Resumo: O presente artigo tem por objetivo principal tratar dos princípios da interpretação constitucional, catalogados por Konrad Hesse, como limitadores para a modulação dos efeitos temporais de decisão do Supremo Tribunal Federal que altera jurisprudência consolidada.
Sumário: 1. Introdução. 2. Hermenêutica Filosófica e Hermenêutica Constitucional 3. Interpretação Constitucional como Concretização 3.1 Procedimento de Concretização das Normas Constitucionais 3.2 Princípios de Interpretação Constitucional 3.3 Limites da Interpretação Constitucional 4. Limites Constitucionais para a Modulação Temporal dos Efeitos de Decisão do Supremo Tribunal Federal que Altera Jurisprudência Constitucional Consolidada 4.1 Processo Legislativo de Alteração de Suporte Físico Constitucional e Processo Interpretativo de Alteração de Significação Constitucional 4.2 Influência dos Princípios da Interpretação Constitucional na Modulação Temporal de Decisão do STF que Altera Jurisprudência Consolidada 5. Considerações Finais
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo, desenvolvido com fundamentação teórica no Capítulo II da obra “A Força Normativa da Constituição”, de Konrad Hesse, consiste em difundir a relevância de um ponto de equilíbrio entre a Constituição real (realidade) e a Constituição jurídica, pois a norma só existe em face da realidade. Para Hesse, a Constituição não pode ser tão tecnicista a ponto de desconsiderar a existência da Constituição real.
Nesse compasso, para consubstanciar a concretização do texto constitucional, é interessante efetuar uma análise da atividade interpretativa, ou seja, da subsunção da norma constitucional à situação concreta, a qual, segundo a obra em análise, abarca o entendimento da norma e a pré-compreensão do caso concreto a ser resolvido.
Ainda, no que tange ao procedimento de interpretação, a norma deve ser compreendida no plano da significação, o qual é decisivo para a solução do problema, sendo necessária a compreensão dos fatos da vida de forma concreta e ordenada. Nesse intento, para alcançar a compreensão da realidade, foi dedicada aos princípios constitucionais uma breve análise de sua definição e de seus desdobramentos, no que tange à atividade interpretativa da Constituição, com destaque ao Princípio da Força Normativa.
O marco teórico adotado neste trabalho, a partir da Nova Hermenêutica de viés gadameriano e dos ensinamentos de Konrad Hesse, em especial, de seu catálogo de princípios de interpretação constitucional, permitirá vislumbrar dois planos de modificação da Constituição Federal: um legislativo de alteração de texto; outro interpretativo de alteração de significação, conceitos sobre os quais se buscou construir algumas conclusões sobre os limites (vetores interpretativos) para a modulação dos efeitos temporais (eficácia prospectiva) de decisão do Supremo Tribunal Federal que promove virada jurisprudencial.
2. HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL
As chamadas Escolas Hermenêuticas se distinguem pelo maior ou menor aprisionamento do intérprete ao texto da lei; ao invólucro verbal. Variam do dogmatismo caricatural napoleônico de Laurent à interpretação mais livre dos pensadores sentimentais (pesquisa romântica). Leciona Sérgio Alves Gomes (2002, 33) que “Para demonstrar a atitude distinta do intérprete, segundo a corrente por ele integrada, basta situá-lo e contemplá-lo no contexto das seguintes Escolas: Exegese, Histórica, Livre Pesquisa Científica e Escola do Direito Livre”, não cabendo ao jurista de hoje realizar uma opção integral por alguma dessas Escolas, mas visualizar a contribuição que cada uma rendeu ao desenvolvimento da Hermenêutica Jurídica.
A primeira Escola, esclarece o citado jusfilósofo (GOMES, 2002, 33-34), caracterizou-se pelo apego à interpretação gramatical, a exemplo da figura do juiz desenhado por Montesquieu, na obra L´Espirit des Lois, como nada mais do que “uma boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu vigor” (MONTESQUIEU apud GOMES, 2002, p. 35). A segunda, cujo grande precursor foi Savigny, contemplou o historicismo como uma reação ao legalismo e à codificação das leis, e contribuiu para a Hermenêutica Jurídica por defender ser o costume, como um fenômeno de manifestação espontânea da sociedade, uma fonte primeira do Direito, que não poderia ser compreendido como algo isolado do contexto histórico-social que o gerou. Por sua vez, a Escola da Livre Pesquisa Científica, fundada por François Geny, trouxe como marcante contribuição a tentativa de resolver os novos problemas através de uma interpretação histórico-evolutiva das leis. Já a Escola do Direito Livre (Freisrecht), surgida na Alemanha com a obra “A Luta pela Ciência do Direito”, escrita em 1906 por Hermann Kantorowicz, sob o pseudônimo Gnaeus Flavius, defendeu uma maior liberdade ao ato de interpretar, autorizando julgamento contra legem inspirado no sentimento da coletividade (GOMES, 2002, 39).
Essa Hermenêutica Jurídica Tradicional, que contou no Brasil com grandes estudiosos, como Carlos Maximiliano, Alípio Silveira e Mário Franzen de Lima, fornece e sistematiza ferramentas ou métodos de interpretação que foram catalogados por Savigny em literal, histórico, sistemático e teleológico. O hermeneuta clássico “busca o sentido” da norma pela aplicação conjugada dos referidos métodos, num processo de interpretação normativo-textual, indagando a “vontade objetiva da lei” ou até mesmo a “vontade subjetiva do legislador”.
