Resumo: O ordenamento jurídico deve ser analisado em conformidade com todo o sistema normativo e garantias constitucionais. A lei 6.766/79, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, deve ser aplicada tendo em vista os princípios da dignidade da pessoa humana e da moradia para garantir a qualidade de vida da população. O município é o principal ente federativo responsável pela aplicabilidade da lei 6.766/79, de acordo com as necessidades de seus cidadãos.
Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana; Direito à moradia; Garantias constitucionais.
Abstract: The legal system must be analyzed in accordance with all regulatory system and constitutional guarantees. The law 6.766/79, which provides for the subdivision of urban land, must be applied in light of the principles of human dignity and housing to ensure quality of life. The municipality is the primary federal entity responsible for the applicability of the law 6.766/79, according to the needs of its citizens.
Keywords: Human dignity; Housing rights; Constitutional guarantees.
Sumário: Introdução. 1. Da função social da propriedade. 2. Da possibilidade do registro do imóvel 3. Do interesse social do Município. Referências
INTRODUÇÃO
Em 1.979 foi editada a lei 6.766 que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano no território brasileiro, isto é, como devem ser divididos os imóveis existentes em áreas urbanas.
Todavia, a maioria dos municípios brasileiros é anterior a esse dispositivo legal. Por consequência, esses entes federativos possuem em seus cartórios de registros de imóveis propriedades urbanas com área inferior à permitida por Lei. Se a referida Lei fosse analisada sem maiores interpretações, as propriedades deveriam perder suas matrículas no órgão competente. Instalar-se-ia um conflito de interesses entre o poder do Estado, ao limitar o direito de propriedade, e os direitos e garantias dados às pessoas pela Lei Maior do país.
Certamente existe uma miríade de ações nos tribunais do Brasil referentes à esse conflito de direitos. Em algumas comarcas ainda há uma grande dificuldade, por parte dos proprietários de imóveis, nas condições descritas, em legalizar a situação de suas propriedades frente ao Poder Público. Por este motivo, a matéria em tela deve ser analisada pelos tribunais superiores no sentido de haver uma uniformização de jurisprudência em todo país. Assim seria alcançada a segurança jurídica sobre o assunto em questão.
O direito de propriedade é protegido constitucionalmente, conforme artigo 5º, XXII da Constituição Federal e deve ser garantido pelo Estado, visando à melhoria da qualidade de vida de seus nacionais.
Inicialmente deve ser feita a leitura do artigo 4º, II, da lei 6.766:
“Art. 4º. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos:
II – os lotes terão área mínima de 125m² (cento e vinte e cinco metros quadrados) e frente mínima de 5 (cinco) metros, salvo quando o loteamento se destinar a urbanização específica ou edificação de conjuntos habitacionais de interesse social, previamente aprovados pelos órgãos públicos competentes;”(grifo nosso)
O inciso II do artigo 4 da lei 6.766/79, ao estabelecer área mínima para lotes urbanos, exprime hipóteses de exceção. Desta forma, poderá ser autorizado a existência de lotes com área inferior a 125m2 ou frente menor que 5 metros quando houver o expresso interesse social de órgão público. Sendo que a competência para a criação desses imóveis é dada ao município por força do art. 182 CF/88 e demais princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, da moradia e o direito de propriedade. Assim como a necessidade de se cumprir a função social da propriedade que garante ao ser humano o mínimo existencial e melhor qualidade de vida.
Salienta-se que todo ordenamento jurídico deve ser balizado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, a qual tem posição de destaque na Constituição Federal como fundamento da República Federativa do Brasil enquanto Estado Democrático de Direito.
Pode se definir que a dignidade da pessoa humana é princípio central do sistema jurídico. Sendo significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente no Brasil (NERY JÚNIOR e NERY, 2009).
Com esse objetivo, havendo a necessidade, o município poderá criar normas para disciplinar a prerrogativa que lhe fora atribuída através da Constituição Federal e lei 6.766/79 em seu art. 4º, II.
Trata-se da prerrogativa do município para regulamentar o art. 4º, II da lei federal 6.766/79, com intuito de atender ao interesse social, permitindo o desdobro de lotes com áreas inferiores a 125m2.
