Um fenômeno curioso desenvolveu-se ao longo dos anos no direito brasileiro. A questão de fundo é bastante simples: saber se as partes em contratos internacionais podem escolher a lei de regência de seus contratos. Mas essa simples questão tomou enormes proporções, causando inúmeros debates entre autores, advogados, professores e alunos de direito. O curioso é que, com o passar do tempo, o debate praticamente adquiriu vida própria, como se fosse uma questão filosófica cuja aplicação prática tivesse menos importância.
Contribuiu para o aumento dessa mística o fato de não existirem julgados onde a matéria fosse apreciada. Ou seja, a questão não era testada em juízo. Assim, os debatedores sentiam-se livres para continuar sua discussão, e a matéria cada vez mais seguia seu rumo próprio e paralelo à realidade econômica.
Ocorre que, enquanto prosseguiam os debates, mais e mais contratos internacionais eram firmados por empresas brasileiras. Principalmente nas duas últimas décadas, a inserção do país no campo das operações internacionais obrigou as partes contratantes a tratar a escolha da lei aplicável a seus contratos como uma realidade. Ao mesmo tempo, o assunto não mais passou desapercebido pelos três poderes do estado brasileiro, sendo possível encontrarmos julgados, leis e decretos relacionados ao tema. Ou seja, foram desaparecendo os traços que deram origem ao fenômeno antes mencionado.
Entendemos que está na hora de tratar a questão sob esse novo enfoque. A primeira parte deste artigo contém alguns argumentos que justificam nossa interpretação de que as partes têm liberdade para escolher a lei de regência em contratos internacionais. Já a segunda parte aponta as manifestações do judiciário, legislativo e executivo que corroboram essa tendência.
O art. 9º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, datada de 1942, é a base das discussões: “Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”. Ao nosso ver, a melhor forma de interpretar esse artigo é concluir que ele se aplica apenas quando o contrato for omisso acerca da lei aplicável. Somente nesse caso o artigo é necessário, já que o ordenamento jurídico supre uma lacuna deixada pelas partes que inviabilizaria a aplicação do contrato.
Não há porque supor que, contrariando a regra geral de autonomia da vontade em matéria contratual, as partes fossem impedidas de escolher a lei mais adequada para reger seu contrato internacional. Ao contrário do que afirmam alguns, isso não representa qualquer ofensa à ordem pública brasileira. Naturalmente, a escolha da lei aplicável possui limitações, mas a própria lei brasileira se encarrega disso ao afirmar que não prevalecerão as disposições da lei estrangeira que contrariarem a ordem pública brasileira, os bons costumes ou a soberania nacional.
É importante ter em mente que aqui nos interessam as operações comerciais e financeiras legítimas, onde partes capazes e conscientes simplesmente escolhem a lei que lhes parece mais apropriada para regular sua relação. Os motivos que determinam tal escolha são igualmente legítimos. Geralmente são escolhidas as leis consideradas mais sofisticadas para o objeto do contrato, advindas do país onde o negócio em questão foi mais desenvolvido e, consequentemente, onde a lei pôde ser refinada e apreciada com maior profundidade ao longo dos anos.
Exatamente isso tem sido experimentado no mercado internacional pelas empresas brasileiras. São negociados projetos de infra-estrutura, operações financeiras e os mais variados contratos comerciais com partes estrangeiras. No âmbito das negociações, as partes identificam a lei que deve reger sua relação e a indicam em seus contratos. Tudo de forma consciente e sem qualquer ofensa ao direito brasileiro.
Encerrando esta primeira parte temos o argumento mais simples, e por isso mesmo o mais precioso. Aqueles que defendem ser obrigatória a aplicação da lei do país onde a obrigação foi constituída afirmam que, para saber qual lei é essa, basta identificar o país onde as partes fisicamente assinaram o respectivo contrato. Ora, essa constatação fulmina qualquer pretensão de tornar obrigatório o art. 9º acima transcrito. Isso porque é reconhecida a liberdade das partes se deslocarem ao país cuja lei querem ver aplicada e, com isso, garantirem a aplicação de tal lei. Ou mais curioso ainda, como consta ter sido feito no passado, as partes poderiam simplesmente se dirigir ao consulado do país estrangeiro para assinar o contrato, garantindo assim a assinatura em território estrangeiro e portanto a aplicação da lei desse país. Se as partes têm essa liberdade de escolha, é evidente que têm a liberdade de simplesmente apontar a lei aplicável no próprio contrato, poupando assim uma viagem ao exterior ou uma corrida de táxi até o consulado mais próximo.
As manifestações estatais mais recentes dão suporte a essa linha de raciocínio. Começando pela tendência legislativa, vale citar a clareza da Lei de Arbitragem (1996) ao estabelecer que as partes poderão escolher livremente as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública. O dispositivo, embora aplicável diretamente apenas no contexto da arbitragem, mostra a simplicidade com que o legislativo encara a possibilidade das partes escolherem as regras pertinentes à sua relação, sem qualquer pecha de ilegalidade ou contrariedade aos princípios do sistema jurídico brasileiro.
O pronunciamento do executivo federal é ainda mais direto em sua essência. O texto do decreto presidencial que incorporou o acordo sobre arbitragem comercial internacional do Mercosul (2003) ressalvou, para dirimir qualquer dúvida decorrente da linguagem utilizada no texto assinado pelos países, que tal acordo deve ser interpretado no sentido de permitir às partes escolherem livremente as regras de direito aplicáveis à matéria. Mais uma vez fica patente que a liberdade de escolha é aceita e encorajada.
É natural que os exemplos acima tratados se refiram à arbitragem, já que exatamente nesse campo tais questões tiveram que ser apreciadas recentemente. Por isso os exemplos servem tão bem para ilustrar a tendência de aceitação da liberdade contratual, de forma absolutamente natural, no tocante à lei aplicável.
Por fim, três exemplos advindos do judiciário. No primeiro, sentença proferida pelo juiz de direito da 30ª Vara Cível de São Paulo reconheceu, em junho de 2002, que as partes em nada ofenderam direitos privados ou a soberania brasileira ao elegerem legislação que não a brasileira, tendo agido apenas segundo lhes pareceu mais favorável quando contrataram. No segundo exemplo, a Sétima Câmara do 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo apontou, em acórdão de setembro de 2002, que a Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro só tem aplicação quando houver omissão ou controvérsia a respeito do direito aplicável. Já no terceiro exemplo, a Décima Segunda Câmara do 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo afirmou categoricamente, em acórdão de dezembro de 2003, que o direito brasileiro suporta a autonomia da vontade no campo da lei aplicável às obrigações contratuais, e que portanto é admitida a escolha da lei aplicável nos contratos internacionais.
Em resumo, a análise antiquada de uma matéria tão importante como essa não tem mais cabimento. A interpretação cuidadosa indica que a liberdade de escolha da lei aplicável é tanto lógica como jurídica. E os exemplos de manifestação estatal, se ainda não tem a força de jurisprudência dos tribunais superiores – até agora não consolidada –, demonstram de forma inequívoca a tendência de interpretação caracterizada no corpo deste artigo.
Sócio Responsável pela área de Mercado de Capitais de
Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados.
Consultor de Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados.
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