Resumo: O presente artigo discute a questão do fetiche da impessoalidade da lei e a (des)continuidade histórica do “homem cordial” buarquiano no Brasil contemporâneo tendo em vista as diferenciações entre diferentes camadas sociais na aplicação da lei e a constância da cultura do jeito, estudado por DaMatta, como meios de vivência social em uma sociedade bastante marcada pela desigualdade jurídica entre os cidadãos, caracterizada pela existência de uma denominada modernidade “incompleta”. Observa-se que para a realização de um projeto de exercício de uma cidadania efetiva urge uma relação dialógica com as representações do jeito, da cordialidade, do Estado Moderno e da cidadania de forma de reduzir a distância entre o formalismo da lei e a prática existencial concreta, vivenciada, sobretudo no exercício ao direito fundamental de acesso ao Judiciário, no sentido de jurisdição, para que se exercite uma cidadania efetiva, no horizonte do Estado Democrático de Direito. A metodologia empregada é resultante de uma pesquisa bibliográfica e de uma análise nos interstícios da sociologia jurídica, do direito, da história e da antropologia. Conclui-se que para que no Brasil seja plausível um exercício de uma cidadania existencial referenciada na noção de igualdade como atributo jurídico-político é necessário tomar os símbolos e valores do homem cordial e do jeito como elementos da cultura brasileira para uma melhor compreensão do “dilema brasileiro”.
Palavras-chave: lei, identidade, cidadania, aplicação da lei.
Sumário: 1.Introdução; 2.Breve nota sobre a noção de sujeito de direito e a (im)pessoalidade da lei como código da modernidade em terrae brasilis; 3.Entre a (im)pessoalidade da lei e homem cordial: a contribuição de Sérgio Buarque de Holanda; 4.O fetiche da impessoalidade da lei e o jeitinho brasileiro:a contribuição de Roberto DaMatta; 5.O sentido e os rit(m)os do fetiche da (im)pessoalidade da lei, do “homem cordial” e do “jeito”: um diálogo entre Sérgio Buarque de Holanda e Roberto DaMatta; 6.Conclusão; Referências.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem a dimensão de artigo acadêmico, limitando-se ao espaço metodológico que lhe é adequado.O texto, que ora se elabora, tem como objetivo desvelar sentidos e práticas vivenciadas em torno do fetiche da (im)pessoalidade da lei, representado pela (des)continuidade histórica do “homem cordial” e do “jeito” que, no caso brasileiro, é profícuo para análise e crítica tendo em vista a personalização e rede de proteção nas relações de pessoalidade com a lei, muitas vezes, através de um mediador – comumente – o patrão e a polícia para os “de baixo” e o político ou uma “pessoa influente” para os “de cima”, com o escopo de “dar um jeitinho”, “burlar a lei”, condutas estas que parecem ser práticas incorporadas à estrutura da sociedade brasileira.
Realizou-se uma abordagem sob o prisma da aplicação da lei, na prática concreta. É necessário esclarecer que o estudo da aplicação não deve ser dissociado da produção da lei[1]. O escopo do texto é examinar o fetiche da (im)pessoalidade da lei, na sua aplicação, na sociedade brasileira. Não houve uma preocupação em distinguir entre lei – o texto legal – e norma – um sentido atribuível a texto legal, pois o caráter da diferenciação é bastante precário tendo em vista que não se aplica aos ordenamentos jurídicos dos sistemas da common law.[2] Além disso, o entendimento estrito da lei como hipótese genérica de regulação de condutas foi evitado posto que ela será analisada como algo vivenciado ao longo do tempo, sem linearidade, no devir histórico.
No Brasil, muitas vezes, a aplicação da lei se modifica de acordo com a camada social das pessoas abrangidas e não com a existência/inexistência de atos ilegais. Desta forma, a aplicação de eventual sanção pelo Estado não toma como referência a prática do ato ilícito, mas, a camada social das pessoas envolvidas – o que demonstra a persistência do homem cordial buarquiano e do denominado “jeitinho” estudado por DaMatta.
A utilização do termo camada social e não classe social para demarcar o presente trabalho ocorreu tendo em vista a maior elasticidade do primeiro e o caráter de estamento, de maior homogeneidade, do segundo. Assim, para melhor designar a condição de aplicabilidade da norma, em situações concretas, foi empregada a palavra camada social.
As expressões “sujeito de direito”, “justiça”, “Estado de Direito”, “sociedade” “instituição”, “sociedade brasileira”, “jeitinho brasileiro”, “Estado Moderno”, “cidadania” e “homem cordial” entre outras imagens que constam neste artigo não são unívocas. Para a escrita do texto foi necessário realizar cortes epistemológicos que aproximaram metodologias diversas, respeitados os limites de cada área, para tentar se obter um melhor entendimento sobre o assunto.
Situar uma demarcação teórica para o tema é ofício árduo. Neste trabalho parte-se da premissa que as tecnologias jurídicas decorrem da construção de uma linguagem própria, artificial e formal, referenciada em um determinado contexto, com a finalidade essencial de manter a ordem. Neste sentido, em aspecto tradicional moderno ou contemporâneo anglo-americano ou eurocêntrico, o “homem cordial” e o “jeitinho” seriam condutas desviantes. A aplicação da lei como um código binário formadas pelas categorias do “sim” e “não” que não admite desvios e meio-termos deve ser evitada posto que o fenômeno implica em gradações, nuances, interstícios, fendas e complexidades que devem levar em conta o hiato entre o direito dos livros e o direito em ação para demonstrar o descompasso entre a lei e a realidade, de forma a apontar uma perspectiva possível de superação dos obstáculos epistemológicos para uma melhor explicação do acontecimento jurídico.
O “homem cordial” é uma metáfora que se refere a um processo histórico, a uma certa forma de existir no tempo. Trata-se de um conceito referenciado historicamente que designa modos de ser, agir e sentir diante da vida. Alude a um momento, a uma história, a uma mentalidade que apresenta (des)continuidades na vida brasileira. O conceito, se não pode olvidar as dimensões históricas, jurídicas e antropológicas, também não pode aprisionar em uma categoria sociológica o “homem cordial”.
Igualmente, o “jeito” também é uma forma de ser, agir e sentir perante a vida e de se relacionar com o mundo.Trata-se de um elemento paradigmático da identidade social brasileira em que a igualdade é sentida como um atributo moral e não jurídico-legal. Assim, o tratamento igualitário de todos ante a lei é refluído pela perspectiva relacional, que estabelece relações de pessoalidade com o poder, que, muitas vezes, torna o público, privado. Permite-se, por exemplo, em diversas ocasiões que a amizade (cordialidade) tenha mais importância do que o cumprimento da lei e que as relações sociais, assim que sejam estabelecidas, tenham primazia sobre qualquer outro juízo crítico. Portanto, os conceitos de “homem cordial” e do “jeito” estão densamente acoplados.
O “homem cordial” e o “jeito” são representações sociais e podem ser compreendidas como um conjunto de conceitos, explicações, afirmativas e imagens que se constituem e dialogam no cotidiano. As representações são formas de conhecer e opinar relacionadas à experiência direta de interação entre os sujeitos no meio social em que vivem. Embora os parâmetros de sistematização científica da representação sejam frágeis, são relevantes na experiência cotidiana com os sentidos da lei[3].
Destarte, na conjuntura da sociedade brasileira contemporânea, para a concretização de um direito como prática social diretamente associada à realidade é necessário estabelecer um certo consenso com a permanência das representações do “homem cordial” e do “jeito” de modo a aproximar a teoria e a prática, a regra impessoal e a experiência vivenciada da lei – que regula as relações humanas e, portanto, tem uma função necessariamente prática.
As práticas estatais, que detém o monopólio legítimo da violência, enquanto poder regulado e justificado pela formalização de uma ordem legal, burocracia e jurisdição compulsória sobre um território, concebem a estrutura social brasileira como hierárquica, atribuindo distintos graus de cidadania a diferentes camadas da população.
A aplicação da lei é (re)criada, (re)moldada e experenciada todos os dias não só pelos profissionais de direito mas, também pelos “leigos” e pela vivência concreta de advogados, partes, juízes, serventuários, promotores, políticos, professores e autores de obras jurídicas, delegados, policiais e interessados que, em seus valores, atitudes e condutas, referenciados em um determinado contexto, contribuem para a noção do direito e para a aplicação da lei. Nesta teia inter-relacional, no caso brasileiro, cabe ao Estado, através de mediadores, na maioria das vezes, a polícia, a difícil tarefa de selecionar quais as pessoas são classificadas para gozarem dos direitos, como cidadãos “completos” e quais as que não são. Isto é diretamente relacionado à camada social, ou, melhor dizendo, em último caso, ao poder aquisitivo – que cria diferenciações entre o cidadão “completo”, sujeito de direito que tem as prerrogativas de cidadão asseguradas na prática existencial, e o “incompleto”.
O Avesso do Direito, na expressão de Leonel Severo da Rocha, é o direito colocado a serviço do poder, quando o Direito abdica de seu papel de freio do poder e sustentáculo da Democracia Liberal[4].
A adoção do termo “avesso do direito” não implica em subscrever a perspectiva crítica marxiana de Roberto Lyra Filho ou o direito denominado alternativo. Apesar da importância da sugestão lyriana para o título do texto, o trabalho não deve ser analisado por seu liame com essa perspectiva, pois, não foi escrito com este objetivo.
Deve-se entender aqui a expressão – direitos fundamentais – como compromissos de realização expressos na Constituição da República – que não é somente a Constituição do Estado ou das suplantadas garantias liberais do Estado de Direito mas, a Constituição do Estado e da Sociedade, ou seja, a ordem básica, o pacto sócio-político fundamental de uma determinada comunidade sócio-política ordenada. Trata-se de um documento sócio-político produzido discursivamente no horizonte consensos possíveis em um certo contexto. Como o próprio termo afirma, a Constituição constitui, ou seja, forma e conforma o Estado. Portanto, o direito fundamental de acesso ao Judiciário, como acesso à jurisdição, implica na efetiva igualdade jurídico-política de todos os cidadãos de uma determinada comunidade sócio-política.
Entretanto,pouco mais de vinte anos após a publicação da Constituição de 1988, continua-se a olhar o novo com os olhos do século XIX. O texto constitucional, assentado no paradigma do Estado Democrático de Direito parece não ter sido compreendido posto que ainda não cessou o Estado Polícia: “direito penal mínimo para os do andar de cima” e “direito penal máximo para a patuléia”, ou ainda, “direito civil para rico” e “direito penal para pobre”.
