Clara Luanna Bastos Oliveira¹, Júlio Cesar Boa Sorte Leão Gama²
Resumo: O artigo intenta promover uma reflexão jurídico-penal acerca da excludente de tipicidade ou ilicitude capitulada no art. 146, parágrafo 3º, I do Código Penal à luz do instituto do consentimento genuíno, analisando uma possível restrição estatal ao direito à liberdade ao viabilizar a realização de procedimentos médicos e/ou cirúrgicos arbitrários, ou seja, à revelia do consentimento do paciente em casos de iminente perigo de vida. Para tanto, fora realizada pesquisa bibliográfica e análise documental durante os períodos letivos de 2020. O trabalho inicialmente abordará os aspectos jurídicos da norma penal, passando-se posteriormente as considerações acerca do bem jurídico tutelado, qual seja, a liberdade, seguindo-se ao estudo do instituto do consentimento genuíno e, por fim, as implicações da norma na hipótese da recusa a tratamentos médicos.
Palavras-chave: Consentimento genuíno. Constrangimento ilegal. Liberdade.
Abstract: The article intends to promote a legal-penal reflection about the exclusion of typicality or illegality capitulated in art. 146, §3, I of the Penal Code in the light of the institute of genuine consent, analyzing a possible state restriction on the right to freedom by making arbitrary medical and / or surgical procedures feasible, that is, in spite of the patient’s consent in cases of imminent danger to life. To this end, bibliographic research and documentary analysis were carried out during the 2020 academic periods. The work will initially address the legal aspects of the penal rule, then passing on the considerations about the protected legal good, namely freedom, following the study of the genuine consent institute and, finally, the implications of the rule in the hypothesis refusing medical treatment.
Keywords: Freedom. Genuine consent. Illegal constraint.
Sumário: Introdução. 1. Materiais e métodos. 2. Constrangimento ilegal e as intervenções médicas e cirúrgicas justificadas por iminente perigo de vida. 2.1 Aspectos jurídicos. 2.2 Do bem jurídico tutelado: a liberdade. 2.3 Da manifestação de vontade ao consentimento genuíno: mudança de paradigmas na relação médico-paciente. 2.4 As implicações da norma em casos de recusa de transfusão de sangue por pacientes testemunhas de jeová. Considerações finais. Referências.
Introdução
O direito à vida e a dignidade da pessoa humana encontram-se no rol daqueles tidos como fundamentais, bens aos quais o Estado delega especial atenção, objetivando tutelá-los e viabilizá-los da maneira mais ampla possível. Alguns doutrinadores entendem, inclusive, que o direito à vida deve ser objeto de proteção incondicional (BULOS, 2014), uma vez que imprescindível para o exercício de qualquer outro direito.
Nesse sentido, impende consignar o entendimento de que o direito à vida não se restringe ao direito de estar vivo, compreendendo ainda a busca da felicidade e a viver com dignidade. Assim, verifica-se que o alcance desse ideal de qualidade de vida – conceito aberto e que comporta uma ressignificação individualizada, a partir do que cada um compreende como sendo uma vida digna e feliz – depende do exercício do direito à liberdade, o qual além de constante do caput do art. 5º da Carta Magna, é tutelado por outras leis federais, dentre elas, o Código Penal.
E é no fito de salvaguardar e garantir esse último, que o Código Penal dedica especial capítulo aos “Crimes contra a Liberdade Individual”, no qual está inserida a seção “Dos Crimes Contra a Liberdade Pessoal”, que tem por primeiro tipo penal o Constrangimento Ilegal[1].
No entanto, o que chama atenção no referido dispositivo é a causa excludente de tipicidade ou antijuridicidade contida no inciso I, segundo a qual, será possível a intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente ou seu representante quando houver iminente perigo de vida. Fazendo uma análise superficial do inciso I, § 3º do art. 146, o leitor desatento pode considerar que inexistem maiores problemas acerca do dispositivo, pois a atuação médica estaria justificada pela situação de risco a vida do paciente.
