Lei 10.931, de 02 de agosto de 2004 – breves comentários às alterações no procedimento da ação de busca e apreensão de bem objeto de alienação fiduciária (Dec. Lei 911/69)

1. Introdução

A Lei 10.931, de 02 de agosto de 2004, foi editada com o objetivo de aumentar a segurança jurídica entre as partes de um negócio de incorporação imobiliária. Resultou de um anteprojeto do Instituto dos Advogados Brasileiros que pretendia essencialmente definir o acervo das incorporações imobiliárias como um “patrimônio de afetação”, incomunicável, que só respondia por suas dívidas e obrigações, com a possibilidade dos adquirentes, em caso de falência da incorporadora, assumir a administração da incorporação e prosseguir a obra com autonomia. Em 24 de novembro de 1999, o Deputado Ayrton Xerez apresentou na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 2.109/99, que reproduzia o anteprojeto do IAB. Desde essa data até sua aprovação final no Senado, sofreria várias alterações em forma de emendas e substitutivos, sendo inclusive anexado a outro Projeto de Lei de iniciativa do Executivo (n. 3.065/04), terminando na redação sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 02 de agosto deste ano, que entrou em vigor no dia seguinte, quando de sua publicação no Diário Oficial.

A nova lei, além de instituir o “Patrimônio de Afetação”, permitindo a segregação do acervo de cada incorporação imobiliária, também estabeleceu requisitos para demandas sobre contratos de comercialização de imóveis, tratou da atualização monetária desses contratos e criou novos títulos de crédito para fomentar o mercado imobiliário. Embora pensada, elaborada e voltada para o objetivo essencial do fomento do mercado imobiliário, através da criação de mecanismos que garantem segurança jurídica às partes nos contratos de comercialização de bem imóveis, terminou por trazer em um de seus capítulos regras que alteram o processo de busca e apreensão de bens móveis objeto de contratos de alienação fiduciária(1). O seu art. 56 deu nova redação aos parágrafos do art. 3o do Dec. Lei 911, de 1o. de outubro de 1969, trazendo modificações profundas no que tange ao procedimento atinente à execução judicial do contrato de alienação fiduciária de bens móveis, por meio da ação de busca e apreensão do bem alienado.

2. Constitucionalidade da nova redação do par. 1o. do art. 3o. do Dec. Lei 911/69

A primeira alteração diz respeito à antecipação do momento em que se considera consolidada a propriedade e posse plena em favor do credor fiduciário.

Como se sabe, a alienação fiduciária é uma modalidade contratual em que o comprador transfere a propriedade do bem como garantia do financiamento, contudo, essa transferência tem apenas caráter fiduciário. Assim, quem está concedendo o financiamento fica apenas com a propriedade fiduciária (domínio resolúvel) e com a posse indireta, permanecendo o devedor como possuidor direto da coisa, até completar o pagamento da última prestação. Se, no decorrer da execução do contrato, o devedor não cumpre com sua obrigação de pagar o financiamento, a propriedade é consolidada no patrimônio do credor. Uma vez consolidada essa propriedade, o credor pode promover a venda do bem, ficando autorizado a se apropriar do valor correspondente ao seu crédito. Na versão originária do Decreto-Lei n. 911, de 1o. de outubro de 1969 (que estabelece normas de processo sobre alienação fiduciária), a eficácia da consolidação da propriedade e da posse plena ocorria no momento em que o Juiz proferia a sentença no processo da ação de busca e apreensão (par. 5o. do art. 3o., na versão original). Era a sentença, portanto, que produzia os efeitos constitutivos da consolidação, sendo que antes disso o credor não podia promover a venda extrajudicial do bem alienado fiduciariamente(2). Mesmo eventualmente já na posse dele, por força de decisão (liminar) concessiva da retomada e executada no início do processo, o credor não podia se desfazer do bem, ou seja, não podia vendê-lo a terceiros para se ressarcir do valor do seu crédito. Já agora, em razão da mutação legislativa proporcionada pela Lei 10.931/04, a consolidação da propriedade e posse plena do bem em favor do credor ocorre logo no início do processo, exatamente cinco dias após o cumprimento da liminar que determinada a sua retomada, como está a indicar a nova redação do par. 1o. do art. 3o do Dec. 911/69, verbis:

“Art. 3o …………………………………………………………………..