O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), autor de “Ser e Tempo” (HEIDEGGER, 2004, p. 50), promoveu o que se convencionou chamar de ontological turn (virada ontológica). Uma teoria da construção do Direito, a partir da linguagem e da argumentação, em Heidegger, possibilitou que a Hermenêutica Jurídica deixasse de se restringir ao patamar estritamente normativo, para atingir o status filosófico. Para Heidegger, cujos trabalhos foram continuados e ampliados por seu discípulo Hans-Georg Gadamer (1900-2002), autor de “Verdade e Método” (1960), é condição para o ato de interpretar uma prévia compreensão existencial (estrutura ontológica).
Conforme observa o professor André Trindade (2007, p. 54), a perspectiva de uma estrutura de pré-compreensão é o ponto de chegada de Heidegger e o ponto de partida de Gadamer, para quem, como anota Lenio Streck (1999, p. 170), “a hermenêutica como teoria filosófica diz respeito à totalidade de nosso acesso ao mundo”. Aqui, para Gadamer e a compreensão do Direito sob a perspectiva da Hermenêutica Filosófica, ganha extraordinário relevo a indagação “O que é o homem?”, eis que o homem, ao tomar consciência de sua finitude, situa-se como ser do mundo e no mundo. A consciência da finitude revela o homem como ser pertencente à história; situa-o na história e lhe permite uma pré-compreensão do meio, vale dizer, uma interpretação lingüística do mundo. Esta pré-compreensão é inerente ao homem como ser do e no meio (estrutura ontológica), sendo pressuposto do ato interpretativo. Como muito bem anota Sérgio Alves Gomes, “Viver é um constante buscar de sentido para a existência, um ininterrupto interpretar. Interpretar consiste na atribuição de significado à realidade percebida dentro e fora do ser humano” (2008, p. 93).
Seguindo esta ordem de idéias, nenhuma interpretação é, portanto, neutra, porquanto os sentidos estão em constantes re(construções), seja em virtude de mudanças de observador, seja em razão de mudanças no observador. A mensagem nunca será a mesma e a circularidade do pensamento filosófico permite um contínuo processo de reconstrução das mensagens, adequando as respostas em torno do Direito, da Constituição, do Estado e da Democracia aos novos tempos. Essa constatação ajuda a entender o porquê da alteração de uma jurisprudência constitucional sedimentada, seja capitaneada pela re-interpretação feita por um mesmo julgador, seja em virtude de uma nova composição da Corte Suprema.
Para Gadamer, o diálogo é o elemento central do filosofar e, nesse aspecto, Gomes pondera que estabelecer um diálogo entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica jurídica constitucional “é contribuir para o desenvolvimento de perspectivas construtoras do Estado Democrático de Direito” (2008, p. 107). As conexões entre a Filosofia e o Direito e, por conseguinte, entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica jurídica, aponta o pensador, tornam possível compreender o homem como um ser hermenêutico; um ser capaz de interpretar.
Na seara da Hermenêutica Constitucional, Konrad Hesse (MENDES, 1991, p. 53-75) parte justamente da hermenêutica filosófica gadameriana para fundamentar seu entendimento sobre o processo de concretização das normas constitucionais, como será abordado no tópico seguinte.
É importante ressaltar das lições anteriormente reproduzidas que o diálogo entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica constitucional permite um processo de “vivificação” da Constituição, possibilitando a interpretação da Lei Maior conforme os compromissos norteadores do Estado Democrático de Direito “enquanto projeto emancipatório das dependências que impossibilitam o desenvolvimento de todos” (GOMES, 2008, p. 119). Referido diálogo aponta, também, para a constatação de que somente por meio da interpretação se pode chegar ao sentido da Constituição e, para isso, influi a compreensão que o homem tem de si como “ser de incertezas e possibilidades”. Com essa percepção hermenêutica (ontológica), o homem pode sentir-se responsável pelas transformações de si e do mundo em que vive, realizando valores expressos em direitos fundamentais que visam salvaguardar a dignidade da pessoa humana (o princípio fundamental maior da Democracia).
3. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL COMO CONCRETIZAÇÃO
Em Hesse (1991, p. 53-54), a interpretação constitucional em sentido amplo é uma atividade que nem sempre se torna consciente, pois a concretização da Constituição pode ocorrer numa situação fática independentemente do enfretamento de uma dúvida proveniente da análise do texto positivado. Por outro lado, adverte Hesse na mesma obra, a interpretação constitucional em sentido restrito é exigida por termos ambíguos, confusos, imprecisos, de forma que onde não existem dúvidas, a atividade interpretativa é prescindível. Daí dizer o autor que somente há lugar para a interpretação (na concepção restrita) quando a Constituição não for unívoca. A interpretação constitucional é a concretização, a qual recai sobre termos não unívocos (que comporta uma única forma de interpretação diante da realidade), revelando, assim, um aspecto criador.
Para o multicitado autor (Hesse, 1991, p. 55), a tarefa da interpretação constitucional é encontrar um resultado “exato” num procedimento racional e controlável, para que a atuação do Poder Judiciário e, aqui, com maior razão, do Supremo Tribunal Federal, seja dotado de certeza e previsibilidade. Para ele, há grande duvidosidade na interpretação constitucional tradicional, sobre a qual se falou no segundo tópico deste artigo, pois os métodos de interpretação gramatical, histórico, sistemático e teleológico, individualmente considerados, são inseguros e insuficientes, mesmos predicados que se pode outorgar à interpretação constitucional tradicional que emprega tais métodos em conjunto, pois é uma questão aberta qual deles mereça, em cada caso, a preferência do intérprete.