Ocorre que a partir da amplitude conferida a redação do exceto legislativo, não se sabe se por mal uso da técnica legislativa, ou por uma intrínseca concepção paternalista, mesmo quando o paciente se recusar expressamente a ser submetido a procedimento médico, havendo contra ele iminente perigo de vida, permite-se a atuação médica à revelia da sua vontade, sem poder ser imputado ao profissional tal tipo penal. Como se não bastasse, o tipo penal pode criar, concomitantemente, uma obrigação de atuação médica nessas hipóteses, sob pena do profissional médico incorrer em outro crime, o da omissão de socorro[2].
Assim, o presente artigo científico tecerá algumas considerações relativas ao aspecto jurídico do constrangimento ilegal ressaltando, precisamente, a excludente de tipicidade ou ilicitude constante do inciso I do § 3º do art. 146. Em seguida, será feita uma abordagem sobre as conjecturas doutrinárias do consentimento informado como expressão da autonomia da vontade na relação médico-paciente e os seus reflexos no tipo penal. Por fim, será analisada as implicações da norma penal na hipótese de aplicação aos casos de recusa de transfusão de sangue por pacientes Testemunhas de Jeová.
Para a confecção da presente pesquisa foram utilizadas técnicas de investigação teórica, em que o pesquisador tem contato mediato com a realidade estudada, sendo a primeira delas a técnica normativa a fim de que se compreendesse as implicações da norma jurídica em exame, acompanhada de comentários doutrinários. Depois, pela necessidade de esclarecimento de conceitos, dentre os quais “autonomia”, “consentimento esclarecido”, além de outros, utilizou-se a técnica conceitual, para a elucidação dessas terminologias (BITTAR, 2016). Eduardo Bittar afirma que esse método objetiva delimitar, apenas no nível conceitual, o tratamento do objeto de estudo.
Então, fez-se uso do procedimento de pesquisa bibliográfica, mediante livros, revistas e artigos científicos, cuja qualificação na Plataforma Qualis varia de C a A1, sendo empregadas nas pesquisas as palavras-chave: constrangimento ilegal, autonomia, consentimento informado/esclarecido e direito penal médico. Também foi utilizada técnica de pesquisa documental, ou procedimento documental, recorrendo-se a diversas fontes de conteúdo, principalmente a legislação, a fim de que fosse possível ampliar as diversas visões sobre o tema.
Ademais, fez-se uso do método hipotético-dedutivo, a partir da construção de premissas buscando-se a sua veracidade por meio da verificação das hipóteses para a construção do trabalho. Utilizou-se, também, uma abordagem qualitativa, buscando a compreensão do objeto de estudo com objetivo descritivo, se tratando de pesquisa básica, cuja pretensão é a aquisição de novos conhecimentos a respeito do tema analisado (MATIAS-PEREIRA, 2019).
2. Constrangimento ilegal e as intervenções médicas e cirúrgicas justificadas por iminente perigo de vida
2.1 Aspectos jurídicos
O constrangimento ilegal é o tipo penal capitulado no art. 146 do Código Penal que criminaliza a conduta de obrigar alguém a fazer o que a lei não manda, ou a não fazer o que ela permite, mediante o emprego de violência ou grave ameaça, ou outro meio que possua o condão de reduzir a capacidade de resistência da vítima. Note-se, de plano, que o crime está intimamente relacionado com a violação da concepção da liberdade civil, conceito insculpido no art. 5º, inciso II da Carta Magna[3], que se consubstancia na faculdade do indivíduo de fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, bem como de abster-se a fazer aquilo que é proibido em lei, sob pena de sofrer as possíveis sanções cominadas ao ato.
Assim, o bem jurídico cujo crime de “Constrangimento Ilegal” objetiva tutelar é a liberdade, ou ainda, a capacidade do indivíduo de autodeterminação, motivo pelo qual lhe é atribuído o título de crime contra a liberdade pessoal[4]. Nesse sentido, cabe pontuar o entendimento majoritário da doutrina penalista brasileira de que, além da possibilidade de consumação do delito mediante a imposição de uma conduta a outrem, ou pela abstenção de algo que seria obrigado por lei a fazer, têm-se que obrigar alguém a tolerar que se faça algo contra si, à revelia da sua vontade, também configura o delito de “Constrangimento Ilegal”, logo, conduta atentatória ao direito à liberdade pessoal e a autodeterminação (ESTEFAM, 2019).