O texto constitucional coloca-se, muitas vezes, como premissas e promessas em sua maioria não realizadas e não realizáveis, pois na prática concreta, alarga-se a distância entre a previsão legal, os estudos jurídicos e a prática jurídica. Para que seja possível uma redução na pretensa dicotomia previsão legal e prática jurídica, é necessário levar os direitos a sério[5], o que consiste no respeito às promessas de que a dignidade e igualdade das minorias serão efetivamente respeitadas pelas maiorias. No caso do presente estudo, entenda-se minoria como a maioria dos brasileiros que não têm acesso ao Judiciário em condições de concreta igualdade jurídico-política.
O Estado Democrático de Direito pode ser definido pela razão do melhor argumento realizada entre indivíduos juridicamente livres, racionais, juridicamente contratuais e juridicamente iguais, o que não necessariamente excluem no caso brasileiro o “homem cordial” e o “jeitinho”. É mister, ainda, notar que a adoção do referido paradigma não se reveste de uma condição exclusivamente procedural, como pode parecer, ao se fazer uma defesa da razão do melhor argumento visto que este deverá levar em consideração princípios, valores e símbolos como a dignidade humana, a cidadania e o pluralismo, produtos culturais hodiernos no parâmetro de sociedade aqui estabelecido. Portanto, urge a superação de um estrito liberalismo jurídico para um entendimento conforme ao paradigma constitucional.
A utilização do termo fetiche[6] remete às crenças absurdas do sujeito de direito moderno que acredita, aprioristicamente, na igualdade dos homens e não leva em consideração os sentidos das práticas de desigualação jurídica vividas no cotidiano. Saliente-se que a noção de impessoalidade da lei está sedimentada no coração do jurista moderno tendo em vista a larga publicização, na modernidade, do preceito estóico da igualdade fundamental entre todos os homens. Portanto, a assertiva não é um dado “natural” e a –histórico, mas, construída. Esta circunstância, se não deve valorizar sobremaneira a reconstrução histórica, não deve, contudo, ser minimizada posto que se deve levar em consideração, dentre outros aspectos, o ambiente cultural, a pressão da cultura sobre o indivíduo no local em que este vive.
O desvelamento do fetiche permite a observação da falsa dicotomia entre vida teórica e vida prática. Assim, a impessoalidade da lei se caracteriza como um fetiche jurídico visto que é negada cotidianamente, em diversas ocasiões, pelas práticas sociais que estabelecem hierarquia entre as pessoas para a aplicação da lei, conforme atestam os estudos de Sérgio Buarque de Holanda e de Roberto DaMatta.
O sentido de desvelar do texto aponta a necessidade de se olhar o novo com os olhos do novo. A tarefa do campo jurídico, se assim puder designá-lo, é esquivar-se da idealização das concepções tradicionais das análises jurídicas e da possibilidade de isolamento do direito. Sabe-se, contudo, das limitações deste tipo de crítica; igualmente, desviou-se da aporia de reduções sociológicas, históricas, antropológicas e jurídicas. É mister estabelecer de uma relação dialógica entre as tradições dos vocábulos “homem cordial”,“jeitinho”, “Estado Moderno” e “cidadania” para estabelecer uma tensão entre a pretensa dicotomia entre vida teoria e vida prática, aproximando a impessoalidade da lei com a experiência vivida dos sentidos da lei, com o objetivo de aumentar um exercício efetivo de uma cidadania jurídico-política no Brasil.
Assim, o texto pretende ser uma postura crítica que visa auxiliar um melhor entendimento do assunto. Trata-se de uma abordagem refutável, precária, que pretende apontar a plausibilidade de um caminho, de uma vereda, para uma possível interpretação sobre as (im)permanências e/ou (des)continuidades do “homem cordial” e do “jeito” na sociedade brasileira contemporânea e na manifestação da lei como algo (im)pessoal e vivenciada, ou seja, o trabalho remete a uma ótica referenciada, histórica e concreta passível de complementaridade, superação e até mesmo falsificação[7], por uma outra abordagem do mesmo assunto que demonstre a precariedade do trabalho ora trazido a lume.
2. BREVE NOTA SOBRE A NOÇÃO DE SUJEITO DE DIREITO E A (IM)PESSOALIDADE DA LEI COMO CÓDIGO DA MODERNIDADE EM TERRAE BRASILIS
O saber jurídico se situa nas ciências sociais na condição de se constituir como uma ciência da cultura, ou seja, não deve ser visto como um fenômeno isolado, mas, integrado ao desenvolvimento histórico, econômico, social e filosófico[8]. Trata-se de uma premissa que não se caracteriza apenas como interdisciplinaridade entre ciências sociais e direito, mas, aduz a necessidade de uma nova compreensão do direito que evite uma orientação meramente textual-legal e que leve em consideração os aspectos da relação da tecnologia jurídica com a prática jurídica e com a cultura das práticas institucionais.
Alfred Bullesbach aponta cinco aspectos da relação do saber jurídico com a prática jurídica”:
“O saber jurídico (1) socializa (isto é, fornece pessoal mais ou menos qualificado), (2) elabora propostas de interpretação, (3) fornece orientações de acção de natureza simbólica ou “dogmática” (de qualquer modo, comunicativa), (4) providencia modelos legitimadores. A influência das relações sociais sobre a prática jurídica resulta (5) também das redes de citação mútua, da prática editorial e da política de pareceres e convites para postos universitários. Além disso, existe uma mútua relação entre a prática jurídica e o saber jurídico no âmbito da argumentação prática, por um lado, e os problemas e juízos de valor e sua formação, por outro. Esta relação só se esclarece com conhecimentos sobre a gramática destas interações com a sociedade”[9].
Hodiernamente, o pensamento jurídico é formado, sobretudo pelo ideário liberal espargido a partir da Europa do Século XIX. O direito moderno reforça a coesão de uma comunidade jurídica através de cinco funções fundamentais:
“1. eliminação de conflitos (função de reacção);
2. orientação de comportamentos (função de ordenação);
3. legitimação e organização do domínio social (função de constituição);
4. configuração de condições de vida(função de planeamento);
5. estabelecimento de uma atividade de execução do direito (função de vigilância)”[10].
Os valores jurídicos-liberais como a neutralidade da lei, imparcialidade do judiciário, sujeito de direito, constitucionalidade das leis, princípio da legalidade, impessoalidade da lei, dentre outros, estão diretamente relacionados às funções mencionadas acima e constituíram o que se convencionou denominar dogmática jurídica.
A dogmática jurídica é a cristalização dos valores jurídico-liberais difundidos a partir da Europa oitocentista. A chamada dogmática é vista também como sinônimo de Ciência do Direito, haja vista que esta abrangeria o conjunto de conhecimentos pertinentes às normas jurídicas e seriam aptas a responder às exigências epistemológicas da cientificidade.
Não é preciso ser epistemólogo ou filósofo da ciência para perceber a incoerência metodológica desta “Ciência do Direito”, em que dogmas são vistos como paradigmas de ciência. Saliente-se que a conhecida noção de paradigma kuhniano não menciona o dogma como elemento formador do conceito.
Para Kuhn[11], o paradigma é, grosso modo, uma forma de interpretar o mundo e remete a uma constelação de crenças, valores, práticas e costumes regentes de um determinado modo de vida em um determinado contexto. Assim, ele exclui o termo dogma da noção de paradigma. Contudo, o dogma tomado em uma perspectiva de negação pode ocasionar a superação de um determinado estado de coisas, auxiliando na construção de uma nova ótica de ciência. Para tanto, mencione-se, por exemplo, o período de crise paradigmática em que diferentes valores, que podem se tornar dogmas, convivem em um mesmo contexto.
O conceito de impessoalidade da lei remete a uma concepção de justiça. Trata-se de um termo polissêmico, ou seja, que admite diversos sentidos e, para delimitar o problema far-se-á menção ao conceito de justiça em Canaris[12].
Canaris se refere à justiça como igualdade entre os homens. Entretanto, a manutenção da ordem prescinde da justiça, ou seja, não é necessária justiça – aqui entendida como igualdade entre os homens para que a ordem seja mantida.
Nota-se que o postulado da impessoalidade foi mitificado, mistificado, o que absolutiza noções e princípios discutíveis tendo em vista a dificuldade prática de realização do preceito – que abandona o caráter de conhecimento, constituindo-se como um mecanismo de crença. Ademais, o ato criador da lei é um ato volitivo e não um ato de conhecimento.
No mesmo sentido, Michel Miaille[13] afirma que a declaração de que todos os homens são sujeitos de direito livres e iguais não constitui um progresso em si mesma, pois a noção de sujeito de direito remete às relações sociais que são necessárias aos modos de produção. Assim, no escravagismo ou no feudalismo a noção de sujeitos de direitos idênticos e autônomos é impossível não por fraqueza das “sociedades primitivas” em contraposição às “sociedades modernas” mas, porque esta representação é inútil e perigosa para a manutenção da ordem em um contexto mão de obra escrava ou servil.
A noção de sujeito de direito como equivalente da de indivíduo é uma construção artificial, histórica, pois, não é “natural” que todos os homens sejam sujeitos de direito. A pergunta “quem é o sujeito de direito?” é, conforme Ricoeur, uma questão jurídica formal de caráter antropológico. Ou seja, quais são as características fundamentais que tornam o si (self. Selbst, ipse) capaz de estima e consideração?(RICOEUR, 2008, p.21).O filósofo francês menciona a capacidade e a realização. O texto não se aterá a estes aspectos posto que para a finalidade deste artigo é mais importante o questionamento “quem é o sujeito de direito?” do que a resposta formulada pelo mencionado autor.
Nas sociedades ocidentais modernas e/ou contemporâneas, pode-se atribuir o estatuto de sujeito de direito à necessidade das trocas mercantis generalizadas, ou seja, à crescente monetarização da existência humana. O sujeito, na modernidade, era o eixo da regulação social. Hoje, é o mercado. O Estado de Direito, conforme será abordado adiante, é uma referência simbólica para os negócios. Entretanto, não pode atribuir exclusivamente a noção de sujeito de direito à necessidade de trocas mercantis. Há de se ter em vista a existência de uma propaganda Iluminista de mais de duzentos anos que reforça o ideário estóico da igualdade entre todos os homens.
Contudo, é mister frisar que o critério de distinção entre os “classificados” como sujeitos de direito e aqueles que não o são está alicerçado, em último caso, no poder aquisitivo do cidadão “completo”. Explica-se: no caso brasileiro, a personalização e rede de proteção nas relações de pessoalidade com a lei através de um mediador – muitas vezes, o patrão e a polícia para os “de baixo” e o político e o “influente” para os “de cima”, remete às relações pessoais e sociais do indivíduo e, em derradeira instância, ao poder econômico do cidadão em situação de “sufoco” frente ao Estado.
Assim, o povo – no sentido de designar o homem comum das ruas – compreende o direito como um certo evento que lhe é alheio, que cai do alto sobre sua cabeça, como uma telha do telhado, fabricado nos mistérios dos palácios do poder e emanado da autoridade que será mediada, geralmente, pelo funcionário e/ou servidor da polícia.