§ 1o Cinco dias após executada a liminar mencionada no caput, consolidar-se-ão a propriedade e a posse plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciário, cabendo às repartições competentes, quando for o caso, expedir novo certificado de registro de propriedade em nome do credor, ou de terceiro por ele indicado, livre do ônus da propriedade fiduciária.

Como se observa, o bem móvel retomado consolida-se desde logo no patrimônio do credor-fiduciário, não sendo paga a dívida no prazo de cinco dias seguintes(3), ficando autorizado a dispor da coisa como bem lhe aprouver. Ultrapassado esse prazo inicial, o devedor-fiduciante não mais tem como impedir a consolidação da propriedade e posse plena em favor do credor, situação que autoriza este último não apenas a vender o bem, mas também a permanecer com ele como integrante de seu patrimônio, para o fim que desejar. Pelas regras atuais, a propriedade e posse plenas se consolidam antecipadamente, havendo uma integração “do bem no patrimônio do credor fiduciário”, providenciando-se, quando necessário, a expedição de novo certificado de propriedade em seu nome ou de terceiro por ele indicado. Ocorrendo a consolidação em seu favor, o proprietário fiduciário passa a desfrutar de todos os benefícios que os atributos da propriedade plena lhe conferem, como o direito de usar, gozar e dispor da coisa. No caso, por exemplo, de o bem financiado ser um veículo automotor, a execução da liminar de busca e apreensão já possibilita ao credor (não paga a dívida nos cinco dias seguintes), a dispor da coisa retomada como bem integrante do seu patrimônio, podendo revendê-la para recuperar seu crédito ou simplesmente ficar com ela para uso próprio. Para tanto, a repartição de trânsito onde o veículo estiver registrado expede novo certificado de propriedade em nome do credor ou de terceiro por ele indicado (parte final do par. 1o.).

Isso somente se tornou possível porque a Lei 10.931/04, a par de alterar normas processuais (do procedimento da ação de busca e apreensão, disciplinado pelo Dec. Lei 911/69), também produziu uma alteração sobre normas de natureza material, presentes na  Lei 4.728, de 14 de julho de 1965, que disciplina o mercado de capitais. A Seção XIV deste último diploma, que trata especificamente sobre alienação fiduciária em garantia no âmbito do mercado de capitais, foi totalmente remodelada, não mais reproduzindo a regra antes encapsulada no parágrafo 6o. do seu art. 66, que tornava “nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no seu vencimento”(4). Eliminada essa regra proibitiva, o credor pode ficar com o bem retomado, como parte integrante de seu patrimônio, e dar a ele a destinação que melhor lhe parecer.

Aqui é importante ressaltar que, caso decida por ficar com o bem, ao invés de vendê-lo, o credor fiduciário tem que, de qualquer forma, realizar uma avaliação e, encontrando valor superior à dívida, devolver a diferença ao devedor, pois não pode se locupletar com valor superior ao seu crédito, objeto do financiamento, sob pena de enriquecimento ilícito e infração ao art. 53 do CDC, que permanece vigente(5). Nas alienações fiduciárias em garantia ou em qualquer outro contrato de venda a crédito, configuradas como relação contratual de consumo(6), não é válida cláusula que admita perda das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleiteia a resolução do contrato e a retomada do produto alienado. Assim, retomado o bem e consolidado no patrimônio do credor (por força de liminar em ação de busca e apreensão), e preferindo ele ficar com o bem (ao invés de vendê-lo para aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito), tem que proceder obrigatoriamente a uma avaliação e devolver eventual diferença do valor da dívida. Esse tipo de situação – de diferença entre o valor da dívida e o valor de mercado do bem apreendido – não é tão difícil de ocorrer na prática. Por exemplo, se o bem for retomado faltando uma ou poucas prestações para liquidar o contrato, é provável que seu valor de mercado supere o valor da dívida remanescente. Também se o devedor-fiduciante financiou apenas parte do valor total do preço de aquisição do bem, o débito pode não atingir o seu preço de mercado por ocasião da retomada. Para proporcionar justeza a essas situações, e em atenção ao art. 53 do CDC, o credor terá sempre que devolver eventual saldo apurado na avaliação.

