Sumário – 1. Delimitação do tema. 2. Esclarecimento preliminar e estrutura do texto. 3. Das demandas individuais às demandas de massa: a necessidade de reformulação do sistema brasileiro de processos coletivos. 4. O anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos (Instituto Brasileiro de Direito Processual). 5. Distinção entre a tutela de direitos coletivos e a tutela coletiva de direitos. 6. Alguns pontos controversos do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. 6.1. Cabimento da arbitragem nos direitos coletivos 6.2. O controle difuso de constitucionalidade como prejudicial de mérito. 6.3. Necessária e prévia opção entre a demanda coletiva e a ação individual. 6.4. A prioridade de processamento das demandas coletivas sobre as individuais em face da autonomia privada e do direito fundamental à razoável duração do processo. 6.5. Isonomia entre as funções essenciais à justiça em matéria de legitimação ativa para o processo coletivo. 7. Conclusão. 8. Referências bibliográficas.
1. Delimitação do Tema.
O presente estudo tem por objetivo analisar alguns dispositivos controversos do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos[1], elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual, sob a coordenação dos eminentes professores Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe e Antonio Gidi.
As considerações desenvolvidas ao longo do texto são fruto da experiência do autor como membro de Comissão[2] constituída pela Advocacia-Geral da União, mais especificamente pela Procuradoria-Geral Federal, para análise do Anteprojeto, com vistas a preservar o interesse público e as prerrogativas da Fazenda Pública.
2. Esclarecimento Preliminar e Estrutura do Texto.
Em sua versão atual, datada de janeiro de 2007, o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos conta com 52 artigos, subdivididos em inúmeros parágrafos e alíneas. A análise de todos esses dispositivos, ainda que perfunctória, seria extensa e cansativa, além de comprometer o caráter científico do texto[3].
No ponto, vale lembrar a imortal lição de Piero Calamandrei, para quem concisão e clareza são as características primordiais de um texto jurídico:
“Lembra-te que a concisão e a clareza são as duas qualidades que o juiz mais aprecia nos discursos dos advogados.
– E se eu não puder ser ao mesmo tempo breve e conciso, qual dessas qualidades devo suprimir para desgostar o mínimo possível o juiz?
– A clareza é inútil se o juiz, vencido pela prolixidade, adormece. Mais aceitável é a brevidade, ainda que obscura: quando um advogado fala pouco, o juiz compreende que tem razão, ainda que não compreenda o que diz.[4]”
Atentando para a citada lição, optou-se por redigir frases curtas, sempre que possível, na ordem direta, reservando para o rodapé do texto as referências doutrinárias e jurisprudenciais. Desse modo, espera-se que a leitura se torne mais fluida e agradável, sem prejuízo da fundamentação técnica.
O estudo se subdivide em duas partes. Na primeira, serão abordados alguns conceitos básicos, indispensáveis à compreensão do sistema de processos coletivos, tais como a distinção entre a tutela de direitos coletivos e a tutela coletiva de direitos. Nesse ponto, as definições doutrinárias limitar-se-ão aos conceitos imediatamente conexos à matéria, não se alongando na discussão de aspectos acessórios, que se presumem conhecidos pelo leitor. A segunda parte é dedicada à análise de alguns dispositivos do Anteprojeto, justificando a necessidade de alterações em seu texto, ou mesmo de sua supressão.
3. Das demandas individuais às demandas de massa: a necessidade de reformulação do Sistema Brasileiro de Processos Coletivos.
O atual Código de Processo Civil (Lei n° 5.869, de 11 de janeiro de 1973) e seu antecessor (Decreto-lei n° 1.608, de 18 de setembro de 1939)[5] foram concebidos com base em uma sociedade na qual predominavam os conflitos envolvendo direitos subjetivos individuais, com titulares determinados. Nas palavras de Teori Albino Zavascki:
“[O Código de Processo Civil brasileiro, de 1973] foi moldado para atender à prestação da tutela jurisdicional em casos de lesões a direitos subjetivos individuais, mediante demandas promovidas pelo próprio lesado.
Assim, como regra, ‘ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei’ (CPC, art. 6°). Não se previu, ali, instrumentos para a tutela coletiva desses direitos, salvo mediante a fórmula tradicional do litisconsórcio ativo, ainda assim sujeito, quanto ao número de litisconsortes, a limitações indispensáveis para não comprometer a defesa do réu e a rápida solução do litígio (art. 46, parágrafo único, do CPC). Não se previu, igualmente, instrumentos para a tutela de direitos e interesses transindividuais, de titularidade indeterminada, como são os chamados ‘interesses difusos e coletivos’.”[6]
Por esse modelo clássico, a demanda era movida pelo próprio titular do direito subjetivo contra o demandado[7]. Por exemplo, o proprietário de um imóvel objeto de locação ajuíza ação de cobrança dos aluguéis contra o locatário inadimplente, pretendendo a satisfação[8] de seu crédito. Neste ponto, é importante diferenciar os conceitos de parte e de pessoa. No pólo ativo do processo, figura a parte autora, quem exerceu o direito constitucional de ação, enquanto no pólo passivo encontra-se a parte demandada, o réu. Isto não significa que cada parte deva ser composta, necessariamente, por uma única pessoa. Pode ocorrer, por exemplo, que o imóvel pertença, em condomínio[9], a cinco pessoas diferentes, caso em que todas poderão integrar o pólo ativo, em regime de litisconsórcio[10].
Do mesmo modo, em relação ao pólo passivo, se fossem vários os locatários, solidariamente responsáveis pelo pagamento dos aluguéis[11].
Nessa sistemática, a regra é a de que somente o pretenso titular do direito material pode ingressar em juízo, requerendo sua tutela. Apenas em casos excepcionais, expressamente autorizados por lei, a ação poderia ser ajuizada por um terceiro.[12]
Ocorre que modificações estruturais operadas na sociedade brasileira – e em âmbito mundial – fizeram surgir conflitos para os quais o processo civil clássico não concebera instrumentos adequados. Trata-se das demandas envolvendo direitos ou interesses coletivos, em sentido amplo.