Não há como se chegar a um resultado previsível, segundo Hesse (1991, p. 60), sem se ater aos limites reais da interpretação constitucional; da interpretação como concretização. A concretização da norma pelo intérprete pressupõe uma compreensão desta. Essa compreensão presume uma pré-compreensão. Já se antecipou que o método concretista de Konrad Hesse parte da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, como lembra Lenio Luiz Streck (2000, p.244):
“Assim, partindo de Gadamer, Hesse mostra como o momento da pré-compreensão determina o processo de concretização: a concretização pressupõe a compreensão do conteúdo do texto jurídico a concretizar, a qual não cabe desvincular nem da pré-compreensão do intérprete nem do problema concreto a solucionar. O intérprete não pode captar o conteúdo da norma desde o ponto de vista quase arquimédico situado fora da existência histórica, senão unicamente desde a concreta situação histórica na qual se encontra, cuja elaboração (maturidade) conformou seus hábitos mentais, condicionando seus conhecimentos e seus pré-juízos.”
A atividade interpretativa permanece vinculada à norma: é a subsunção desta ao caso concreto. Para consubstanciar a concretização da norma são necessários: entendimento da norma e a pré-compreensão do caso concreto a ser solucionado.
Para entender a norma, é preciso que o intérprete o faça dentro do histórico reinante. Em outras palavras, não é possível compreender o Direito fora de um ponto da existência histórica. Segundo Barroso (2009, p. 279), a hermenêutica concretizadora procura o equilíbrio necessário entre a atividade do intérprete, o sistema jurídico e a realidade subjacente. Continua o autor:
“Destaca, assim, a importância da pré-compreensão do agente da interpretação, seu ponto de observação e sua percepção dos fenômenos sociais, políticos e jurídicos. Igualmente significativa é a realidade objetiva existente, “os fatores reais do poder”, na expressão clássica de Ferdinand Lassalle. E por fim, não menos relevante, é o sistema jurídico, “a força normativa da Constituição”, com a sua pretensão de conformar a realidade – o ser – ao dever ser constitucional”.
Alguns autores inserem o ato de vontade como elemento caracterizador da atividade interpretativa, na medida em que tal designação justifica-se “quando significam, entre vários sentidos possíveis, dado a ambigüidade do enunciado, que o interprete escolhe um deles, e como escolher é ato de vontade a interpretação é ato de vontade”. (GONÇALVES, 2008, p. 381). A expressão “ato de vontade” não significa que o intérprete constrói a norma de acordo com as suas próprias aspirações, pois, acatar tal fundamento renegaria o Estado Democrático de Direito, a começar pelo princípio da legalidade.
É possível concluir, então, que o ato de interpretar a Constituição deve ser compreendido numa situação histórica concreta, na qual o intérprete está inserido e compôs os conteúdos dos seus pensamentos. Essa pré-compreensão inerente ao intérprete, como ser histórico (do mundo e no mundo), não é, em si e suficientemente, o processo de interpretação. Trata-se de um mero anteprojeto de interpretação sujeito, necessariamente, a confirmações, aprofundamentos e correções.
Quanto ao outro requisito, qual seja, o entendimento da norma, o autor exterioriza a sua idéia de que, para proceder à interpretação, é preciso, primeiro, entender a norma direcionada a um problema concreto, “o intérprete deve relacionar a norma que ele quer entender, a esse problema” (HESSE, 1991, p. 62). “Não existe interpretação constitucional independente de problemas concretos”.
Assim, na linha gadameriana, o processo de interpretação contitucional em Hesse dá-se por meio de um círculo hermenêutico; um movimento ou caminhar de contínua reconstrução de sentidos, partindo-se da pré-compreensão para a compreensão e desta para aquela, ou seja, do contexto para o texto (pré-compreensão) e do texto para o contexto (concretização). Para Gadamer, “o movimento da compreensão vai constantemente do todo à parte e desta ao todo. A tarefa é ampliar a unidade do sentido compreendido em círculos concêntricos.” (GADAMER, 1977, p. 436).
3.1 Procedimento de Concretização das Normas Constitucionais
No que tange ao procedimento de concretização de normas constitucionais, segundo o autor em estudo, o método autônomo é incabível e inoportuno, diante das exigências de pré-compreensão do intérprete e o problema a ser solucionado. “O procedimento da concretização deve ser determinado pelo objeto da interpretação, pela Constituição e pelo problema respectivo (HESSE, 1991, p. 63).
A Constituição requer um procedimento de interpretação guiado e limitado normativamente (vinculado normativamente), uma vez que o sistema constitucional não é uniforme (expressões plurissignificativas), lógico-axiomático (evidente incontestável) ou mesmo hierárquico de valores. Os significados, resultantes da interpretação, devem estar em consonância com o escopo do texto constitucional (essência da norma empregada), e não em conformidade com a opinião empregada (requisito da pré-compreensão).
Nesse aspecto, é relevante adentrar nos topoi que o intérprete, “diante da multiplicidade dos pontos de vista possíveis, quer considerar” (HESSE, 1991, p.64). Assim, faz-se necessário a compreensão de tal termo.
Tópico origina-se de tópoi, o qual vem da palavra topos que significa lugar comum. O intérprete, diante da situação sub judice, poderá valer-se dos topoi, isto é, de pontos de vista que facilitam e orientam a sua argumentação; os tópicos ou topoi são pontos de vista empregáveis em diversas instâncias, com validade geral, lançados na ponderação de pós e contras das opiniões, e podem inferir o que é verdadeiro. São exemplos de topoi: interesse social, interesse público, boa-fé, bem comum, autonomia da vontade, direitos individuais, Estado de Direito, sistema jurídico, legalidade, legitimidade, fins sociais da lei.