Da mesma forma ocorre com os “de cima”. Esquivando-se da impessoalidade na aplicação da lei, evoca um mediador – geralmente um mandatário do “povo” ou uma “pessoa influente” – para integrar a rede de proteção.
Ambos desconfiam do direito pelo fato de não distinguir lei e justiça e, ainda, por atribuir à primeira uma dimensão mítica, lastreada principalmente no vocábulo justiça como valor de caráter acentuadamente metafísico, lastreado na tradição de realização de justiça como caráter precípuo da lei, o que remete ao período administração portuguesa, conforme assinalado por Stuart Schwartz, sendo, portanto, um conceito de larga duração histórica.
Saliente-se, no entanto, que as figuras dos mediadores não se reduzem aos mencionados neste texto. DaMatta faz alusão, por exemplo, ao despachante[14], que é um intermediário entre os cidadãos e os poderes públicos constituídos. Há várias outras imagens de mediadores que poderiam ser elencadas mas, não caberia a análise neste texto.
A aplicação do direito, desde os tempos coloniais, se faz entre o “absolutismo da razão” – a impessoalidade dos procedimentos legais burocráticos e os excessos personalistas dos mediadores – “o despotismo da emoção”. Assim, a cordialidade, nas relações sociais, funciona como um sistema de trocas em que não se diferencia interesse, obrigação moral e previsão legal.
Para Arthur Nuβbaum, apud Bullesbach,
“A investigação de factos jurídicos significa “a investigação sistemática das reais condições sociais, políticas e outras, com base as quais se criam regras jurídicas, bem como o exame dos efeitos sociais, políticos e outros daquelas normas”. “Em primeiro lugar, têm que ser investigadas as formas da efetiva aplicação da lei; em especial, de que modo ela é aplicada, quer pelos tribunais, quer pela opinião pública; depois, que fins são tidos em vista com as normas e que efeitos exprimem elas”.[15]
O que nota na análise da permanência da cordialidade é a contínua, mas não linear, tensão entre o público e privado, sendo mister entender as configurações dessa interação para uma melhor realização de uma cidadania efetiva, vivenciada como prática, no Brasil. A investigação do sujeito de direito e da (im)pessoalidade da lei devem tomar em consideração os efeitos da existência do “homem cordial”e o do “jeito brasileiro” na aplicação da lei.
Segundo Angela de Castro Gomes:
“Quando do processo de independência, em inícios da década de 1820, enfrentou-se, pela primeira vez, a dinâmica organizacional e simbólica de construção de um pacto político institucional, sua imagem foi mobilizada. Se, em inícios do século XIX, os vários interesses locais, representados pelas Câmaras, aderiram a uma monarquia constitucional “brasileira”, fizeram-no na figura daquele que seria o primeiro imperador: d. Pedro. Ele devia encarnar a nova Monarquia que se formava, sendo representado, nas várias festas então realizadas, por seu retrato e pela imagem do coração. Retrato e coração que, na tradição de uma vertente de conceituar a autoridade política legítima, significam, de um lado, a amorosidade e justiça do governante e, de outro, a fidelidade e obediência dos governados”[16].
A origem etimológica dos vocábulos “cordialidade” ou o “homem cordial” não referem, como parece inicialmente, a qualidades positivas. Com efeito, a expressão remete à sua origem etimológica – o que vem do coração – e pode implicar tanto em amor como em ódio. O coração é um símbolo na história brasileira. Trata-se de um artefato simbólico de larga força religiosa e de utilização disseminada nas mitologias políticas. Mais do que isso: as ciências da cultura entre as quais pode se afirmar que se inclui o direito são estruturadas em torno de símbolos. Estes são objetos de interpretação e, no caso, para uma melhor compreensão do significado da cordialidade é necessário uma metodologia que não negligencie a importância da (im)permanências/(des)continuidades no imaginário brasileiro, da história social, da presença do termo “homem cordial”.
No Brasil uma tradição política de apelo ao coração, à cordialidade. Na República, o queremismo varguista é uma indicação desta permanência apesar dos diferentes marcos entre os ideólogos do Estado Novo e do processo de independência. O queremismo apontava a necessidade da permanência de Vargas, “para o bem do povo e felicidade geral da nação”, o que demonstra a constância no imaginário da cordialidade assim como “a ditadura cordial”, de Antonio Callado, que será explicitada em um tópico adiante.
No que se refere ao “código da modernidade”, observe-se, inicialmente a noções de Estado de Direito e de Código para o direito moderno. A existência do Estado de Direito foi possível devido a conjunção de dois tipos de condições históricas. O conjunto inicial de condições aduz certa experiência e certa noção de relações grupais. Para que se configure a ordem jurídica do Estado de Direito, é necessária uma conjuntura em que nenhum grupo estabeleça posição predominante e que não haja o direito intrínseco de governar. Esse relacionamento intergrupal em certos arranjos pode ser denominado de sociedade liberal. A segunda particularidade dos antecedentes históricos da ordem jurídica do Estado de Direito é o seu fundamento originário em um direito superior universal ou divino como norma (medida) para justificação ou crítica da lei positiva do Estado.
O Estado de Direito Moderno remete à concepção de uma ordem jurídica com os atributos de generalidade e autonomia, sendo definido pelas noções de neutralidade, uniformidade e previsibilidade para assegurar a impessoalidade do poder e, no caso em análise, da impessoalidade da lei. Destarte, o exercício do poder deve ser feito nos limites das regras e procedimentos que não estabeleçam diferenciações entre as camadas sociais e devem ser aplicados igualitariamente a todos os cidadãos que pertençam a uma determinada comunidade sócio-política.
O paradigma do Estado Liberal de Direito ou do Estado de Direito defende a autonomia privada do indivíduo para produção de riqueza e proteção ao patrimônio e se compõe de uma ínfima liberdade e segurança com a existência de amplas diferenças entre os indivíduos em questões como acesso ao Judiciário, à riqueza, ao poder e ao conhecimento. No âmbito do direito privado moderno, a adoção da economia de mercado moderna tinha como correlato a evolução dos direitos civis com o escopo de fortalecer um sistema de direito privatístico. Na esfera do direito público, transformar-se em um Estado Moderno tinha a exigência da formação de um arcabouço estatal de tipo weberiano, ou seja, implicava na racionalidade e na diferenciação de funções (competência – no sentido jurídico) para fazer valer a impessoalidade da lei. Portanto, o Estado de Direito é compreendido no parâmetro de liberdade negativa, ou seja, tudo o que não é proibido é permitido e a atuação do Estado se limita a evitar o arbítrio contra o cidadão e manter a ordem constituída.
A interpretação das leis no Estado de Direito é realizada por instituições especializadas, conduzidas por grupos profissionais relativamente autônomos, embasados em critérios de competência, eficiência e em técnicas de argumento, assegura que as pessoas cujo poder deve a lei limitar não sejam aquelas que, em última instância lhe determinam o sentido. Para que o “administrador” e o “legislador” atuem nos limites estabelecidos pelas leis, deve haver outra pessoa com autoridade que possa determinar os significados da lei, e para fazê-lo com um proceder distinto daquele do “administrador” e do “legislador”. Esta autoridade é o juiz.
Assim, a importância da jurisdição e da atuação do Juízo é precípua no Estado de Direito tendo em vista que a democracia liberal oferece uma moldura dentro da qual os cidadãos podem atuar.
A função administrativa é exercida nos limites determinados por leis que o administrador, em regra, não fez. Assim, também ele, segundo esta noção, é proibido de usar o poder público para a concretização de objetivos pessoais. No que se refere à função legislativa, o chamado “legislador” deve exprimir a vontade do grupo que representa através de regras gerais, sendo impedido de punir ou premiar diretamente certos indivíduos para mantê-los sob a sua influência particular.
Portanto, para a configuração de um Estado de Direito é necessária a separação entre juízes, “administradores” e “legisladores” e a aplicação uniforme das leis, desde que a produção legislativa represente equilíbrios entre grupos políticos, econômicos e sociais divergentes e não a supremacia dos ideários e interesses de um grupo em particular.
Entretanto, Roberto Mangabeira Unger preleciona o seguinte:
“as premissas básicas do Estado de Direito demonstraram-se, em grande parte, fictícias. Em primeiro lugar, nunca foi verdadeiro na sociedade liberal que todo poder significativo seja reservado ao governo. Na verdade, as hierarquias que mais direta e profundamente afetam a situação de um indivíduo são as da família, do local de trabalho e do mercado. O compromisso com a igualdade formal perante a lei não desfaz nem realmente corrige estas dificuldades; tampouco elas são subvertidas, pelo menos a curto prazo, pelos mecanismos da democracia política”[17].
Além disso, a obrigação de pautar a atuação governamental em consonância com a lei só aparentemente restringe a disposição dos governantes de usar o poder público para fins privados ou de valer-se da condição de representante do povo como instrumento de opressão pessoal ou favorecimento. O modelo do paradigma liberal, criado a partir do século XVIII, não tem condições de atender às demandas de uma sociedade multiespacial e multifatorial como a complexa sociedade brasileira contemporânea.
Outra premissa criticável do Estado de Direito é que a existência das regras podem tornar impessoal e imparcial o poder, o que é igualmente duvidoso pois a produção legiferante não pode ser considerada neutra visto que não se pode separar o processo de criação do resultado alcançado na elaboração do texto legal e, além disso, o texto de lei representa determinados valores: alia certa concepção de como deve ser distribuído o poder e resolvido os conflitos. Desta forma, o senso de precariedade e da ilegitimidade de um consenso racionalmente motivado torna árduo ao juiz localizar uma conjugação válida e estável de acordos e valores comuns que o oriente nas interpretações da lei. Neste sentido, a jurisdição não auxilia na resolução do problema, mas, amplifica o problema da injustificabilidade do poder.
Assim, as premissas do Estado de Direito, fundamentadas numa suposta ordem natural, em uma dimensão ética ou em uma moral metafísica são falsificadas pela realidade da vida de sociedade pretensamente liberal, e, para a compreensão da complexa sociedade brasileira e do direito brasileiro contemporâneo, se faz necessária a compreensão do paradigma do Estado Democrático de Direito, com todos os seus desdobramentos, definidos pela razão do melhor argumento realizada entre indivíduos juridicamente livres, racionais, juridicamente contratuais e juridicamente iguais, o que não necessariamente excluem no caso brasileiro o “homem cordial” e o “jeito”, que devem ser vistos sob uma nova ótica.