“(…) são comuns e cada vez mais freqüentes, no mundo atual, as situações em que se configura o nascimento de direitos subjetivos que, pertencentes a um grande número de pessoas diferentes, derivam de um mesmo fundamento de fato ou de direito ou guardam, entre si, relação de afinidade em alto grau, em razão das referências jurídicas e fáticas que lhes servem de base. A sua defesa coletiva em regime de litisconsórcio ativo é, conforme reconhece o próprio Código de Processo, inviável do ponto de vista prático. E a alternativa de sujeitar cada um dos interessados a demandar individualmente é ainda mais acabrunhadora: do ponto de vista do titular do direito, pelo custo que representa ir a juízo, entendido esse custo em seu sentido mais amplo – financeiro, emocional, profissional, social -, incompatível, não raro, com o escasso resultado que pode advir de uma sentença de procedência; do ponto de vista do Estado, pela enxurrada de demandas que cada uma dessas lesões coletivas pode produzir, aumentando o custo e reduzindo a eficiência da máquina judiciária; e do ponto de vista social, pelo desestímulo à busca dos direitos lesados, pela potencial desigualdade de tratamento produzida por sentenças contraditórias, pela impunidade dos infratores e o conseqüente estímulo à infração, pelo descrédito da função jurisdicional, pela desesperança dos cidadãos.”[13]
Dadas as peculiaridades desses novos direitos, de índole transindividual, tornou-se necessária a elaboração de mecanismos processuais próprios, capazes de lhes conferir tutela adequada. Bens jurídicos como o meio ambiente saudável, que interessam à sociedade como um todo, inclusive às futuras gerações,[14] não poderiam ser satisfatoriamente protegidos apenas com as disposições clássicas do Código de Processo Civil. Atento a essa nova realidade, o legislador criou um subsistema processual específico, destinado à tutela dos direitos transidividuais, rotulado pela doutrina de processo coletivo:
“(…) o subsistema do processo coletivo tem, inegavelmente, um lugar nitidamente destacado no processo civil brasileiro. Trata-se de subsistema com objetivos próprios (a tutela de direitos coletivos e a tutela coletiva de direitos), que são alcançados à base de instrumentos próprios (ações civis públicas, ações civis coletivas, ações de controle concentrado de constitucionalidade, em suas várias modalidades), fundados em princípios e regras próprios, o que confere ao processo coletivo uma identidade bem definida no cenário processual.”[15]
O cerne do sistema brasileiro de processos coletivos repousa na reciprocidade existente entre o Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990) e a Lei da Ação Civil Pública (Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985)[16]. Esses diplomas legais aplicam-se, de forma complementar[17], às causas envolvendo interesses transindividuais, visto que ainda não existe um código específico para a matéria. Além do subsistema formado pelo Código de Defesa do Consumidor e pela Lei da Ação Civil Pública, há diversas outras normas disciplinando processos de índole coletiva, tal como a Lei da Ação Popular (Lei n° 4.717, de 29 de junho de 1965), a Lei n° 7.913, de 07 de dezembro de 1989, que trata da propositura, pelo Ministério Público, de ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990), dentre outras.
Não obstante os inegáveis méritos desse microssistema processual, responsável, até hoje, pela tutela dos interesses transindividuais no Brasil, o fato é que surgiram inúmeras dificuldades práticas em sua aplicação, decorrentes, em parte, da inexistência de um código, capaz de sistematizar e ordenar a matéria:
“(…) a aplicação prática das normas brasileiras sobre processos coletivos (ação civil pública, ação popular, mandado de segurança coletivo) tem apontado para dificuldades práticas decorrentes da atual legislação: assim, por exemplo, dúvidas surgem quanto à natureza da competência territorial (absoluta ou relativa), sobre a litispendência (quando é diverso o legitimado ativo), a conexão (que, rigidamente interpretada, leva à proliferação de ações coletivas e à multiplicação de decisões contraditórias), à possibilidade de se repetir a demanda em face de prova superveniente e a de se intentar ação em que o grupo, categoria ou classe figure no pólo passivo da demanda.”[18]
4. O Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos (Instituto Brasileiro de Direito Processual).
Os problemas vivenciados pelo microssistema brasileiro de processos coletivos, já referidos no tópico anterior, têm conduzido a um movimento de codificação da matéria, a fim de conferir-lhe maior unidade e sistematicidade, reunindo, em um único texto, as normas hoje dispersas em vários diplomas legais. Na esteira desse movimento, eminentes doutrinadores dedicaram-se à árdua tarefa de redigir um Anteprojeto de Código de Processos Coletivos. Dessa iniciativa resultaram, dentre outros[19]:
1) O Modelo de Código Civil Coletivo para Países de Direito Escrito, da lavra de Antônio Gidi;
2) O Anteprojeto de Código Modelo de Processos Coletivos para a Ibero-América, redigido por comissão composta pelos juristas Ada Pellegrini Grinover, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, Aníbal Quiroga León, Antônio Gidi, Enrique M. Falcon, José Luiz Vasquez Sotelo, Kazuo Watanabe, Ramiro Bejarano Guzmán, Roberto Berizonce e Sergio Artavia;
3) O Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, fruto de estudos conduzidos pelo professor Aluísio Gonçalves de Castro Mendes, no seio dos Programas de Pós-Graduação da UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro e UNESA – Universidade Estácio de Sá; e
4) O Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual.
Todos os textos citados são de excelente qualidade técnica, espelhando a seriedade e competência de seus idealizadores. Contudo, tem sido dado maior destaque ao Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual, cujo texto já fora revisado por diversos órgãos públicos[20], englobando os principais pontos positivos das demais propostas e sendo continuamente aperfeiçoado até a versão atual, datada de janeiro de 2007, razão pela qual se consolidou como referência na matéria.
Destarte, as análises feitas ao longo deste estudo baseiam-se no Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual, doravante referido apenas como Anteprojeto.
O referido diploma processual ostenta nítida preocupação em instituir um sistema coeso e, ao mesmo tempo, aberto, aprimorando as regras atualmente existentes, preenchendo lacunas e eliminando contradições:
“(…) a tônica do Anteprojeto é a de manter, em sua essência, as normas da legislação em vigor, aperfeiçoando-as por intermédio de regras não só mais claras, mas sobretudo mais flexíveis e abertas, adequadas às demandas coletivas. (…)
Cumpre observar, ainda, que o texto ora apresentado representa um esforço coletivo, sério e equilibrado, no sentido de reunir, sistematizar e melhorar as regras brasileiras sobre processos coletivos, hoje existentes em leis esparsas, às vezes inconciliáveis entre si, harmonizando-as e conferindo-lhes tratamento consentâneo com a relevância jurídica, social e política dos interesses e direitos transindividuais e individuais homogêneos. Tudo com o objetivo de tornar sua aplicação mais clara e correta, de superar obstáculos e entraves que têm surgido na prática legislativa e judiciária e de inovar na técnica processual, de modo a extrair a maior efetividade possível de importantes instrumentos constitucionais de direito processual.”[21]
A grande vantagem do Anteprojeto sobre o sistema atualmente existente é a de redimensionar os princípios, as diretivas axiológicas fundamentais da matéria e, a partir delas, construir regras capazes de garantir a máxima efetividade da tutela jurisdicional de interesses transindividuais[22].
