Lei Seca: uma questão multidisciplinar

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Resumo: o Código de Trânsito Brasileiro descreve que para a caracterização do crime de embriaguez ao volante existe a necessidade de quantificação do índice de alcoolemia do condutor. Essa exigência legal impõe aos profissionais envolvidos um conhecimento multidisciplinar, haja vista a complexidade de procedimentos, como exame clínico e pericial. O tema é polêmico, pois as lacunas da Lei favorecem o infrator no caso concreto e a discussão destes conceitos relacionados, como a alcoolemia e a embriaguez, contribuem para se chegar a um consenso coletivo acerca do tema.


Palavras-chave: Lei seca. Análise laboratorial. Embriaguez e alcoolemia.


Abstract: the Brazilian traffic Code that describes to the characterization of the crime of being drunk at the wheel there is a need to quantify the driver’s blood alcohol content. This legal requirement imposes on professionals involved a multidisciplinary knowledge, given the complexity of procedures, such as forensic and clinical examination. The topic is controversial, because the Law favours the gaps in the present case and the infringer’s discussion of these related concepts, such as alcohol and drunkenness, contribute to reaching a collective agreement on the issue.


Keywords: “Lei Seca”. Laboratory analysis. Drunkenness and alcohol content.


Sumário: 1. Introdução. 1.1 Aspectos Gerais. 1.2 Efeitos do álcool. 2. Análise Toxicológica. 2.1 Cromatografia Gasosa. 2.2 Métodos de amostragem de ar exalado. 3 Lei Seca e as implicações criminais. 4 Crime de perigo abstrato. 5 Diretos legais do condutor. Conclusão.


1 INTRODUÇÃO


1.1 ASPECTOS GERAIS


O presente artigo visa à abordagem multidisciplinar do assunto embriaguez ao volante, pois com o advento da Lei 11.705/2008, além da importância da definição da palavra embriaguez, os juristas e doutrinadores tiveram que incluir a palavra alcoolemia ao comentarem acerca do Código de Trânsito Brasileiro – CTB, pois antes o exame clínico de embriaguez realizado pelo perito médico-legista era suficiente, mas agora, ao determinar que seja comprovada certa quantidade de álcool no sangue do motorista embriagado, fez-se com que a materialidade desse crime se tornasse mais difícil de ser constatada.


O Código de Trânsito Brasileiro cita:


Art. 165,  Parágrafo único. A embriaguez também poderá ser apurada na forma do art. 277.


Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.”


Evidencia-se que o exame clínico continua sendo um dos meios de aferição da embriaguez entretanto, o art. 276, do CTB cita:


“Art. 276.  Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código.”


Desta forma, exige-se a aferição da concentração de álcool no sangue, ou seja, a alcoolemia.


Embriaguez define-se, de acordo com o Dicionário Digital Aulete como ” estado, condição de quem se embriagou; perturbação dos sentidos causada pela ingestão excessiva de bebida alcoólica. Verifica-se que se trata do estado físico do cidadão, conceito diverso de alcoolemia.


Diante da exigência legal imposta, as técnicas laboratoriais ganharam importância para a qualificação e caracterização do delito.


1.2 EFEITOS DO ÁLCOOL


De acordo com Passagli, (2008), ” o álcool é uma droga que no ser humano produz, ao lado do efeito depressor, uma não menos óbvia ação euforizante, traduzida predominantemente por desinibição comportamental”.


Rang (2003) cita que o desempenho motor e sensorial mostram diminuição uniforme pelo uso do etanol, mas os usuários geralmente são incapazes de julgar isto.


A relação entre concentração plasmática de etanol (alcoolemia) e os efeitos apresentados pelo condutor são variados, devido a fatores genéticos, gênero, sexo, idade, compleição física. Como exemplo, estudos científicos evidenciam que mulheres são mais suscetíveis aos efeitos do álcool do que os homens, isto é, desenvolvem concentrações sanguíneas mais elevadas de álcool. Essa sensibilidade baseia-se na maior proporção de gordura e menor concentração de água no corpo feminino, além da menor atividade da enzima álcool desidrogenase no estômago da mulher (PASSAGLI, 2008).


2 ANÁLISE TOXICOLÓGICA


Nas análises forenses para determinação do etanol, as amostras de escolha são sangue, urina e ar exalado, geralmente.