Essa nova roupagem conferida ao instituto da alienação fiduciária facilita o processo de retomada do bem dado em garantia, em caso de inadimplência do devedor, eliminando certos empecilhos à efetivação do direito do credor, propiciando-lhe de forma rápida a recuperação do valor correspondente ao seu crédito. Sem a consolidação antecipada da propriedade e posse plena já com a liminar (cinco dias após sua execução), o credor costumava enfrentar uma série de dificuldades de ordem prática, verificadas durante a tramitação do processo judicial de busca e apreensão. Muitas vezes, por motivos diversos, ocorria de a sentença demorar a ser prolatada, impedindo a venda imediata do bem, forçando bancos e financiadoras a ficar com veículos apreendidos em seus pátios e estacionamentos durante prazo muito largo, gerando despesas e causando a deterioração dos bens que permaneciam nessa situação. A conseqüência era que, quando finalmente autorizados a vendê-los, o valor apurado com a venda não era suficiente sequer para cobrir os débitos. A antecipação dos efeitos plenos da propriedade e posse do credor para o momento inicial do processo (após cinco dias da execução da liminar) resolve esse tipo de problema.

Há quem enxergue, no entanto, óbice de natureza constitucional à alteração no procedimento da ação de busca e apreensão, produzida pelo par. 1o. do art. 3o. do Dec. Lei 911/69, na nova redação conferida pela Lei 10.931/04. Argumenta-se que, na sistemática anterior, o provimento liminar tinha nítida feição cautelar, porquanto procurava conservar o bem até o final do processo, deixando-o na guarda provisória de depositário fiel, até sentença que consolidava o bem nas mãos do credor-fiduciário. Já agora, o provimento liminar tornou-se definitivo e irreversível, uma vez que consolida antecipadamente o bem no patrimônio do credor e “posterior interferência do devedor-fiduciante no processo, com a apresentação de contestação (par. 3o. do artigo 3o. do Dec. Lei 911/69), limitar-se-á à discussão de eventuais perdas e danos”. Restando unicamente ao devedor a possibilidade de discutir perdas e danos, a defesa no procedimento da busca e apreensão perde a utilidade, pois o bem não mais poderá ser recuperado (se já tiver sido vendido pelo credor), em afronta ao princípio do contraditório e da ampla defesa(7). É o que, em síntese, se coloca contra a antecipação dos efeitos da consolidação da propriedade do credor.

Antes de rebater de frente tal argumento, entendemos necessários alguns esclarecimentos sobre a natureza do procedimento judicial da ação de busca e apreensão de bem móvel alienado fiduciariamente.

A amplitude do contraditório, em termos de momento processual, prazo e extensão da contestação, é dada pela lei, levando-se em conta a natureza do processo, desde que não represente substancial empecilho ao exercício do direito de defesa. Não se pode falar em contraditório e ampla defesa, em relação à ação de busca e apreensão, como se concebem em relação a qualquer outra ação de conhecimento. Isso porque a ação de busca e apreensão, regulada pelo Dec. Lei 911/69, é de natureza executiva e cognição sumária, fundada em título executivo extrajudicial. A sentença na ação de busca e apreensão não visa à desconstituição do contrato, mas apenas à sua execução, com a consolidação da propriedade e posse plena nas mãos do proprietário fiduciário, porquanto a rescisão se opera previamente, como conseqüência do inadimplemento, por força de previsão legal e contratual (nesse sentido: STJ-4.ª Turma, Resp 209.410-MG, rel. Min. Ruy Rosado, j.9.11.99, deram provimento parcial, v.u., DJU 14.2.00, p. 39). Não é por outra razão que esse mesmo Decreto (no seu art. 5o.) faculta ao credor utilizar-se, a seu critério, da ação executiva típica, com penhora de bens do devedor quantos bastem para garantir a dívida. No âmbito restrito da ação executiva, a ampla defesa e o contraditório devem ser compreendidos em seu sentido finalístico, dentro dos limites da utilidade e finalidade do processo. O processo executivo, visto em seu sentido finalístico, admite certas restrições procedimentais à defesa do executado, inclusive limitando as matérias que podem ser veiculadas por meio de embargos(8), sem que isso seja visto como violação aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Exatamente por isso, a redação original do parágrafo 2o. do art. 3o. do Dec. Lei 911/69 previa limitação de matérias passíveis de alegação na contestação, pois o devedor só podia alegar o pagamento do débito vencido ou o cumprimento das obrigações contratuais. O Supremo Tribunal Federal, examinando esse aspecto, entendeu que, ao restringir a matéria de defesa alegável em contestação, o Decreto não ofendia os princípios constitucionais da igualdade, da ampla defesa e do contraditório (RE 141.320-RS, rel. Min. Octavio Gallotti, j. 22.10.96, apud Inf. STF 51, de 28.10.96, p. 1).