Para tanto, não basta observar a técnica jurídica. É necessário, também e primordialmente, que o Anteprojeto prime pela clareza de seus dispositivos[23], pois a norma bem redigida contribui para reduzir as controvérsias doutrinárias e, conseqüentemente, as decisões judiciais conflitantes:
“Redigir leis é tarefa de alta responsabilidade. O principal atributo da lei bem redigida é a correção técnica. Impõe-se que as palavras sejam empregadas em sentido tecnicamente incensurável. Ao lado desse, outro importante atributo é a clareza. A leitura do texto legal deve transmitir ao aplicador das normas idéias que correspondam com fidelidade àquilo que se teve em vista ao elaborá-las, prevenindo, tanto quanto possível, dúvidas e dificuldades interpretativas. Muitas complicações processuais seriam evitadas, com grande benefício no concernente à duração dos pleitos, se os juízes não se vissem desafiados, a cada momento, a decifrar enigmas, como vem ocorrendo, com alarmante freqüência, nos últimos tempos.”[24]
Apesar de todos os esforços já despendidos, o Anteprojeto apresenta, ainda, algumas imperfeições que dificultam a plena compreensão do conteúdo e alcance de suas normas. Apenas para ilustrar, veja-se como a redação atual do artigo 46, caput, encontra-se truncada, em comparação com a que se propõe:
Redação Atual do Anteprojeto Redação Sugerida
“Art. 46. Do Cadastro Nacional de Processos Coletivos – O Conselho Nacional de Justiça organizará e manterá o Cadastro Nacional de Processos Coletivos, com a finalidade de permitir que todos os órgãos do Poder Judiciário e todos os interessados tenham acesso ao conhecimento da existência de ações coletivas, facilitando a sua publicidade.”
“Art. 46. Do Cadastro Nacional de Processos Coletivos – O Conselho Nacional de Justiça organizará e manterá o Cadastro Nacional de Processos Coletivos, com a finalidade de permitir que todos os órgãos do Poder Judiciário e todos os interessados tenham ciência das ações coletivas em curso ou já definitivamente julgadas.”
Outro aspecto formal a ser observado diz respeito à previsão contida no artigo 23, § 8° do Anteprojeto:
“Art. 23. (…)
§ 8º Constituem crime, punido com pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, mais multa, a recusa, o retardamento ou a omissão de dados técnicos ou informações, quando requisitados pelo Ministério Público.”
O dispositivo citado é a única norma de índole criminal do Anteprojeto, dispersa em meio a regras de caráter processual. Em observância aos ditames da Lei Complementar n° 95/1998[25], melhor seria suprimi-lo e regular a matéria no Código Penal, por exemplo, com a previsão de uma forma qualificada do crime de desobediência, atualmente disciplinado no artigo 330[26], ou mediante inclusão de preceito equivalente na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público.
Modificações sutis, como essas, contribuiriam para a melhor compreensão do sentido e alcance do Anteprojeto. Porém, para não parecer demasiado formalista, optou-se por registrar neste texto, doravante, apenas considerações de ordem técnica.
5. Distinção entre a Tutela de Direitos Coletivos e a Tutela Coletiva de Direitos.
Os interesses ou direitos transindividuais, também denominados de coletivos em sentido amplo, subdividem-se em três espécies: os direitos difusos, os coletivos stricto sensu e os individuais homogêneos.
“a) se o que une interessados determináveis, com interesses divisíveis, é a origem comum da lesão (p. ex., os consumidores que adquirem produtos fabricados em série com o mesmo defeito), temos interesses individuais homogêneos; b) se o que une interessados determináveis é a circunstância de compartilharem a mesma relação jurídica indivisível (como os consumidores que se submetem à mesma cláusula ilegal em contrato de adesão), temos interesses coletivos em sentido estrito; c) se o que une interessados indetermináveis é a mesma situação de fato, mas o dano é individualmente indivisível (p. ex., os que assistem pela televisão à mesma propaganda enganosa), temos interesses difusos.”[27]
Nos direitos difusos e coletivos a relação jurídica é incindível[28]. A defesa dos interesses de um único titular repercute, necessariamente, na esfera jurídica dos demais. Assim, por exemplo, a proteção de determinado recurso ambiental, obtida em ação popular ajuizada por um único cidadão, beneficia toda a sociedade, por ser o meio ambiente um bem de uso comum do povo. Por isso, os direitos difusos e coletivos devem ser tutelados mediante processo coletivo, a fim de assegurar que a eficácia da decisão atinja todos os interessados, de maneira uniforme[29].
Por outro lado, nos direitos individuais homogêneos, cada indivíduo é titular de relação jurídica autônoma e específica. A tutela ao direito de cada um não repercute, necessariamente, na esfera jurídica dos demais. Exemplificando, se dois contribuintes recolheram um mesmo tributo[30], declarado inconstitucional, pode um deles ajuizar ação de repetição de indébito, para reaver o valor pago indevidamente[31], sem que o outro seja atingido por essa ação. Nada impede, contudo, que os direitos individuais homogêneos sejam tutelados como se fossem indivisíveis, em virtude de sua origem comum, o que os torna semelhantes[32]. É o que ocorre, por exemplo, quando uma associação de contribuintes ajuíza demanda coletiva requerendo a declaração do direito ao ressarcimento dos valores indevidamente recolhidos ao erário, caso em que eventual decisão de procedência beneficiará a todos os associados.
Ou seja, os direitos individuais homogêneos admitem tanto o ajuizamento de demanda autônoma, por cada titular, separadamente, segundo as regras clássicas do Código de Processo Civil[33], quanto a forma coletiva de defesa. Em relação a eles, a utilização do processo coletivo é mera faculdade à disposição de seu titular, altamente recomendável, porém não obrigatória. De outra sorte, nos direitos difusos e coletivos, a tutela individual é inadmissível.
