Sumário: 1. Introdução. 2. O ISS – Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza. 2.1. Panoramas Gerais – A regra matriz de incidência tributária. 2.2. A não incidência de ISS sobre as receitas de locação do quarto na diária. 3. Efeitos Futuros do Questionamento – Impossibilidade de Repetição do Indébito. 4. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A incidência do ISS sobre negócios jurídicos que não configuram efetivamente uma prestação de serviços já foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 116.121/SP, no qual se discutia a incidência do imposto sobre locação de bens móveis. Mas o resultado deste entendimento que, calha ressaltar, motivou o veto do item 3.01 da lista anexa à Lei Complementar nº 116/03, não foi suficientemente compreendido pela doutrina, pela jurisprudência e pelos contribuintes em geral.
A proposta do presente trabalho é, portanto, enfrentar a descaracterização de grande parte das atividades econômicas desempenhadas por empresas do setor de hotelaria: em verdade não se constituem como “serviços”, mas sim locação de bem imóvel.
Para isto, primeiramente serão expostos os aspectos gerais do ISS, sua previsão constitucional, a descrição de sua hipótese de incidente mencionada no antecedente da norma e, por fim, seu critério material – prestar serviços.
Após, a preocupação girará em torno do que seja “serviço” como elemento jurídico credenciado a ser tributado pelo ISS. Nesse tópico, o exame demonstrará que a locação de quartos de hotéis “flats”, etc., não se enquadra no conceito de “serviços”, o que leva à conclusão que somente as outras receitas que compõem a diária do quarto, como serviço de quarto, lavanderia, atendimento telefônico e outros, é que devem ser tributados pelo ISS.
Ao final, será exposto como essa não incidência influencia nas receitas das empresas do setor e como isto pode beneficiá-las.
Vamos aos argumentos.
2. O ISS – IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA
2.1. Panoramas Gerais – A regra matriz de incidência tributária
A Constituição Federal de 1988 revolucionou a história do direito constitucional brasileiro em muitos aspectos. Entre eles está o enquadramento dos Municípios como estruturas diretas do regime federativo, porquanto embora não tenham representatividade no Congresso Nacional, carregam consigo autonomia orçamentária e competências legislativas na mesma medida da União, dos Estados e do Distrito Federal, entre as quais a capacidade de instituir tributos (ISS, ITBI, IPTU, taxas, COSIP, contribuições de melhorias e contribuições previdenciárias).
E ao fazê-lo, os Municípios devem seguir certas regras jurídicas que descrevam hipoteticamente o fato que, se praticado, deflagrará a quem o praticou a obrigação de recolher tributos – a regra matriz de incidência tributária que, segundo Luis César Souza de Queiroz[1], é a fórmula lógico-condicional capaz de expor a estrutura das normas jurídicas, que por sua vez é bipartida: uma implicante, também denominada antecedente, que irá discriminar a hipótese de incidência por meio do “descritor”; outra implicada, também chamada de conseqüente, que irá estatuir pelo “prescritor” os efeitos jurídicos deflagrados pela tomada de conduta prevista no antecedente.
A doutrina mais credenciada identificou 03 (três) elementos que compõem o antecedente da regra matriz da norma jurídica tributária: critério espacial, critério temporal e critério material.
O critério espacial é aquele que indica onde o lugar e/ou região onde a norma tributária incide. O professor Paulo de Barros Carvalho[2] nota que há regras jurídicas que trazem expressos os locais em que o fato deve ocorrer, a fim de que irradie os efeitos que lhe são característicos, mas outras, porém, nada mencionam, carregando implícitos os indícios que nos permitem saber onde nasceu o laço obrigacional. É o caso, por exemplo, do IPTU, cuja norma tributária irá alcançar somente os imóveis localizados no perímetro urbano do município que instituiu o imposto.
Já o critério temporal é o marco de tempo em que se dá por ocorrido o fato, possibilitando ao sujeito da relação jurídica o conhecimento do momento em que se iniciam seus direitos e obrigações.