No entanto, no mesmo art. 146, § 3º, I, está consignado que as intervenções médicas ou cirúrgicas, sem o consentimento do paciente ou seu representante, quando justificadas por iminente perigo de vida, não configurarão o crime de constrangimento ilegal e, portanto, não seriam uma violação a liberdade pessoal do paciente, sendo classificada ora como excludente de tipicidade, ora como excludente de ilicitude, dependendo de qual corrente doutrinária se filie.
Note-se que a redação legal, segundo a doutrina, refere-se à atuação médica em paciente no gozo da sua capacidade de manifestação do consentimento, isso porque se o paciente estivesse desacordado, por exemplo, a intervenção estaria justificada por se tratar de estado de necessidade de terceiro, sendo desnecessária a excludente insculpida no inciso I do §3º do art. 146, do Código Penal (GONÇALVES, 2018).
Assim, partindo-se de uma análise abstrata das intervenções médicas e cirúrgicas, para entender de que maneira potencialmente se amoldariam ao delito de constrangimento ilegal, de modo a justificar a criação de uma norma que afaste a possibilidade de uma responsabilização penal em razão da realização de uma dessas condutas, primeiro se deve atentar para o verbo núcleo do tipo, qual seja, “constranger”.
Nesse sentido, o verbo constranger refere-se a conduta capaz de tolher a liberdade do indivíduo que, na hipótese, seria o paciente (GONÇALVES, 2018). Desse modo, pode ocorrer quando o ofendido (paciente) é obrigado a tolerar intervenções na sua esfera física contra a sua vontade, ao que se dá o nome de intervenção médica arbitrária. Entretanto, não basta constranger. Para que se configure o delito de constrangimento ilegal é necessário o emprego de violência, grave ameaça ou outro meio que reduza a capacidade de resistência do ofendido.
Em relação as intervenções de natureza médica ou cirúrgica, não há que se falar, a princípio, no emprego de violência ou grave ameaça. No entanto, como mencionado, a locução do artigo penal pontua a possibilidade do constrangimento ser concretizado por qualquer outro meio que possa reduzir a capacidade de resistência da vítima. Observe-se que a situação de estar em iminente perigo de vida parece indicar, por si, uma provável redução da capacidade de resistência do paciente. Ademais, é fácil vislumbrar que a utilização de alguns métodos, dentre os quais o induzimento ao coma, poderiam ser empregados nesse fito.
Consigne-se, ainda, que para figurar enquanto sujeito passivo do delito, a pessoa constrangida deve dispor da capacidade de autodeterminação, ou seja, doentes mentais ou crianças de tenra idade não poderiam, de início, ser vítimas do crime de constrangimento ilegal (GONÇALVES, 2018). Portanto, a excludente cuida de tutelar a intervenção médica arbitrária em pessoa que possuindo capacidade de consentir não a exerceu. Veja-se, aqui, que a capacidade para consentir deve contemplar quatro elementos: o discernimento; o conhecimento pleno acerca das circunstâncias do fato; a vontade livre, ou seja, sem coação; e, por fim, versar sobre bem jurídico individual e disponível (MARTINELLI, 2018).
Contudo, em uma situação que mesmo diante do emprego de algum dos métodos que reduza a capacidade de resistência do paciente, somada a sua recusa ao tratamento ou intervenção médica ou cirúrgica, estando o paciente em pleno gozo da sua capacidade civil e, mais precisamente, de consentir, todavia, se encontrando sob iminente perigo de vida, têm-se que o paciente poderá ser forçado a submeter-se a tratamento pelo médico que lhe assiste, sem que essa conduta — que, em tese, corresponderia aquela discriminada no tipo do constrangimento ilegal — chegue a ser considerada típica, ou, se considerada típica, não seja antijurídica, em razão da excludente contida no inciso I, do §3º do art. 146 do Código Penal.
Tal excludente denota, portanto, uma ponderação de valores/direitos feita pelo próprio legislador quando da criação da norma penal, isso porque a proteção do direito à vida intentada pelo profissional da saúde, em detrimento do direito à liberdade pessoal do paciente de hierarquizar valores, salvaguarda o médico contra possível imputação do tipo penal. Logo, seguindo estritamente o texto legal, pouco importa a vontade do paciente, desde que a intervenção realizada se dê em razão de iminente perigo a sua vida, ou seja, que tenha por objetivo garantir o seu direito a vida, não será possível imputar ao médico que realizou a intervenção o delito de constrangimento ilegal.