Por essa razão, a doutrina se refere aos direitos difusos e coletivos (stricto sensu) como essencialmente coletivos, ao passo que os individuais homogêneos seriam apenas acidentalmente coletivos[34].
Importante ressaltar que essa classificação baseia-se na espécie de procedimento judicial utilizado para tutela e não no direito material em si:
“(…) a afirmação segundo a qual os direitos individuais homogêneos assumem, às vezes, a ‘roupagem’ de direito coletivo e, como tal, podem ser classificados como ‘acidentalmente coletivos’, ou, ainda, como ‘subespécie dos interesses coletivos’, deve ser entendida com reservas.
É classificação decorrente, não de um enfoque material do direito, mas, sim, de um ponto de vista estritamente processual. O ‘coletivo’, consequentemente, diz respeito apenas à ‘roupagem’, ao acidental, ou seja, ao modo como aqueles direitos podem ser tutelados. Porém, é imprescindível ter presente que o direito material – qualquer direito material – existe antes e independentemente do processo. Na essência e por natureza, os direitos individuais homogêneos, embora tuteláveis coletivamente, não deixam de ser o que realmente são: genuínos direitos subjetivos individuais.”[35]
Assim, quando se fala em tutela de direitos coletivos, está-se referindo à tutela dos direitos difusos e coletivos em sentido estrito, a qual deve se processar, necessariamente, por meio dos instrumentos do processo coletivo. Já a tutela coletiva de direitos diz respeito à aplicação facultativa desses instrumentos aos direitos individuais homogêneos, quando seu titular não pretenda valer-se do processo individual[36].
Neste ponto, importante mencionar a crítica de Calixto Salomão Filho. Para o referido autor, a divisão clássica (com três espécies: difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos) estaria equivocada por basear-se no aspecto subjetivo, no vínculo entre os titulares do direito, ao invés de considerar o objeto da relação jurídica de direito material. Sustenta que somente quando este objeto merecer proteção autônoma, distinta daquela conferida aos seus titulares ou ao interesse público, é que se poderá falar em um direito verdadeiramente coletivo.
Para essa corrente, pouco importa se os sujeitos da relação jurídica de direito material são vinculados por circunstâncias de fato ou por uma relação jurídica base (critério dominante na doutrina e positivado pelo Código de Defesa do Consumidor em seu art. 81, parágrafo único, I e II). Contanto que a relação jurídica de direito material que une os sujeitos não se confunda com o interesse individual de cada um, nem com a soma deles, nem, tampouco, com o interesse público, configurar-se-á um interesse institucional autônomo, a ser tutelado por meio de ação coletiva. De outra sorte, se a relação jurídica de direito material não possuir autonomia suficiente para se destacar do interesses individual – considerado singularmente ou em conjunto – ou mesmo do interesse público, o direito não será essencialmente coletivo, ainda que admita essa forma de tutela (como ocorre com os direitos individuais homogêneos).
Sendo assim, direitos difusos e coletivos stricto sensu, do ponto de vista material, seriam uma mesma espécie. Haveria que se diferenciar apenas entre interesses institucionais (na terminologia empregada pelo referido autor, que engloba os direitos difusos e coletivos em sentido estrito) e interesses individuais homogêneos[37].
Essa breve incursão teórica é de fundamental importância para a compreensão das considerações feitas a seguir.
6. Alguns pontos controversos do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos.
Neste tópico, serão feitas breves considerações sobre alguns dispositivos do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, seguindo a ordem em que são apresentados nesse diploma, não com a finalidade de depreciá-los, mas apenas no intuito de contribuir para que se tornem ainda mais claros e precisos.
6.1. Cabimento da Arbitragem nos Direitos Coletivos.
Dispõe o Anteprojeto[38]:
“Art. 3°. (…)
§ 2o Para a tutela dos interesses e direitos previstos nas alíneas II e III do artigo 3º e observada a disponibilidade do bem jurídico protegido, as partes poderão estipular convenção de arbitragem, a qual se regerá pelas disposições do Código de Processo Civil e da Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996.”
A norma em comento faculta a utilização da arbitragem em litígios que versem sobre direitos coletivos stricto sensu ou individuais homogêneos, desde que observada a disponibilidade do bem jurídico protegido. Inicialmente, cumpre frisar que a arbitragem constitui importante mecanismo alternativo de solução de conflitos, que visa a desobstruir o Poder Judiciário[39]. Tal mecanismo somente se aplica a direitos patrimoniais disponíveis[40].
Ocorre que os direitos difusos e os coletivos em sentido estrito, por envolverem relação jurídica incindível, são essencialmente indisponíveis[41]. Consequentemente, não podem ser objeto de arbitragem.
Reforça esse entendimento o fato de que a arbitragem é constituída por um acordo de vontades, externado em um contrato[42]. Nesse caso, exige-se que as partes possuam capacidade para contratar[43], o que, de regra, não ocorre no processo coletivo, em que a ação é movida por substituto processual[44], que não é titular do direito discutido e, por isso, não pode contratar em nome dos titulares.
Não se deve confundir, entretanto, a impossibilidade de arbitragem com a vedação de transação[45]. Esta é admissível desde que não se relacione ao direito material discutido em Juízo, mas apenas ao modo de cumprimento da obrigação[46].
Em conclusão parcial, pode-se afirmar que a arbitragem é inaplicávelaos direitos difusos e coletivos em sentido estrito, dada sua indivisibilidade.
Resta verificar se tal providência é compatível com a natureza dos direitos individuais homogêneos.
Como visto, esses direitos geram, para cada titular, relação jurídica autônoma, passível de tutela processual segundo as regras clássicas do Código de Processo Civil. Nada obsta, entretanto, que sejam coletivamente postulados em juízo, em virtude de sua homogeneidade[47]. Quando tutelados coletivamente, os direitos individuais homogêneos são tratados como indivisíveis, havendo substituição processual ao invés de legitimação ordinária, à semelhança do que ocorre com os direitos difusos e coletivos em sentido estrito. E, pelas mesmas razões destes, não admitem a arbitragem.
Somente na ação de cumprimento, a ser movida posteriormente, levando-se em conta as peculiaridades de cada relação jurídica (como o cui debeatur e o quantum debeatur), o direito individual homogêneo é tratado como disponível[48], caso em que seria cabível a arbitragem.