Retomando, novamente, a questão do procedimento, a norma deve ser compreendida em seu significado, o qual é decisivo para a solução do problema. Deve-se concretizar o essencial contido na norma. Para tanto, os já comentados métodos tradicionais de interpretação são relevantes: histórico (índole subjetiva, desempenha um papel secundário, suplementar, na construção de sentido da norma) (BARROSO, 2009, p.292), sistemático (considera a ordem jurídica como um sistema e, assim, dotado de unidade e harmonia), e teleológica (finalística: o Direito existe para realizar determinados fins sociais).
Desta feita, para obter uma concretização precisa e suficiente, além da mera interpretação do texto, é necessária a compreensão dos fatos da vida de forma concreta e ordenada. Esse elemento adicional à conjuntura interpretativa proporciona segurança e credibilidade, pois, assegura a resolução do problema de forma apropriada, sendo, assim, o contrário de um normativismo unilateral e cego. Possibilita, também, uma solução (nos casos que tratam da afinidade entre várias normas), sobre a base da coordenação material das respectivas condições de vida, e uma exposição dos pontos de vista materiais, que sustentam essa coordenação.
3.2 Princípios de Interpretação Constitucional
Nos dizeres de Hesse, “a resolução do problema cabe aos princípios de interpretação constitucional” (HESSE, 1991, p.65). Nesse sentido:
“A los princípios de la interpretacion constitucional lês corresponde La misión de orientar y encauzar el processo de relación, coordinacion e valoracion de los punto de vista o consideraciones que deben llevar a La solución del problema.” (HESSE, 1991, p.48).
Assim, sendo os princípios imprescindíveis para a resolução do problema, elemento integrante da atividade interpretativa, necessário se faz dedicar a tais premissas alguns apontamentos, todos direcionados à interpretação.
Pelo princípio da unidade da Constituição, a interpretação das normas deve ser realizada de uma forma global, inserindo-a dentro da conjuntura que ela deve estar abrangida, evitando, assim, contradições com outras normas presentes no corpo constitucional. Nesse aspecto, ensina André Ramos Tavares (2007, p. 83):
“Considera-se a Constituição como um sistema e, nessa medida, um conjunto coeso de normas. Essa particularidade, nas palavras de J.J. Gomes Canotilho, significa que a Constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismo) entre as suas normas”.
Em continuidade, o princípio da concordância prática ou da harmonização está relacionado com o preceito acima descrito, pois, “trata-se de uma orientação interpretativa, que decorre da já propalada unidade (que remete à coerência), e que tem especial desenvolvimento no campo dos princípios constitucionais” (TAVARES, 2007, p. 84). Trata-se da “coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito, de forma a evitar sacrifício (total) de uns em relação aos outros”. (CANOTILHO, apud TAVARES, 2007, p. 84). Nesse aspecto, ingressa na performance da proporcionalidade. Quando houver colisões entre dois bens da vida, deve-se traçar limites para tais bens, “para que ambos possam chegar a eficácia ótima” (HESSE, 1991, p.66). Os traçamentos dos limites devem ser proporcionais, ou seja, “não devem ir mais além do que o necessário para produzir a concordância entre ambos os bens jurídicos.” A atuação da proporcionalidade se verifica entre a finalidade e o meio.
Por sua vez, o princípio da exatidão funcional, de acordo com Hesse, difunde que se o texto constitucional “ordena a respectiva tarefa e a colaboração dos titulares das funções estatais em uma determinada forma, então o órgão interpretador tem que se manter no quadro das funções a ele atribuídas” (HESSE, 1991, p. 67). O interprete não pode alterar ou remover a distribuição das funções, seja pela maneira, seja pelo resultado. (Ex. separação de poderes – atribuição de atividades típicas – relação entre legislador e Tribunal Constitucional: não é permitido ao Tribunal efetuar uma interpretação que transcende a sua função controladora, que limita a liberdade do legislador).
De acordo com princípio do efeito integrador, na resolução dos problemas jurídico-constitucionais, deve-se dar prioridade às interpretações ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social, e possibilitem o reforço da unidade política, porquanto essas são as finalidades precípuas da Constituição.
Assim, partindo de conflitos entre normas constitucionais, a interpretação deve levar a soluções pluralisticamente integradoras.
Ainda, pelo princípio da força normativa da Constituição, na resolução dos problemas, deve conceder preferência às normas constitucionais de força de efeito ótima (normas com efetividade imediata), tanto as regras quanto aos princípios expressos na Constituição.
Uma Constituição, para que tenha força normativa, tem que respeitar e estar em consonância histórica e socialmente com o povo a que se destina, isto é, deve ser adequada ao povo e ao Estado que pretende regular. Por isso, a Constituição não pode ser, apenas, abstrata e teórica, sob pena de ser estéril. Deve, sim, sintetizar as leis culturais, sociais, econômicas e políticas da sociedade, refletindo a tábua de valores consagrada, no respectivo momento histórico, pela sociedade que ela visa normatizar.
O reconhecimento da força normativa, do caráter vinculativo e obrigatório das disposições constitucionais é premissa do estudo da Constituição. (BARROSO, 2009, p. 262). Nesse aspecto, os requisitos da força normativa são o conteúdo e a práxis. O conteúdo deve relacionar-se com os destinatários da Lei Maior. A Constituição não deve ser absoluta, engessada, mas permitir relativizações para que possa abranger e disciplinar as situações que, porventura, surgirão.