‘O nível de etanol sanguíneo e exalado pelo ar dependem basicamente da dose ingerida, da velocidade de absorção no trato digestivo e da capacidade do organismo de eliminá-lo por meio dos processos de biotransformação e excreção’, (CORRÊA, 2008).


O entendimento de todas estas etapas é importante para interpretação do resultado analítico.  Algumas técnicas utilizadas para caracterização da alcoolemia:


2.1 CROMATOGRAFIA GASOSA


“Na cromatografia gasosa – CG – a amostra é vaporizada e injetada no topo de uma coluna cromatográfica. A eluição é feita por fluxo de um gás inerte que atua como fase móvel (SKOOG, 2002).”


Tem sido a técnica de eleição para determinação das concentrações de etanol no sangue.


2.2 MÉTODOS DE AMOSTRAGEM DE AR EXALADO


Pelo ar alveolar pode-se ter uma avaliação real da alcoolemia. É importante que a amostra de ar não seja coletada assim que o indivíduo tenha ingerido seu último gole, pois a concentração obtida no exame seria muito alta devido ao álcool residual remanescente na mucosa bucal (PASSAGLI, 2008).


Os sistemas de amostragem da maioria dos etilômetros são projetados para aceitar o ar alveolar, quer dizer, a primeira porção de ar coletada do indivíduo é desprezada e apenas analisa a parte seguinte, oriunda dos alvéolos pulmonares.


O método de coleta é ativa, ou seja, depende da cooperação da pessoa a ser analisada.


Alguns exemplos de métodos de detecção e concentração utilizados:


– por células eletroquímicas: o álcool presente no ar alveolar oxida-se e produz uma corrente elétrica. A resposta é proporcional à concentração de etanol, pois é específico para este tipo de álcool.


– colorimétricos: método antigo de análise, consiste em oxidar o álcool presente com uma solução acidificada de dicromato de potássio, resultando em alteração de cor, de amarelo para verde.


Segundo PASSAGLI, 2008, a concentração de ar alveolar pode ser convertida para a concentração sanguínea aplicando-se a Lei de Henry, que cita que a razão entre a concentração de álcool ar/sangue é de 1/2000, o que equivale a 0,1mg/L.


3 LEI SECA E AS IMPLICAÇÕES CRIMINAIS


No que tange à seara criminal da Lei 11705/2008, o legislador, ao fazer essa alteração no mundo jurídico, exigiu a demonstração de uma taxa de seis decigramas de álcool por litro de sangue do condutor embriagado de veículo automotor. Sendo assim, para que se configure a materialidade do delito, será indispensável que seja provado a existência dessa taxa de álcool no sangue do infrator, como se descreve:


Art. 306.  Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:


Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”


Dessa forma, a norma atual determinou a necessidade da análise laboratorial para caracterização do crime. Como se descreveu anteriormente, as formas de se comprovar essa taxa de álcool no sangue do condutor são : pela amostragem do ar exalado (teste do bafômetro ou etilômetro) e a análise de uma amostra de sangue.


4 CRIME DE PERIGO ABSTRATO


Crimes de perigo são aqueles que se consumam com a mera possibilidade de dano.


O artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro antes da alteração da Lei nº 11.705/2008 era assim descrito:


“Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem:


Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”


Desta forma, o crime de embriaguez ao volante, o qual fazia parte do rol dos crimes de perigo concreto, já que o tipo penal exigia um efetivo perigo de dano a outrem. Além da ingestão de álcool, era indispensável a condução do veículo de maneira a demonstrar dano potencial. Atualmente, após a Lei 11.705/2008 essa conduta criminosa passou a ser crime de perigo abstrato.


Entendimento recente da Suprema Côrte, 2ª Turma confirma tese de que embriaguez ao volante constitui crime, o qual cita ser um crime de perigo abstrato:


A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou, na sessão de hoje (27), o Habeas Corpus (HC) 109269, impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de um motorista de Araxá (MG) denunciado por dirigir embriagado. O crime está previsto no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, mas o juiz de primeira instância absolveu o motorista por considerar inconstitucional o dispositivo, alegando que se trata de modalidade de crime que só se consumaria se tivesse havido dano, o que não ocorreu.


A Defensoria Pública pedia ao STF o restabelecimento desta sentença, sob a alegação de que “o Direito Penal deve atuar somente quando houver ofensa a bem jurídico relevante, não sendo cabível a punição de comportamento que se mostre apenas inadequado”, mas seu pedido foi negado por unanimidade de votos.


