Resumo: Este artigo aborda os acordos de leniência, visando contribuir para uma teoria geral que permita trazer bases seguras e atrativas para a celebração desses ajustes. O trabalho busca construir uma rede principiológica, apresentar elementos fundantes e questões controvertidas acerca do tema, para, ao final, trazer uma proposta a fim de tornar o acordo mais célere e convidativo.
Palavras-chave:Acordo de Leniência. Princípios. Teoriageral
Abstract: This article deals with leniency agreements, aiming to contribute to a general theory that allows to provide safe and attractive bases for the celebration of these adjustments. The work seeks to build a principiological network, to present founding elements and controversial issues on the subject, in order to bring a proposal in order to make the agreement faster and more inviting.
Keywords: Leniency Agreement. Principles. General theory
Sumário: Introdução. 1. Brasil do “jeitinho” e da corrupção endêmica. 2. Os Acordos de Leniência: conceito, gênese e princípios aplicáveis. 3. Alguns aspectos estruturantes dos Acordos de Leniência, a reparação do dano ao erário e a disputa de atribuições entre os órgãos de controle. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Os acordos de leniência têm gerado um grande debate no Direito Administrativo brasileiro. Apesar de a Lei Anticorrupção ter sido promulgada em 2013, esse instituto passou a ser amplamente discutido pelos diferentes setores da sociedade a partir dos escândalos do Mensalão e, notadamente, da investigação na Companhia Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras)– conhecido como Petrolão –em virtude da denominada Operação Lava Jato da Polícia Federal.
Até o fechamento deste artigo, apesar do andamento de tratativas entre pessoas jurídicas interessadas em firmar esses ajustes com o poder público federal, apenas o acordo da empreiteira Andrade Gutierrez com a Procuradoria-Geral da República (PGR) havia sido celebrado. Segundo o Jornal Folha de São Paulo, as agências de publicidade FCB e MullenLowe Brasil – antiga BorghiLowe- estavam finalizando os acordos. Tais pessoas jurídicas foram acusadas na Operação Lava Jato de pagarem propina para obter contratos na Petrobras, Caixa Econômica Federal e Ministério da Saúde[1].
Lamentavelmente, a insegurança jurídica ainda é a tônica desse instituto, causada, sobretudo, pela disputa de poder entre órgãos governamentais.
Os recentes acontecimentos, como: a perda da vigência da MP 703/2015, que buscava alterar alguns dispositivos da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), o afastamento da Presidente da República Dilma Rousseff e a mudança no status da Controladoria Geral da União – CGU aumentaram a incerteza a respeito do futuro deste instrumento, vital para combater a corrupção e manter saudável a atividade econômica no país.
Este artigo científico tem como objetivo principal analisar o modelo jurídico adotado no Brasil, de modo a permitir, no futuro, a sedimentação de uma Teoria Jurídica acerca do tema.
Busca-se, destarte, examinar a arquitetura vigente, a exemploda Lei Federal nº 12.846 e pelo Decreto nº 8.420/2015, a par de projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional e da extinta MP 703/2015,tendo como propósito apresentar soluçãoa fim de tornar esse instrumento mais célere e eficaz.
Para alcançar os objetivos propostos neste trabalho, foi empreendida uma pesquisa bibliográfica relacionada ao Direito Administrativo, bem como análise de artigos e matérias jornalísticas.
Este trabalho está estruturado em três capítulos. No primeiro, será feito um breve percurso histórico da corrupção no Brasil. Em seguida, será proposta uma conceituação do ajuste, além de uma apresentação da origem desses acordos,sua introdução no país, além de uma redeprincipiológica para celebração dos mesmos a fim de lhes emprestar condições mínimas de qualidade e legitimidade.Nocapítulo final, serão abordados os aspectos estruturantes do acordo e algumas questões controvertidas, como a reparação do dano ao erário e a polêmica envolvendo o controle exercido pelos Tribunais de Contas sobre tal instituto.
1 – BRASIL DO “JEITINHO” E DA CORRUPÇÃO ENDÊMICA
O Brasil do “jeitinho” nasceu, possivelmente, na época do Descobrimento, quando Pero Vaz de Caminha, no final de sua Carta, aproveitou para pedir ao rei português D. Manuel I um emprego público para um de seus sobrinhos, numa evidente demonstração de nepotismo.
Posteriormente, no primeiro governo, Tomé de Souza foi autorizado pelo rei D. João III, em 1549, a fazer “dádivas a quaisquer pessoas” a fim de consolidar a conquista das terras brasileiras.