Dessarte, aponta-se a existência de dois elementos a justificar a atuação médica ou a intervenção cirúrgica sem o consentimento do paciente. O primeiro deles é a “iminência”, ou seja, a existência de uma ameaça próxima, imediata, a vida do paciente, enquanto o outro refere-se ao perigo da “irreversibilidade” do dano, ou seja, que a não intervenção médica ou cirúrgica poderia acarretar um dano irremediável, qual seja, a perda da vida do paciente (PEREIRA, 2004).
Por outro lado, essa excludente de tipicidade ou ilicitude, também, pode inviabilizar a atuação do médico que busque respeitar a autonomia dos pacientes que se recusam a se submeter as intervenções médicas ou cirúrgicas em situação de iminente perigo de vida, uma vez que a excludente, considerando-se a hipótese de filiação a corrente que a compreende como de antijuridicidade da espécie estrito cumprimento de dever legal, cria uma obrigação de atuação para o médico, motivo pelo qual, inclusive, a sua abstenção ou inobservância poderia ensejar a imputação de outro tipo penal, como o da omissão de socorro.
2.2 Do bem jurídico tutelado: a liberdade
Como outrora assinalado, tem-se que o bem jurídico ao qual se busca tutelar no tipo penal do Constrangimento Ilegal (art. 146 do Código Penal) é a liberdade individual. Entretanto, o inciso I desse mesmo dispositivo se contrapõe a esse intento, na medida em que impõe a atuação médica e cirúrgica, mesmo sem autorização do paciente ou seu representante, quando justificada por iminente perigo de vida. Criou-se, portanto, uma incoerência no bojo da norma penal pois se por um lado ela visa tutelar a liberdade individual, por outro ela inibe a capacidade de autodeterminação das pessoas sobre as quais pairem um iminente perigo de vida.
Para alguns, pode parecer que o iminente perigo de vida seja motivo suficiente para viabilizar a atuação médica ou cirúrgica prescindindo da autorização do paciente ou seu representante legal, no entanto, tal concepção não pode subsistir. Passar-se-á a explanação das razões. Primeiro, veja-se que na “Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal”, o legislador limitou-se tão somente a explicitar o que já está disposto no Diploma Penal, ou seja, a não criminalização do tratamento médico arbitrário, sem fundamentar o que ensejou a atipicidade da conduta ou tecer maiores comentários acerca da mitigação da liberdade individual daquele que recepciona as intervenções médicas.
Por conseguinte, o que se tem é a permissão da ingerência na esfera física de outrem sem que haja o seu consentimento para tanto, ou pior, ainda quando esse for contrário a intervenção médica ou cirúrgica, havendo contra ele iminente perigo de vida, a conduta recebe guarida institucional. Não obstante quaisquer sequelas ou consequências oriundas de tais procedimentos sejam suportadas exclusivamente pelo paciente, seguindo a locução desse exceto legal, não lhe é conferida a oportunidade de escolher submeter-se a esse risco, ou seja, de efetivar o seu direito fundamental a liberdade e a autodeterminação.
Veja-se, inclusive, que tal posicionamento afronta a lógica construída no sistema penal do ordenamento jurídico brasileiro, cujas normas não se ocupam de criminalizar condutas auto lesivas. Portanto, pela aparente ausência de fundamentação para inserção desse dispositivo, o que se vislumbra é o resquício de uma concepção paternalista que confere ao Estado o condão de definir e hierarquizar os valores de outrem. É o que se percebe, por exemplo, nos casos de transfusão de sangue cujos receptores são pacientes Testemunhas de Jeová, culminando em diversas ações para que essas pessoas tenham o seu direito à liberdade religiosa assistido.
Observa-se nesse particular uma grave insegurança jurídica pois, caberá tão somente ao operador do direito, notadamente, o magistrado, fazendo uso da técnica da ponderação de valores, decidir sobre a prevalência do direito à liberdade ou o direito à vida de outra pessoa. E, em decorrência disso, tem-se as mais diversas decisões, já que essas repousam na psique de juízes e membros de tribunais, ficando o paciente a mercê daquilo que esses compreendem como prioritário, o que pode, ou não, corresponder aos seus anseios.
