Haveria julgamento extra petita se o reclamante pedisse reconhecimento de vínculo empregatício com a tomadora dos serviços e o juiz reconhecesse trabalho avulso, concedendo os direitos inerentes a esta modalidade laboral, fundado na responsabilidade solidária da tomadora, sem que houvesse pedido subsidiário?
Para respondermos a esta assertiva, há que se analisar os artigos 128 e 460 do CPC, de aplicação subsidiária ao processo do trabalho:
“O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte”.
“É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.”
Destaques apostos.
Inicialmente, cumpre dizer que o intérprete do direito não deve se ater à literalidade da norma, antes deve fazer uma interpretação sistemática dando a ela o grau de efetividade que mereça, procedendo, se necessário, a uma correção-técnico-científica da norma ou até desprezando sua aplicação, caso traga valores incompatíveis com outros mais relevantes. E principalmente, hoje, em que os institutos, de modo geral, têm direcionado maior poder às mãos do juiz justamente para possibilitar a concreção do direito material.
As expressões apostas nos dispositivos supra: “limites em que a lide foi proposta” e “natureza diversa da pedida”, por exemplo, são duas cláusulas gerais a serem interpretadas, segundo os ditames do pós-positivismo, casuisticamente, levando-se em conta as circunstâncias fáticas do caso concreto, autorizado o julgador afastar-se do rigor formalista para possibilitar a prestação jurisdicional satisfativa. Esse, inclusive, é o sentido da operabilidade desejada pelas recentes reformas do CPC e das cláusulas gerais e conceitos indeterminados recheados no novo Código Civil.
Vale ressaltar que o direito processual do trabalho há muito consagra esse avanço, pois como se sabe, é regido pelos princípios da simplicidade e da informalidade. E sobre a petição inicial apenas exige que contenha uma breve exposição dos fatos de que resulte o pedido (art. 840, §1º da CLT).
Nessa senda, pode-se dizer que o pedido de vínculo empregatício tencionado autoriza o juiz a reconhecer a responsabilidade solidária da demandada, vez que presentes a prestação laboral do obreiro e a norma disciplinadora dessa responsabilidade (Lei nº 8.630/93).
A subsunção a ser feita pelo julgador é similar ao caso do deferimento de responsabilidade subsidiária quando pedida a responsabilidade solidária, situação muito comum nos casos de terceirização ilícita, já bastante aceita na jurisprudência pátria, onde é compreendido que o pedido menor está implícito no pedido maior.
A própria CLT, no art. 496, já prevê essa possibilidade de interpretação, pois autoriza, expressamente, o julgador a converter a obrigação de reintegrar o obreiro na obrigação de pagar os salários quando a reintegração se revela desaconselhável.
Afastando a dúvida sobre alegação de julgamento extra petita em tais casos, o Colendo TST sumulou o seguinte entendimento:
Súmula 396. Estabilidade provisória. Pedido de reintegração. Concessão do salário relativo ao período de estabilidade já exaurido. Inexistência de julgamento “extra petita”.
II – Não há nulidade por julgamento “extra petita” da decisão que deferir salário quando o pedido for de reintegração, dados os termos do art. 496 da CLT. (negrito posterior).
Na verdade, do acervo jurisprudencial do Colendo TST, extrai-se a ilação de que essa interpretação extensiva, “de quem pede o mais pode ganhar o menos”, alcança quaisquer hipóteses. Vejamos:RECURSO DE REVISTA PRELIMINAR DE NULIDADE POR JULGAMENTO EXTRA PETITA.A C. SBDI-1 desta Corte possui entendimento pacífico no sentido de que pode ser deferida pelo Juízo prestação menos abrangente do que o pedido formulado na inicial, sem que isso redunde em julgamento extra petita. (PROC. Nº TST-RR-635.829/2000.4. Relatora Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, julgamento: 02.08.2006).
O que não se pode admitir é a situação inversa, qual seja, o autor declinar pretensão de “menor densidade” e o juiz deferir-lhe uma “mais densa”, exemplificada através do pedido de responsabilidade subsidiária e do juiz reconhecer o vínculo empregatício, com o pagamento das parcelas dele decorrentes.
Vê-se, por outro lado, que as verbas devidas no trabalho avulso não têm natureza diversa da relação de emprego. O vínculo empregatício é apenas um pedido dentro do universo de direitos decorrentes da relação de trabalho. Parcelas como 13º salário, FGTS e férias não são exclusivas dos trabalhadores empregados, são também devidas, por exemplo, aos trabalhadores avulsos.
Situação distinta seria o autor pedir o reconhecimento da relação de emprego e os direitos dela decorrentes e o juiz reconhecer a existência de um contrato de empreitada, que tem parcelas de natureza distinta daquelas, mas, mesmo assim resolve deferi-las, sem que tivesse havido o respectivo pedido. Nesta hipótese, sim, em não havendo pedido subsidiário, o deferimento de tais direitos importaria violação ao princípio da congruência, resultando em julgamento extra petita.
Então, se o juiz conceder ao obreiro direitos inerentes ao trabalho avulso quando são pedidos os da relação empregatícia – os coincidentes – não se afasta da disposição dos artigos citados (128 e 460 CPC), apenas amplia o seu alcance, adequando-o ao caso concreto. E dessa idéia não se afasta também quando entende implícito o pedido de responsabilidade solidária da tomadora dos serviços.