O critério material, por ser um dos pilares do exame proposto no presente parecer, demanda análise profunda.
O professor José Eduardo Soares de Melo[3] leciona que o aspecto material da regra matriz consiste em determinados negócios jurídicos, estados, situações, serviços e obras públicas, dispostos na Constituição, que representam fenômeno revelador de riqueza (aspecto econômico), sejam praticados ou pertinentes ao próprio contribuinte ou exercidos pelo poder público. Tal conceito é complementado por Luis César Souza de Queiroz[4], para quem o critério material informa o núcleo da conduta descrita no antecedente das normas tributárias, representado por um verbo pessoal e um complemento.
Portanto, o aspecto material do antecedente da norma impositiva deve descrever a conduta de um sujeito de direito e também identificar o complemento desta conduta. Em relação ao imposto previsto no artigo 156, inciso III, da Constituição Federal, seu critério material é identificado pelo verbo pessoal “prestar” acompanhado do complemento “serviços”.
Já a base de cálculo (um dos elementos do critério quantitativo ao lado da “alíquota”) tem três funções distintas: (i) medir as proporções reais do fato a fim de lhe conferir grandeza econômica; (ii) servir de base econômica do cálculo do quantum devido pelo contribuinte a título de tributo; e (iii) confirmar o verdadeiro critério material da hipótese de incidência tributária.
Vista a estreita relação entre os critérios material e quantitativo, passemos agora ao estudo dos contornos jurídicos do ISS, propriamente.
2.2. A não incidência de ISS sobre as receitas de locação do quarto na diária
O artigo 156, inciso III, da Constituição Federal, como já mencionado alhures, confere aos municípios a competência para instituir imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no regramento constitucional do ICMS e definidos em Lei Complementar.
Na trilha de Roque Antonio Carrazza[5], a Constituição Federal, ao discriminar a competência tributária do município para instituir o Imposto sobre Serviços, estabeleceu indefectivelmente a base de cálculo “in abstracto” do tributo, levando em conta uma medida dos serviços.
A disciplina nacional do imposto está no texto da Lei Complementar nº 116/03 que, por meio do item 9.01 de sua lista anexa, prevê a incidência do ISS sobre serviços de hospedagem de qualquer natureza em hotéis, apart-service condominiais, flat, apart-hotéis, hotéis-residência, residence-service, suite service, hotelaria marítima, motéis, pensões e congêneres.
E em razão da indissociabilidade entre o critério material e a base de cálculo do imposto, o ISS sobre os serviços de hotelaria evidentemente só podem ser calculados sobre o valor dos serviços prestados por empresas deste setor, não sobre o valor da locação dos quartos de hotéis.
Mas não é o que ocorre.
Conforme lembrado por Hugo de Brito Machado[6], já há muito tempo os municípios em geral tentam de toda forma cobrar ISS sobre locação de bens. Primeiramente, a pendenga girava em torno da possibilidade ou não de se instituir Imposto sobre Serviços sobre locação de bens móveis. A locação de bens móveis, apesar de não ter natureza jurídica de prestação de serviços (obrigação de fazer), vinha sendo enquadrada como tal pelo Decreto-lei nº 406/68.
A questão que se coloca em análise é a do respeito pelos conceitos utilizados pela Constituição Federal para definir ou limitar competências tributárias que, como explicitado pelo artigo 110 do Código Tributário Nacional, vincular o legislador da entidade titular dessas competências, de sorte que não podem ser alterados pela lei tributária.
De fato, a controvérsia, em síntese, situa-se no conceito de serviço e, em seguida, saber se a locação pode ser, ou não, tida como serviço.
A professora Maria Helena Diniz[7] ensina que serviço quer dizer “o exercício de qualquer atividade intelectual ou material com finalidade lucrativa ou produtiva”. Já o professor De Plácido e Silva[8] anota que serviço é “expressão que designa hoje o próprio trabalho a ser executado, ou que se executou, definindo a obra, o exercício do ofício, o expediente, o mister, a tarefa, a ocupação ou a função. Por essa forma, constitui serviço não somente o desempenho de atividade ou de trabalho intelectual, como a execução de trabalho ou de obra material”.