Durante o reinado de D. João VI, ficou famoso um ditado popular que dizia: "Quem furta pouco é ladrão; quem furta muito é barão; quem mais furta e mais esconde, passa de barão a visconde". A máxima era dirigida ao tesoureiro-mor do reino, Francisco Bento Maria Targini, Visconde de São Lourenço, em um exemplar caso de corrupção e impunidade nas mais altas esferas da Administração Pública brasileira. Tal prática, vigente à época, acabaria por transformá-lo em um “homem rico de um erário pobre”. Um dos boatos “que se contavam dizia respeito à compra de mantas para o Exército que Targini fizera a um fornecedor inglês. O hábil homem público teria mandado dividir cada uma das peças ao meio, revendendo-as depois ao governo pelo dobro do preço original”[2].
Apesar disso, conta a historiadora da Casa de Rui Barbosa/RJ, Isabel Lustosa, que, no folhetim "Correio", o célebre editor Hipólito José da Costa criticaria o fato de o Conde dos Arcos, principal ministro do regente D. Pedro, ter dado por justas e liquidadas as contas do tesoureiro-mor e ter concedido passaporte para aquele se pôr ao fresco. Segundo Oliveira Lima, o inquérito contra Targini– conduzido pelo Conde dos Arcos–"estabeleceu a integridade do funcionário, a quem foi concedida uma pensão"[3].
Esses atos de corrupção representam, segundo os historiadores, herança de uma formação de país baseado em um Estado centralizado, burocratizado e clientelista. Segundo o historiador e escritor Laurentino Gomes[4], nos “oito primeiros anos em terras brasileiras, D. João VI distribuiu mais títulos de nobreza do que em 700 anos de monarquia portuguesa. Portugal havia nomeado até então 16 marqueses, 26 condes, oito viscondes e oito barões. Apenas nos primeiros oito anos da transferência da Corte, o Brasil viu surgir 28 marqueses, oito condes, 16 viscondes e 21 barões. Certa vez,o historiador Pedro Calmon disseque “para ganhar título de nobreza em Portugal, eram necessários 500 anos, mas, no Brasil, bastavam 500 contos”.
Há uma relação direta entre o excesso de burocracia estatal e o aumento dos níveis de corrupção da sociedade como um todo. Laurentino Gomes destaca ainda que “na época da constituinte de 1822 a 1823, um comerciante chegou a enviar uma carta ao governo afirmando que conseguiu um alvará para servir comida em seu restaurante, mas que, depois disso, funcionários públicos passaram a exigir um alvará para servir café. Ora, quem pode servir comida não pode servir café?” Ou seja, dificuldades eram continuamente introduzidas com a finalidade de que um representante do Estado pudessenegociar certas facilidades por meio da corrupção.
No período regencial brasileiro, os liberais executaram uma engenhosa artimanha política no Senado, mediante a antecipação da maioridade do jovem D. Pedro II antes que ele completasse quinze anos, o que se tornou conhecido como oGolpe da Maioridade[5].
O nosso “jeitinho” já chamava atenção; a própria expressão “santo do pau oco” advêm do ouro escondido – no interior de imagens sacras – para escapar dos altos impostos. Portanto, o “jeitinho brasileiro” sempre esteve associado à esperteza, e mais recentemente à malandragem. O importante “é levar vantagem em tudo” como recomenda a Lei de Gérson. Ao subornar um policial, ao desviar milhões do erário ou ao burlar o fisco, tudo isso faz parte de um mesmo caldeirão de desvios éticos do dia-a-dia nacional.
É precisamente o acordo de leniência uma ferramenta que pretende atingir de morte justamente essa estrutura nefasta, presente até os dias atuais na maneira de agir de nossa sociedade e instituições.
2 – O ACORDO DE LENIÊNCIA: CONCEITO, GÊNESE E PRINCÍPIOS APLICÁVEIS
O acordo de leniência pode ser conceituado como um ato administrativo negocial, um contrato,representado pela manifestação de vontade realizada entre a Administração Pública e a pessoa jurídica responsável pela prática dos atos de corrupção –lesivos ao patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra compromissos internacionais –desde que colabore efetivamente com o Estado, de modo a possibilitar a identificação dos demais envolvidos na infração, bem como favorecer a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito.
