmente, atribuem à manifestação do Estado uma valorização ética e personalista em prol de procedimentos com contornos típicos de uma Administração Pública aberta, negocial, consensual e proporcional. Em contrapartida, rejeita-se o escopo administrativo que se revele fechado, autoritário e intransigente.
Como consequência, o Estado com apoio no seu aparato administrativo deve atuar de forma prioritária na busca por resultados tendo como norte os princípios, em especial, da eficiência, economicidade, legitimidade e também da consensualidade, de modo a englobar na relação jurídico- administrativa todos os interesses envolvidos (inclusive os individuais).
Os interesses públicos e privados, portanto, quando eventualmente não coincidirem, devem ser ponderados para evitar a utilização de respostas prontas como no caso da supremacia do interesse público.
Por esses motivos, foi demonstrado que os novos paradigmas da Administração Pública brasileira não mais sustentam a supremacia do interesse público como uma fórmula rígida e imutável, isto é, como uma verdade absoluta e solução para todos os problemas.
Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho. Pós-Graduado em Direito do Estado e da Regulação pela FGV Direito Rio. Advogado do Instituto de Resseguros do Brasil S.A. (IRB-Brasil Re)
O Benefício de Prestação Continuada (BPC), mais conhecido como LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social),…
O benefício por incapacidade é uma das principais proteções oferecidas pelo INSS aos trabalhadores que,…
O auxílio-reclusão é um benefício previdenciário concedido aos dependentes de segurados do INSS que se…
A simulação da aposentadoria é uma etapa fundamental para planejar o futuro financeiro de qualquer…
A paridade é um princípio fundamental na legislação previdenciária brasileira, especialmente para servidores públicos. Ela…
A aposentadoria por idade rural é um benefício previdenciário que reconhece as condições diferenciadas enfrentadas…