Como se nota, o “Código” é um artefato iluminista de geometrização das relações sociais, das dores emanadas dos conflitos, que tem como premissa, na modernidade, o Estado de Direito. Trata-se de um termo polissêmico, assim como “sujeito de direito”, “justiça”, “Estado de Direito”, “sociedade” e “instituição”. Tomar-se-á aqui o “Código” como símbolo e como mito no sentido de que está ligado ao cotidiano da cultura não sendo apenas algo descrito, contado, mas vivenciado.
O escopo de um Código é (re)produzir um sistema articulado e minucioso de regras escritas, contemplando todos os institutos possíveis, inclusive definindo-os e disciplinando-os em sua aplicação. Com efeito, o Código pretende ser um ato de ruptura com o passado, forjado pelo Iluminismo, que pretendia a criação de normas universais e eternas, como se fossem as traduções da harmonia geométrica que rege o mundo.[18]
Observa-se que o “código da modernidade” que tornou a lei em uma receita, o Direito em método e implicou na existência do Estado Moderno como espaços jurídicos formais, que são acessíveis a uma diminuta parcela da população deve ser (re)visto. No caso brasileiro, há de se levar em conta, a cultura da escravidão – entendida como desigualdade jurídica entre pessoas – do homem cordial e do jeito que são constituintes do código moderno no Brasil, em um contexto de cidadania de baixa intensidade, na expressão de Cittadino[19].
Além disso, como é sabido, o fenômeno da codificação se fez tardiamente no Brasil, através daquilo que Darcy Ribeiro[20] denominou atualização histórica: a necessidade de acompanhar os países mais evoluídos – a valorização do domínio do saber erudito e técnico europeu e estadunidense como o escopo de difundir crenças e valores alienígenas, “civilizados”, para orientar as atividades mais complexas. Ou seja, a codificação não decorreu de um ato de vontade ou de conhecimento do “legislador” ou por um estudo fático da realidade brasileira, mas, para acompanhar mais uma moda européia. Daí a expressão de Roberto Schwarz que o Brasil é o lugar das idéias fora do lugar.
A atualização histórica remete a uma visão evolucionista e etnocêntrica que pressupõem, dentre outras, a importação do sistema jurídico ocidental pelos países subdesenvolvidos ou para aqueles denominados eufemisticamente “em desenvolvimento”, e criou a necessidade de se fazer disposições similares para qualquer país subdesenvolvido, o que se observa, particularmente, no fenômeno da codificação para culturas e países diferentes. Como se vê, esta concepção parte de uma leitura equivocada de que o desenvolvimento jurídico teria como conseqüência o desenvolvimento político e econômico e de que o direito moderno poderia alentar a democracia.
Em vez de encorajar práticas democráticas, a adoção de um direito alienígena, acriticamente, pode ocasionar práticas autoritárias. Não se pode interferir em uma cultura sem antes analisar, detidamente, os riscos de uma possibilidade de adesão a pretensas inovações que se propõem a modificar uma certa realidade sem antes compreendê-la. A perspectiva de uma implantação de uma determinada política cultural, ou seja, a adoção do Código como artefato da modernidade deve levar em consideração uma determinada identidade que se refere não a uma panacéia de construção, mas a uma possível compreensão da realidade.
Assim, a (im)pessoalidade da lei como código da modernidade em terrae brasilis se impõe como um desafio ao cotidiano de um Estado, ou se preferir, a uma comunidade sócio-política que precisa ser contemporânea sem jamais ter sido “completamente”moderna no sentido weberiano do termo.
3. ENTRE A (IM)PESSOALIDADE DA LEI E O HOMEM CORDIAL: A CONTRIBUIÇÃO DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA
Ao publicar o ensaio “Raízes do Brasil”, em 1936, Sérgio Buarque de Holanda, a partir de análises weberianas sobre o Estado Brasileiro apontou a necessidade de superação da colonização portuguesa tendo em vista a permanência do Estado Patrimonial. Sobre o assunto o autor se manifestou da seguinte forma:
“No Brasil, onde imperou, desde os tempos remotos, o tipo de família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influência das cidades – ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje”[21].
A vida política do Brasil independente foi dominada pelo mundo familiar rural. O paternalismo que emanava da monarquia portuguesa, da Igreja Católica e da família na sua forma patriarcal, ainda permeia a sociedade brasileira. O fenômeno é facilmente observável no complexo de “patrão” do Brasil tradicional. Em troca de lealdade e serviços, o patrão, um membro da elite local, protege e premia os interesses dos seus empregados, arrendatários e seguidores, mediando junto às autoridades quando qualquer membro do seu grupo está em dificuldade. A intercessão do patrão comprova a personalização das relações legais para “os de baixo” posto que o patrão é, de certa forma, o Governo, do qual a maioria dos brasileiros parecem aguardar quase tudo: desde emprego, crédito, bom salário, tratamento de saúde, estabilidade econômica e subsídio para as fantasias de carnaval. (ROSSEN, 1998, p. 51).
Na tradição do Estado patrimonial instalado pela colonização portuguesa no Brasil, a administração pública é de interesse privado das famílias. Os funcionários desse Estado exerciam as suas funções (im)pessoalmente: perseguiam, promoviam, premiavam e bloqueavam. O ingresso do funcionário na carreira de Estado era submetida a critérios da confiança pessoal ou de um outro elemento afetivo, e não da competência e eficiência. Destarte, burocracia e sociedade no Brasil colonial constituíam dois sistemas de arranjos imbricados. A estrutura formal do governo impessoal e categórica estava permeada por um complexo sistema de relacionamentos interpessoais baseados em parentesco, afeição e propina.
As causas do êxito do sistema colonial estão diretamente relacionadas tanto às realizações como as falhas e nos características precípuas da sociedade e da economia na colônia. A falta de administração racional da Colônia tinha o escopo de manter o Brasil permanentemente ligado à metrópole posto que a inexistência de universidade e imprensa na colônia exigia um contato contínuo dos brasileiros com a terra-mãe para educação superior, técnica e, inclusive, atividades intelectuais. É também neste sentido que Buarque designa o brasileiro como um neoportuguês, desterrado na própria terra, cujo desafio é tornar-se pós-português, ou seja, brasileiro.
“Não era fácil aos detentores de posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida do Estado burocrático. O funcionalismo patrimonial pode, com a progressiva divisão das funções e com a racionalização, adquirir traços burocráticos. Mas em sua essência ele é tanto mais diferente do burocrático, quanto mais caracterizados estejam os dois tipos”[22].
A dinâmica desse processo explica, parcialmente, a resistência e a duração do sistema colonial. Através de alianças com os burocratas, os grupos, as famílias e indivíduos da colônia obtinham uma influência que poderia vir a ser eficiente na aplicação da lei e na maneira de acompanhar as linhas políticas da metrópole, acomodando desta forma as forças políticas, sociais e econômicas em nível local, conforme informa Schwartz[23].
Diferentemente do Estado Patrimonial, no Estado Moderno weberiano, subscrito em termos por Sérgio Buarque, pois o autor não se vincula a uma perspectiva sociológica, mas, antes, histórica, a administração pública, os tipos de dominação, o conceito de patrimonialismo e de racionalidade, a fragmentação da sociedade em esferas diferenciadas e tensas, cada uma com sua lógica específica – diferenciam a lógica da esfera familiar da esfera política.
Para o historiador e sociólogo paulista, o Estado e a família são esferas sociais essencialmente diferentes, descontínuas e até opostas. No Estado vive o cidadão, indivíduo público, com deveres e direitos, submetido a leis abstratas, gerais, impessoais e racionais. Na família mora o indivíduo privado, corpóreo, afetivo, concreto, pessoal.
Neste sentido, o Estado representa a vitória do universal e abstrato sobre o particular e concreto. Contudo, no Brasil não é bem assim. Muitas vezes grupos familiares são mais fortes que o Estado, controlando este. Observe-se que no Brasil contemporâneo há oligarquias locais e regionais que são ainda um respeitável obstáculo à constituição do Estado moderno de feição que comumente se designa “completa”, ou seja, ao modo europeu ou estadunidense.
Na vigência do paradigma do Estado de Direito, incapazes de realizar a tradicional separação do Estado entre público e privado, os brasileiros tornavam o Estado e os partidos políticos, na maioria das vezes, em assuntos de chefes familiares ou, no máximo, em facções de interesses sejam estes políticos ou econômicos.
Como se vê, falta na tradição do Estado brasileiro a organização impessoal e burocrática. Na longa permanência histórica do Estado Patrimonial não havia uma organização racional da burocracia estatal para que se alcançasse uma maior eficiência na prestação do serviço público, mas uma lógica familiar que acolhia, protegia e premiava familiares, amigos e clientes.O termo burocracia tornou-se sinônimo de ineficácia e ineficiência administrativa.
“No Brasil, pode-se dizer que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante de vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal”[24].
Os diferentes pontos de vista da Administração Pública e do “povo” em relação ao que é melhor, ou seja, daquilo que se pode considerar como um projeto de vida boa, tendo em vista a inexistência de um consenso racionalmente motivado e de sentimento de Constituição tem levado muitos brasileiros a se conduzir de acordo com o adágio – “manda quem pode, obedece quem quer”.
A designação “homem cordial” – de Sérgio Buarque de Holanda – indica, inclusive, a pessoa incapaz de estabelecer uma relação de impessoalidade com a lei. O homem cordial quer ser íntimo, quer ser próximo. Tem aversão às diferenciações e, se elas existem concretamente, ele facilmente as extingue. A igualdade é vista e sentida como um preceito moral e não como uma conquista jurídico-legal. Neste sentido, mencionem-se as expressões, bastantes comuns em discursos no Brasil contemporâneo: “gente é tudo igual”, “ele vai pro cemitério que nem eu”.
No relacionamento interpessoal, dificilmente designa-se uma pessoa pelo nome, ou seja, pelo nome de família, mas, somente pelo prenome. Em certos lugares é bastante comum a utilização do sufixo –inho, que indica aproximação e cordialidade; na expressão religiosa, o fiel torna-se íntimo de Cristo e dos santos; na relação com os superiores, torna-se prontamente discípulo, pupilo, seguidor e fiel. A cordialidade reivindica um superior “bacana”, “gente fina” e “gente boa”, simples e humilde, isto é, percebe-se em todas as esferas da vida um relacionamento próximo e pessoal.
“Nada mais significativo dessa aversão ao ritualismo social, que exige, por vezes, uma personalidade fortemente homogênea e equilibrada em todas as suas partes, do que a dificuldade em que se sentem, geralmente, os brasileiros, de uma reverência prolongada ante um superior. Nosso temperamento admite fórmulas de reverência, e até de bom grado, mas quase somente enquanto não suprimam de todo a possibilidade de convívio mais familiar”[25].