Por oportuno, lembra-se que contra a interpretação estreita desses dispositivos do CPC, especialmente do art. 128, algumas vozes já vêm se levantando, como a do professor José Henrique Mouta Araújo, que, em comentários sobre a terceira etapa da reforma processual civil (disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7136), disse:
Aliás, o sistema processual já merece uma reforma completa. Institutos como o exaurimento da competência, adstrição do juiz ao pedido da parte e o próprio conceito de sentença merecem maior reflexão. Todos estão sendo objeto de alteração pelo projeto 3253/04. Destarte, o conceito de sentença não trará consigo necessariamente a noção de extinção do processo, principalmente porque o feito passará para o capítulo seguinte (o da satisfação), assim como o projeto procura dar maior poder ao juiz de alcançar a solução para o caso concreto, sem as amarras que por vezes se encontram presentes no art. 128 do CPC. [1] (destaque aposto).
Importa dizer, ainda, que praticamente todos os institutos infraconstitucionais estão se reformando para se adequarem ao princípio constitucional da duração razoável do processo, introduzido no ordenamento jurídico, expressamente, através da Emenda Constitucional nº 45, de 30.12.2004, in verbis:
Art. 5º, inciso LXXVIII, CF/88 – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
E este não é o único princípio que exige uma interpretação ampla dos dispositivos em comento – datados de mais de trinta anos -, os princípios da celeridade, economia, acesso à justiça, instrumentalidade das formas, também merecem esse tratamento, princípios que, aliás, enaltecem a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho, sem falar na própria interpretação constitucional orientando a efetivação máxima de suas normas. Não remanesce, pois, dúvida, de que o rigor formal de normas processuais deve ceder à possibilidade de prestação jurisdicional satisfativa.
Mas não é só. Se levarmos para o campo do conflito de normas, isso se torna ainda mais cristalino, basta pensar na solução do conflito de normas de pesos desiguais; no confronto entre uma regra e um princípio, melhor dizendo, de duas regras (art. 128 e 460 do CPC) e de vários princípios (os citados nos parágrafos anteriores), vez que a solução dada pelo direito pós-positivista é no sentido de sucumbir a regra diante do princípio constitucional que com ele for incompatível.
E assim porque já superada a discussão de que princípio não é norma, aliás, são oportunas aqui as palavras de Bandeira de Mello (2000:747-748), que leciona:
Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais.
Paulo Bonavides (2003:288) chega a reconhecer a superioridade e hegemonia dos princípios na pirâmide normativa, chegando a dizer que quem decepa os princípios arranca as raízes da árvore jurídica. Em suas palavras:
Não há distinção entre princípios e normas, os princípios são dotados de normatividade, as normas compreendem regras e princípios, a distinção relevante não é, como nos primórdios da doutrina, entre princípios e normas, mas entre regras e princípios, sendo as normas o gênero, e as regras e os princípios a espécie.
Daqui já se caminha para o passo final da incursão teórica: a de demonstração do reconhecimento da superioridade e hegemonia dos princípios na pirâmide normativa; supremacia que não é unicamente formal, mas sobretudo material, e apenas possível na medida em que os princípios são compreendidos e equiparados e até mesmo confundido com os valores, sendo, na ordem constitucional dos ordenamentos jurídicos, a expressão mais alta da normatividade que fundamenta a organização do poder.
E com natureza normativa, os princípios são multifuncionais. Há quem defenda até a sua aplicação imediata, o que dispensaria maiores comentários para se desprezar os artigos trazidos pela recorrente em face dos princípios com eles conflitantes, mas examinemos posições menos radicais.
Para doutrinadores renomados como Canotilho (1993:167), por exemplo, os princípios “podem desempenhar uma função argumentativa, permitindo, por exemplo denotar a ratio legis de uma disposição ou revelar normas que não são expressas por qualquer enunciado legislativo, possibilitando aos juristas, sobretudo aos juízes, o desenvolvimento, integração e complementação do direito” (destaque posterior).
E de forma mais apropriada para a discussão em foco é o ensinamento do constitucionalista Celso Ribeiro Bastos (2002:79-80) quando assevera:
Aos princípios costuma-se emprestar relevantíssimas funções. Há, contudo, uma que se sobreleva às demais: a de funcionar como critério de interpretação das demais normas não-principiológicas. Disto resulta uma interferência recíproca entre regras e princípios, que faz com que a vontade constitucional só seja atribuível a partir de uma interpretação sistemática, o que por si só já exclui qualquer possibilidade de que a mera leitura de um artigo isolado esteja em condições de propiciar o desejado desvendar daquela vontade. A letra da lei é sempre o ponto de partida do intérprete, mas nunca é o de chegada.
Como se pode notar, se a regra disposta nos artigos 128 e 460 do CPC contraria não apenas um, mas vários princípios processuais, a escolha do intérprete trabalhista deve ser a dos princípios, ante ao marcante desprendimento dos rigores da forma nesta seara. Por outro giro, inspirado nos princípios citados, o juiz deve afastar a interpretação estreita das normas-regras do CPC (art. 128 e 460) para enquadrar o pedido do trabalhador na vontade da norma celetista insculpida no § 1º, art. 840, da CLT.
Entender o contrário seria fazer tábua rasa dos princípios-normas citados. Seria andar na contra-mão da dinâmica social. Seria criar obstáculos ao surgimento das necessidades do direito moderno.
Antônia Maria de Castro Silva (Tânia Castro). Bacharela em Direito. Aprovada no exame da OAB. Pós-graduada em Direito do Trabalho. Pós graduanda em Processo Civil. Pós-graduada pela ESMATRA. Servidora Pública Federal (TRT/16)
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