Aceitando essa premissa de que a defesa no processo executivo não tem a mesma extensão que a proporcionada no processo de conhecimento, e que a ação de busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente tem nítida feição de ação de execução, a Lei 10.931/04 em tese poderia ter trazido disposição que implicasse certas restrições procedimentais à defesa do devedor-fiduciante; mas não o fez. Ao contrário, até alargou o raio de abrangência da contestação na ação de busca e apreensão, retirando a limitação quanto às matérias (presente na redação antiga do par. 2o. do art. 3o. do Dec. Lei 911/69). Na sistemática atual, o devedor pode alegar, como defesa, qualquer matéria de ordem processual ou de direito material, sem limites(9). Nesse sentido, nem será mais necessário utilizar-se de uma ação ordinária de revisão, para discutir validade de cláusulas e cobrança de juros e taxas abusivas, podendo até mesmo requerer a restituição de valores cobrados a maior. A nova redação emprestada ao parágrafo 4o. do art. 3o. do Dec. Lei 911/69 já o autoriza a demandar a devolução de parcelas do financiamento eventualmente pagas com infração da lei(10). Conclui-se que, se o novo procedimento da ação de busca e apreensão não lhe confere a característica de ação de natureza dúplice – pois o réu não pode demandar a posse do bem no mesmo processo que é promovido contra si(11) -, é certo que o Juiz, no comando sentencial, ainda quando não julgue improcedente o pedido do autor(12), pode condená-lo a devolver diferenças e valores cobrados em desacordo com a lei, como conseqüência de uma verdadeira revisão que faz do contrato e de suas cláusulas. Até mesmo o prazo da contestação foi ampliado. Antes era de apenas 03 dias (redação primitiva do par. 1o. do art. 3o.) ; agora, é de 15 dias.

De um modo geral, como se observa, a Lei 10.931 facilitou o exercício do direito de defesa do réu não ação de busca e apreensão, atribuindo-lhe maior prazo para sua contestação e eliminando a restrição quanto às matérias da contestação. A simples antecipação da consolidação da propriedade e posse plena no patrimônio do autor, para o momento da execução da liminar (nos cinco dias seguintes), não ofende os princípios do contraditório e da ampla defesa.

A decisão liminar que consolida a propriedade e posse plena no patrimônio do autor, ao contrário do que se alega, não se torna irreversível. Primeiro porque, no prazo de cinco dias seguintes à sua execução, o devedor tem a faculdade de impedir os seus efeitos, pagando a integralidade da dívida (par. 2o. do art. 3o. do Dec. Lei 911/69) ou purgando a mora (art. 401 do C.C. c/c art. 53, par. 2o. do CDC). Como demonstraremos mais adiante, o direito à purga da mora permanece no procedimento da busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente, como decorrência da aplicação de outros dispositivos legais, ainda que não mais prevista expressamente no Dec. Lei 911/69 (na nova redação do par. 2o. do seu art. 3o.). Além disso, como todo e qualquer provimento antecipado, o despacho liminar que determina a busca e apreensão é provisório e pode ser atacado por via de recurso (agravo de instrumento). Considerando-se, por fim, que nem sempre a sentença sobrevém depois da alienação do bem pelo credor, os efeitos da consolidação podem ser desconstituídos antes que provoquem resultados irreversíveis (em termos da impossibilidade de devolução do mesmo bem ao devedor). Portanto, em termos fácticos, se não é impossível é praticamente muito difícil que o provimento liminar produza efeitos irreversíveis, sem que o devedor possa ou tenha meios para evitá-los.

Em termos econômicos, também não se pode dizer que o despacho de busca e apreensão produza efeitos irreversíveis. A própria Lei que regula o procedimento da ação previu uma multa como substitutivo patrimonial pela perda antecipada da posse do bem, na base de 50% do valor originalmente financiado pelo devedor, que o Juiz condena o credor fiduciário a pagamento em caso de improcedência da ação (par. 6o. do art. 3o. do Dec. Lei 911/69, na nova redação). Ademais, o pagamento da multa não exclui a possibilidade de o credor responder por outros prejuízos que a decisão possa eventualmente causar ao devedor, visto que o parágrafo 7o. do art. 3o. ressalva a responsabilidade daquele por perdas e danos. E a título de perdas e danos, o Juiz poderá sempre condenar o credor a entregar bem idêntico, com as mesmas características (de marca, modelo, ano de fabricação, valor etc), compensando, por essa via, a perda da posse do bem primitivamente transacionado.