Nesse ponto, as lições kantianas são precisas ao trazer o entendimento de que se tem por corretas as ações erigidas sob fundamentos que permitam a coexistência da liberdade individual com a liberdade de todos segundo uma lei universal, o imperativo categórico. Em suas palavras: “se minha ação, ou em geral meu estado, pode coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal, então age injustamente comigo aquele que me impede disso, pois este impedimento (…) não pode coexistir com a liberdade segundo leis universais.” (KANT, 2013).
Do mesmo modo, ensina Kant que a felicidade não pode ser concebida mediante generalização de experiencias por indução, visto que se trata de uma construção experiencial individualizada, particular. Como pode, portanto, o legislador limitar a liberdade individual de uma pessoa, retirando-lhe a faculdade de escolher a respeito de procedimentos cujas repercussões limitam-se a sua esfera física e refletem diretamente em sua perspectiva do que vem a ser uma vida digna e feliz, sob a escusa de proteger a sua sobrevivência? Ou ainda, quais serão os parâmetros utilizados pelos juízes para definir aquilo que corresponde ao entendimento de qualidade de vida de outra pessoa?
Portanto, parece pertinente que caso um paciente opte pela não realização da intervenção médica ou cirúrgica, ainda que essa preferência acarrete em prejuízo a sua vida, essa escolha deve prevalecer e ser respeitada, haja vista que apenas ele tem condições de definir aquilo que traz sentido para sua vida e agrega qualidade a sua existência, a partir de suas crenças e experiências. Outrossim, as consequências dessa escolha serão suportadas somente por ele, logo, não há reflexos na esfera da liberdade individual de outras pessoas de modo a justificar a intervenção estatal nessa decisão.
Ademais, saliente-se que o fato de estar sob iminente perigo de vida, por si só, não possui o condão de retirar a capacidade civil do paciente e, por conseguinte, o seu poder/direito de autodeterminação. Logo, carece de legitimidade a conduta do legislador que mitigou imotivadamente a liberdade individual das pessoas nessas circunstâncias, bem como do julgador quando da aplicação da norma penal[5].
Veja-se, por exemplo, que não há qualquer ingerência estatal quando pessoas optam pela realização de esportes radicais, ou ainda quando prestam serviços humanitários em zonas de guerra, ambas situações que comportam risco de vida aos envolvidos.
Assim, a excludente de tipicidade ou antijuridicidade contida no inciso I, § 3º do art. 146 do Código Penal não é congruente com o sistema do ordenamento jurídico pátrio que não apenas no diploma penal, como também na própria Constituição Federal, busca a proteção da liberdade individual e da capacidade de autodeterminação.
2.3 Da manifestação de vontade ao consentimento genuíno: mudança de paradigmas na relação médico-paciente
A concepção do que vem a ser “consentimento” sofreu diversas modificações semânticas, transformações essas que ilustram a evolução da própria medicina, inicialmente concebida como uma arte, vinculada ao sagrado, cuja cura, o êxito daquele que empreendia a medicina, estava intimamente associada a uma ideia de concessão divina para, apenas séculos mais tarde, lograr o título de ciência, na qual erros e prestígios repousam sobre o profissional médico (PEREIRA, 2004).
Enquanto arte médica[6], desprovida da tecnicidade e recursos do mundo contemporâneo, o consentimento do paciente consubstanciava-se em mera declaração da sua cooperação, sem implicar em uma conexão com a ideia do direito à liberdade, até mesmo porque tratava-se de direito incipiente no contexto social em comento, tendo em vista que a importância conferida a liberdade começou a ser reconhecida, tal qual se concebe atualmente, apenas a partir da revolução francesa. Consequentemente, a ideia de respeito ao enfermo não estava necessariamente vinculada ao reconhecimento da sua liberdade.
Tratava-se, portanto, de uma medicina orientada pela diretriz hipocrática da beneficência, em razão da qual privilegiava-se o direito médico de tratar, sendo o paciente apenas mero objeto de prática médica em detrimento da sua autonomia. Dessa forma, era possível a realização de procedimentos de natureza médica e cirúrgica à revelia da vontade do paciente. Esse cenário foi modificado tão somente após os horrores experienciados na Segunda Guerra Mundial, com as controversas experiências realizadas em seres humanos (PEREIRA, 2004).