Em suma, sustenta-se o posicionamento de que a arbitragem é incompatível com a tutela dos direitos difusos e coletivos em sentido estrito, sendo admissível em relação aos direitos individuais homogêneos, quando tutelados individualmente, ou durante a ação de cumprimento posterior ao processo coletivo.
6.2. O Controle Difuso de Constitucionalidade como Prejudicial de Mérito.
O artigo 4°, parágrafo único, do Anteprojeto está assim redigido:
“Art. 4°. (…)
Parágrafo único. A análise da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo poderá ser objeto de questão prejudicial, pela via do controle difuso.”
O mencionado dispositivo afina-se com a jurisprudência dominante dos Tribunais Superiores, porém merece algumas reflexões, dada a importância da matéria.
Tanto o Supremo Tribunal Federal[49] quanto o Superior Tribunal de Justiça[50] admitem a argüição de questão constitucional em processos coletivos, pela via do controle difuso, desde que formulada como questão prejudicial[51], uma vez que sobre esta não incide a coisa julgada[52].
O que não se permite é que a declaração de inconstitucionalidade seja o próprio pedido da ação, caso em que esta funcionaria, por via oblíqua, como instrumento de controle concentrado de constitucionalidade, pois, sendo a relação jurídica incindível, os efeitos da coisa julgada se estenderiam para além da lide in concreto, alcançando todos os titulares do direito. Nessa hipótese, a declaração de inconstitucionalidade, ainda que incidental, teria efeito prático semelhante ao de uma decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de constitucionalidade[53]. Haveria, assim, usurpação da competência constitucional do Supremo Tribunal Federal, além de ampliação indevida da legitimidade para a propositura de tais ações[54].
Nas palavras de Alexandre de Moraes:
“Ocorre, porém, que, se a decisão do Juiz ou Tribunal, em sede de ação civil pública, declarando a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo – seja municipal, estadual, distrital ou federal -, em face da Constituição Federal gerar efeitos erga omnes, haverá usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal, por ser o único Tribunal em cuja competência encontra-se a interpretação concentrada da Constituição Federal.
Nesses casos, não se permitirá a utilização de ação civil pública como sucedâneo de ação direta de inconstitucionalidade, a fim de exercer controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo.”[55]
Exemplificando: numa ação civil pública cujo pedido é a proibição de construção de determinada usina hidrelétrica, em virtude do prejuízo irreparável que possa causar ao meio ambiente, é possível requerer a declaração incidental de inconstitucionalidade da norma que autorizou a obra, uma vez que o alcance dessa declaração limitar-se-á ao caso concreto, impedido a realização de ato específico. Tal decisão não impede que outras hidrelétricas sejam posteriormente edificadas, tendo como fundamentado a mesma norma.
Inadmissível seria que, a pretexto de tutelar situação concreta, o pedido veiculado na referida ação civil pública fosse a própria declaração de inconstitucionalidade da norma, em caráter abstrato e com efeitos erga omnes. Haveria, nesta última hipótese, verdadeira ação direta de inconstitucionalidade travestida de ação civil pública, movida por quem não é legitimado e perante juízo incompetente.
Um dos fundamentos utilizados para justificar a possibilidade de controle difuso de constitucionalidade nas demandas coletivas, como questão prejudicial, é o fato de que a eficácia da decisão restringir-se-ia à competência territorial do órgão prolator, conforme determina o artigo 16 da Lei de Ação Civil Pública[56]. Ocorre que essa regra vem sendo paulatinamente flexibilizada, com o objetivo de ampliar a eficácia das decisões proferidas nas demandas coletivas. Exemplo disto é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça segundo o qual o citado artigo 16 é inaplicável às demandas que versem sobre direitos individuais homogêneos[57]. O Anteprojeto vai além e amplia a eficácia da decisão também para os direitos difusos e coletivos stricto sensu, ao dispor, sem ressalva, que “a competência territorial do órgão julgador não representará limitação para a coisa julgada erga omnes”[58].
Essa possível modificação reforça a importância de se analisar o entendimento oposto, sustentado pelo Ministro Gilmar Mendes, no sentido de que a declaração incidental de inconstitucionalidade proferida em processos coletivos, mesmo como simples questão prejudicial, é passível de usurpar a competência do Supremo Tribunal Federal:
“Em face das características especiais que ornam a ação civil pública, seria lícito indagar sobre a sua adequação para o controle de constitucionalidade das leis na modalidade de controle incidental ou concreto. Em outros termos, seria possível que o juiz, ao apreciar pedido formulado em ação civil pública, afastasse topicamente a incidência ou a aplicação de uma dada norma federal ou estadual em face da Constituição Federal? Qual seria a eficácia dessa decisão? É fácil ver, desde logo, que a ação civil pública não se confunde, pela própria forma e natureza, com os processos cognominados de ‘processos subjetivos’. A parte ativa nesse processo não atua na defesa de interesse próprio, mas procura defender um interesse público devidamente caracterizado. Assim sendo, afigura-se difícil senão impossível sustentar-se que a decisão que, eventualmente, afastasse a incidência de uma lei considerada inconstitucional, em ação civil pública, teria efeito limitado às partes processualmente legitimadas. É que, como já enunciado, a ação civil pública aproxima-se muito de um típico processo sem partes ou de um processo objetivo, no qual a parte autora atua não na defesa de situações subjetivas, agindo, fundamentalmente, com escopo de garantir a tutela do interesse público (…). Não foi por outra razão que o legislador, ao disciplinar a eficácia da decisão proferida na ação civil, viu-se compelido a estabelecer que ‘a sentença civil fará coisa julgada erga omnes’. Isso significa que, se utilizada com o propósito de proceder ao controle de constitucionalidade, a decisão que, em ação civil pública afastar a incidência de dada norma por eventual incompatibilidade com a ordem constitucional, acabará por ter eficácia semelhante à das ações diretas de inconstitucionalidade, isto é, eficácia geral e irrestrita. (…). Deve-se acrescentar, ademais, que o julgamento desse tipo de questão pela jurisdição ordinária de primeiro grau suscita um outro problema, igualmente grave, no âmbito da sistemática de controle de constitucionalidade adotada no Brasil. Diferentemente da decisão incidenter tantum proferida nos casos concretos, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, cuja eficácia fica adstrita às partes do processo, a decisão sobre a constitucionalidade de lei proferida pelo juiz de primeiro grau haveria de ser dotada de eficácia geral e abstrata. Nem poderia ser diferente: como as partes na ação civil pública atuam não na defesa de interesse jurídico específico, mas, propriamente, na proteção do interesse público, qualquer pretensão no sentido de limitar a eficácia das decisões proferidas nesses processos apenas às partes formais do processo redundaria na sua completa nulificação. Em outros termos, admitida a utilização da ação civil pública como instrumento adequado de controle de constitucionalidade, tem-se ipso jure a outorga à jurisdição ordinária de primeiro grau de poderes que a Constituição não assegura sequer ao Supremo Tribunal Federal. É que, como visto, a decisão sobre a constitucionalidade de lei proferida pela Excelsa Corte no caso concreto tem, necessária e inevitavelmente, eficácia inter partes, dependendo a sua extensão de atuação do Senado Federal. (…) Nessas condições (…), tem-se de admitir a completa inidoneidade da ação civil pública como instrumento de controle de constitucionalidade, seja porque ela acabaria por instaurar um controle direto e abstrato no plano da jurisdição de primeiro grau, seja porque a decisão haveria de ter, necessariamente, eficácia transcendente das partes formais.”[59]
Para solucionar o problema, propõe o Ministro Gilmar Mendes uma solução de lege ferenda, consistente na suspensão da ação coletiva e remessa dos autos ao Supremo Tribunal Federal, via argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos casos em que houver argüição de inconstitucionalidade, a fim de que essa Corte se pronuncie sobre a matéria[60].