Importante salientar que na Administração Pública federal já existiam acordos celebrados pela Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE/MJ), com base na Lei Antitruste.Todavia, a Lei Anticorrupção inovou ao estabelecera responsabilidade objetiva para atingir pessoas jurídicas que cometam atos lesivos contra a Administração Pública brasileira ou estrangeira.
A origem da Lei Anticorrupção brasileira, na qual foi inserido o acordo de leniência, remonta àLei de Combate ao Suborno Transnacional dos Estados Unidos da América, o ForeignCorruptPracticeAct – FCPA. Essa Lei entrou em vigor em 1977, instituiu responsabilizaçãocivil e criminal às pessoas físicas e jurídicas nos Estados Unidos e investiga atos relacionados ao suborno de agentes públicos estrangeiros.
Além do FCPA, a Lei Anticorrupção brasileira buscou inspiração na Convenção Interamericana contra a Corrupção, editada pela Organização dos Estados Americanos (OEA, 1996, Decreto 4.410/2002); na Convenção sobre Combate à Corrupção de Funcionários Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, editada pela Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE, 1997, Decreto 3.678/2.000); na Convenção das Nações Unidas contra a corrupção (ONU, Convenção de Mérida, ratificada pelo Brasil em 2005, Decreto 5.687/2006); e finalmente na Lei Contra Suborno do Reino Unido,BriberyAct, Lei anticorrupção anglo-saxã de 2010, em vigor desde 2011, cuja incidência não se restringe–ao contrário da Lei americana– a atos praticados somente por agentes públicos.
A evolução legislativa no direito comparado foi fruto de uma percepção dos Estados Unidos da América de que empresas fechavam negócios e participações no mercado a despeito da ineficiência competitiva. Curiosamente, uma externalidade causada pela Lei acabou por acarretar a difusão de legislações dessa natureza pelo mundo; a Lei alcançava sociedades empresárias americanas que concorriam no estrangeiro. Vale ressaltar: enquanto as empresas estrangeiras que atuavam fora dos EUA poderiam impunemente lançar mão de subornos; as companhias americanas estariam sujeitas a severas sanções nos EUA, ainda que atuassem no exterior.
Pressionado por suas corporações, o governo americano procurou atuar junto aos organismos internacionais visando recrudescer a legislação de combate à corrupção. Inicialmente, fez gestão junto à Organização dos Estados Americanos e, posteriormente junto à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE.
Ainda nos EUA, a competência para aplicação do FCPA é compartilhada entre duas agências norte-americanas: o Departamento de Justiça (DOJ) e a Comissão de Valores Mobiliários e Câmbio (SEC). Enquanto aquele aplica a lei no âmbito criminal a todos que a violam, e, no âmbito civil, às pessoas físicas e empresas não listadas em bolsa de valores; esta tem a competência de aplicar a lei, no âmbito civil e administrativo, a empresas listadas, em bolsa, que possuam ações negociadas nos EUA ou que tenham a obrigação de apresentar à SEC relatórios periódicos de suas atividades.
A United KingdomBriberyAct do Reino Unido, cuja aplicação transcende o território do Reino Unido, procura combater não somente atos de suborno envolvendo servidores públicos nacionais ou estrangeiros, mas também, aqueles praticados por particulares, além de tipificar o crime de ausência de prevenção da pessoa jurídica de ato de suborno em seu nome.
No Brasil, os acordos de leniência foram introduzidos na esfera do CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica. A Lei nº 10.149/2000 inicialmente introduziu os artigos 35-B e 35-C na Lei nº 8.884/94. Posteriormente a Lei nº 12.529/11 veio revogar a Lei nº 8.884, reiterando a possibilidade de celebração de acordo de leniência, nos seguintes termos:
“(i) a empresa deve cessar a conduta desde o momento da propositura do acordo; (ii) deve confessar a prática da conduta e colaborar com a sua revelação durante toda a investigação e o processo; (iii) deve ser a primeira a delatar o cartel; (iv) os membros do cartel devem ser identificados pela empresa delatora e ela deve fornecer documentos que comprovem o ilícito e o envolvimento das outras empresas e pessoas físicas, (v) no momento da propositura do acordo, a Superintendência-Geral do CADE não pode ter informações suficientes sobre a empresa ou pessoa física para condená-la.”
Importante registarque a Lei Anticorrupção brasileira, em cujo conteúdo se encontra a possibilidade do acordo de leniência (Lei 12.846/2013), deriva, em grande medida, de uma reação às manifestações populares ocorridas em meados de 2013.