Essa situação ensejou a inserção do consentimento do paciente como requisito de validade ética das experiências médicas no Código de Nuremberg[7], considerado o marco da superação dessa concepção paternalista. Inaugurou-se, assim, uma nova etapa na relação médico-paciente, na qual há a percepção do paciente como sujeito de direito, sendo o consentimento não apenas instrumento que confere validade a atuação médica, como também o mecanismo por meio do qual se concretiza a dignidade humana como autonomia.
Nesse sentido, é necessário pontuar que a dignidade como autonomia é o supedâneo para a efetivação dos direitos de primeira dimensão, aqueles que garantem a liberdade individual sem que haja desnecessária ou invasiva atuação estatal na vida privada dos indivíduos. Entretanto, para que a dignidade e a liberdade não figurem apenas como meros elementos ornamentais das peças jurídicas, é imprescindível a atuação do Estado, na medida em que esse se proclama democrático de direito e tem por objetivo institucional o bem estar social (BARROSO, 2010).
Inicialmente pode soar paradoxal, no entanto, deve-se compreender que não basta conferir aos indivíduos o direito à liberdade de escolha, autonomia, sem que lhes sejam ofertadas condições que o auxiliem nesse processo volitivo. Em outras palavras, no que concerne ao consentimento do paciente, não é suficiente lhe conceder a oportunidade de consentir ou não, o que é reflexo do seu direito à liberdade, deve-se, ainda, garantir que esse possua o necessário discernimento das implicações de suas escolhas.
Assim, fala-se em consentimento informado, por meio do qual o profissional médico que assiste o paciente deve, de maneira objetiva e com linguagem acessível, esclarecer o quadro clínico do indivíduo, prestar todas as informações acerca dos procedimentos ofertados e existentes, sejam eles de natureza médica ou cirúrgica, as possíveis consequências da sua realização e quaisquer outras informações que se fizerem necessárias, sobretudo quando possuem reflexos existenciais. Afinal, apenas dessa forma é viável que o paciente seja responsável por suas próprias escolhas respaldando, inclusive, a atuação médica.
É certo que o médico deve ter a cautela de inteirar o paciente apenas daquelas informações que possuam rigor técnico e científico. No entanto, importa observar que, com a mudança de paradigmas na relação médico-paciente, não houve a inversão de polaridades submetendo o médico as escolhas do paciente. Portanto, caso o paciente decida por um procedimento que não se coadune com as competências técnicas, ou até mesmo com as orientações bioéticas do profissional que o assiste, esse não está obrigado a realizá-la, devendo apenas assisti-lo enquanto houver a substituição de profissionais, por força das disposições contidas no Código de Ética Médica[8].
Porém, na hipótese de se tratar de paciente sobre o qual recaia iminente risco de morte, falar apenas em consentimento informado não é o bastante. É imperioso que haja um consentimento genuíno[9], em outros termos, que ele seja não apenas informado, mas também válido, inequívoco e livre. Como já esboçado, em relação ao requisito da informação, o paciente deve ter conhecimento da sua situação real, possíveis consequências, bem como, das possibilidades de tratamento. Em relação ao quesito de consentimento livre, entende-se que a decisão não pode ser fruto de coação, indução ou afim.
No que compete a validade, o consentimento deve provir de pessoa civilmente capaz e que essa esteja em condições adequadas de discernimento para prestá-lo. Por conseguinte, pessoas civilmente capazes que, por exemplo, estejam em estados psíquicos alterados ou sob o efeito de psicotrópicos não estariam aptas para tanto. Quanto a ser inequívoco, o que se sustenta é que o consentimento deve ser: (i) expresso, não sendo admissível a presunção; (ii) personalíssimo, inviabilizada a representação; (iii) atual, o que se compreende como imediatamente antes do procedimento; (iv) e, por fim, revogável (BARROSO, 2010).