Quanto à práxis, ressalta o autor, que a estabilidade deve ser condição fundamental da eficácia da Constituição. A atividade interpretativa deverá otimizar a significação que contém a norma, ou seja, outorgar à norma a maior eficácia possível: princípio da ótima concretização da norma.
Pedro Lenza (CANOTILHO, apud LENZA, 2008) traça a seguinte consideração:
“Na solução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se prevalência aos pontos de vista, que tendo em conta os pressupostos da constituição (normativa), contribuem para uma eficácia ótima da lei fundamental.”
No que tange ao princípio da interpretação conforme a Constituição, parafraseando André Ramos Tavares, uma das abordagens para tal princípio (TAVARES, 2007, p.85) pode ser assim definida:
“Quando uma norma infraconstitucional contar com mais de uma interpretação possível, uma (no mínimo) pela constitucionalidade e outras pela inconstitucionalidade, múltipla interpretação dentro dos limites estabelecidos ao intérprete, este deverá sempre a preferir interpretação que consagre, ao final, a constitucionalidade”.
No mesmo sentido, preceitua Barroso (2009, p. 301):
“Destina-se a interpretação conforme a Constituição a preservação de validade de determinadas normas, suspeitas de inconstitucionalidade, assim como à atribuição de sentidos às normas infraconstitucionais, de forma que melhor realizem os mandamentos constitucionais. Como se depreende da assertiva precedente, o princípio abriga, simultaneamente, uma técnica de interpretação e um mecanismo de controle de constitucionalidade”.
Como técnica de atividade interpretativa, o Poder Judiciário, ao efetuar a interpretação dos textos legais, deve realizar, de modo mais adequado, os valores e fins constitucionais. Como mecanismo de controle de constitucionalidade, “permite que intérprete, sobretudo o tribunal constitucional, preserve a validade de uma lei que, na sua leitura mais óbvia, seria inconstitucional” (BARROSO, 2009, p.301).
Por derradeiro, o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade (este, na chamada “Reforma do Judiciário”, restou positivado pela EC nº 45/2004, que inseriu no texto magno o artigo 5º, inciso LXXVIII, da CF/88, que assegurou a todos, no âmbito judicial ou administrativo, a “razoável duração do processo”) possui respaldo nas concepções de devido processo legal substantivo e de Justiça, e tem o seguinte conceito prolatado por Barroso:
“Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle de discricionariedade dos atos do Poder Publico e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema”. (BARROSO, 2009, p.305)
O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três aspectos fundamentais: adequação, cujo significado consiste na idéia de que o intérprete deve identificar o meio adequado para a consecução dos objetivos pretendidos; necessidade (ou exigibilidade), que significa que o meio escolhido não deve exceder os limites indispensáveis à conservação dos fins desejados; e, por fim, a proporcionalidade em sentido estrito, que determina que o meio escolhido, no caso específico, deve se mostrar como o mais vantajoso para a promoção do conjunto de valores em jogo.
A proporcionalidade, no pensamento de Hesse, expressa “uma relação de duas grandezas variáveis”, adotando a que melhor satisfaz a idéia de otimização (e não exclusão). O autor exemplifica a performance de tal preceito no caso de incompatibilidade entre institutos fundamentais, como “liberdade de opinião e lei geral limitadora no art. 5º da Lei Fundamental”. Atua na coordenação proporcional na “liberdade de opinião por um lado” e de outros bens juridicamente protegidos, como direito à honra, à intimidade, dentre outros (HESSE, 1991, p.67).
3.3 Limites da Interpretação Constitucional
No âmbito da interpretação constitucional, Hesse afirma a importância do texto como algo firme e vinculativo, apesar da diversidade e da influência de múltiplos complicadores no processo de concretização constitucional.
A interpretação está vinculada a algo já instituído e deve estar limitada no desfecho das possibilidades de uma compreensão conveniente do texto da norma. Assim, encontram-se os limites da interpretação constitucional “onde terminam as possibilidades de uma compreensão conveniente do texto da norma ou onde uma resolução iria entrar em contradição unívoca com o texto da norma” (HESSE, 1991, p. 69).
Deve-se ressaltar que, muito embora o direito não escrito seja composto, também, por preposições obrigatórias, não pode haver contradição entre o direito não expresso com o direito escrito (scripta), e isto, nos dizeres do autor em estudo, é um limite intransponível da interpretação constitucional, o qual é pressuposto da função racionalizadora, estabilizadora e limitadora do poder da Constituição. “Inclui a possibilidade de uma mutação constitucional por interpretação”, ao passo que “exclui um rompimento constitucional” – o desvio do texto em cada caso individual – e uma modificação constitucional por interpretação (HESSE, 1991, p.69).
Quando o intérprete suprime (passa por cima) o texto constitucional, ele não mais interpreta, mas sim, modifica ou mesmo rompe com a própria Constituição, o que é proibido pelo Direito vigente, pois o intérprete deve estar vinculado com a Lei Maior.
Assim, as reservas da interpretação constitucional se constituem por ser limites impostos ao pensamento do problema. “Para a interpretação constitucional, que parte do primado do texto, é o texto o limite insuperável da sua atividade”. (HESSE, 1991, p.70), tendo à tópica, isto é, os pontos de vista empregados, um papel limitado no âmbito da atividade interpretativa.