2.1Princípios Aplicáveis aos Acordos de Leniência
O ordenamento jurídico brasileiro atribui relevo aos princípios gerais do Direito. No âmbito do Direito Administrativo, no qual os acordos de leniência estão inseridos, os princípios possuem importância realçada por se tratar de um direito de elaboração recente e não codificado; a par disso, muitas normas desse ramo do Direito são editadas em vista de circunstâncias de momento, resultando em multiplicidade de textos, sem reunião sistemática[6]. Ademais, os princípios exteriorizam valores essenciais e devem necessariamente influenciar a decisão a fim de evitar escolhas inadequadas e o vale-tudo para quaisquer das partes envolvidas nos acordos. Assim, devem funcionar como uma embarcação segura que conduzirá as partes envolvidas, no caso concreto, à legitimação das ações realizadas ao longo das tratativas da leniência.
Tendo em vista que os acordos de leniência trazem, em sua gênese, a característica de ato administrativo consensual,entende-se que os princípios, abaixo listados, devem necessariamente norteá-los:
2.1.1 – Princípio da Legalidade
O princípio da legalidade é uma garantia fundamental do cidadão e guia a atividade do Estado[7]. Como condição de existência do Estado de Direito, esse princípio garante, no âmbito público, a submissão do agir do Estado à lei, ou seja, “a vontade da Administração Pública é aquela que decorre da lei”[8].
Tal princípio surge como espinha dorsal do acordo de leniência, haja vista que a Administração Pública, responsável pela celebração desses acordos, deve possuir uma submissão maior ao conteúdo positivado pelo Poder Legislativo. Sem embargo, no Direito Administrativo moderno, ganha relevo a noção de juridicidade administrativa para abordagem da legalidade, a qual parte do pressuposto de que a Constituição preocupou-se, em seu artigo 37, em colocar de forma expressa os princípios que necessariamente deveriam ser seguidos pela Administração Pública, mas não limitou-se a eles. Posto isto, o princípio da juridicidade nasce corroborado na atuação da atividade estatal, ancorado no pressuposto emanado da Constituição, com ênfase nos direitos fundamentais e no regime democrático de direito[9].
2.1.2 – Princípio da Devido Processo Legal
O princípio do devido processo legal consiste em um sistema de limitação de poder, imposto pelo próprio Estado de Direito para preservação dos seus valores democráticos[10]. Por intuitivo, o acordo de leniência se lastreia na cláusula geral do dueprocessoflaw, expressa no art. 5º, LIV, da Constituição de 1988, o qual define a garantiade que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
A cláusula do dueprocessoflaw ostenta duas vertentes conceituais: a do devido processo legal adjetivo e a do devido processo legal substantivo. O devido processo legal adjetivo é a garantia formal de observância de um procedimento legal, que assegura às partes, em processos administrativos ou judiciais, o direito à ampla defesa e ao contraditório, dentre outras garantias. O devido processo legal substantivo, por sua vez, está relacionado a um processo justo e razoável[11].
Assim, cumpre destacar quatro aspectos importantes do devido processo legal voltados para os acordos de leniência, a saber: inclusão no quadro das garantias do direito à prova, inadmissibilidade da prova obtida por meios ilícitos, sigilo das comunicações de dados e finalmente motivação dos atos administrativos.
2.1.3 – Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público
Princípio da supremacia do interesse público ou indisponibilidade do interesse público é a superioridade do interesse público em face do interesse particular. Jamais deve ser interpretado como a sobreposição do interesse do representante do Estado responsável pela condução do acordo, mas tão somente do interesse público.
O Professor Celso Antônio Bandeira de Mello[12]sintetiza a noção de Interesse Público como um somatório dos interesses individuais representando o interesse majoritário da sociedade.
Assim,Interesse Público não se pode confundir com interesse do Estado (Pessoa Jurídica de Direito Público);enquanto entidade que representa o todo.O Estado, como pessoa jurídica pode ter interesses que lhe são particulares, individuais ou similares aos interesses de qualquer outro sujeito. Entretanto, por ser o Estado concebido para a consecução do interesse público ou bem comum; a elesomentecaberá à defesa deoutros interesses – denominados secundários ou, apenas interesses do Estadostricto sensu–se foremtambém interesse público propriamente dito (primário) ou interesse social. Por essa razão, nos acordos de leniência, não é dado compor ou pactuar o interesse público envolvido, a exemplo de liberar o particular do ressarcimento do dano causado ao erário.