Em vista disso, estando reunidos os elementos que constituem um consentimento genuíno, principalmente em decisões que repercutem em aspectos existenciais do indivíduo, não há legitimidade para atuação estatal mitigando a faculdade de autodeterminação no escopo de prestigiar uma percepção heterônoma e paternalista da dignidade e, por conseguinte, da liberdade. É o que se verifica nos casos da recusa de transfusão de sangue por pacientes Testemunhas de Jeová, que será especificamente abordado no tópico a seguir.
2.4 As implicações da norma em casos de recusa de transfusão de sangue por pacientes testemunhas de jeová
Tema que recorrentemente vem sido trazido aos tribunais brasileiros é o caso da recusa de transfusão de sangue por pacientes Testemunha de Jeová, seja pelo ajuizamento da ação pelos próprios médicos e hospitais que buscam judicialmente o suprimento da autorização para que seja efetivado o tratamento, ou ainda pelos próprios pacientes, visando resguardar o seu direito à liberdade religiosa. O que se percebe são as mais diversas decisões, pautadas em um juízo de ponderação de valores entre o direito à vida e a liberdade de crença.
Em razão disso, a Procuradora-Geral da República ajuizou a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 618), cujo fundamento trata-se da insegurança jurídica que vários atos normativos, dentre os quais notadamente o art. 146, § 3º, inciso I do Código Penal, geram para que haja uma isonômica prestação jurisdicional. Veja-se o porquê.
Caso a resposta jurídica se dê em observância ao disposto no referido dispositivo legal, o que se tem é a viabilização da ingerência na esfera física de outrem à revelia da sua vontade, escolhas ou convicções religiosas prevalecendo-se, portanto, a concepção da dignidade como heteronomia, ou seja, produto dos valores supostamente em voga na sociedade, que podem ser estranhos ao indivíduo. Assim, seria permitido a transfusão sanguínea compulsória no escopo de salvaguardar a vida do paciente, pois a recusa a transfusão pode ser compreendida por alguns como uma predisposição ao suicídio, ao que não assiste razão.
Em decorrência da sua convicção pessoal, Testemunhas de Jeová entendem que aceitar transfusão de sangue torna-os impuros e indignos do reino de Deus. Entretanto, não se opõem a realização de tratamentos alternativos. Apesar disso, não sendo possível a realização de tratamentos alternativos, preferem resignar-se a possibilidade de morte do que desviar-se de seus preceitos religiosos.
Em que pese prevaleça no Código Penal essa concepção aparentemente ultrapassada e paternalista, o que se percebe é que essa norma não se coaduna com o ordenamento jurídico brasileiro que, predominantemente, erige-se pela concepção da dignidade como autonomia, fruto da subjetividade pessoal de disposição do próprio querer de cada indivíduo. Não se trata, pois, de avaliar a pertinência dos dogmas que orientam essa religião, todavia, de permitir o regular exercício de direitos constitucionalmente garantidos, quais sejam, dignidade, liberdade de crença e autodeterminação.
É o que se observa em âmbito internacional, haja vista que a possibilidade de declínio ao tratamento mediante transfusão sanguínea já foi recepcionada pelo Código de Ética da Sociedade Internacional de Transfusão de Sangue adotado pela Organização Mundial de Saúde, bem como houve a sua incorporação ao ordenamento jurídico da Itália, Espanha, Estados Unidos e Canadá (BARROSO, 2010).
Portanto, atendidos os pressupostos para a realização de um consentimento genuíno, não deve o Estado — que inclusive é laico — interferir nessa escolha cuja repercussão é individual, sobretudo, por possuir reflexos existenciais, uma vez que a dignidade é um valor complexo que diz respeito não apenas a sobrevivência, mas também, a qualidade de vida, sendo esse conceito subjetivo e de construção pessoal, que não deve ser apenas considerado, como respeitado.
Considerações finais
Diante o exposto, entende-se que independente da corrente doutrinária a que se filie, seja considerando a excludente contida no art. 146, § 3º, I de tipicidade ou antijuridicidade, a atuação estatal no sentido de resguardar a intervenção médica ou cirúrgica arbitrária não é legítima, na medida em que denota a manutenção de um resquício paternalista de ingerência estatal na capacidade de autodeterminação dos indivíduos e, por conseguinte, na sua liberdade.