4. LIMITES CONSTITUCIONAIS PARA A MODULAÇÃO TEMPORAL DOS EFEITOS DE DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE ALTERA JURISPRUDÊNCIA CONSTITUCIONAL CONSOLIDADA
A esta altura, a designada Nova Hermenêutica Constitucional (Gomes, 2008, p. 319), nos termos do marco teórico eleito neste trabalho, permite a reflexão de que as normas constitucionais não são interpretadas, pois o que se interpreta não é a norma, e sim o texto do direito posto. A Constituição Federal não é uma norma jurídica (no sentido estrito da palavra), tampouco são normas jurídicas os artigos, incisos, parágrafos e alíneas que a compõem. As normas constitucionais são o produto da atividade de interpretação, vale dizer, do processo de construção de significação, como anota Eros Roberto Grau (2002, p. 17):
“O que em verdade se interpreta são os textos normativos; da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. A norma é a interpretação do texto normativo. (…) O conjunto dos textos – disposições, enunciados – é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais” [Zagrebelsky].
O que foi publicado no Diário Oficial da União nº 191-A, de 5 de outubro de 1988, sob o título “Constituição da República Federativa do Brasil” é um suporte físico – a parte material do signo –, dotado de artigos, parágrafos, alíneas e incisos, ou seja, de enunciados que prescrevem condutas para disciplinar as relações intersubjetivas (o significado). O suporte físico da Constituição Federal, associado ao seu significado, suscitará na mente do intérprete conceitos (significações) que variam de pessoa para pessoa, dependendo de seus valores e pré-compreensões inerentes à sua vivência. A essa estrutura triádica formada pelo suporte físico, pelo significado e pela significação dá-se o nome de “triângulo semiótico” (CARVALHO, 2009, p. 152).
Pela interpretação constitucional, conforme o caminho até aqui trilhado seguindo os ensinamentos de Hesse, a Constituição deve ser constantemente concretizada, vivificada e atualizada por processos de contínua reconstrução de significações, seja em virtude das mudanças de intérpretes, seja em decorrência das mudanças nos intérpretes. Nesse passo, a alteração de uma jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal pode refletir este processo interpretativo contínuo de reconstrução de significações, sem o qual a Constituição corre o risco de não mais expressar os valores prestigiados pela sociedade que ela pretende regular.
Reitera, entretanto, a lição de Konrad Hesse, segundo a qual o sobredito processo de reconstrução de significações permite o fenômeno das mutações constitucionais por interpretação, mas não autoriza “um rompimento constitucional” – o desvio do texto em cada caso individual – e uma modificação constitucional por interpretação (HESSE, 1991, p.69). Assim, em que pese a mutação constitucional por interpretação ser um instrumento atualizador da Lei Maior, o intérprete não pode passar por cima do texto magno porque se assim o fizer, não mais estará a interpretar, mas sim, como dito alhures, a romper com a própria Constituição.
4.1 Processo Legislativo de Alteração de Suporte Físico Constitucional e Processo Interpretativo de Alteração de Significação Constitucional
Na esteira do que foi aduzido até aqui, observa-se dois processos de alteração da Constituição: de um lado, um processo legislativo de modificação constitucional no plano do suporte físico (texto), pelos mecanismos de reforma por emendas constitucionais e de revisão; e, de outro lado, um processo interpretativo de modificação constitucional sem alteração de texto, que se opera no plano das significações (mutação constitucional).
Deve-se localizar, na própria Constituição Federal, os limites para a modificação constitucional no plano do suporte físico, que são, em se tratando de reforma por emendas: (i) os limites formais ou procedimentais (processo legislativo de emendas mais rígido e dificultoso, em relação ao dos demais veículos normativos primários, conforme artigo 60, caput, e §§ 2º, 3º e 5º, CF/88); (ii) os limites materiais (cláusulas pétreas implícitas e explícitas, segundo o art. 60, §4º, CF/88); e (iii) os limites circunstanciais, que são momentos de crise institucional em que não se permite a alteração do texto (chamadas síncopes constitucionais: estado de defesa; estado de sítio e intervenção federal, consoante o art. 60, §1º, CF/88).
Igualmente, é na própria Lei Maior que se deve identificar os limites para a modificação constitucional no plano das significações, ou seja, os limites para a atualização da Constituição pelo processo da interpretação (mutação constitucional). Os princípios da interpretação constitucional catalogados por Hesse, abordados no tópico anterior deste trabalho, desempenharão esse papel de limitação, inserindo-se, aqui, exatamente, a questão da modulação temporal dos efeitos de uma decisão do Supremo Tribunal Federal que altera jurisprudência constitucional consolidada (virada jurisprudencial).
Desde logo, pondera que não se afigura adequado resolver a questão da modulação dos efeitos de uma decisão que promove virada jurisprudencial pela aplicação do princípio da irretroatividade das normas (como quer Luís Roberto Barroso, no parecer que será citado a seguir), porquanto este princípio encontra-se na seara da modificação da Constituição pelo processo legislativo de emenda (plano do suporte físico); e não no âmbito, que aqui interessa, da modificação constitucional pelo processo de interpretação (plano das significações).
4.2 Influência dos Princípios da Interpretação Constitucional na Modulação Temporal de Decisão do STF que Altera Jurisprudência Consolidada
Conforme enumera o professor Luís Roberto Barroso, em parecer datado de 22 de outubro de 2008, publicado do site do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (http://www.oab.org.br/arquivos/pdf/Geral/Cofins.pdf, extraído em 13.12.2009), a modulação dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal pode ocorrer em quatro hipóteses, quais sejam:
“a) declaração de inconstitucionalidade em ação direta; b) declaração incidental de inconstitucionalidade; c) declaração de constitucionalidade em abstrato; e d) mudança de jurisprudência. A hipótese dos autos é, sem dúvida, esta última: mudança de jurisprudência. Precedentes emblemáticos e recentes do emprego da modulação temporal em tais casos, como se sabe, foram a mudança de entendimento da Corte relativamente (i) à competência para ações acidentárias, que passou da Justiça Estadual para a Justiça do Trabalho; e (ii) ao regime de fidelidade partidária”.