A posição que ora se defende é intermediária. Não admite irrestritamente a declaração incidental de inconstitucionalidade como questão prejudicial, tal como o faz a jurisprudência dominante, nem a afasta por completo, nos moldes propostos pelo Ministro Gilmar Mendes.
Firme na distinção entre a tutela de direitos coletivos (transindividuais e incindíveis) e a tutela coletiva de direitos (individuais, específicos e divisíveis), o que se propõe é que a declaração incidental de inconstitucionalidade, via questão prejudicial, somente seja cabível nas ações coletivas que versem sobre direitos individuais homogêneos, porque nestas a eficácia da decisão alcançará sujeitos determinados, não repercutindo sobre a validade da norma, em abstrato:
“Reafirma-se, do exposto, que não se pode confundir sentença genérica com sentença sobre a lei em tese. Também as sentenças genéricas produzidas no âmbito das ações coletivas para tutelar direitos individuais homogêneos fazem juízo de certeza, ainda que parcial, sobre relações jurídicas concretas, nascidas de específicas situações de fato. A norma jurídica, portanto, é apenas fundamento para a decisão, nunca o seu objeto.
O exame da validade ou do conteúdo do preceito normativo serve como elemento para o juízo de declaração a respeito da existência ou da inexistência da relação jurídica, ou seja, dos efeitos que a sua incidência, sobre o suporte fático, produziu no mundo jurídico.
Cumpre ao autor das ações coletivas, portanto, indicar, na petição inicial, o fato concreto e atual que causou ou está em vias de causar a lesão aos direitos subjetivos individuais tutelados na demanda.”[61]
Este entendimento não é novidade, já tendo sido sustentado pelos Ministros Ilmar Galvão, Moreira Alves e Carlos Velloso, em votos proferidos no Supremo Tribunal Federal, nas Reclamações de n° 597/SP, 600/SP e 602/SP, todas julgadas em 03.09.1997. Contudo, optou-se por renovar a discussão, uma vez que o momento é bastante propício, tendo em vista a possibilidade de regulamentação da matéria no Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos.
6.3. Necessária e prévia opção entre a demanda coletiva e a ação individual.
É possível que tramitem, simultaneamente, uma ação coletiva e uma ou mais ações individuais tendo por objeto o mesmo bem jurídico, já que a hipótese não enseja litispendência[62]. Nesse caso, importa definir qual a relação existente entre essas causas, a fim de que o indivíduo não seja atingido por duas decisões, possivelmente conflitantes.
No Direito norte-americano, uma vez proposta a ação coletiva, sua existência deverá ser comunicada a todos os autores de ação individual tendo por objeto o mesmo bem jurídico. Feita essa comunicação, a eficácia da decisão proferida no processo coletivo alcançará a todos[63], salvo os que, expressamente, optarem por continuar com a ação individual. Este direito de não ser alcançado pela coisa julgada decorrente do processo coletivo denomina-se right to opt out[64]. Regramento semelhante foi adotado em Portugal, por meio da Lei n° 83, de 31 de agosto de 1995[65].
No Brasil, o tema é tratado de modo diverso. Segundo o Direito pátrio[66], a vinculação do autor individual à demanda coletiva é que depende de pronunciamento expresso (right to opt in). Não havendo manifestação nesse sentido, permanecerá o indivíduo sujeito, apenas, à eficácia da decisão proferida no processo individual.
Nota-se, nos ordenamentos citados, um traço comum: a necessidade de opção entre a demanda coletiva e a individual, não podendo o mesmo indivíduo sujeitar-se, simultaneamente, a ambas.
O Anteprojeto disciplina esse direito de opção da seguinte forma:
“Art. 7°. A demanda coletiva não induz litispendência para as ações individuais em que sejam postulados direitos ou interesses próprios e específicos de seus autores, mas os efeitos da coisa julgada coletiva (art. 13 deste Código) não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da ciência efetiva da demanda coletiva nos autos da ação individual.
§ 1o Cabe ao demandado informar o juízo da ação individual sobre a existência de demanda coletiva que verse sobre idêntico bem jurídico, sob pena de, não o fazendo, o autor individual beneficiar-se da coisa julgada coletiva mesmo no caso de a ação individual ser rejeitada.
§ 2o A suspensão do processo individual perdurará até o trânsito em julgado da sentença coletiva, facultado ao autor requerer a retomada do curso do processo individual, a qualquer tempo, independentemente da anuência do réu, hipótese em que não poderá mais beneficiar-se da sentença coletiva.”
Dois são os pontos polêmicos da matéria. O primeiro refere-se ao ônus imposto ao demandado de cientificar cada autor individual acerca da existência do processo coletivo. O segundo relaciona-se ao prazo – melhor dizendo, à ausência de prazo – para o exercício do direito de opção.
Caso não haja a informação a que se refere o parágrafo segundo, poderá o autor individual beneficiar-se da coisa julgada na ação coletiva, ainda que tenha sido indeferido o pedido por ele formulado em ação individual. Trata-se de severo ônus, a ser visto com redobrada cautela, sobretudo quando o demandado for a Fazenda Pública[67].