Nota-se que a lei 6.766/79 previu a existência de regulamentação do referido dispositivo normativo por órgão competente visando ao interesse social. Ainda, com o fito de dar maior legitimidade ao interesse social, o município poderá buscar a criação das áreas de interesse social que visem à melhoria da qualidade de vida de seus habitantes carentes, e editar leis municipais instituindo as Zonas Especiais de Interesse Social.
Tais exceções previstas em lei municipal relacionam-se ao eventual interesse público envolvido na questão.
Deve ser observado o art. 4º da lei 10.257 de 10 de junho de 2001(Estatuto da Cidade):
“Art. 4o Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:
I – planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;
II – planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões;
III – planejamento municipal, em especial:
a) plano diretor;
b) disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo;
c) zoneamento ambiental;
d) plano plurianual;
e) diretrizes orçamentárias e orçamento anual;
f) gestão orçamentária participativa;
g) planos, programas e projetos setoriais;
h) planos de desenvolvimento econômico e social;
IV – institutos tributários e financeiros:
a) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana – IPTU;
b) contribuição de melhoria;
c) incentivos e benefícios fiscais e financeiros;”
Através deste dispositivo legal nota-se que o Município possui autonomia para realizar o parcelamento do solo urbano, visando ao desenvolvimento econômico e social do Município e, por consequência, criar hipóteses permissivas para o desdobro de imóveis por interesse social e seu respectivo registro no Cartório de registro de Imóveis.
1 Da função social da propriedade
Deve-se destacar que o direito de propriedade é garantido pelo art. 5º, XXII da Constituição Federal. Sendo que ela deve cumprir sua função social, conforme artigo 170, III da Lei Maior como pode ser apreciado:
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…)
III – função social da propriedade;”
A propriedade urbana cumpre a sua função social quando está em conformidade com os princípios constitucionais e assegura o respeito aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da moradia.
Neste sentido, pode-se observar o artigo 182 da Constituição Federal:
“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei,tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.” (grifo nosso)
2 Da possibilidade do registro do imóvel
Ocorre que imóveis com área inferior à descrita são impedidos de serem registrados nos cartórios de registros de imóveis, sob o argumento de não cumprirem o disposto na lei 6.766/79. Todavia, se o poder público confere a esses imóveis o devido interesse social, deveria ser possível o seu registro. Neste prisma, o poder público teria que dar margem de segurança para que os oficiais de cartórios de registros de imóveis realizassem os registros sem o receio de estar descumprindo a lei.
O art. 4º, II, da lei 6.766/79 não deve ser interpretado de forma absoluta, necessitando ser analisado conforme a situação, e os demais preceitos normativos. Em consonância, observa-se o entendimento do Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
“Ementa: A exigência constante do art. 4º, II da Lei nº. 6.766/79 deve ser entendida com reservas, não de forma absoluta quando tratar-se de situação de fato já consolidada, pena de se estar ofendendo a outros institutos jurídicos legalmente tutelados.” (TJMG. Proc n. 0023475-79.2010.8.13.0621 Relator: des.(a) Edivaldo George dos Santos. DJ:21/09/2011)
Ainda conforme o acórdão:
“Note-se, ademais, que nem mesmo na usucapião, que é forma originária de aquisição de propriedade, exige-se a observância desta metragem mínima, donde se ver que o apelante, com muito mais razão, não deve ser privado de seus direitos em razão do previsto na Lei nº. 6.766/79, cujo conteúdo e exigências, como já dito, não devem ser consideradas absolutas em se tratando de situações já consolidadas, como no caso.” (TJMG. Proc n. 0023475-79.2010.8.13.0621 Relator: des.(a) Edivaldo George dos Santos. DJ:21/09/2011)
Diante deste raciocínio deve ser demonstrado, assim como no exemplo em questão, alguns julgados acerca do usucapião de áreas inferiores à 125m2
“USUCAPIÃO ESPECIAL URBANO – ÁREA INFERIOR À MÍNIMA PARA O FRACIONAMENTO DO SOLO – OBSTÁCULO À PRESCRIÇÃO AQUISITIVA – INOCORRÊNCIA. O pleito de usucapião não pode ser obstado pelo fato de a área usucapienda ser inferior à metragem mínima definida por normas reguladoras do fracionamento do solo.” (TJMG. Proc n. 1.0433.08.252349-2/001(1) Relator: des.(a) Saldanha da Fonseca. DJ:03/06/2009)
Neste sentido:
“APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE USUCAPIÃO – INDEFERIMENTO DA INICIAL – ÁREA INFERIOR À MÍNIMA PARA O FRACIONAMENTO DO SOLO – OBSTÁCULO À PRESCRIÇÃO AQUISITIVA – INOCORRÊNCIA – PEDIDO JURIDICAMENTE POSSÍVEL. É juridicamente possível o pedido de usucapião especial urbano de imóvel com área inferior àquela definida como mínima para o fracionamento do solo.” (TJMG. Proc n. 1.0433.08.252361-7/001(1) Relator: des.(a) Tarcisio Martins Costa. DJ:19/01/2010)
Neste prisma deve ser observado que não haverá prejuízo ao poder público e à coletividade na possibilidade do registro de imóveis com áreas inferiores à descrita no artigo 4 de lei 6.766/79. Não seria idealizada a essência da Justiça ao cercear o direito de propriedade e outros direitos fundamentais à uma pessoa que apenas solicita viver com dignidade.