2.1.4 – Princípio do Atendimento ao Interesse Público ou Princípio da Finalidade
Este princípio impede, em virtude de motivos quaisquer, que as autoridades envolvidas nos acordos se abstenham de tomar providências necessárias ou mesmo retardá-las, sob pena de impedirem o atendimento ao interesse público.
Os condutores do acordo precisam ter a devida cautela com o emprego correto deste princípio, uma vez que não se mostra adequado, conforme leciona Medauar[13], invocá-lo como impedimento à realização de acordos e à utilização de práticas consensuais por parte da Administração Pública. Nesse sentido, deve o aplicador da leniência buscar o atingimento do interesse público primário, tido como aquele “resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem”[14].
Assim, na linha da contribuição do professor Gustavo Binenbojm[15], devem os envolvidos nas tratativas, em razão das circunstâncias peculiares ao caso concreto, a par dos valores constitucionais concorrentes, alcançar a solução ótima que realize ao máximo cada um dos interesses públicos em jogo, de modo a alcançar o fim legítimo que orienta a atuação da Administração Pública.
2.1.5 – Princípio da Segurança Jurídica
Outro princípio aplicável é o da segurança jurídica que, segundo a Lei 9.784/99, deve nortear a Administração Pública. Esse princípio preocupa-se com a preservação das relações, situações e vínculos jurídicos. Dentre as consequências importantes do referido princípio para o desenvolvimento dos acordos de leniência encontram-se: a proibição, em geral, da retroatividade de atos, o impedimento de nova interpretação a situações pretéritas, a proibição de anulação de atosde que decorram efeitos favoráveis aos destinatários,após longo tempo, e o respeito aos direitos adquiridos e ao ato jurídico perfeito.
Medauar[16] destaca que um dos desdobramentos desse princípio consiste no princípio da proteção da confiança ou confiança legítima. A proteção da confiança deve ter destaque, no âmbito dos acordos de leniência, pois refere-se à preservação de direitos e expectativas particulares ante alterações inopinadas de posições e orientações administrativas, ainda que legais. Nesse escopo, quaisquer mudanças podem ser consideradas abruptas, radicais, ou de consequências desastrosas. A segurança jurídica também diz respeito ao cumprimento de promessas ou compromissos aventados pelos negociadores da leniência que geram esperanças para os celebrantes fundadas no seu cumprimento. Lastreia-se essencialmente na necessidade de justiça em todas as relações assimétricas de poder.
Ressalta-se que no momento atual pelo qual passa o desenvolvimento do instituto em estudo, o legislador pátrio e os aplicadores da leniência devem reforçarsemelhante princípio. De sorte que o ingresso em tratativas não podese tornar uma aventura imprevisível ou desconhecida para o administrado.
2.1.6 – Princípio da Consensualidade
O aludido princípio localiza-se no cerne dos acordos de leniência. Representa uma manifestação de boa governança pública e está longe de revelar condescendência. Ora, aqui não cabe, aos aplicadores do acordo, impor decisão às partes, mas tão somente considerar o resultado dos debates levados a efeito, a partir do qual será extraída a essência do trato que elas pretendem firmar. Na leniência, o Estado deve se abster de imposições ou decisões deliberadas; nesta seara,vigorará, invariavelmente, o consenso.
2.1.7 – Princípio da Voluntariedade
A pessoa jurídica envolvida no acordo deve participar voluntária e espontaneamente, não se admitindo estar ali compelida. Deve agir movida pelo arrependimento, pelo anseio de mudar suas práticas e de colaborar com o Estado.Nesse cenário, a esfera de vontade da parte não pode sofrer coação ilegal, nem estar sujeita a chantagem por parte do poder público.
Por fim, o Estado deve respeitar a autonomia da vontade do particular, de modo que lhe é defeso realizar bravatas ou intimidações para forçar um acordo, sob pena conspurcá-lo.
2.1.8 – Princípio da Confidencialidade
As informações que forem trabalhadas durante as negociações serão de conhecimento apenas das partes. Em outras palavras, os negociadores estatais não poderão ser chamados a prestar depoimento como testemunha em nenhum processo judicial que as partes oponham envolvendo questões relacionadas ao acordo realizado.
Nesse sentido, os §§ 6º e 7º do art. 16 da Lei 12.846/2013 informam que umaproposta de acordo de leniência somente se tornará pública após a efetivação do respectivo acordo, ressalvado o interesse das investigações e do processo administrativo. Destarte, um acordo fracassado não importará em reconhecimento da prática do ato ilícito investigado.