A primeira hipótese acima listada, em que o Supremo Tribunal Federal atribui efeitos prospectivos a suas decisões – declaração de inconstitucionalidade em ação direta – é a única expressamente prevista em lei. Dispõe o artigo 27 da Lei 9.868/99 que o STF, por maioria de dois terços de seus membros, ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e considerando razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá restringir os efeitos da declaração ou determinar que ela só tenha eficácia a partir do trânsito em julgado ou de outro momento fixado na decisão.
À míngua de previsão infraconstitucional expressa, indaga-se sobre a possibilidade, ou não, de se atribuir eficácia prospectiva a uma decisão da Corte Suprema que não se amoldar à hipótese do artigo 27 da Lei 9.868/99, ou seja, que não se referir à declaração de inconstitucionalidade em ação direta, como, especialmente, uma decisão em controle difuso (em sede de recurso extraordinário, por exemplo) que altera a jurisprudência consolidada do Tribunal.
Pelo princípio interpretativo da força normativa da Constituição, catalogado por Konrad Hesse, a resposta há de ser necessariamente positiva, porquanto, dentre as várias soluções possíveis de um caso concreto, deve o intérprete adotar aquela que densifique as normas constitucionais, tornando-as eficazes (maior eficácia possível: ótima concretização das normas). Nesta senda, a modulação temporal de decisão que altera a orientação sedimentada na Corte decorre do próprio princípio constitucional da segurança jurídica, não se exigindo autorização infraconstitucional para tanto. Como bem ponderou o Ministro Carlos Britto (STF, CC 7204/MG, DJU 09.12.2005), o STF pode e deve, em homenagem à segurança jurídica, outorgar “eficácia prospectiva às suas decisões, com a delimitação precisa dos respectivos efeitos, toda vez que proceder a revisões de jurisprudência definidora de competência ex ratione materiae.” E continua: “O escopo é preservar os jurisdicionados de alterações jurisprudenciais que ocorram sem mudança formal do Magno Texto”.
Vale dizer: condicionar a comentada modulação de efeitos à existência de prévia autorização por lei ordinária representaria uma gravíssima subversão do sistema do Direito Positivo, em seu escalonamento hierárquico, eis que se estaria a permitir que lei menor ditasse a interpretação da Lei Maior, o que, evidentemente, representaria insuportável maltrato ao princípio da força normativa da Constituição.
A modulação dos efeitos temporais da decisão que altera a jurisprudência consolidada da Corte também é um consectário dos prefalados princípios interpretativos da unidade da Constituição e da concordância prática ou harmonização.
Na solução de um caso concreto, o prestígio e a proteção que o Tribunal concede a uma determinada norma constitucional, seja expressa em princípio, seja em regra, não pode representar o afastamento por completo de outras normas igualmente supremas. A Constituição, como sistema, deve ser interpretada de forma a se evitar contradições entre seus preceitos. A modulação de decisão da Corte que promove virada jurisprudencial é uma necessidade de se harmonizar a solução do caso concreto com o princípio da segurança jurídica e seus subprodutos (confiança legítima, estabilidade das relações jurídicas e boa-fé fundada em precedente jurisprudencial), conforme a seguinte preleção de Barroso (extraída do parecer outrora mencionado):
“Vale registrar, apenas por excesso de zelo, que a inaplicabilidade do dispositivo não impede a utilização da técnica da modulação temporal dos efeitos da decisão. Como se sabe, e bem expressa o dispositivo legal, a modulação, no mais das vezes, é o resultado da incidência do princípio constitucional da segurança jurídica e seus subprincípios a um determinado caso concreto. Em outras palavras, ela é decorrência de um juízo de ponderação em que prevalecem os valores constitucionais da estabilidade das relações jurídicas, da confiança legítima e da boa-fé dos indivíduos sobre uma determinada violação constitucional. Assim, na realidade, a modulação independe de autorização legal, decorrendo diretamente das normas constitucionais que preservam a segurança jurídica. Tanto é assim que o Supremo Tribunal Federal já aplicava a técnica antes mesmo da edição da Lei nº 9.868/99. Assim se passou, por exemplo, no caso de magistrados que haviam recebido, de boa fé, vantagem pecuniária declarada inconstitucional: a remuneração foi interrompida, mas não foram eles obrigados a devolvê-la (STF, DJU 8.abr.1994, RE 122202/MG, Rel. Min. Francisco Rezek). Ou no da penhora realizada por oficial de justiça cuja lei de investidura foi considerada inconstitucional, sem que o ato praticado na condição de funcionário de fato fosse invalidado (STF, DJU 04.nov.1974, RE 78594/SP, Rel. Min. Bilac Pinto). De igual sorte, o Superior Tribunal de Justiça entende que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei não desfaz, automaticamente, as decisões proferidas em casos individuais e já transitadas em julgado” (STJ, DJU 30.nov.1998, REsp 140947/RS, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros; STJ, DJU 18.jun.2001, AR 1365/SC, Rel. Min. J. Arnaldo).
De mais a mais, considerando que a modulação dos efeitos temporais da decisão que altera jurisprudência constitucional consolidada visa promover a segurança jurídica, não pode tal técnica, em si, ser algo inseguro e fora de qualquer controle e previsibilidade, sob pena de se estabelecer um paradoxo intransponível. Assim, os demais princípios de interpretação constitucional cumprem o papel de vetores da modulação.