O caráter indisciplinado e personalista do homem cordial está longe de aceitar uma ordem coletiva impessoal, legal. A defesa intransigente do cumprimento da lei soa estranha, pois é avaliada como exagero, inconveniente e inadequada ao “jeito brasileiro de ser e resolver as coisas”. Neste sentido, se forçado a optar entre ajudar alguém de quem sente pena ou respeitar uma norma legal, o brasileiro provavelmente esquecerá a lei. (ROSSEN, 1998, p. 47).
Isto cria uma cultura propícia para as práticas do “favor”. A personalidade cordial está pronta para obedecer cegamente ao mito do herói individualizado (o líder carismático, o Imperador, o Pai dos Pobres, o Homem Comum das Ruas – no caso das democracias), como coletivizado (o Estado, o Povo, o Partido, a Igreja, etc) Ele está disposto a acordar com qualquer conceito, se este for apresentado em uma relação cordial, ou seja, de coração a coração, de maneira afetuosa ou agressiva.
Portanto, no entendimento de Sérgio Buarque, entre homens que obedecem aos apelos do coração e não a normas impessoais e abstratas, é muito difícil estabelecer e manter a ordem pública e, ainda mais, uma democracia. Daí a conhecida expressão de Sérgio Buarque de Holanda que alega que no Brasil a democracia não passaria de um mal entendido tendo em vista a persistência de certo imaginário colonial, da cultura da escravidão, da cultura da diferenciação, do “favor” e do “jeitinho”.
A não internalização dos sentimentos constitucionais ou um precário entendimento do paradigma do Estado Democrático de Direito que reconhece na norma uma atuação legítima da comunidade sócio-política, permite que o direito brasileiro conviva com um paradoxo: abundância de leis para não serem jamais cumpridas, imperando-se, ainda, o Estado Polícia, de feição incompleta, pois admite o “homem cordial”, de feição semi-colonial. Não se garante nem mesmo a vigência do texto constitucional[26], pois este é uma mera carta de intenções, deslocado da realidade brasileira. Observa-se, atualmente, que as políticas públicas ocupam o espaço da regulação jurídica.
O horror ao vácuo legal, o furor legiferante de tudo regulamentar, inclusive como matéria constitucional questões que poderiam ser enfrentadas por outros meios, parece condenado a um solene desconhecimento para a maioria da população. Descumprir normas, estabelecer relações de pessoalidade com a lei através de um mediador, na maioria das vezes – o patrão e a polícia para os “de baixo” e o político e o “influente” para os “de cima”, conforme anotado, são recorrentes na estrutura da sociedade brasileira.
Assim, a metáfora do “homem cordial” é um óbice para se ter uma ordem social mais impessoal, de uma burocracia racional-legal e, ainda, para a constituição de uma democracia no Brasil pois sugere um processo em que a constância do uso de costumes, de facções privadas e de peculiaridades da sociedade brasileira obstavam a consolidação do Estado em um arquétipo moderno de tipo “completo”.Neste sentido, Sérgio Buarque aduz que
“a experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e elabora em geral os traços de outras culturas, quando estas encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida”[27].
Historicamente, nota-se que muitas vezes os grupos dominantes têm outorgado paternalmente constituições e leis ao Brasil com pouca ou nenhuma consideração ou consciência das expectativas e capacidades do povo governado. Em vez de ser o produto pressões populares, de grupos antagônicos em debate, de um estudo fático sério da realidade brasileira, ou de uma cristalização dos costumes, como na common law, a legislação é na maioria das vezes uma invenção daquilo que uma pequena facção imagina ser para o bem do povo ou, muitas vezes, representa a hegemonia dos ideários e interesses de um determinado grupo. Neste sentido, a lei é uma abstração de princípios importados deslocados da realidade brasileira pois, muitas vezes, não encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida.
Sobre o assunto, saliente-se, ainda, que, a transposição de todo um sistema legal da Metrópole para a Colônia pode ser considerada uma dos motivos do que, presentemente, se designa formalismo na sociedade brasileira contemporânea – tendo em vista o amplo descompasso existente entre a norma e a prática social. Até o final do século XIX, o sistema legal brasileiro baseava-se nos velhos códigos filipinos e manuelinos que, aqui, foram implantados antes mesmo que tivéssemos população para segui-los ou infringi-los.(BARBOSA, 2006, p. 107). Desta forma, quando os movimentos políticos e sociais do final do século XIX trouxeram para o confronto e para o diálogo com a tradição – os valores da modernidade, não houve uma substituição dos valores antigos pelos novos, mas, houve uma sobreposição de valores e práticas, produzindo-se um sistema social no qual todos os códigos, modernos e tradicionais, coexistem, pois há uma rejeição a lei, abstrata, impessoal, como um código binário que só permite um “sim” e um “não”, o que implica admitir certa permanência do homem cordial e um feixe de opções igualmente válidas aos viventes da terrae brasilis.
Para que se possa estabelecer um direito à moda anglo-americana ou continental européia, com a predominância do discurso, do debate, pelo melhor argumento, com julgamentos orientados pelo princípio da igualdade como atributo jurídico-político e não por questões de política urge combater o estado de miserabilidade da maioria dos brasileiros – submetidos a um torpe assistencialismo de Estado e estabelecer um diálogo com a tradição do homem cordial, de forma a se buscar a realização de uma cidadania efetiva que implique em acesso concreto ao Judiciário em condições de igualdade jurídica entre os cidadãos para que se reduza o fosso entre a vida teórica e prática da aplicação da lei. Saliente-se que o termo moda não tem um viés pejorativo posto que os estudos de direito comparado e a adoção de institutos jurídicos e leis compatíveis com a realidade brasileira são iniciativas que enriquecem a cultura jurídica se há a possibilidade de adaptação no modus vivendi brasileiro.
É mister ainda argumentar que a condição cordial não é um modo eterno e a – histórico do ser brasileiro, mas, está relacionada às condições históricas da vida brasileira rural e colonial que vem sendo paulatinamente, em sentido não linear, posto que sujeita a avanços e tropeços, superadas. Note-se que a sociedade brasileira mudou bastante nos últimos setenta anos, quando da primeira edição de “Raízes do Brasil”. Desde o final da década de 50 do século XX, a renda urbana é superior à renda rural. A tradição do patrimonialismo ainda tem certa permanência. A transição aqui se fez em poucas décadas, com enorme fluxo migratório para os centros urbanos, criando cidades com cidadania em baixa intensidade, diferentemente do modelo europeu ou estadunidense.
No que se refere à prática jurídica, esta acompanha ou tenta se ajustar às mudanças das práticas de cidadania na sociedade brasileira. A criação de regras não é tão relevante como se propugna. Já se foi o tempo da onipotência da lei. Ao se interpretar o novo (a Constituição ou textos legais) com lentes do passado, o novel se torna senil posto que uma mudança paradigmática aduz modificações no olhar e na atitude em relação as dificuldades existentes. Portanto, uma leitura adequada da Constituição não deve distinguir vida teórica e vida prática pois o texto legal se faz sendo, existente, como prática concreta.
4. O FETICHE DA IMPESSOALIDADE DA LEI E O JEITINHO BRASILEIRO: A CONTRIBUIÇÃO DE ROBERTO DAMATTA
Em 1984, Roberto DaMatta publicou a obra “O que faz o Brasil, Brasil?”, um ensaio de interpretações de temas brasileiros, quase cinqüenta anos após a primeira edição de “Raízes do Brasil”. O antropólogo aborda o jeito como um modo de navegação social no Brasil. Para ele, o “dilema brasileiro” consiste na existência do jeito, que decorre de uma nefasta dicotomia entre um arcabouço nacional feito de leis universais em que o sujeito é o indivíduo, ou seja, submetido a uma ordem abstrata e impessoal e situações onde cada qual se amparava e se defendia na medida da possibilidade pessoal, valendo-se para isso de seu sistema de relações sociais, notadamente, de um mediador, na existência de dificuldades. Como se vê, há nesta representação uma explícita divergência entre leis que devem ser aplicadas de forma impessoal a todos e as relações sociais que permitem aproximações pessoais com o poder e, portanto, a exclusão da impessoalidade.
O saldo deste estado de coisas é um sistema social desarmônico, mas, integrado e justaposto entre duas unidades sociais precípuas: o indivíduo (o sujeito das leis universais que modernizam a sociedade) e a pessoa (o sujeito das relações sociais, que conduz ao pólo tradicional do sistema). Entre ambos, o coração, a cordialidade, se equilibra. E no meio dos dois, a malandragem, o “jeitinho” se coloca como um modo de confrontar estas contradições e também paradoxos com o “jeito” brasileiro.
“é precisamente por tudo isso que conseguimos descobrir e aperfeiçoar um modo, um jeito, um estilo de navegação social que passa sempre nas entrelinhas desses peremptórios e autoritários “não pode!”. Assim, entre o “pode”e o “não pode”, escolhemos, de um modo chocantemente antilógico, mas singularmente brasileiro, o junção do “pode” com o “não pode”. Pois bem, é essa junção que produz todos os tipos de “jeitinhos”e arranjos que fazem com que possamos operar um sistema legal que quase sempre nada tem a ver com a realidade social”.[28]
É interessante notar a admiração do brasileiro pelo cumprimento das regras nos Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha. Segundo DaMatta, elas são oriundas da adequação entre prática social e a jurídica. Aqui, diferentemente, o jeito é um estilo de realizar, um papel socialmente internalizado, sendo um modus operandi de lidar com a instituição da lei e com as normas.
“A construção de tipologias de papéis é um correlato necessário da institucionalização da conduta. As instituições incorporam-se à experiência do indivíduo por meio de papéis. Estes, lingüisticamente objetivados, são um ingrediente essencial do mundo objetivamente acessível de qualquer sociedade. Ao desempenhar papéis, o indivíduo participa de um mundo social. Ao interiorizar estes papéis, o mesmo mundo torna-se subjetivamente real para ele”[29].
A análise dos papéis desvela as mediações existentes entre os universos macroscópicos de significação, objetivados na sociedade brasileira contemporânea e, no caso, na aplicação (im)pessoal da lei, do “jeitinho”e dos modos pelos quais estes universos são subjetivamente reais para os indivíduos e de que maneira a concepção da impessoalidade da lei e do jeitinho brasileiro manifesta-se na consciência do indivíduo. Para isto, é mister questionar-se a relação entre as maneiras de ser, sentir e agir do indivíduo, em sua vivência social total com a coletividade.
“Num mundo tão profundamente dividido, a malandragem e o “jeitinho”promovem uma esperança de tudo juntar numa totalidade harmoniosa e concreta. Essa é a sua importância, esse é o seu aceno. Aí está a sua razão de existir como valor social”[30].
Assim, é possível um diálogo com a tradição com os vocábulos “homem cordial” e “jeitinho” , como ser histórico, referenciado e de existência concreta na sociedade brasileira posto que os “de baixo” e os “de cima” representam papéis e realizam empírica e repetidamente a divergência, o conflito e o drama com a (im)pessoalidade da lei no espaço da sociedade brasileira.