Tal princípio tem como objetivo fundamental garantir que a pessoa jurídica deposite total confiança nos representantes estatais, a fim de que o procedimento ocorra com lisura entre as partes.
2.1.9 – Princípio da Boa Fé
A boa fé aqui almejada e de relevo para o Direito consiste naquela externalizada por meio das condutas humanas, qual seja: a boa-fé objetiva. Nesse aspecto, durante as negociações, as condutas devem seguir padrões éticos de honestidade, respeito e confiança. Segundo as palavras de Carlos Roberto Gonçalves[17], tal conceito está fundado, na retidão, na lealdade e na consideração para com os interesses da outra parte, especialmente no sentido de não lhe sonegar informações relevantes a respeito do objeto e conteúdo das relações jurídicas.
A boa-fé deve ser o fio condutor das ações dos participantes do acordo, de modo que suas condutas devem traduzir a boa intenção, isenta de dolo, engano ou ardil. Tais ajustes devem ser movidos pelo espírito da cooperação sincera e em conformidade com o Direito.
2.1.10 – Princípio da Lealdade
Esse princípio assevera que todos os envolvidos – pessoa jurídica e representantes do Estado– devem se tratar e serem tratados com urbanidade, moralidade e probidade.
A verdade é a mola propulsora do acordo, cujo escopo consiste na produção e obtenção célere de informações que permitam ao Estado identificar os responsáveis por atos lesivos: sejam eles sociedades empresárias, particulares ou agentes públicos.
2.1.11 – Princípio da Proporcionalidade/Razoabilidade
Esse princípio exige que exista adequação de sentido entre as circunstâncias de fato (motivo), que ensejaram a instauração das negociações para o acordo e seus respectivos meios e fins. Neste ponto, ensina a doutrina, o princípio da proporcionalidade/razoabilidade desdobra-se em três elementos: (1) a adequabilidade da medida para atender ao resultado pretendido; (2) a necessidade da medida, quando outras que possam ser mais apropriadas não estejam à disposição do agente administrativo; e (3) a proporcionalidade, no sentido estrito, entre os inconvenientes que possam resultar da medida e o resultado a ser alcançado. Dessa forma, é defeso a imposição de exigências à pessoa jurídica “em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”[18], consagrando a vedação de excessos.
Assim, as partes envolvidas nas negociações devem adotar ações proporcionais ao bem jurídico tutelado no caso concreto, analisando aspectos como o grau de lesividade da conduta ilícita praticadacom vistas à elaboração dos encaminhamentos, especialmente quanto à estipulação das sanções a serem aplicadas.
3 – ALGUNS CONTEÚDOS ESTRUTURANTES DOS ACORDOS DE LENIÊNCIA E A DISPUTA DE ATRIBUIÇÕES ENTRE OS ÓRGÃOS DE CONTROLE
A Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) fez uma opção pela responsabilização objetiva da pessoa jurídica na esfera administrativa e judicial. Prescreveu a aplicação de diversas sanções como multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo; publicação extraordinária da decisão condenatória; perdimento de bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtido pela infração, ressalvados o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé; suspensão ou interdição parcial de suas atividades; dissolução compulsória da pessoa jurídica; proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos.
Algumas das críticas lançadas à lei brasileira referem-se à prescrição de possibilitar, apenas a primeira pessoa jurídica a manifestar seu interesse em cooperar com a apuração do ato ilícito,o direito de celebrar o acordo;eà necessidade de admissão pela pessoa jurídica desua participação no ilícito.
O argumento de que ocorreria uma espécie debarganha entre as sociedades empresáriaspara partilhar o conteúdo dos acordos, com a finalidade de quevárias pessoas jurídicaspudessem obter a leniência,mostra-se desarrazoado. A bem da verdade, persiste a vantagem para a primeira sociedade empresária, haja vista a possibilidade de elafornecer maiores informações e obter com isso melhores benefícios, ao passo que as demais – caso não apresentem fato novo relevante – ficarão à míngua, ou terão encurtado significativamente seus benefícios,cuja redução poderia alcançar 2/3 da multa.
A segunda imposição, qual seja: confissão de efetiva participação no ilícito, fere o direito fundamental à não autoincriminação (nemotenetur se detegere); além de revelar-se despicienda, na medida em que a pessoa jurídica responde objetivamente nos termosda Lei Anticorrupção. Por outro lado é bem-vinda, na medida em que serve como um processo psicológico-institucional de desenvolvimento e transformação da entidade para adoção de uma nova postura.