Examinando esses conceitos, o professor Aires Fernandino Barreto[9] assim se manifestou quanto ao tema:
“(…) É lícito afirmar, pois, que o serviço é uma espécie de trabalho. É o esforço humano que se volta para outra pessoa; é fazer desenvolvido para outrem. O serviço é, assim, um tipo de trabalho que alguém desempenha para terceiro. Não é esforço desenvolvido em favor do próprio prestador, mas de terceiros. Conceitualmente parece que são rigorosamente procedentes essas observações. O conceito de serviço supõe uma relação com outra pessoa, a quem se serve. (…)”
Já a locação, nos termos do artigo 565 do Código Civil, configura indiscutivelmente uma obrigação de dar, isto é, de disponibilizar o uso e gozo de um bem a outrem, por tempo determinado ou não, mediante retribuição pecuniária.
Pois bem, voltaremos à lição de Hugo de Brito Machado[10]. O professor sustenta que todos os conceitos utilizados em uma norma tributária fazem parte dela. Assim sendo, se o conceito de serviço faz parte da própria Constituição Federal, é evidente que a modificação do conceito de “serviço” importaria na modificação da própria Constituição Federal.
E mais, admitir que uma lei complementar ou uma lei ordinária pudesse alterar o conceito de “serviço”, previsto na Constituição Federal, seria permitir que essas leis alterassem a própria Constituição Federal.
Foi para evitar esse absurdo jurídico que foi inserido no Código Tributário Nacional o artigo 110:
“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”.
Agiu bem o legislador. É que o Direito Tributário constitui um direito de superposição, incidindo sobre realidades postas por outros ramos do direito, o que torna imprescindível buscar o conceito das espécies básicas de obrigações (dar e fazer), para delimitar o âmbito do ISS.
A professora Susy Gomes Hoffmann[11] sintetizou bem a celeuma quando lecionou que, “para o Direito Civil, a prestação de um serviço insere-se dentre as obrigações de fazer; portanto, seguindo a rigidez constitucional no trato da repartição da competência tributária e o comando do artigo 110 do Código Tributário Nacional, o legislador infraconstitucional, ao indicar os serviços que serão tributáveis pelo ISS, somente poderá indicar aqueles que se encontram no campo da incidência das obrigações de fazer, daí excluindo-se, por exemplo, a locação de bens, que se caracteriza obrigação de dar”.
Com efeito, o correto enquadramento da atividade de locação de bens, móveis ou imóveis, enquanto obrigação de dar (cessão de coisa não fungível) traz conseqüência inafastável ao âmbito do Direito Tributário.
Tais argumentos foram levados à apreciação do Supremo Tribunal Federal que, ao ser instado sobre a constitucionalidade da cobrança de ISS sobre bens móveis, assim decidiu no RE nº 116.121-3/SP, DJU 25/05/2001:
“Tributo – Figurino Constitucional. A Supremacia da Carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos.
Imposto Sobre Serviços – Contrato de Locação. A terminologia constitucional do Imposto Sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a lei maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável – artigo 110 do Código Tributário Nacional.”
O Ministro Marco Aurélio Melo, relator do aludido RE nº 116.121-3/SP, assim se expressou:
“Em face do texto da Constituição Federal e da legislação complementar de regência, não tenho como assentar a incidência do tributo, porque falta o núcleo dessa incidência, que são os serviços. Observem-se os institutos em vigor tal como se contêm na legislação de regência. As definições de locação de serviços e locação de móveis vêm-nos do Código Civil e, aí, o legislador complementar, embora de forma desnecessária e que somente pode ser tomada como pedagógica, fez constar no Código Tributário o seguinte preceito:
‘Art. 110 – A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.’ (…)
Relembrem-se as noções dos referidos contratos, de que cuidam os artigos 1.188 e 1.216 do Código Civil:
‘Art. 1.188 – Na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado, ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição.’