Citando precedente da ministra Ellen Gracie, o relator do habeas corpus, ministro Ricardo Lewandowski, afirmou ser irrelevante indagar se o comportamento do motorista embriagado atingiu ou não algum bem juridicamente tutelado porque se trata de um crime de perigo abstrato, no qual não importa o resultado.


“É como o porte de armas. Não é preciso que alguém pratique efetivamente um ilícito com emprego da arma. O simples porte constitui crime de perigo abstrato porque outros bens estão em jogo. O artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro foi uma opção legislativa legítima que tem como objetivo a proteção da segurança da coletividade”, enfatizou Lewandowski.”  


5 DIREITOS LEGAIS DO CONDUTOR


Conforme citado, a exigência legal de se aferir a alcoolemia do condutor para caracterização do delito impõe ao agente da lei um barreira: o direito do cidadão de não produzir provas contra si mesmo. A Constituição Federal de 1988 cita:


Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:


LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada assistência da família e de advogado”


Este princípio está expresso na Convenção Americana dos Direitos Humanos, conhecido como Pacto de São José de Costa Rica, de 1969, em seu art. 8º, § 2º “g”. É o direito a não-autoincriminação (nemo tenetur se detegere). In verbis:


Convenção Americana… Artigo 8º – Garantias judiciais (…)


§ 2° Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (…)


g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada”.


As formas de aferição do nível de álcool no sangue do infrator podem realizar-se pelo ar alveolar e pela amostra de sangue.


A determinação dos níveis sanguíneos é considerada indicador de efeito (CORRÊA, 2008). A análise pelo sangue é uma técnica invasiva ao paciente, pois requer a coleta com seringa e agulha. Além disso existe a necessidade de seguir o protocolo laboratorial para que o resultado da análise não seja distorcido: como exemplo, a coleta deve se realizar com anticoagulante e conservante fluoreto de sódio a 1% (CORRÊA, 2008).


A coleta do ar alveolar não é invasiva, mas da mesma forma que a coleta sanguínea, requer o consentimento do infrator.


CTB, Art. 165,  Parágrafo único. A embriaguez também poderá ser apurada na forma do art. 277.


Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.”


A Lei permite que a embriaguez seja apurada por outros meios não laboratoriais, como exames clínicos, que em tese não dependem da vontade do infrator. Entretanto, há de se analisar a diferença entre embriaguez e alcoolemia, pois conforme a Lei exige, deve-se comprovar a alcoolemia para a tipificação penal, e não apenas a embriaguez:


“Art. 306.  Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:”


CONCLUSÃO


A multidisciplinaridade cada vez mais é exigida no âmbito penal, o qual se evidencia pela necessidade para se interpretar a imposição do Código de Transito Brasileiro. Ao se exigir a quantificação de álcool no sangue para tipificação penal, os doutrinadores devem se embasar em conceitos médicos para interpretar a norma Legal.


Um simples exame de ar alveolar realizado pelo agente de trânsito envolve pesquisa, padronização, validação de procedimentos analíticos.


Em suma, a disseminação de artigos que versam sobre o consumo de álcool por motoristas auxiliará a justiça no embasamento de suas decisões.


 


Referências

BRASIL. Código de Processo Penal. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 13 out. 1941. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm> Acesso em 16 mar. 2012.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 17 mar. 2012.

BRASIL. Pacto de São José da Costa Rica. Brasília, DF, 22 nov. 1969. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm >. Acesso em 15 mar. 2012.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=190300&caixaBusca=N > Acesso em 17 mar. 2012.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª edi. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 786, 2006.

MOREAU, Regina Lúcia de Moraes e DE SIQUEIRA, Maria Elisa Pereira Bastos. Toxicologia Analítica, Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2008.

NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no Processo Penal, 2a edição, Editora RT, pp. 82 a 89, 2009.

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RANG, H.P.; DALE, M.M.; RITTER, J.M.; MOORE, P.K.. Farmacologia. 5.ed. Rio de Janeiro: Elsevier. 2004.

SKOOG, Douglas A.; HOLLER, F. James; NIEMAN, Timothy A. Princípios de Análise Instrumental. 5.ed. São Paulo: Bookman. 2002.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 28. ed. São Paulo: Saraiva. 2006. v. 3.

Informações Sobre o Autor

Ettore Ferrari Júnior

Farmacêutico-Bioquímico, Especialista em Análises Clínicas, Especialista em Investigação Policial


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Equipe Âmbito Jurídico

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