Outro ponto relevante refere-se à discussão acerca da relação entre a reparação de dano ao erário e o acordo de leniência. Uma interpretação sistemática do artigo 16 da Lei 12.846/2013 conduz ao entendimento de que o acordo de leniência consiste em um meio célere e eficaz para alcançar, nas situações cabíveis, a recomposição integral do patrimônio público, porém não é esta a sua maior finalidade.
A Lei Anticorrupção dispõe expressa e exaustivamente sobre os requisitos indispensáveis ao acordo de leniência (artigo 16, caput e § 1o, incisos I a III), a cargo da pessoa jurídica proponente, a saber: que seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar; que admita seu envolvimento no ato ilícito; que interrompa sua participação na infração sob apuração; e que contribua decisivamente com as investigações e o respectivo processo administrativo.
Anote-se que não há dispositivo da Lei Anticorrupção estabelecendo a recomposição do erário pela pessoa jurídica como condição essencial à celebração do acordo. A finalidade basilar da leniência consiste na identificação dos implicados na ilicitude e na rápida obtenção de elementos comprobatórios, em troca da atenuação das sanções. Não se pretende afirmar que a reparação do dano seja impossível no âmbito do acordo de leniência, mas, tão somente, que não se trata de requisito básico para sua celebração, tampouco relegar a segundo plano a reparação do dano sofrido pela Administração Pública, mas, pelo contrário, consignar que a Lei Anticorrupção acaba por representar um notável instrumento para atingir esse desiderato[19].
3.1– A Disputa de Atribuições entre os Órgãos de Controle
O Tribunal de Contas da União – TCU publicou em fevereiro de 2015, a Instrução Normativa 74/2015 que pretende regular a fiscalização da celebração dos Acordos de Leniência.
A Instrução Normativa causou muita polêmica visto que ocorreu no auge da Operação Lava Jato. À época, o então deputado Raul Jungmann (PPS-PE) afirmou que “a gravidade é que o TCU, que deveria ser órgão de controle externo dos acordos de leniência da Operação Lava Jato, irá se envolver com aantiga Controladoria Geral da União – CGU, em tomadas de decisões que serão sigilosas”.
Aumentando a polêmica, a extinta MP 703/2015 alterou a Lei Anticorrupção para estabelecer que o acordo de leniência seria encaminhado ao TCU somente após celebrado, a fim de que o órgão pudesse eventualmente instaurar tomada de contas especial para apurar prejuízo ao erário, quando entendesse que o dano não fora integralmente reparado.
A MP 703/2015, editada no final de 2015, explicitou, no campo normativo, a queda de braço entre os órgãos de controle externo e interno, ao procurar dar uma resposta clara a IN 74/2015 do TCU, demarcando, no âmbito dos acordos de leniência, a fronteira de atuação da Corte de Contas.
A reação foi imediata, numa decisão no início de 2016, o ministro Bruno Dantas, do TCU, determinou à então Controladoria Geral da União – CGU que enviasse à Corte de Contas as tratativas dos acordos em negociação. A Controladoria, por seu turno, impetrou junto ao STF um mandado de segurança, alegando o óbvio: que a Lei Anticorrupção previa que o acordo de leniência só deveria ser enviado ao TCU depois de assinado.
O relator do processo no STF, ministro Gilmar Mendes, concedeu uma liminar que desincumbiu a CGU de encaminhar imediatamente ao TCU as informações referentes aos acordos de leniência em curso no órgão.
Em maio de 2016, após o afastamento da Presidente da República Dilma Roussef e consequente posse do governante interino de Michel Temer, a MP 703/2015, por não ter sido convertida em lei, perdeu sua validade. A par disso, a CGU foi transformada no Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria geral da União. Com isso a articulação entre o TCU e o Governo parece ter melhorado substancialmente, de modo que o governo passou a concordar com o acesso ao Tribunal de Contas da União (TCU) às tratativas que antecedem à assinatura do acordo.
É compreensível que as negociações prévias à celebração do acordo devam possuir o máximo de sigilo possível, até pela possibilidade de desistência dos partícipes em fechar o ajuste, o que acarretaria a devolução dos documentos apresentados; a par do não reconhecimento da prática do eventual ato ilícito cometido pela pessoa jurídica. Porém, esse receio, do ponto de vista prático, deve dar lugar a segurança jurídica que pode trazer o acompanhamento concomitante do TCU no processo de celebração do acordo.