Sobre a importância dos papéis para a representação da impessoalidade, Jeveaux se manifesta da seguinte forma:
“Dentro do procedimento os papéis atuam sob a forma de representação, no sentido teatral do termo. O barbeiro, na eleição, não se comporta como tal, mas como eleitor; o deputado, no processo legislativo, não pode defender abertamente os interesses de uma determinada indústria; o marido, no processo judiciário, é queixoso, parte ou interessado, e o juiz, julgador, e não o vizinho ou o amigo. Tudo com a finalidade de tornar impessoal ao máximo o comportamento representado pelos papéis, resguardando as expectativas a ele referentes, de modo que não sejam transpostos (profissão/família, negócios/cultura, religião/política).
Essa separação de papéis, no processo judiciário, significa comportar-se conforme as regras do jogo, ou seja, aceitando um papel determinado e se portando conforme a ele. E o que motiva essa aceitação é a incerteza de um resultado, pressuposto máximo para a legitimação”[31].
Neste sentido, a instituição se assemelha a um drama. DaMatta refere-se a lei, no Brasil, como uma interdição permanente alheia a vontade da pessoa (o sujeito das relações sociais, que conduz ao pólo tradicional do sistema) o que torna indispensável a mediação ou jeito para se safar de uma situação de dificuldade pessoal frente ao Estado.
“Somos um país onde a lei sempre significa o“não pode!”formal, capaz de tirar todos os prazeres e desmanchar todos os projetos e iniciativas. De fato, é alarmante constatar que a legislação diária do Brasil é uma regulamentação do “não pode”, a palavra “não” que submete o cidadão ao Estado sendo usada de forma geral e constante”[32].
Aliado à característica da interdição, refutada pela pessoa e acolhida pelo indivíduo (o sujeito das leis universais que modernizam a sociedade), paradoxalmente, a lei aparece como um dado desconhecido da realidade, mas sumamente valorizada pelo aspecto simbólico, do papel que reveste e da aparência de primor e requinte com que é elaborada, produto de uma razão “Iluminista”, de uma desejada realização de uma cidadania concreta que ainda não se efetivou inteiramente.
Desta forma, a lei não pode ser tratada como um código binário entre um “sim” e um “não” mas deve levar em conta a experiência vivenciada da lei como prática concreta em uma sociedade posto que, dentre outros argumentos,
“desde o estabelecimento do Império tem havido, pelo menos, três padrões de lei no País:
1º.)As leis formais das escolas de direito e do governo – as leis da elite urbana. Deve-se observar que através da famosa “instituição” brasileira, o “jeitinho”, a classe dirigente do País esta quase sempre acima da lei formal.
2º.) As leis dos coronéis, os grandes proprietários de terra e a elite comercialmente ativa, que são muitas vezes os soberanos absolutos de suas propriedades. Este sistema está decaindo em vista da crescente dominação das cidades industriais na vida brasileira.
3º.)A lei popular, as leis consuetudinárias dos pequenos agricultores, agregados e camponeses, caipiras e dos pobres das zonas urbanas”.
As três leis estão interligadas de algum modo, porém há uma analogia no fato de que todas têm origem na cultura legal tradicional de Portugal[33].
A representação do termo “papel da lei” remete a simbolizações bastante complexas do sentir e da experiência do brasileiro com a lei, ou seja, é constituída de realidade subjetiva, sendo uma dimensão da vida social.
Para Peter Berger e Thomas Luckmann,
“A representação de uma instituição em papéis, e por meio destes, é assim a representação por excelência, de que dependem todas as outras representações. Por exemplo, a instituição da lei é evidentemente também representada pela linguagem legal, pelos códigos da lei, teorias da jurisprudência e finalmente pelas legitimações últimas da instituição e suas normas em sistemas éticos, religiosos e mitológicos de pensamento. Estes fenômenos produzidos pelo homem, como a impressionante parafernália que freqüentemente acompanha a administração da lei, e fenômenos naturais tais como o estrondo do trovão, que podem ser tomados como veredicto divino em um julgamento por ordalio e, mesmo tornar-se finalmente símbolo da justiça última, representam ainda mais a instituição. Todas estas representações, porém, derivam sua permanente significação e mesmo sua inteligibilidade da utilização na conduta humana, que neste caso é evidentemente a conduta tipificada nos papéis institucionais da lei”[34].
Destarte, mencione-se, também, que os papéis são constitutivos das instituições haja vista que tornam possível a vida das instituições posto que são indivíduos que as conduzem no decurso do tempo, continuamente. Nem o conflito nem a instituição podem ocorrer separados da reiterada efetivação de corporificação de papéis.
A instituição é criada para racionalizar uma certa atividade. Pode haver instituição sem organização. A primeira remete a uma organização social emergente das relações informais, ou seja, é aquilo que determina o comportamento das pessoas de forma inconsciente, permitindo a criação no nível macro social de mecanismos de controle. Observe-se que as normas implícitas são institucionais. Assim, quanto mais institucionalizada for uma sociedade, menor a necessidade de regulação legal. Entretanto, com o tempo, muitas vezes, a finalidade – racionalizar uma atividade, se modifica para uma perspectiva de manter os próprios interesses. Em um aspecto de análise jurídico, pode-se afirmar que as instituições oferecem a armadura jurídica da sociedade.
A organização é um instrumento de racionalidade, em determinado espaço para tentar controlar influências externas (oriundas de características de pessoal e de alterações ambientais), mediante o estabelecimento de cargos especializados, integrantes de uma burocracia racional-legal para estabilizar e criar rotina, visando uma maior eficiência interna. No que se refere ao Judiciário, por exemplo, o papel de juiz relaciona-se com outros papéis, cuja totalidade compreende a instituição da lei. O juiz atua como representante desta instituição.Somente mediante esta representação em papéis desempenhados é que a instituição pode manifestar-se na experiência real[35].
Entretanto, o maior ou menor grau de incerteza da experiência não coloca em cheque a racionalidade do ato humano intencional. Além disso, estudos da formação da personalidade e de instituições podem aumentar consideravelmente a compreensão de uma determinada estrutura social burocrática, institucional, hierarquizada (no caso brasileiro) haja vista que funcionários (mediadores) restringem ao máximo, na sua atuação, as relações pessoais e utilizam a formação de categorias, centradas em normas de impessoalidade, que ignoram, freqüentemente, as nuances de casos concretos individuais, o que tende a produzir conflitos nos contatos entre funcionários (mediadores) e o público. Ressalte-se que comportamentos estereotipados em previsões textuais-legais não são adequados, muitas vezes, à existência de problemas individuais posto que a atuação estatal ocorre, na maioria das vezes, sob uma ótica liberal que não é capaz de responder às complexas demandas de uma sociedade conflituosa, com uma acentuada hierarquização entre as pessoas, em um contexto multifatorial e multiespacial como o Brasil contemporâneo.
Nota-se que a perspectiva dos papéis como prática experiencial concreta na formação e a duração de certa estabilidade das instituições, significa, refutar a afirmativa incipiente de que em todo lugar que existe um homem, há o direito e vice-versa, nos termos da conhecida máxima de experiência latina. O ponto de vista de que a realidade é construída remete ao liame necessário entre sociedade e direito e na complexidade da relação entre ambos, sem cair em aporias reducionistas, tendo em vista a necessidade dialógica entre as representações dos vocábulos “homem cordial” e “jeitinho” para estabelecer uma tensão entre a pretensa dicotomia entre teoria e prática, aproximando a impessoalidade da lei com a experiência vivida dos sentidos da lei.
No Brasil, o estabelecimento concreto de uma igualdade jurídica entre os cidadãos em que resulte a imperiosa necessidade da impessoalidade da lei é sentida como algo negativo, indicando “falta de calor humano”, devendo ser temperada com uma dose de intimidade. Segundo o antropólogo Robert Weaver Shirley,
“Essa lacuna entre o direito formal e o direito aplicado é real em todos os países, mas no Brasil alcançou proporções quase surrealistas. Os brasileiros (…) crêem (…) numa estrutura de poder e em mediadores do poder que se movem paralelamente à ordenação formal das leis (…) no Brasil. A lei está lá para ser usada seletivamente: para nossos amigos, a amizade; para os inimigos, a lei.
É por isso que a maioria das pessoas evita tanto quanto possível a estrutura jurídica formal. Se puderem resolver suas disputas ou problemas manipulando o sistema informal, isto é, o “jeitinho” brasileiro, eles o farão. Caso contrário, geralmente sentirão receio de se aproximar do sistema formal, temendo perder de qualquer maneira, já que a verdadeira força reside na estrutura informal”[36].
Portanto, contraditoriamente, ao mesmo tempo que se quer viver sob o império de leis universais quer se apresentar um tratamento personalizado a todos os cidadãos. Este é o paradoxo da nossa modernidade: tenta-se conjugar a impessoalidade da aplicação da lei com diferenciações pessoais que recusam a impessoalidade haja vista que a igualdade é sentida como um atributo moral e não como uma conquista jurídico-política. Para exemplificar este argumento, observe-se que nos Estados Unidos da América do Norte, por exemplo, o estadunidense admite a igualdade como prática jurídico-política concreta de todos ante a lei mas, duvida da mesma no plano moral. No código cultural brasileiro a igualdade é nitidamente moral como se pode notar em expressões que demonstram a não aceitação de diferenciações entre as pessoas: “Só porque é bonita”, “Só porque tem dinheiro”, “Gente é tudo igual”, termos que designam a aspiração a uma igualdade vivenciada como atributo moral e não como predicado jurídico.
O protótipo do jeito e da cordialidade compõem a arqueologia de uma brasilidade, fluida, mas, permanente, conforme se pode atestar da leitura do trecho da carta fundante de Pero Vaz de Caminha em que expõe com minúcia a viagem ao ocupante do reino português, agradece ao monarca e utiliza-se da condição de escriba da nau para fazer um pedido pessoal ao rei: o envio de seu genro a uma certa Ilha de São Tome a Jorge de Osório, conforme se verifica da leitura da carta: “E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, pois o desejo que tinha de tudo vos dizer, mo fez por assim miúdo. E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em qualquer outra coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer graça especial, mande vir da Ilha de São Tomé a Jorge de Osorio, meu genro – o que dela receberei com muita mercê”.
Adiante, Caminha conclui: “Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro de Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500. Pero Vaz de Caminha”.Com jeito, vai.
