Como se sabe, a MP nº 446, de 7-11-2008, ante a existência de milhares de recursos interpostos contra decisão denegatória da renovação da CEBAS – Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social – pendentes de julgamento pelo Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS – decretou a renovação automática dessas certificações (arts. 37, 38 e 39) atropelando o princípio do devido processo legal e afrontando o princípio da isonomia tributária à medida que deixou de fora as entidades que ainda não tiveram seus pedidos indeferidos na primeira instância administrativa.
Durante a vigência dessa medida provisória de nº 446/08, o CNAS editou as Resoluções ns. 3/09, 7/09, 8/09 e 12/09, esta última publicada no dia 9-2-2009, um dia antes de sua rejeição pelo Congresso Nacional, que está discutindo um projeto de lei mais ou menos no mesmo sentido, inclusive, ratificando os efeitos da renovação automática das certificações por um prazo determinado (PL nº 462/08).
O Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública perante a 13ª Vara da Justiça Federal em Brasília, alegando que a MP nº 446/08 gera efeitos lesivos ao patrimônio público e social.
Aduziu que o governo deu um “cheque em branco” às entidades beneficiadas com isenção de impostos. Invocou dados do TCU que apontam a inexistência de fiscalização das filantrópicas e que isso “pode privilegiar o ambiente de impunidade”. Acrescentou que o governo “encontrou a solução para as dificuldades na emissão de um cheque em branco consistente na concessão/renovação a todos os pretendentes”.
Pergunta-se, pode o Judiciário invalidar essas certificações na pendência do prazo de 60 dias a que alude o § 3º do art. 62 da CF, que confere ao Congresso Nacional a prerrogativa de disciplinar os efeitos concretos da medida provisória caducada ou rejeitada? Pode o Judiciário entrar no exame do mérito da anistia como ficou conhecida a prorrogação automática das certificações?
Entendo que o princípio da independência e harmonia dos Poderes não permite a invalidação das certificações decorrentes da MP em questão antes do decurso do prazo para a manifestação do Congresso Nacional, ao menos, nos termos em que está embasada a decisão liminar. Diferente seria na hipótese de apontamento de vícios formais.
A anistia, que decorre da certificação, por si só, não fere a ordem jurídica. Faz parte da política tributária de cada governo tanto quanto a isenção ou a não-incidência expressa. Impõe-se, apenas, que no exercício da política tributária o governo observe os princípios tributários, bem como as normas gerais em matéria tributária. Não pode, por exemplo, conceder anistia por decreto, nem outorgar isenção por lei em sentido estrito que implique violação do princípio da isonomia acarretando a exclusão dos não beneficiados do mercado da concorrência. Todos esses aspectos, podem e devem ser analisados pelo Judiciário, sem entrar no mérito da decisão política do governo.
Os argumentos utilizados para a invalidação das CEBASs, por adentrarem no exame do mérito da medida provisória, ofende, a nosso ver, o princípio da separação dos Poderes.
Se é verdade que a MP nº 446/08 promoveu uma anistia, é verdade também que esta é uma decisão política do governo, insusceptível de apreciação pelo Judiciário. O que o Poder Judiciário pode apreciar é o aspecto formal do instrumento normativo que concedeu a anistia. Pode, por exemplo, verificar se houve ou não atropelo ao princípio do devido processo legal, ao princípio do juiz natural e ao princípio da isonomia tributária. Mas, não pode o juiz adentrar no mérito da anistia propriamente dita para condená-la mediante considerações que extrapolam do âmbito jurídico. Decisão da espécie equivale à anulação de Declaração de Utilidade Pública para desapropriação de imóveis visando a abertura de uma ampla avenida em determinado local a pretexto de que a avenida deverá será aberta em local mais adequado, que atenda melhor os interesses da comunidade. Mas a DUP poderá ser sempre invalidade pelo Judiciário caso constante algum vício de ordem formal. O que não pode é examinar o mérito do ato administrativo representado pela declaração expropriatória.
No caso da invalidação das CEBASs há, ainda, o agravante de que estava fluindo o prazo para o Congresso Nacional decidir pela sua anulação ou manutenção, configurando nova afronta ao princípio da separação dos Poderes atingindo, desta vez, o Poder Legislativo.
Por tais razões, conquanto possível a anulação das certificações pelo Judiciário, sua invalidação pelo exame do mérito do ato governamental expresso na MP 446/08 conduz à nulidade da medida liminar decretada pela Justiça Federal.
Como se vê, o imbróglio das filantrópicas continua.
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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