As medidas de salvaguarda para evitar perigo de irreversibilidade que a Lei específica prevê, como se observa, são muitas e eficazes.

Por fim, é importante ressaltar que somente pode se admitir resquício de irreversibilidade fática, na decisão que consolida antecipadamente a propriedade e posse do bem em favor do credor e o autoriza a vendê-lo, em se tratando de bens infungíveis. Mesmo que o devedor não se valha do benefício da purgação da mora e não recorra da decisão preliminar, e o credor realize a venda do bem retomado antes da sentença, a irreversibilidade pode ser considerada na perda da possibilidade de o devedor recuperar exatamente aquele mesmo bem (de qualidades únicas para o devedor). Ou seja, a liminar somente poderia produzir efeitos fácticos irreversíveis em se tratando de contrato que envolva bens infungíveis. O que se dizer, no entanto, de alienação fiduciária de bens fungíveis, que agora é permitido pela lei nova (parágrafo 3o. da Lei 4.728/65, incluído pela Lei 10.931/04)? Será que se pode considerar que a retomada pelo credor e venda antecipada (para recuperar seu crédito) torna a decisão que a autoriza irreversível? É claro que não. Na sentença que julgar improcedente a busca e apreensão, o Juiz pode condenar, a título de perdas e danos (sem esquecer a multa), que o autor entregue bem de mesma natureza ao réu. Assim, o argumento de inconstitucionalidade do par. 1o. do art. 3o. do Dec. Lei 911/69 (na nova redação da Lei 10.931/04), baseado na irreversibilidade da liminar que antecipa os efeitos da consolidação, perde sua validade por ter sido elaborado de forma genérica, sem atenção à circunstância de que a consolidação antecipada da propriedade de bens fungíveis, por decisão liminar, está indene a resultados de efeitos irreversíveis.

3. Permanência do direito à purgação da mora

Uma segunda questão suscitada com o advento da Lei 10.931/04 diz respeito ao exercício do direito do devedor de purga da mora, quando se torna inadimplente e o credor promove a ação de busca e apreensão do bem dado em garantia. A nova redação atribuída ao parágrafo 2o. do art. 3o do Dec. Lei 911/69 não prevê a possibilidade de purga da mora exclusivamente das prestações vencidas e em atraso como forma de o devedor emendar sua inadimplência. O citado dispositivo somente autoriza que, no prazo de 05 dias contados a partir da execução da liminar, pague a integralidade da dívida pendente, o que inclui tanto as prestações vencidas quanto aquelas que se venceram por antecipação em face do inadimplemento(13).

Temos que, ainda que o legislador tenha tido a intenção de eliminar a possibilidade de pagamento apenas das prestações vencidas (e encargos moratórios), o direito à purgação da mora subsiste, pois decorre de outros dispositivos legais, a que o aplicador não pode deixar de recorrer quando tiver de garanti-lo ao réu da ação de busca e apreensão, numa interpretação sistemática dos diversos diplomas sobre relações obrigacionais e dos princípios fundamentais das relações de consumo.

Com efeito, entender-se em contrário implicaria em retirar a utilidade do próprio instituto da purgação da mora, tal como vem disciplinado no art. 401, I, do Código Civil, que o admite como forma de evitar a ruptura do vínculo contratual. A purgação da mora é um direito do contratante moroso, que visa a remediar a situação a que deu causa, evitando os efeitos dela decorrentes, reconduzindo a obrigação à normalidade. Como preleciona Agostinho Alvim, “a purgação é um favor que a lei concede ao devedor, permitindo-lhe neutralizar o direito do credor atinente à rescisão do contrato” (Da Inexecução das Obrigações e sua Conseqüências, p. 173). Assim, de um modo geral, deve se admitir a purga da mora nos casos de obrigações contratuais, pela oferta da prestação devida e dos prejuízos (juros moratórios) ocorrentes até essa oferta. Somente quando não se mostrar viável, por se apresentar inteiramente inútil aos interesses do credor, é que não se deve admiti-la. Essa hipótese, no caso da alienação fiduciária, não ocorre, pois os pagamentos sempre serão úteis ao credor, que tem mais interesse no recebimento dos seus créditos, mesmo que algum atraso ocorra, sendo-lhe útil a manutenção do contrato e recebimento dos pagamentos em dinheiro, mais do que a recuperação do bem dado em garantia do financiamento. A melhor doutrina processualística considera que, quando já em sede judicial o litígio em torno da inadimplência contratual, a purga da mora pode ser realizada até a contestação da lide(14). Só não pode ocorrer após a contestação, por se revelarem antitéticas as proposições contestativa e emendativa da mora, considerando que, pela primeira se afronta o direito reclamado enquanto que, pela segunda, se reconhece a dívida.