5. O SENTIDO E OS RIT(M)OS DO FETICHE DA (IM)PESSOLIDADE DA LEI, DO “HOMEM CORDIAL” E DO “JEITO”: UM DIÁLOGO ENTRE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E ROBERTO DAMATTA
O Brasil se caracteriza pela existência de uma cidadania de baixa intensidade, pois não é capaz de fazer concretizadas as suas próprias regulações. Isto indica que o exercício da cidadania é precarizado haja vista a negativa de vigência do atributo da igualdade jurídica entre os cidadãos, o que torna o termo desigualdade no Brasil uma tradição – dos direitos do Estado de Direito (!) às baixas camadas sociais e outros setores estigmatizados da sociedade que convivem cotidianamente com a violência social, a impossibilidade de acesso aos tribunais, a desmoralização da lei, o que cria um perigoso sentimento de anomia no “homem cordial” e alastra a navegação social do “jeito” como modo de pensar e experienciar a lei.
Havia na Assembléia Nacional Constituinte, que fundou o Estado Democrático de Direito, enorme preocupação sobre as possibilidades e limites de realização da Constituição brasileira[37]. O receio de que a novel Constituição apresentasse uma inefetividade, ineficiência e ineficácia era acentuado e, na época, o assunto foi bastante discutido em matérias publicadas pela imprensa e nos debates da Assembléia Constituinte que, de um certo modo, rompe com o pacto da modernidade ao deslocar a discussão das promessas (grosso modo,Estado de Direito) para as garantias de efetividade do sistema de direitos ( grosso modo, Estado Democrático de Direito) de forma isonômica[38], isegórica[39] e isotópica[40].
Com a publicação do texto constitucional de 1988, as omissões do poder público podem ser enfrentadas através do manejo de procedimentos – aqui entendidos como um conjunto de interações entre os poderes públicos constituídos e os cidadãos – sejam eles mandado de injunção, mandado de segurança, ação popular e ação de inconstitucionalidade por omissão – que são formas de superar a distância entre o sistema de direitos assegurado pela Constituição e o primado do individualismo como realidade concreta. Portanto, não basta garantir as liberdades civis e políticas tradicionais dos umbrais da Idade Moderna, pois para uma possibilidade do exercício de um Estado Democrático de Direito, o processo de concretização da lei, enquanto efetividade e eficiência do sistema de direitos, depende da capacidade de controle, por parte da comunidade sócio-política, em que o vocábulo povo[41] deve abranger a condição de sujeito e destinatário das prestações estatais, evitando-se a mitologização do termo ocorrida no Estado Polícia ou no Estado Liberal de Direito, ou seja, o mero deslocamento semântico, icônico, da invocação real para a popular como fundamento da atuação governamental, seja executiva, legislativa ou judiciária em que o povo é percebido como massa de manobra, fome, miséria ,e, no máximo, verba e não para o compartilhamento do exercício do poder[42].
Desta forma, o Estado Democrático de Direito não pode ser explicado ou justificado de acordo, exclusivamente, com o paradigma da Modernidade, pois esta se caracteriza pelo individualismo, mas, por uma organização política democrática que abrange os paradigmas da participação, do debate, da tolerância, do pluralismo, de uma melhor distribuição de riqueza e do conhecimento, do uso sustentável do meio ambiente, não olvidando a experiência do exercício ou não do direito vivenciada diuturnamente pelos cidadãos. Além disso, o paradigma do Estado Democrático de Direito deve levar em consideração a planetarização das trocas, o fenômeno da glocalização (justaposição de lugares – o local e global) que ocorre com modificações no modelo de produção em nível planetário e da existência de redes[43], interconectadas, contribuindo para uma nova divisão social do trabalho e de uma produção e aplicação da lei.
Saliente-se, ainda, que a cultura jurídica brasileira tem uma tradição comprometida com a defesa de um sistema de direitos que tem o escopo precípuo de garantir a autonomia da vida privada dos cidadãos, pois, para a maior parte dos autores vinculados à área do direito privado e público, a defesa do sistema de direitos está ligada mais ao modelo do Estado Liberal de Direito – defesa dos direitos civis e políticos – do que à implementação de direitos econômicos e sociais – o que indica a filiação majoritária a um liberalismo como forma de vida – o que demonstra um largo descompasso entre o paradigma adotado na Constituição – O Estado Democrático de Direito – e o Estado Polícia, o Estado Liberal de Direito, de caráter que comumente se designa “incompleto” vivido na experiência cotidiana brasileira.
Assim, os valores, princípios e símbolos da dignidade humana, da cidadania e do pluralismo previsto na Constituição de 1988, tornam-se o quadro de referência recíproca da sociedade e do poder, na expressão de Gisele Cittadino[44].
No Estado Democrático de Direito, diferentemente do Estado Polícia ou do Estado Liberal de Direito, as
“aspirações por mais igualdade, não se refere, obviamente, aos direitos dos cidadãos a ações negativas por parte do Estado e, portanto, ao dever de abstenção, mas sim aos seus direitos a ações positivas por parte do poder público, ou seja, dever de ação”[45].
Neste sentido, o direito, no paradigma do Estado Democrático de Direito não é um interdito ou um óbice mas, incentiva novas formas de relação social, lastreados no princípio do melhor argumento e nos vetores da dignidade da pessoa humana, da cidadania e do pluralismo previstas na Constituição. Os valores, princípios e símbolos mencionados, no entanto, não devem ser lidos em condição exclusivamente procedural e, tampouco, na qualidade de metaprincípios jurídicos, lastreados em uma compreensão estrita da jurisprudência dos valores. Há a necessidade de ponderação, no caso concreto, em um debate mediado pelo argumento, numa situação específica, que tenha como referência o paradigma do Estado Democrático e a realização de uma cidadania efetiva, existencial, que se faz, sendo[46].
Saliente-se, ainda, que a cidadania não pode ser compreendida como uma concessão do Estado. Exige luta, reconhecimento recíproco e discussão, através de todo um processo de aprendizagem social, capaz de corrigir a si mesmo, todavia, sujeito, inclusive, a tropeços, em uma arena pública não espetacularizada. As distintas posições paradigmáticas no cotidiano do fazer jurídico devem convergir, na práxis, para características estruturais da sociedade e do direito contemporâneo, o que as possibilita lidar com os riscos e com a complexidade das questões jurídicas contemporâneas.
O chamado “homem cordial” e o “jeito” não são vocábulos excluídos da construção de um projeto político-jurídico de uma modernidade brasileira tendo em vista a necessidade da realização de uma cidadania efetiva, material, ou seja, que tome como referência a experiência concreta dos exercícios dos direitos, afastando-se do conteúdo de “democracia formal”.
De Sérgio Buarque a Roberto Damatta prevalece uma interpretação do “dilema brasileiro” na expressão de Damatta, na tese da cultura da personalidade que analisa a modernização do Brasil como pouco sólida, epidérmica e cosmética. Como exemplo, na literatura brasileira, Macunaíma, personagem de livro de mesmo nome, do escritor modernista Mário de Andrade é exemplar desta modernização. Publicado em 1928, Macunaíma, o (anti) herói de nossa gente, conjuga, simultanemente, aspectos arcaicos e modernos, rurais e urbanos. Não se pode afirmar que seja um símbolo do brasileiro, mas, antes é um mosaico, uma síntese viva e uma biografia humanizada do folclore de nossa terra que possui um caráter que é não ter caráter e, no entanto, é coerente. (CAMPOS, 1973, p.70).
Para Mário de Andrade, uma autêntica cultura brasileira só poderia existir com a busca e resgate de um Brasil tradicional, rurícola, dos modos de ser, sentir e agir desse brasileiro, premissa esta não subscrita por Sérgio Buarque de Holanda. Este aponta a importância do arcabouço lusitano criado mas, entende que o problema da identidade poderá ser resolvido mais pelo distanciamento da questão, que fluirá de um devir, não linear, do processo histórico, e não por uma panacéia de invenção intelectual seja de ruptura ou de elogio da colonização portuguesa. Para tanto, no entender de Buarque, o homem cordial deverá ser suprimido e isto poderá ocorrer, principalmente, através da urbanização do país. Ressalte-se que Raízes do Brasil foi escrito em 1936, logo, em um período de predomínio rural. Contudo, o que se verifica é que a questão permanece posto que o homem cordial persiste no contexto do Brasil contemporâneo, conforme se pode atestar, por exemplo, da leitura do conto O homem cordial, de Antonio Callado.
Publicado em 1993, o texto reflete sobre o contexto político brasileiro da ditadura militar, abordando também conflitos pessoais das personagens ante a tensão entre a “cordialidade” inserindo-se nesta noção a malandragem, o “jeito doce do brasileiro” e a violência da “ditadura cordial”, em que o homem cordial se torna, ironicamente o homem cardíaco, o que demonstra a persistência do problema da(s) identidade(s) do Brasil, da denominada modernidade de feição designada “incompleta” que tem como modelo os Estados modernos europeus e os Estados Unidos da América do Norte. A referência a estes arquétipos são o cerne da “sociologia da inautencidade” – o legado ibérico, o personalismo e a indistinção entre público e privado. O rit(m)o do fetiche da (im)pessoalidade da lei serve ao desígnio do (re)arranjo entre “homem cordial”, o “jeito” e à feição do Estado Moderno aqui existente.
No conto de Callado, o personagem Jacinto, professor de história e sociólogo, autor da obra ‘’O homem cordial”,
“tinha estudado a formação do povo brasileiro numa série de monografias elegantes e cujo êxito entre a intelligentsia irritara bastante os meios acadêmicos especializados. Não que o criticassem abertamente. Mas faziam circular o que consideravam “O colunista social da História do Brasil”. Sem lhes prestar atenção, Jacinto, quando planejou seu grande livro sobre os brasileiros, em nada menos de três volumes, resolveu dar à obra inteira o título de O homem cordial. A expressão, criada por Ribeiro Couto e fixada por Sérgio Buarque de Holanda, lhe parecia perfeita para descrever a contribuição que o povo brasileiro se preparava para prestar à História em geral. Circunstâncias várias haviam criado tão imperativamente no Brasil o tipo de homem cordial que estávamos a caminho de ser o primeiro povo a construir um grande país por meios não violentos: o primeiro país racional”[47].
Denominado pelos críticos “o colunista social da História do Brasil”, Jacinto, após a cassação dos direitos políticos recebe várias manifestações de solidariedade pelo ocorrido. Ex-ministros, colegas, conhecidos, amigos de infância, pessoas ligadas ao teatro e ao cinema, dentre outros, incluindo-se, um telefonema de um general do Exército Brasileiro, Moraes, que considera a medida de cassação “de todo injustificado” e a visita de um ministro do “governo revolucionário” que antes de visitar Jacinto se certifica de que o encontro não seria divulgado.
Na narrativa, Inês, estudante de Filosofia, filha do conhecido professor Jacinto, participou de uma manifestação contra a ditadura militar no prédio da faculdade de Medicina, em Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. A personagem Clara, médica recém-formada, amante do professor, interveio em favor de Inês tendo como base as relações sociais na faculdade e pessoais com o pai da jovem retirando a estudante do conflito com a polícia em que Inês andou levando uns trancos e umas pauladas mas eu (Clara) a levei ao Miguel Couto e não tem nada fraturado não. (CALLADO, 1993, p. 27).
