Resumo: Este artigo pretende analisar a questão do bullying como uma prática de desrespeito que deve ser considerada pelo Direito. Discute-se o problema do âmbito da filosofia do Direito, utilizando-se do referencial teórico da obra de Castoriadis, dando enfoque a questão da sanção
Sumário: Introdução, 1. Uma tentativa de definição do bullying escolar, 2. Bullying: um problema social, 3. O bullying, escola e a responsabilidade da criança frente à sociedade, 4. Anomia infantil e o bullying, 5. Legislação sobre o bullying escolar, 6. Estudo de caso: sentença condenando o bullying escolar no âmbito judicial, 7. Políticas para combater e sancionar práticas de bullying escolar, Considerações Finais, Bibliografia
Palavras-chave: bullying, análise de sentenças, direito, sanção, bullying, Castoriadis
“(…) Hoje, a única barreira para as pessoas é o medo da sanção penal” Castoriadis (Encruzilhadas: ascensão da insignificância, p.105)
Introdução
O bullying passou a ser divulgado como prática de violência no âmbito da escola a pouco tempo, porém a prática de desrespeito e humilhação não é recente. O que parece ter sofrido alteração é como a sociedade encara essa prática, em especial frente a uma estrutura escolar que não tem mais o papel disciplinador de outrora. Hoje pode-se falar que o bullying passou da esfera da escola, pois tem causado problemas sociais graves, inclusive com suicídios e massacres. Milhões de crianças e adolescentes sofrem de práticas de bullying e as estatísticas somente apontam para o crescimento desses números. Apesar do Direito ter se preocupado pouco com esse fenômeno de violência, é necessário analisar o que está acontecendo para posteriormente propor uma política para se conter o bullying.
Esse pequeno texto tem como objetivo propor uma reflexão sobre a conduta de bullying na escola. Há diversos estudos sobre a questão sob a perspectiva da educação e da psicologia, porém há poucos estudos na área do direito. Ainda são poucas as leis para combater o bullying e há pouquíssimos casos de condenação judicial. O Estado passa a entender nesses casos, que essas condutas não podem ser consideradas como crimes e devem ter tratamento diferenciado, deixando para a escola e os pais punirem os ofensores. Porém, devido à pouca eficácia de conter tais condutas, o Estado tem sido chamado para tentar controlar a situação. Quando o Estado é chamado é bom sinal, pois muitas crianças estão cometendo verdadeiras matanças ao tentar fazer justiça com as próprias mãos.
1. Uma tentativa de definição do bullying escolar
Há uma grande dificuldade de se definir o que compreende o fenômeno do bullying, traçando os seus limites, para diferenciá-lo de outras condutas. A palavra bullying é utilizada para referir-se a uma prática de desrespeito que tem como objetivo a inferiorização do outro, a partir de vários atos, que geralmente são repetitivos. Essa violência pode ser física ou psicológica e intencional, ou seja, deve-se ter dolo em agredir/desrespeitar. Assim, o bullying não se confunde com uma pratica em que o agressor/ofensor não teve a intenção de desrespeitar o outro.
O bullying é uma prática reiterada ao longo do tempo, ou seja, não se trata de uma prática de desrespeito única, mas um conjunto delas, que tem como objetivo uma pessoa em específico. Os meios para se levar a inferiorização podem ser os mais diversos, como agressões físicas e/ou psíquicas. Devido a ampla gama de ações possíveis, o bullying pode ser confundido com outras práticas de inferiorização ou mesmo com crimes. Porém, há de se verificar nesse caso a intenção do agente que é cometer o bullying e não um crime. Exemplificando: uma criança que rouba, extorque e agride fisicamente uma outra criança no âmbito escolar, com o objetivo de inferiorizar, diminuir moralmente a outra criança, comete a conduta de bullying, que é mais gravosa do que apenas cometer essas ações isoladamente sem o objetivo de inferiorização.
Diversas atitudes podem ser consideradas como bullying, mas todas elas levam à constranger e inferiorizar a vítima. Classificam-se as espécies de bullying levando em conta: o tipo de agressão (física, psicológica) e o meio utilizado para o constrangimento (cyberbullying). Nesse último caso a dificuldade de reprimir o cyberbullying é acrescida da dificuldade de regulamentação e punição no mundo virtual, que tem tido avanços no Direito Eletrônico. Mesmo nas agressões físicas e psicológicas há uma grande dificuldade de se coibir as ações de bullying. É preciso que se diferencie as práticas de bullying de outras práticas criminosas, como homicídios e tentativas de homicídio, agressões físicas graves.