A tendência evolutiva do processo civil brasileiro, marcada pela ampliação dos poderes do juiz[68] e pela busca da precisa reconstrução dos fatos[69], não condiz com a possibilidade de que seja desconsiderada a coisa julgada decorrente de um processo regular, em que observados o contraditório e a ampla defesa, simplesmente porque seu autor não fora cientificado de que poderia aderir a outra demanda.
Para evitar esse inconveniente, melhor seria que a informação a que alude o parágrafo segundo fosse feita pelo próprio Poder Judiciário, que disporá de cadastro nacional de processos coletivos, conforme prevê o Anteprojeto[70].
Este raciocínio estaria em perfeita consonância com as matrizes principiológicas do novo sistema, sobretudo com o princípio do ativismo judicial[71].
Outro aspecto delicado dos dispositivos em exame é o fato de permitirem que o direito de opção seja exercido a qualquer tempo, independentemente da anuência do réu. Em virtude dessa previsão, uma das interpretações possíveis é a de que o autor individual pode requerer a suspensão de seu processo, a fim de aguardar o julgamento da demanda coletiva e, já ciente do resultado desta, exercer o direito de opção ou continuar com o processo individual. Ocorre que tanto a ética quanto a técnica jurídica não permitem que o indivíduo aguarde a solução das duas demandas a fim de aderir à coisa julgada que melhor lhe aprouver. Isto seria como comprar um bilhete de loteria sabendo-o premiado.
Não bastasse a barreira ética, referido preceito esbarra também no princípio constitucional da razoável duração do processo[72], na medida em que contribuirá para um acúmulo de processos versando sobre o mesmo objeto, pois é de se esperar que os autores individuais retomem suas respectivas demandas quando o pedido da causa coletiva for julgado improcedente.
Por essas razões, melhor seria se a lei tornasse expresso que o direito de opção deve ser exercido até a prolatação da sentença. Afinal, in claris cessat interpretatio.
6.4. A prioridade de processamento das demandas coletivas sobre as individuais em face da autonomia privada e do direito fundamental à razoável duração do processo.
O artigo 10 do Anteprojeto está assim redigido:
“Art. 10. O juiz deverá dar prioridade ao processamento da demanda coletiva sobre as individuais, servindo-se preferencialmente dos meios eletrônicos para a prática de atos processuais do juízo e das partes, observados os critérios próprios que garantam sua autenticidade.”
O dispositivo prevê, em sua parte inicial, que o processamento das demandas coletivas terá prioridade sobre as ações individuais. A norma se coaduna com os fundamentos do Anteprojeto, voltados à molecularização da demanda[73], evitando a proliferação de múltiplas causas sobre a mesma questão de Direito, quando a lide possa ser solucionada de modo uniforme e satisfatório, em um único processo. Esse raciocínio se aplica perfeitamente aos direitos essencialmente coletivos (difusos e coletivos stricto sensu), por envolverem relação jurídica incindível.
Contudo, no que tange aos direitos individuais homogêneos, a regra precisa ser analisada com mais vagar. Conforme visto anteriormente[74], os direitos individuais homogêneos são divisíveis e integram o patrimônio jurídico de titulares determinados (ou ao menos determináveis). Por isso, a solução da demanda individual movida por um deles não implica, necessariamente, a mesma consequência jurídica em relação aos demais. É perfeitamente possível acolher alguma(s) e rejeitar a(s) outra(s), conforme a instrução de cada feito. Há, no caso, relações jurídicas distintas, passíveis de tutela processual em separado[75]. Neste contexto, a prioridade de processamento que o Anteprojeto confere às ações coletivas pode acarretar, na prática, um retardamento na prestação da tutela jurisdicional aos que tenham ajuizado ações individuais com o mesmo objeto, penalizando seus autores simplesmente por terem exercido o direito constitucional de ação ao invés de aderirem ao processo coletivo.
Destarte, é preciso aplicar o dispositivo com moderação, a fim de compatibilizá-lo com os princípios da autonomia privada e da razoável duração do processo[76].
Sobre os perigos de se conferir ao magistrado poderes que possam vir a tolher a autonomia privada dos litigantes, eis a lição de Humberto Theodoro Júnior:
“Tendo sido imputado ao juiz não apenas o comando do processo, mas o dever de ‘velar pela rápida solução do litígio’ (CPC, art. 125, II), pensou-se que, ampliando cada vez mais a interferência autoritária do juiz, poder-se-ia superar a enorme, lamentável e crônica morosidade da prestação jurisdicional. Nessa linha de preocupação, as últimas reformas do Código de Processo Civil concentraram-se, em grande parte, no incremento da iniciativa judicial e na redução da autonomia das partes. (…)
Há nisso um profundo desvio ideológico na obra legislativa, pois é óbvio que não se faz acelerar o processo só com a exagerada atribuição de poderes autoritários ao juiz, se o notório atravancamento dos serviços não se dá pela excessiva necessidade de decisões, mas decorre, isso sim, da não tomada de decisões ou até da omissão de meros despachos. São as etapas mortas, constantemente entremeadas no curso do processo, em todas as instâncias, que condenam os processos à hibernação nos escaninhos das secretarias do juízo ou do gabinete dos juízes, relegando o encerramento do feito para futuro remoto e imprevisível. (…)
Com isso, passa-se por cima da própria natureza de direitos e interesses situados, substancialmente, no âmbito da autonomia da vontade, quebrando-se um sistema cujo núcleo nem se situa no direito processual, mas no direito material, onde reconhecidamente não predomina a ordem pública e deve prevalecer, com soberania, a liberdade do titular de faculdade de caráter nitidamente privado. A simples celeridade processual não justifica tamanha supressão da iniciativa individual.”[77]
Por essas razões, seria de todo recomendável alterar a redação do artigo 10, ou nele inserir um parágrafo, explicitando que suas disposições não podem prejudicar o andamento das demandas individuais que tenham por objeto direitos individuais homogêneos.
6.5. Isonomia entre as Funções Essenciais à Justiça em matéria de legitimação ativa para o processo coletivo.
O Art. 20 do Anteprojeto disciplina a legitimidade[78] para propositura de ação coletiva ativa[79] nos seguintes termos:
“Art. 20. São legitimados concorrentemente à ação coletiva ativa: (…)
VI – as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, bem como os órgãos do Poder Legislativo, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos indicados neste Código;”
O dispositivo apresenta inúmeros pontos a serem aperfeiçoados.