3 Do interesse social do Município
É importante salientar que existe no Brasil grande quantidade de municípios que possuem uma miríade de imóveis em situação de interesse social e fundados em data anterior da publicação da lei 6.766/79. E a população desses municípios vive em condições de fragilidade social. Não há possibilidade de suscitar possíveis inconstitucionalidades acerca de leis municipais que versam sobre o assunto em tela. Há de ser destacado o art. 182 caput da Constituição Federal de 1.988, que explica sobre a política de desenvolvimento urbano. Disciplinando que a tal política, quando executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, terá por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade e garantir o bem estar de seus habitantes. Desta forma, não pode uma lei municipal que segue as diretrizes constitucionais do principio da dignidade da pessoa humana e da moradia ser considerada ilegal ou inconstitucional.
O egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais recentemente analisou situação semelhante: o apelante desejava reformar a decisão do juiz de primeira instância, a qual negou-lhe a possibilidade de registrar a aquisição de domínio junto ao CRI de um imóvel, cuja área corresponde a 65,70m². Na ocasião, o oficial do cartório recusou-se proceder ao registro sob o argumento de cumprir determinação da corregedoria Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais. Conforme parecer do órgão corregedor, ao tratar-se de imóvel com área inferior ao módulo previsto na lei 6.766/79, o poder judiciário deveria ser provocado para analisar-se o caso concreto.
As razões do apelante tiveram como argumentos a legislação apresentada neste estudo. Ainda foi ressaltado o fato de haver lei específica editada pelo município onde se localiza o imóvel do apelante, a qual autoriza o registro do imóvel por estar inserido em um espaço físico considerado zona especial de interesse social. Isto é, local que o poder público municipal protegeu mediante lei orgânica, com objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes. Conforme estudado, o município pode editar lei municipais neste sentido e integrar o disposto no art. 4º da lei 6.766/79 nas diretrizes constitucionais. Observe o referido acórdão:
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AUTORIZAÇÃO JUDICIAL – VENDA DE IMÓVEL – REGISTRO IMÓVEL – ÁREA – EXIGÊNCIA – ART. 4º, II, DA LEI Nº 6.766/79 – PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA MORADIA – POSSIBILIDADE.
– Nos termos do art. 4º, II, da Lei nº 6.766/79, os lotes deverão ter área mínima de 125m² (cento e vinte e cinco metros quadrados) e frente mínima de 5 (cinco) metros, salvo quando o loteamento se destinar a urbanização específica ou edificação de conjuntos habitacionais de interesse social, previamente aprovados pelos órgãos públicos competentes.
– Os requisitos constantes no artigo 4º da Lei nº 6.766/79, devem ser interpretados em consonância com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da moradia”. (TJMG. Proc n. 1.0016.11.009697-7/001 Relator: des.(a) Dárcio Lopardi Mendes. DJ:29/10/2012)
Foi dado provimento ao pedido do apelante, sendo possível o registro do imóvel que possuía área de 65,70m², mas estava protegido pelo ordenamento jurídico, tendo em vista a proteção da dignidade da pessoa humana e da moradia. A axiologia jurídica ensina que a lei deve ser interpretada conforme o sistema legislativo como um todo, e de acordo com a realidade e necessidade atuais.
Bacharel em Direito
Advogada
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