Especificamente em relação às relações contratuais de consumo(15), a possibilidade de purga da mora é de ser admitida ainda com mais firmeza. É que nos contratos de adesão a cláusula resolutória é admitida – art. 54, par. 2o., do CDC -, “desde que alternativa, cabendo a escolha ao consumidor” (salvo nos pactos de consórcio), ou seja, ao consumidor cabe exercer a opção de, ao invés da resolução do contrato em que incorreu em inadimplemento, postular o cumprimento da avença, pondo-se em dia com suas obrigações, e efetuando portanto a purgação da mora em que incidira.

Ainda que o parágrafo 2o. do art. 3o do Dec. Lei 911/69 (na nova redação da Lei 10.931/04) pareça estar em conflito com par. 2o. do art. 54 do CDC, este último dispositivo é que tem que prevalecer quando se trata de garantir ao consumidor o direito à purgação da mora. Havendo conflito aparente entre as normas do CDC e alguma lei especial que regule determinado setor das relações de consumo, ainda que posterior, a regra principiológica presente no Código é que se superpõe à lei específica que a desrespeitou, não se aplicando o princípio da especialidade. Essa é a lição Nelson Nery Junior sobre o assunto:

“O microssistema do CDC é lei de natureza principiológica. Não é nem lei geral nem lei especial. Estabelece os fundamentos sobre os quais se erige a relação jurídica de consumo, de modo que toda e qualquer relação de consumo deve submeter-se à principiologia do CDC. Conseqüentemente, as leis especiais setorizadas (v.g. seguros, bancos, calçados, transportes, serviços, automóveis, alimentos etc.) devem disciplinar suas respectivas matérias em consonância e em obediência aos princípios fundamentais do CDC. Não seria admissível, por exemplo, que o setor de transportes fizesse aprovar lei que regulasse a indenização por acidente ou vício do serviço, fundada no critério subjetivo (dolo ou culpa), pois isso contraria o princípio o princípio da responsabilidade objetiva, garantido pelo CDC 6o. VI. Como o CDC não é lei geral, havendo conflito aparente entre suas normas e alguma lei especial, não se aplica o princípio da especialidade (Lex specialis derogat generalis): prevalece a regra principiológica do CDC sobre a lei especial que o desrespeitou. Caso algum setor queira mudar as regras do jogo, terá de fazer modificações no CDC e não criar lei à parte, desrespeitando as regras principiológicas fundamentais das relações de consumo, estatuídas no CDC”(16).

O direito de o consumidor, antes da contestação na ação de busca e apreensão, pleitear a purga da mora decorre do princípio da conservação dos contratos de consumo, que o par. 2o. do art. 54 do CDC visa consagrar, ao garantir a ele a escolha pela cláusula resolutória ou a opção de manter o contrato, pelo pagamento das prestações vencidas e juros moratórios. Esse dispositivo, por ter natureza principiológica, não foi revogado e prevalece sobre outro de lei setorial com o qual conflite. Sempre que a solução pela manutenção do vínculo contratual seja mais benéfica ao consumidor, por ela deve se pautar o julgador.

Ainda outros argumentos podem ser utilizados em prol do direito de purgação da mora, no bojo da ação de busca e apreensão. Um deles é o da semelhança desta ação com institutos afins. Em outras espécies de contratos de financiamento, em que se busca a aquisição de um bem mediante o pagamento de prestações, a exemplo das vendas com reserva de domínio, a purga da mora é, em regra, assegurada. A faculdade de purgação da mora, para as vendas com reserva de domínio, está expressamente garantida pelo art. 1.071, par. 2o., do CPC, dentro do prazo para resposta. Embora a regra seja específica para a ação de apreensão e depósito de coisa vendida a crédito com reserva de domínio, seria bem plausível a extensão do direito à purgação da mora para o procedimento da busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente. Com efeito, existe todo um conjunto de características que aproxima a alienação fiduciária em garantia das vendas a crédito com reserva de domínio, autorizando a construção analógica.