Os graus de violência do bullying são muito amplos, uma vez que as condutas são muito diversas. As leis que buscam reprimir o bullying no Brasil apresentam uma classificação que parece pouco útil, mas que é interessante por explicitar algumas ações praticadas no bullying. Grande parte dessas ações é considerada crime na legislação estatal.
“Art. 3º O “bullying” pode ser classificado, conforme as ações praticadas:
a) verbal: insultos, xingamentos e apelidos pejorativos;
b) moral: difamação, calúnia, disseminação de rumores;
c) sexual: assédio, indução e/ou abuso;
d) social: ignorar, isolar e excluir;
e) psicológica: perseguir, amedrontar, aterrorizar, intimidar,
dominar, manipular, chantagear e infernizar;
f) físico: socar, chutar, bater;
g) material: furtar, roubar, destruir pertences de outrem;
h) virtual: depreciar, enviar mensagens intrusivas da intimidade, enviar ou adulterar fotos e dados pessoais que resultem em sofrimento ou com o intuito de criar meios de constrangimento psicológico e social.”
Por ser uma prática que ocorre por diferentes atos ao longo do tempo, pode-se traçar um paralelo do bullying com a prática de tortura. No crime de tortura é possível a prática de diversas ações para sua realização, assim como no bullying. Os dois são práticas que necessitam da repetição das ações em um espaço de tempo. A tortura, como o bullying, também visa a inferiorização, ou em suas formas mais graves, a aniquilação daquele que é torturado.
A prática do bullying é de alguma forma muito próxima à discriminação, ou melhor, a um tipo de discriminação que é o racismo. A vítima de bullying geralmente é perseguida e alvo de diversas ações, que visam inferiorizá-la apenas por ser e não por fazer algo. Como o racista, aquele que comete bullying não quer a modificação do outro, mas sim o seu extermínio. “O racismo, entretanto, não quer a conversão dos outros, ele quer a sua morte”[1]. Por isso, o bullying não cessa quando a causa da discriminação aparentemente acaba. O estigma social mesmo quando cessa, não leva ao desaparecimento do bullying[2]. O bullying e o racismo se assemelham por enfatizar características físicas e alocá-las como algo ruim que pertence àqueles tipos de pessoas. Nerds, gays e tantas outras classificações são criadas para estigmatizar. O bullying por essa semelhança com o racismo é uma prática que tem seus maiores frutos com a educação, ou seja, tem de se ensinar que não se deve discriminar.
O bullying também tem por característica ser um fenômeno em que o coletivo está muito presente nas ações que causam inferiorização do outro. Geralmente o bullying é ocorre em locais que há uma relação entre pessoas de uma forma muito próxima. O bullying não se configura como ações de uma pessoa visando inferiorizar uma outra, de forma isolada. No bullying está presente uma coletividade, ou seja, um grupo ou grupos de pessoas que legitimam ou incentivam as ações de um indivíduo que pratica o bullying (chamado de buller).
Por esse aspecto de prática em grupo, é difícil coibir o bullying, pois as ações têm respaldo naquela coletividade. É também difícil sancionar a ação do buller, a medida em que muitas vezes, ele se utiliza do grupo para cometer ou mesmo conseguir realizar suas ações. No caso do bullying a coletividade se comporta como uma turba, em que o anonimato gera um poder de potencialização das ações e um ocultamento do buller e dos participantes.
No bullying não se pode desconsiderar o sujeito que sofre a ação, pois a atitude do bullying e seus efeitos de inferiorização têm alvo específico, que poderia não trazer os mesmos efeitos para outras pessoas. O bullying tem como objetivo a inferiorização a partir de alguma característica de um sujeito em particular. Assim, o bullying, como o racismo, não é praticado como uma resposta à uma ação específica do sujeito que o sofre, mas sim pelo simples fato de ser. O indivíduo é, logo sofre bullying. O bullying decorre de uma não aceitação da existência de um outro diferente. Por isso, o buller pratica as ações de inferiorização buscando evidenciar os estigmas daquele que é diferente. Os estigmas evidenciados podem ser os mais diversos, porém, todos eles são construções de inferiorização respaldadas socialmente. Qualquer característica que possa ser um estigma social é colocada em evidência: ser negro, ser gordo, ter um defeito físico, ter cabelo crespo, ter dificuldade para aprender, ser estranho, ser feio, etc..