‘Art. 1.216 – Toda a espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante retribuição.’ ”
Em decorrência desta decisão ficou assentado de uma vez por todas que o conteúdo do contrato de locação é uma obrigação de dar, não podendo mais ser considerada prestação de serviço, que tem natureza jurídica de obrigação de fazer.
Este entendimento foi ratificado pelo Pode Executivo Federal, quando da edição da Lei Complementar nº 116/2003, Nova Lei do ISS, cujo dispositivo que visava manter a tributação da locação de bens móveis como se serviço fosse, recebeu veto presidencial, cuja exposição de motivos se assentou exatamente na citada decisão do Pretório Excelso.
No que diz respeito especificamente à instituição de ISS aos serviços de hospedagem, que compreendem a locação de bens imóveis, aplica-se o mesmo raciocínio, porquanto grande parte das receitas aferidas pelas redes hoteleiras não se refere a prestações de serviços, mas sim a locações de quartos que estão compreendidos na diária cobrada do hóspede.
E tal qual a incidência do ISS sobre locação de bens móveis, a incidência do imposto sobre locação de bens imóveis, cujo valor está inserido no preço da diária dos hotéis, também está fadada à inconstitucionalidade.
3. EFEITOS FUTUROS DO QUESTIONAMENTO – IMPOSSIBILIDADE DE REPETIÇÃO DO INDÉBITO
A exclusão dos valores referentes à locação do quarto das diárias certamente irá refletir no custo do empreendimento que, invariavelmente, é transferido ao consumidor (o contribuinte de fato do imposto). Isto, consequentemente, acarretará:
1. redução das diárias, de modo a torná-las mais competitivas;
2. caso se mantenha o preço da diária, poderão ser provisionados recursos para incrementação das atividades da empresa, que poderá contratar funcionários especializados, reformar suas estruturas, instalagens e, assim, seduzir o mercado consumidor; ou
3. a margem de lucro dos hotéis poderão ser fortificadas, o que majorará a distribuição de lucros e dividendos aos quotistas e/ou acionistas, ou contribuirá para o pagamento de dívidas junto a credores, fornecedores e ao fisco.
O enfrentamento do questionamento ora proposto, entretanto, não permitirá ao contribuinte pleitear o indébito referente ao ISS que incidiu sobre a locação de quartos de hotéis nos 05 (cinco) anos anteriores à propositura da ação.
É que o artigo 166 do Código Tributário Nacional condiciona este direito à comprovação do não-repasse do encargo fiscal ao consumidor, o que em relação a hotéis, em princípio, não poderá ser feito em razão do sabido repasse do ISS no preço da diária.
4. CONCLUSÃO
Do estudo, conclui-se que:
a) a instituição do ISS pelos municípios deve respeitar a regra matriz de incidência tributária, prevendo inclusive os critérios material e quantitativo;
b) tais critérios são interligados e indissociáveis e, em relação ao ISS, significa que o a base de cálculo deve corresponder exatamente à quantificação econômica do serviço prestado;
c) segundo o direito civil, serviços são obrigações de fazer e locações são obrigações de dar, sendo eles inconfundíveis, o que deve ser levado em consideração para fins tributários, nos termos do artigo 110 do Código Tributário Nacional;
d) grande parte das receitas obtidas pelas empresas do setor hoteleiro se referem à locação de quartos, cujo valor está inserido no preço da diária;
e) mas em razão da impossibilidade de o ISS incidir sobre locações, o imposto não pode gravar a totalidade das receitas advindas das diárias pagas por hóspedes, apenas a parcela referente aos serviços prestados excluindo a parcela relativa à locação do quarto.
Advogado. Especialista em Direito Tributário pela PUC-SP/COGEAE e em Tributação do Setor Industrial pel FGV (GVlaw). Membro do Conselho Consultivo da APET. Membro da Comissão dos Novos Advogados do Instituto dos Advogados de São Paulo, coordenador da Subcomissão de Direito Tributário e Financeiro. Professor dos Cursos de Especialização “Gestão Tributária & Contabilidade” e “Impostos Indiretos e PIS/COFINS”, ministrados pela APET.
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