O primeiro deles consiste em corrigir a pleonástica referência a “órgãos sem personalidade jurídica”. É assente no Direito Administrativo que a palavra órgão pressupõe ausência de personalidade, em contraposição ao termo entidade, que designa as pessoas jurídicas[80].
Outro ponto que merece ser lapidado diz respeito à legitimação ampla e irrestrita, concedida aos órgãos do Poder Legislativo, para a propositura de ações coletivas. Doutrina[81] e jurisprudência[82] comungam do entendimento de que a atuação processual de tais órgãos é excepcional e limitada aos assuntos diretamente relacionados com as atribuições institucionais do Poder Legislativo.
Com efeito, nessas atribuições não se vislumbra matéria que possa ser objeto de ação coletiva ativa, ao contrário do que ocorre em relação ao Poder Executivo, sobretudo no que toca à implementação de políticas públicas[83]. Assim, a atribuição de legitimidade ao Poder Legislativo para atuar em esfera constitucionalmente reservada ao Executivo parece conflitar com o princípio da separação de poderes[84]. E, mesmo que assim não fosse, somente norma constitucional poderia ampliar o rol de atribuições do Poder Legislativo.
Concluindo a análise do artigo 20 do Anteprojeto, cumpre registrar o tratamento anti-isonômico por ele dispensado à Advocacia Pública.
O preceito em tela disciplina cuidadosamente a legitimidade ativa do Ministério Público e da Defensoria Pública para o ajuizamento de ações coletivas[85]. Porém, ao cuidar da legitimidade conferida às “entidades e órgãos da Administração Pública”[86], não faz qualquer referência à Advocacia Pública, instituição igualmente relevante, prevista na Constituição Federal, juntamente com as outras citadas, como Função Essencial à Justiça[87], à qual compete a representação judicial e extrajudicial da Administração Pública[88].
Tal omissão abre margem a que se interprete o artigo 20, VI do Anteprojeto como permissivo para que os órgão e entidades ali mencionados ingressem diretamente em Juízo. Ocorre que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não deixa dúvidas quanto ao fato de que o exercício das atribuições constitucionalmente fixadas para determinada carreira é privativo de seus membros. Por tal razão, aquela Corte rechaçou a possibilidade de exercício, ainda que temporário, das funções de membro do Ministério Público[89] ou da Defensoria Pública[90] por quem não integrasse a respectiva carreira. Pelas mesmas razões, somente integrantes da Advocacia Pública podem representar a Administração judicial e extrajudicialmente.
Assim, ao omitir a Advocacia Pública, o Anteprojeto externa desprestígio em relação a essa honrosa carreira, fato que se torna ainda mais evidente no artigo 42:
“Art. 42. O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:
I – Ministério Público;
II – Defensoria Pública;
III – partido político com representação no Congresso Nacional;
IV – entidade sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados, dispensada a autorização assemblear.
Parágrafo único – O Ministério Público, se não impetrar o mandado de segurança coletivo, atuará como fiscal da lei, em caso de interesse público ou relevante interesse social.”
O artigo citado regulamenta a legitimidade ativa para a impetração de mandado de segurança coletivo, ampliando a legitimidade constitucionalmente prevista[91], a fim de nela incluir o Ministério Público e a Defensoria Pública, porém não a Advocacia Pública. Há, como se percebe, injustificada desigualdade de tratamento entre as Funções Essenciais à Justiça, em prejuízo da Advocacia Pública. Compulsando a Exposição de Motivos do Anteprojeto, não se encontra qualquer justificativa para essa diferenciação.
Feitas essas considerações, cabe concluir o tópico sugerindo as seguintes mudanças no Anteprojeto:
1) Retirar do artigo 20, VI o pleonasmo “órgãos sem personalidade jurídica”;
2) Suprimir do mesmo inciso a legitimidade dos órgãos do Poder Legislativo para a propositura de ações coletivas e, por fim;
3) Atribuir tratamento isonômico às Funções Essenciais à Justiça, mediante a inclusão da Advocacia Pública dentre os legitimados para a propositura de ações coletivas, inclusive do mandado de segurança coletivo, desde que relacionados, obviamente, aos direitos e interesses dos órgãos e entidades por ela representados.
7. Conclusão.
Na sociedade contemporânea, proliferam situações que colocam em risco direitos ou interesses coletivos, cuja proteção depende da existência de um sistema jurídico específico, adaptado às peculiaridades dessa espécie de interesses. No Brasil, o sistema do processo coletivo, alicerçado na Lei da Ação Civil Pública e no Código de Defesa do Consumidor, vem se mostrando insuficiente para a solução de algumas questões. Por isso, a intenção do legislador em aprimorá-lo, substituindo as diversas leis esparsas que o compõe por um Código, capaz de sistematizar e ordenar a matéria, conferindo efetiva tutela aos interesses coletivos.
Nesse contexto, surgiu a proposta de um Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, fruto do trabalho de notáveis juristas, que procuraram incorporar ao ordenamento pátrio algumas experiências bem sucedidas do Direito estrangeiro.
Ocorre que, apesar do inegável mérito de seus idealizadores, o referido Anteprojeto ainda apresenta algumas imperfeições, demandando um maior debate acerca do conteúdo e alcance de suas normas, a fim de que possa solucionar os atuais problemas do processo coletivo brasileiro sem que dê origem a outros, talvez até mais complexos.
Este estudo pretendeu fornecer uma pequena contribuição ao debate sobre a matéria, apontando, fundamentadamente, alguns pontos do Anteprojeto que merecem ser lapidados. Vale destacar que o dicionário registra múltiplos significados para a palavra crítica, como “ação ou efeito de depreciar, censurar”, bem como “exame racional, indiferente a preconceitos, convenções ou dogmas”. As críticas feitas ao longo do texto certamente inserem-se neste último significado.
Mestre em Direito Empresarial pela UFMG.
Professor Licenciado do Centro Universitário UNA
e da Faculdade de Direito Pitágoras.
Procurador Federal.
Representante da Advocacia-Geral da União no Grupo de Trabalho do Conselho Nacional de Justiça encarregado de elaborar a regulamentação da Lei n 11.419/2006, que trata da informatização do processo judicial.
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