Pode-se verificar a relevância jurídica da discussão quando, por exemplo, se está diante dos casos de recusa a submissão a tratamentos médicos por transfusão de sangue por pacientes Testemunha de Jeová, isso porque a solução jurídica fornecida por esse exceto legislativo diverge não apenas de outras normas contidas no ordenamento jurídico pátrio[10], bem como das respostas fornecidas pela doutrina que se respaldam no conceito de consentimento genuíno.
Ademais, o consentimento genuíno trata-se de um instrumento que confere validade ética a intervenção médica ou cirúrgica, além de garantir a efetivação do direito a dignidade humana enquanto autonomia, ou seja, a liberdade individual de determinar o seu próprio querer e estabelecer um projeto de vida que se coadune a sua perspectiva de qualidade de vida.
Assim, confere-se a dignidade humana o status de um valor complexo, que não se limita a garantia da sobrevivência, compreendendo ainda a hierarquização individual de valores do que vem a consistir uma vida digna e feliz. Outrossim, o consentimento genuíno possui o condão de respaldar a atuação médica, uma vez que confere ao paciente as responsabilidades e consequências de suas escolhas.
Por fim, ressalta-se que não assiste razão para a intervenção estatal na relação médico-paciente nessas circunstâncias, sobretudo no fito de inviabilizar escolhas existenciais do paciente, haja vista que se trata de intervenção possivelmente indevida e injustificada, que não se verifica em outras circunstâncias em que há risco patente a vida, como a prática de esportes radicais de alto risco e prestação de serviços humanitários em zonas de guerra.
Referências
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¹Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário FG – UniIFG
²Mestre em Direito pelo Centro Universitário FG – UNIFG. Especialista em Direito Penal pela Faculdade Guanambi – FG. Graduado em Direito pela Faculdade Guanambi – FG. Professor de Direito Penal do Centro Universitário FG – UNIFG. Advogado Criminalista.
[1] Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda.
[2] Na hipótese de considerá-la uma excludente de ilicitude da espécie estrito cumprimento de dever legal.
[3] A CFRB/88 dispõe no seu art. 5º, inc. II que: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
[4] A ideia de liberdade pessoal aqui está associada ao exercício da capacidade civil, elemento esse, via de regra, apontado como imprescindível para que alguém possa figurar na qualidade de vítima desse tipo penal. Há, entretanto, exceções a essa regra, vide a possibilidade de a ameaça constranger a uma criança que já possui condições de vislumbrar o perigo ali contido, como leciona Victor Eduardo Rios Gonçalves, em seu Curso de Direito Penal: parte especial, vol. 2, São Paulo: 2018.
[5] Nesse aspecto, a legitimidade, além da existência, validade e eficácia, deve constar como alicerce da concepção hodierna do direito, devendo-se direcionar a ela especial atenção (COPPETI NETO e VIEIRA, 2017).
[6] Embora os termos “arte médica” ou “ars medica” (o seu correspondente em latim), sejam empregados como sinônimo da atual medicina em sua acepção científica, aqui refere-se ao momento histórico no qual, desprovida da cientificidade e da tecnicidade que goza atualmente, a medicina era equiparada a uma arte, a arte de curar.
[7] Em decorrência do julgamento de 26 pessoas, dentre as quais 20 eram médicos, por fatos cometidos durante a Segunda Guerra, foram prolatadas sentenças e conjuntamente um documento – ao qual se convencionou denominar Código de Nuremberg – que cuidou, pela primeira vez, de estabelecer as diretrizes éticas das experiências realizadas com seres humanos.
[8] Código de Ética Médica, cap. V, art. 36, §1º dispõe: “(É vedado ao médico) Abandonar paciente sob seus cuidados. § 1° Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que o suceder.
[9] Essa ideia é sustentada pelo ministro Luís Roberto Barroso em estudo realizado em 2010, em razão de consulta formulada pela sr.ª Procuradora-Geral do Estado do Rio de Janeiro, a respeito da atuação médica no caso da recusa de pacientes testemunhas de Jeová ao tratamento consubstanciado em transfusão de sangue em casos de risco de vida.
[10] Vide, p. ex., o art. 10 da Lei 9.434/97; art. 15 do Código Civil; art. 101 da Lei 8.213/91.
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