É bom lembrar, ainda, que a legislação específica sobre arrendamento mercantil (“leasing”) não previa oportunidade para a purga da mora, no caso de inadimplemento do arrendatário. Mesmo assim, o STJ não hesitou em conferir esse direito ao réu na ação de reintegração de posse, como necessidade para preservar a execução do contrato e conservar o seu caráter comutativo. Bem expressivos desse entendimento são os acórdãos reproduzidos abaixo em ementa:

“CIVIL. PROCESSUAL. ‘LEASING’. RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR INADIMPLEMENTO. PURGA DA MORA.

Embora de admitir-se a purga da mora em ação resolutória de contrato de “leasing”, por inadimplemento contratual, esta não tem lugar após instalada a lide com a contestação (STJ-3a. Turma, RESP 6696 / SP, rel. Min. Dias Trindade, j. 20/03/1991, DJ 22.04.1991. “ARRENDAMENTO MERCANTIL – ‘LEASING’. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. POSSIBILIDADE DE PURGAÇÃO DA MORA PELO ARRENDATARIO.Tendo em vista a natureza e os objetivos do contrato de arrendamento mercantil, com a opção concedida ao arrendatário para a compra do bem, a possibilidade de purgação da mora preserva os interesses de ambas as partes e mantém a comutatividade contratual”  (REsp 9219-MG, rel. Min. Athos Carneiro, j. 19/06/91, DJ 23.09.91)

A Corte Superior não levou em consideração o argumento de que os contratos de arrendamento mercantil continham cláusula resolutiva expressa, para o caso de inadimplemento das prestações do financiamento. Pesou mais a necessidade de ser oportunizada a purga da mora, como direito do devedor moroso de restituir o contrato à normalidade, oferecendo a prestação devida mais a importância dos juros moratórios antes da contestação, pouco importando se tratar de negócio jurídico sob condição resolutiva expressa.

No caso da ação de busca e apreensão de bem móvel alienado fiduciariamente, ainda mais se justifica a aceitação da purgação da mora, pela compatibilidade procedimental que esse tipo de ação oferece. No caso da ação de reintegração de posse, o procedimento especial não comportava uma fase preliminar própria para o pagamento do débito. Mesmo assim, os tribunais não hesitaram em conferir ao devedor oportunidade para a purga da mora no contrato de leasing, ainda que o exercício desse direito importasse em inserção de figura procedimental não prevista na lei processual específica. Em relação à ação de busca e apreensão para retomada de bem objeto de alienação fiduciária, nem sequer esse problema aparece, pois o tipo procedimental já comporta fase própria para o pagamento do débito – no prazo de 05 dias após a execução da liminar (parágrafo 2o. do art. 3o. do Dec. 911/69). É certo que, na nova redação dada a esse dispositivo pela Lei 10.931/04, o legislador somente previu a possibilidade de pagamento integral da dívida pendente e pelos termos da planilha apresentada pelo credor, extinguindo o ônus fiduciário. Mas nada impede – pelo contrário, se sugere -, que se interprete que nessa mesma fase procedimental o devedor possa purgar a mora apenas das prestações devidas, mantendo-se o vínculo contratual. A previsão de momento para purgação da mora, assim, pode ser inserida no procedimento da ação de busca e apreensão sem provocar qualquer deformação procedimental ou alterar o perfil célere que a nova Lei (10.931/04) procurou imprimir ao processo de recuperação do bem.

3. Conclusão

Interpretados os dispositivos da nova Lei (10.931/04) dessa maneira, em consonância e em interpretação sistematizada com outros textos e normas civis e que regulam as relações de consumo, serão alcançados os objetivos que o legislador efetivamente pretendeu, de dar maior eficácia à garantia fiduciária, aperfeiçoando sua execução judicial. Os benefícios que essa interpretação produz são para todas as partes. O credor fiduciário porque passa a contar com a antecipação do momento da consolidação da propriedade e posse plena, o que lhe confere autorização para vender o bem apreendido desde já, sem ter que esperar pelo momento da sentença, com todas as conseqüências que essa espera poderia produzir em termos de deterioração do bem e dificuldades para recuperação do crédito. O devedor, por sua vez, porque além de preservar o direito de purgação da mora, mantendo-se à sua escolha a continuidade da execução contratual (quando assim lhe favorecer), passa a contar com a opção de pagar integralmente a dívida, livrando-se do ônus fiduciário, e ainda ter prazo mais largo para contestação e sem limitação de matérias.