É sempre bom lembrar que o Tribunal de Contas,por força do art. 46 da Lei 8.443/1992, a despeito de acordos celebrados, pode declarar a inidoneidade da pessoa jurídica para participar de licitação promovida pela Administração Pública. Além disso, não se coaduna com natureza de uma república, a criação de normas a partir de concepções que levem à desconfiança para com determinado órgão, tampouco na ideia de que existem ilhas de probidade na esfera pública.
No cerne dessa questão encontra-se o vetustodebate acerca da possibilidade de os Tribunais de Contas exercerem,não apenas o controle a posteriori mas,o controle prévio e concomitante. Essadiscussão ganhou força porque assim dispunha a Carta de 1946 (art. 77, § 1º): “os contratos que, de qualquer modo, interessarem à receita ou à despesa só se reputariam perfeitos depois de registrados pelo Tribunal de Contas, sendo que a recusa do registro suspenderia a execução do contrato até o pronunciamento do Congresso Nacional”
No texto da Constituição de 1988, esse dispositivo específico foi retirado, não obstante, houve uma significativa ampliação das atribuições e das competências do Tribunal de Contas da União. Assim, o texto constitucional definiu, de forma mais aberta, a possibilidade de a Corte de Contas por iniciativa própria, a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, ou uma comissão técnica ou de inquérito, realizar inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II (art. 71, IV da CF). Semelhantes modalidades de fiscalização representam nada mais que o controle prévio e concomitante dos atos administrativos no âmbito da União.
Desse modo, o controle concomitante está na própria essência do Tribunal de Contas, que vem buscando maximizar as ações preventivas, evitando a ocorrência do dano. Esse tipo de controle se consolidou no campo infraconstitucional, a exemplo da Lei n.º 9.491/97, que estabelece procedimentos para o Programa Nacional de Desestatização, impondoa necessidade de preparação de todos os documentos dos processos de desestatização, para apreciação do Tribunal de Contas da União[20].
Com a tramitação de diversas propostas no Congresso Nacional a discussão não se encerrou. A propósito, há iniciativas no sentido de transferir, da antiga CGU para o Ministério Público – MP, a responsabilidade de firmar acordos, a exemplo das colaborações premiadas (Lei 12.850/13).
Na esfera notadamente criminal, há uma razão para tal fato: o titular da ação é o MP. Por outro lado, no âmbito marcadamente administrativodos acordos de leniência, nos quais se verifica algum dano ao erário, o TCU e a CGUpossuemrelevante interesse de agir. Nesses casos, os aludidos órgãos, além da competência constitucional precípua, encontram-se estruturados funcionalmente para levar a efeito esse tipo de cálculo.
CONCLUSÃO
A Lei Anticorrupção representa um marco no enfrentamento da tradição de desvio de recursos públicos no país. Mostra-se um instrumento capaz de preservar os efeitos positivos da hodierna onda de combate à corrupção.
Nesse sentido, os acordos de leniência possibilitam a manutenção da atividade econômica, garantindo o saneamento de pessoas jurídicas com posturas desonestas, evitando, num primeiro momento, a necessidade de dissolução.
Por evidente, para que se torne uma realidade, é preciso que os órgãos de controle se entendam e evitemdisputas desnecessárias por espaços, pois uma parcela do sucesso da Lei Anticorrupção depende da boa articulação desses órgãos. Assim, defende-se uma câmara,com poder deliberativo,formada por diversos órgãos, de sorte a agilizar o trâmite dos acordos. É controverso que uma estrutura estanque – na qual existam manifestações sequenciais– possa garantir a eficiência que a sociedade ambiciona.
O país não pode prescindirde semelhante instrumento cuja exitosa implementação é capaz de possibilitar um avanço nas instituições públicas e privadasde modo a torná-las menos permeáveis a condutas ilícitas.
Por fim,é preciso enfrentar,com menos demagogia e moralismo e mais objetividade, o problema da corrupção endêmica – doença social responsável pela sabotagem de muitas das teorias jurídicas tendentes ao aperfeiçoamento das instituições públicas brasileiras– implementando métodos pragmáticos que já demonstraram ser eficientes em outras partes do mundo.
Auditor do TCU. Graduado em Direito pela Faculdade Nacional de Direito UFRJ Especialista em Direito Administrativo pela EMERJ
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