Já se comentou alhures que o princípio da exatidão funcional, de acordo com Hesse, difunde que se o texto constitucional “ordena a respectiva tarefa e a colaboração dos titulares das funções estatais em uma determinada forma, então o órgão interpretador tem que se manter no quadro das funções a ele atribuídas” (HESSE, 1991, p. 67). Reitera-se que o interprete não pode alterar ou remover a distribuição das funções, seja pela maneira, seja pelo resultado.
Aplicando-se o referido princípio ao tema em análise, é possível concluir ser cabível a modulação dos efeitos temporais apenas se a hipótese de virada jurisprudencial, em matéria constitucional, se der quando o Supremo Tribunal Federal tomar posição diversa daquela que ele próprio anteriormente adotou e pacificou como guardião-mor da Lei Maior. Ora, dispõe o artigo 102 da Constituição da República que “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”. Assim, pelo princípio interpretativo da exatidão funcional, a despeito das vozes em contrário (Barroso, 2008), não se afigura possível a comentada modulação temporal quando o Supremo Tribunal Federal derruba jurisprudência, em matéria constitucional, consolidada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, como ocorreu no julgamento da revogação da isenção da COFINS às sociedades prestadoras de serviços profissionais (Enunciado de Súmula nº 276 do STJ, infirmado por decisão do Pleno do STF, proferida nos RE´s 377.457/Pr e 381.964/MG, em sessão havida em 17.09.08).
Como o enunciado do artigo 102, caput, atribui ao Supremo Tribunal Federal a tarefa de dizer, em última instância, sobre matéria constitucional, não há que se falar em quebra do princípio da confiança e da boa-fé do jurisdicionado quando o Supremo realiza uma manifestação primeira sobre o tema, colidindo com a posição interpretativa consolidada noutra Corte, como ocorreu na situação descrita no parágrafo precedente. A segurança jurídica, em matéria jurisprudencial constitucional, concretiza-se pela manifestação do órgão judicante máximo, de modo que os entendimentos prévios de outras Cortes, em tema magno, são possuem tal virtude.
Finalmente, de acordo com princípio interpretativo do efeito integrador, na resolução dos problemas jurídico-constitucionais, como já exposto neste trabalho, deve-se dar prioridade às interpretações ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social, e possibilitem o reforço da unidade política, porquanto essas são as finalidades precípuas da Constituição.
Como consectário do aludido princípio do efeito integrador, não se pode admitir que a técnica de atribuição de eficácia prospectiva seja aplicada no controle concreto de constitucionalidade (nos processos de natureza subjetiva), para favorecer apenas a parte do processo. No confronto entre normas constitucionais, a interpretação deve levar a soluções pluralisticamente integradoras, em obediência ao princípio da isonomia, evitando-se a criação de grupos de privilegiados, em desfavor da unidade política.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A interpretação, realizada com base na análise do problema (normativamente dirigido e limitado) culminado com a pré-compreensão, terá resultados mais sólidos, fundamentáveis e controláveis, com a característica de ser exata. Essa exatidão, resultante do procedimento de concretização das normas constitucionais, não se identifica com a exatidão das ciências naturais, mas sim uma coerência de acordo com a natureza jurídica, isto é, trata-se de uma exatidão relativa “que reconhece a limitação de sua pretensão, que, porém, nessa limitação pode se tornar razoável, convincente, e pelo menos até certo grau, previsível” (HESSE, 1991, p. 69), passando a ser dotada (ao menor em parte) de honradez e certeza jurídica.
Como desfecho, é importante ressaltar que, nos dizeres de Barroso, (2009, p. 287), a interpretação constitucional “configura uma atividade concretizadora – uma interação entre o sistema, o intérprete e o problema – e construtiva porque envolve atribuição de significados aos textos constitucionais que ultrapassam a sua dicção (frase, elocução) expressa”.
A modulação dos efeitos temporais da decisão do Supremo Tribunal Federal que promove virada jurisprudencial situa-se no plano da atualização e modificação da Lei Maior sem alteração de texto (mutação constitucional), a saber, no plano interpretativo da significação, e decorre diretamente dos princípios da unidade da Constituição e da harmonização da solução concreta ao princípio da segurança jurídica (e seus subprodutos: estabilidade das relações jurídicas, confiança e boa-fé). Por não se situar no terreno das modificações do suporte físico, dita modulação não se pauta pelo princípio da irretroatividade das leis, malgrado doutas vozes em contrário.
Assim como há, na própria Constituição, limites bem precisos para a modificação do suporte físico constitucional (o texto), plasmados no processo legislativo mais dificultoso em relação aos demais veículos primários, nas cláusulas pétreas e nas limitações circunstanciais (momentos de síncopes), também há que se buscar, na própria Lei Maior e em decorrência do princípio da sua força normativa, os limites interpretativos de modificação da significação. Pelas considerações expostas neste artigo, é possível concluir que esse papel limitador é desempenhado pelos princípios da interpretação constitucional catalogados por Hesse.
A atribuição de efeitos prospectivos a uma decisão do STF que altera jurisprudência consolidada visa garantir a segurança jurídica e não pode, obviamente, promover ainda maior insegurança. Comentada técnica deve encontrar nos princípios de interpretação constitucional (unidade da Constituição, harmonização, exatidão funcional, efeito integrador e força normativa) os limites para que a atuação da Corte seja, nos dizeres de Hesse, “controlável’ e “previsível”, sob pena de maximizar justamente a instabilidade jurídica que a aludida técnica almeja minimizar.
Mestrando em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Professor de Direito Tributário da Universidade Norte do Paraná (Unopar). Procurador da Fazenda Nacional.
Mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de Londrina. Advogada
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