 

Notas:
1- A Lei 10.931/2004, a par de emprestar maior eficácia à garantia fiduciária, alterou o perfil do contrato de alienação fiduciária, inclusive passando a admitir a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito (art. 66-B da Lei  4.728/65, na redação alterada pela Lei 10.931/2004).
2- O par. 5o. do art. 3o. do Dec. Lei 911/69 estabelecia que: “A sentença, de que cabe apelação, apenas, no efeito devolutivo, não impedirá a venda extrajudicial do bem alienado fiduciariamente e consolidará a propriedade e a posse plena e exclusiva nas mãos do proprietário fiduciário. (…)”.
3- O par. 2o. do art. 3o., na nova redação dada pela Lei 10.931/04, prevê a possibilidade de o devedor impedir a consolidação da propriedade do bem em favor do credor, por meio do pagamento integral da dívida no prazo de 05 dias contados após a retomada.
4- Desde sua versão original, a Lei 4.728, de 14 de julho de 1965, consagrou um seção inteira (Seção XIV) para regular a alienação fiduciária em garantia no âmbito do mercado de capitais e, dentre os dispositivos atinentes a esse instituto, elegeu um que tornava “nula a cláusula que autorize o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga em seu vencimento” (par. 7o. do art. 66). O Dec. Lei 911/69 produziu uma alteração nessa Seção da Lei 4.728/65, mas deixou intacta (apenas renumerando-a como parágrafo 6o.) a regra que proibia o credor fiduciário ficar com o bem dado em garantia, no caso de inadimplemento da obrigação. A Lei 10.931/04 produziu nova e substancial modificação na Seção XIV, inclusive passando a admitir a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão de direitos fiduciários, mas eliminou a tal regra proibitiva.
5- CDC, art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.
6- A relação de consumo pressupõe, além de outros requisitos, que uma das partes enquadre-se no conceito legal de consumidor, ou seja, de pessoa que adquire ou utiliza produtos ou serviços como destinatário final (art. 2o. do CDC). O contrato de financiamento com garantia fiduciária será definido como contrato de consumo, e portanto alcançado pelas normas do CDC, quando o devedor-fiduciante se enquadrar no conceito legal de consumidor, ou seja, quando utilizar o bem na condição de destinatário final.
7- Esse argumento é defendido em decisão do Dr. Fábio Eugênio Oliveira Lima, Juiz da 28a. Vara Cível do Recife, no proc. n. 001.2004.032513-0, quando diz: “Perdendo a liminar seu caráter transitório, tem-se, em via de conseqüência direta, a solução de uma lide – ou parte dela – sem defesa. Haverá decisão irrevogável em face de cognição sumária e sem qualquer bilateralidade, porquanto o provimento liminar é concedido inaudita altera pars. O par. 1o. do artigo 3o. do Dec. Lei n. 911/69, na sua nova redação dada pela Lei 10.931, de 02 de agosto de 2004, não encontra, portanto, fundamento de validade na Constituição Federal, à medida que retira o caráter transitório do provimento antecipatório, já que, como dito, resolve de modo irrevogável a lide quanto à resolução do contrato, tudo sem ouvida da parte contrária”.
8- É o que ocorre em relação aos embargos à execução fundada em sentença (art. 741 do CPC).
9- O parágrafo 3o. do art. 3o. do Dec. Lei 911/69, com a nova redação atribuída pela Lei 10.931/04, ficou com a seguinte redação: “O devedor fiduciante apresentará resposta no prazo de quinze dias da execução da liminar”. As restrições às matérias da contestação, como se vê, não permaneceram.
10- § 4o: “A resposta poderá ser apresentada ainda que o devedor tenha se utilizado da faculdade do § 2o, caso entenda ter havido pagamento a maior e desejar restituição”.
11- Independentemente de reconvenção, como ocorre nas ações possessórias (art. 922 do CPC).
12- A improcedência da ação de busca e apreensão somente ocorre se o devedor comprova não ter havido inadimplemento ou descumprimento das obrigações contratuais.
13- § 2o No prazo do § 1o, o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus.
14- Confira-se, a respeito, Agostinho Alvim, ob. cit.
15- O contrato de financiamento com garantia fiduciária será definido como contrato de consumo, e portanto alcançado pelas normas do CDC, quando o devedor fiduciário se enquadrar no conceito legal de consumidor, ou seja, quando utilizar o bem na condição de destinatário final (art. 2o. do CDC).
16- Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, in nota 4 ao art. 1o. do CDC – Código Civil Anotado e Legislação Extravagante, 2o. Edição revista e ampliad, Ed. Revista dos Tribunais.
Recife, 25.10.04

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Demócrito Reinaldo Filho

 

Magistrado em Pernambuco.

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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