Clara é um protótipo do homem cordial e a sua conduta demonstra a prática institucionalizada do jeito estudado por DaMatta pois, ao se valer de suas relações pessoais e sociais para retirar Inês de uma situação de dificuldade frente ao Estado, ela se vale do jeito e dos relacionamentos interpessoais, afetivos, para evitar que a jovem entre em uma relação de conflito com a lei, tornando pessoal a aplicação da lei. Como uma jovem universitária, filha de um conhecido professor, pode ser submetida a uma situação de igualdade jurídica com outras pessoas? Não é objetivo deste trabalho discutir a legitimidade do regime militar ou a questão do direito a desobediência civil.
Segundo Dworkin:
“O conceito de direitos, e, particularmente, o conceito de direitos contra o governo (poderes executivo, legislativo e judiciário), tem seu uso mais natural quando uma sociedade política está dividida, e os apelos à cooperação a um objetivo comum são inúteis.
O debate não inclui a questão de saber se os cidadãos tem alguns direitos morais contra o seu Governo. Parece haver um consenso geral de que os possuem”[48].
O propósito da utilização do conto literário é propor uma reflexão sobre a aplicação da lei em casos concretos.
Antonio Callado ao se referir à redação do conto “O homem cordial” afirmou o seguinte:
“O “homem cordial” (…) foi escrito quando eu lutava contra a ditadura militar mas achava que lutava pouco, ou apenas com metade de mim. Ou menos que a metade. E temia pelo que pudesse acontecer a filhos meus. Ou a gente bem mais jovem que eu, conhecida minha, amada por mim e que se atirava à luta com defesas bem inferiores às minhas”[49].
Ao se deparar com uma situação de violência, Jacinto passa a questionar a cordialidade, o “homem cordial” e o “jeito brasileiro de ser e resolver as coisas”.A trajetória de Jacinto é uma metáfora da cordialidade e do jeito.
Ao se examinar aplicação da lei em um prisma de efetiva igualdade jurídico-política como direito fundamental entre os cidadãos e de manutenção da ordem, parte-se da premissa que não é objetivo da lei realizar “justiça” como atributo metafísico, mas, a ordem. Neste sentido, a justiça só pode ser concebida como a efetiva igualdade político-jurídica de todos os cidadãos perante a lei (acesso à jurisdição) – o que requer mudanças de agir, sentir e de práticas institucionalizadas para uma aplicação da lei que não estabeleça diferenciações, a priori, entre os cidadãos e tome como referência a realidade do Brasil. Esta é uma das chaves de compreensão para o “dilema brasileiro”.
Há inúmeros exemplos no cotidiano que demonstram a existência de relações hierárquicas entre as pessoas, em uma situação de desigualdade jurídica que estabelecem papéis sociais que vão além dos limites de um contrato. Muitas vezes, por exemplo, as relações jurídicas entre empregadores e empregados ultrapassam os objetivos do negócio jurídico, pois o liame entre ambos é projetado para fora das relações de trabalho. Neste sentido, o empregado deverá obedecer ao patrão e será tratado como empregado mesmo fora das relações de trabalho[50]. As diferenciações e a desigualação entre os cidadãos são perceptíveis e sentidas pelas pessoas de forma contínua tendo em vista o caráter hierárquico das relações sociais na estrutura da sociedade brasileira.
O exercício do direito fundamental de acesso ao Judiciário está relacionado a uma cidadania efetiva, correlata da realização de uma justiça, enquanto isonomia, isegoria e isotopia entre os cidadãos, ou seja, que refuta distinções apriorísticas entre as pessoas.
Pode-se tentar objetificar a realidade, mas, a consciência histórica não, pois esta remete a um devir, a uma possibilidade, e não a esquemas de pré-compreensão já estabelecidos.Para realizar uma cidadania existencial é mister uma luta entre visões de mundo de uma moderna burocracia racional-legal de matriz européia e estadunidense e as permanências do homem cordial e do jeito para apontar uma modificação de valores, atitudes, comportamentos e, além disso, estimular formas de produção e aplicação da lei que levem em consideração o sentido e os rit(m)os da (des)continuidade dessa(s) identidade(s) de longa duração histórica que são premissas de instituições e da atuação de advogados, partes, juízes, serventuários, promotores, políticos, professores e autores de obras jurídicas, delegados, policiais, interessados e leigos que, em suas condutas (re)produzem , (re)aplicam e (re)fazem o direito no cotidiano.
6. CONCLUSÃO
O objeto de estudo deste trabalho é fluido e movediço. Não sendo transparente, não pode ser facilmente domesticado. Não se apóia em certeza(s) permanente(s). Evitou-se o idealismo tradicional das análises jurídicas e o risco de isolamento do direito, da história, da sociologia jurídica e da antropologia. Sabe-se, contudo, das limitações deste tipo de crítica; igualmente, desviou-se da precipitação sociológica, antropológica, histórica ou de um puro direito, ou seja, de uma análise redutora que foca somente um aspecto de assunto tão complexo, pois a multifatorialidade do problema a ser enfrentado tem em vista a necessidade dialógica entre as representações dos vocábulos “homem cordial”, “jeitinho”, “Estado Moderno” e “cidadania” para estabelecer uma tensão entre a pretensa dicotomia entre teoria e prática, aproximando a impessoalidade da lei com a experiência vivida dos sentidos da lei, com o objetivo de estabelecer uma possível modernidade jurídico-política em terrae brasilis que tome como referência o termo igualdade como atributo jurídico efetivo e não moral, para que se realize uma possível cidadania efetiva.
As representações do jeito e da cordialidade são de caráter elástico e podem servir de parâmetro para auxiliar a compreender e identificar as mudanças pelas quais essas representações podem ser enunciadas em diálogo com a tradição e a contemporaneidade dos sentidos de aplicação da lei.
O direito é uma realização coletiva e intergeracional. As tecnologias jurídicas decorrem da construção de uma linguagem própria, artificial e formal, referenciada em um determinado contexto, com o escopo precípuo de manutenção da ordem. Neste sentido, em aspecto tradicional anglo-americano ou eurocêntrico, o “homem cordial” e o “jeitinho” seriam condutas desviantes. Mas, na conjuntura da sociedade brasileira contemporânea há uma sobreposição de temporalidades, imbricações, interpenetrações e implicações entre uma burocracia racional-legal, de matriz européia e estadunidense e a permanência no devir histórico, do jeito e da cordialidade.
Para a realização da igualdade jurídico-política, material, efetiva, como prática social diretamente associada à realidade é necessário estabelecer uma relação dialógica com estas representações de forma a aproximar a teoria e a prática. Entretanto, é mister notar, que se o mero diálogo com as representações não resolve o problema, auxilia na (pré)compreensão do problema, o que pode conduzir a respostas viáveis à questão.
O assunto debatido possui uma pluralidade de abordagens e a leitura apresentada é apenas uma das possibilidades de estudo do tema, não sendo adequada qualquer hierarquização entre as críveis probabilidades de estudo. A existência da possibilidade de uma pluralidade de enfoques promovem uma visão mais ampla acerca da cidadania e do seu exercício. Trata-se de uma tarefa inacabada, que se apóia na consciência de cada cidadão na filiação a uma coletividade política que abrange o direito ao exercício de uma cidadania efetiva, incluindo-se o efetivo acesso ao Judiciário, o direito a participar dos processos decisórios, da gestão do Estado, dentre outros. A responsabilidade dos cidadãos de uma determinada comunidade sócio-política está diretamente associada a um sistema de direitos e obrigações que além de terem previsão legal, devem ser vivenciados como realidade concreta no cotidiano. Daí a importância de se concretizar o acesso ao Judiciário como um direito fundamental.
O protótipo do jeito e da cordialidade compõem a arqueologia de uma brasilidade, fluida, mas, permanente, em sentido histórico, não linear, de espaço público pouco institucionalizado e, ainda, acentuadamente patrimonial, apesar das mudanças das últimas décadas na sociedade brasileira.
Desta forma, não é plausível um projeto de realização de uma cidadania efetiva que não considere a importância dos símbolos e dos valores do “jeito”, da “cordialidade”, do “Estado Moderno” e da “cidadania” como elementos da cultura brasileira moderna. Para que se conceba o exercício de uma cidadania concreta, o direito fundamental de acesso ao Judiciário implica na igualdade jurídico-política de todos os cidadãos de uma determinada comunidade sócio-política.Para tanto, é mister uma mediação com as tradições do jeito e da cordialidade de modo de reduzir a distância entre o formalismo da lei e a prática e fazer do exercício da cidadania efetiva um aprendizado como prática existencial, concreta. Portanto, deve-se abordar criticamente a aplicação da lei como um código binário constituídas pelas categorias do “sim” e “não” em que não se admite desvios e meio-termos posto que se trata de um fenômeno que implica em gradações, nuances, interstícios, fendas e complexidades que devem levar em conta o hiato entre o direito dos livros e o direito em ação, as promessas legais não realizadas, as não realizáveis e as realizadas e realizáveis, para demonstrar o descompasso entre a lei e a realidade, de forma a apontar uma perspectiva possível de superação dos óbices de uma pretensa dicotomia para uma melhor explicação do jurídico, com fulcro no atributo da efetiva igualdade jurídico-política entre os cidadãos. Reitere-se, contudo, que o mero diálogo com as tradições não supera o impasse, mas, auxilia na compreensão do problema visto que este é multifatorial.
O paradigma do Estado Democrático de Direito não pode relegar o fenômeno da glocalização (justaposição do local com o global) que ocorre com modificações no modelo de produção em um nível planetário de trocas, da existência de circuitos interconetados que contribuem para uma nova divisão social do trabalho e fornece modelos/parâmetros de uma produção e aplicação da lei.
Conclui-se com o argumento de que a (im)pessoalidade da lei e noção de sujeito de direito como código da modernidade brasileira se impõe como um desafio ao cotidiano de um Estado, ou se preferir, a uma comunidade sócio-política que precisa ser contemporânea, não pela necessidade de atualização histórica, mas, para diminuir a distância, que se coloca como um obstáculo epistemológico para uma melhor compreensão do direito brasileiro, nos termos do paradigma do Estado Democrático de Direito, entre a lei e prática concreta. O desafio do Brasil é tornar-se sociedade contemporânea sem jamais ter sido completamente moderno no sentido weberiano do termo.
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Especialização em Elaboração, Gestão e Avaliação de Projetos Sociais em Áreas Urbanas no Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).Ex-coordenador do Projeto Rondon Minas. Advogado. Professor da Faculdade Independente do Nordeste (BA). Pesquisador do CNPQ.
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