Para
que possamos, efetivamente, enfrentar a questão proposta – “lide como
característica exclusiva da jurisdição” – mister se faz tecermos alguns
comentários acerca dos verbetes lide e jurisdição.
Lide
é litígio. Na clássica conceituação de Carnelutti, é conflito de
interesses qualificado por uma pretensão resistida. Ultrapassada a fase de
nossa civilização em que tudo se resolvia através da autotutela,
e com o desenvolvimento da noção de Estado (conseqüentemente de Estado de
Direito), atribuiu-se a este, através de um de seus alicerces, o Judiciário, a
responsabilidade pela resolução dos conflitos intersubjetivos.
A esta função estatal
atribuiu-se a denominação ‘jurisdição’ que, segundo Liebman, consubstancia-se no poder
que toca o Estado, entre as suas atividades soberanas, de formular e
fazer atuar praticamente a regra jurídica concreta que, por força do
direito vigente, disciplina determinada situação jurídica (apud
Humberto Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil, Forense,
vol. 1, 13ª ed., p. 34).
Assim é que, no dizer de Pontes de
Miranda, “no momento em que alguém se sente ferido em algum direito, o
que por vezes é fato puramente psicológico, o Estado tem interesse em acudir à
sua revolta, em pôr algum meio ao alcance do lesado, ainda que tenha havido
erro de apreciação por parte do que se diz ofendido. A Justiça vai
recebê-lo, não porque não tenha direito subjetivo, de direito material, nem,
tampouco, ação: recebe-o como a alguém que vem prestar perante os órgãos
diferenciados do Estado a sua declaração de vontade, exercendo a sua pretensão
à tutela jurídica”. E arremata o saudoso Mestre, “o Estado só organizou a
lide judiciária com o intuito de pacificação, como sucedâneo dos outros meios
incivilizados de dirimir as contendas, e o de realização do direito objetivo,
que é abstrato. Paz, mais do que revide, é a razão da Justiça”
(em Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo I, 4ª ed., Ed.
Forense).
Seria,
assim, a jurisdição monopólio do poder estatal e a lide característica
exclusiva da atividade jurisdicional propriamente dita?
Entendemos ser negativa a resposta a tais
questionamentos. Vejamos o caso da arbitragem, regulada em nosso ordenamento
pela Lei 9.307/96.
Não obstante tenha natureza de atividade
jurisdicional, posto que a decisão arbitral “produz, entre as partes e seus
sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder
Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo” (art. 23),
representa a arbitragem verdadeira ‘justiça privada’, cujas deliberações
possuem força de definitividade, eqüivalendo,
no plano da eficácia, a uma decisão proferida pelo próprio Judiciário, ou seja,
o procedimento arbitral, mesmo sem ser judicial, é atividade jurisdicional.
O
Estado, destarte, mesmo facultando aos indivíduos a possibilidade de submeter
suas querelas ao juízo arbitral, onde um juiz extra-estatal (árbitro), fará as vezes de um juiz estatal, não deixa de manifestar seu
interesse pela justiça, posto que ao organizar e estabelecer as regras
processuais (de direito público, portanto), desta modalidade especial de
solução de litígios, tenta promover a plenitude do Direito.
Pode,
outrossim, haver jurisdição sem lide. A um complexo de atividades confiadas ao
juiz, nas quais, ao contrário do que acontece com a jurisdição contenciosa, não
há litígio entre os interessados, dá-se o nome de jurisdição
voluntária.
Na
verdade, não passa a mesma de mera atividade administrativa exercida
pelo Judiciário. Segundo classificação mencionada por Ovídio A. Batista da Silva (Curso de Processo Civil,
vol. 1, 4ª ed., RT, p. 43), divide-se em quatro categorias, a saber: intervenção
do Estado na formação de sujeitos jurídicos, como nos casos em que a lei
subordina a constituição ou o reconhecimento de pessoas jurídicas à prévia homologação
judicial; atos de integração da capacidade jurídica, tais como os casos
de intervenção judicial na nomeação de tutores e curadores, e nos processos de
emancipação; intervenção na formação do estado de pessoas, como no caso
da autorização ao menor para contrair casamento e na homologação da separação
judicial; atos de comércio jurídico, tais como autenticação de livros
comerciais, e jurisdição referente a registros públicos, quando não
contenciosa.
A
existência de uma lide, portanto, não corresponde, necessariamente, à
necessidade de uma manifestação estatal para sua resolução. Por outras
palavras, a lide continua a ser característica exclusiva da jurisdição desde
que, efetivamente, consideremos também como atividade jurisdicional aquela
exercida por particulares com a chancela do Estado, tal como ocorre na
arbitragem.
Sem
descurarmos da proposta inicial deste trabalho, vale lembrar que a paz social,
fim do Direito, só acontecerá com a participação de todos os membros de uma
sociedade.
Nesse
sentido, finalizamos com o magistério vivificante de Rudolf Von Ihering: “A paz é o fim que o
direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para o
conseguir. Por muito tempo pois que o direito ainda esteja ameaçado
pelos ataques da injustiça – e assim acontecerá enquanto o mundo for mundo –
nunca ele poderá subtrair-se à violência da luta. A vida do direito é uma luta:
luta dos povos, do Estado, das classes, dos indivíduos.Todos os direitos da
humanidade foram conquistados na luta; todas as regras importantes do direito
devem ter sido, na sua origem, arrancadas àquelas que a elas se opunham, e todo
direito, direito de um povo ou direito de um particular, faz presumir que se
esteja decidido a mantê-lo com firmeza. O direito não é pura teoria, mas uma força
viva. Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança em que pesa o
direito, e na outra a espada de que se serve para defender. A espada sem a
balança é força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito. Uma
não pode avançar sem a outra, nem haverá ordem jurídica perfeita sem a energia
com que a justiça aplica a espada seja igual à habilidade com que maneja a
balança. O direito é um trabalho incessante, não somente dos poderes públicos
mas ainda de uma nação inteira. A vida completa do direito, considerada no seu
conjunto, apresenta à nossa vista o mesmo espetáculo da luta, o trabalho sem
tréguas de uma nação que nos patenteia a atividade dos povos na posse plena da
produção econômica e intelectual. Cada particular obrigado a sustentar seu
direito toma a sua parte neste trabalho nacional e leva o seu óbulo à realização da idéia do direito sobre a terra.” (A
luta pelo Direito, 13ª ed., p. 1 e 2, Forense).
Assessor Jurídico do TJ/MA
Pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil pela FGV
Professor do UNICEUMA
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