O locus em que se desenvolve o bullying, também não pode ser desconsiderado. Geralmente o bullying ocorre no interior de alguma instituição social, como: escolas, clubes recreativos, associações formais ou informais, ou seja, em qualquer lugar em que se reúnam constantemente um grupo de pessoas mais ou menos constantes. Assim, é possível encontrar casos de bullying em instituições escolares, no âmbito das relações de trabalho, na internet (cyberbullying), nas instituições militares e também em um grupo de crianças formado para jogar futebol.
Nos casos do bullying que ocorrem em instituições formais, que tem regras de comportamento que são asseguradas, o bullying toma um contorno especial. Isso porque, essas instituições têm pessoas que tem por função garantir a boa sociabilidade entre os membros, e a conduta do bullying é uma prática contrária a esse ideal, devendo ser coibida/sancionada. Há muitos casos de bullying no contexto escolar e aqui é importante ressaltar a responsabilidade dessa instituição, como esfera em que o poder decisório e regulador estão na mão de adultos, que devem olhar pelas ações das crianças e adolescentes. O bullying escolar é um fenômeno peculiar, pois nesse caso as ações para coibir e sancionar a prática devem estar adequadas aos menores de idade.
É o bullying escolar que no Brasil é conhecido como bullying, deixando outras denominações para bullyings fora desse âmbito. O bullying no local de trabalho é conhecido também como mobbing, que é traduzido no Brasil como assédio psicológico[3]. Porém, entende-se que o bullying é uma prática que engloba a violência física e também a psíquica, e por isso é um conceito mais amplo.
Nas relações de trabalho é comum a utilização de termos como assédio físico ou sexual e o assédio moral, para casos de bullying no ambiente de trabalho. Há uma diferenciação importante do bullying para esses dois outros tipos de inferiorização do outro, que é a depreciação da pessoa com base em um estigma. O assédio moral e físico, podem não ter como fundo o estigma, mas estar baseado nas relações de poder no âmbito do trabalho (seja o assédio entre pessoas de níveis hierárquicos diferentes ou iguais). O assédio pode se valer do estigma, mas isso não é essencial, como é para o bullying.
Além dos termos assédio moral e físico/sexual, o bullying também é confundido com a intimidação. Há um projeto de lei que visa criminalizar a conduta de intimidação, que é na justificativa do projeto chamada de bullying. O projeto de lei n. 6935/10 pretende introduzir no Código penal no capítulo dos crimes contra a honra, o crime de intimidação, que é assim definido:
“Art. 141-A – Intimidar o indivíduo ou grupo de indivíduos que de forma agressiva, intencional e repetitiva, por motivo torpe, cause dor, angústia ou sofrimento, ofendendo sua dignidade:
Pena – detenção de um mês a seis meses e multa.
§ 1º O Juiz pode deixar de aplicar a pena:
I – quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a intimidação.
§ 2º Se a intimidação consiste em violência ou vias de fato, que por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerarem aviltantes:
Pena – detenção de três meses a um ano e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 3º Se a intimidação tem a finalidade de atingir a dignidade da vítima ou vitimas pela raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou que seja portadora de deficiência:
Pena – reclusão de dois a quatro anos e multa. ”
I – Defina-se por Intimidação atitudes agressivas, intencionais e repetitivas, adotadas por um indivíduo intimidador ou grupo de indivíduos intimidadores contra outro(s) indivíduo(s), sem motivação evidente, causando dor, angústia ou sofrimento e, executadas em uma relação desigual de poder, o que possibilita a caracterização da vitimização.”
O projeto utiliza como sinônimos as palavras bullying e intimidação. Há uma grande semelhança, porém a intimidação não tem como foco a violência física, mas sim a psicológica e no bullying isso pode ocorrer. A proposta não fala da aplicação no âmbito escolar, nem faz menção a uma alteração para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), condenando tal conduta. No entanto, a justificativa do projeto fala da importância de se criminalizar o bullying e dos danos que este vem causando na sociedade, em especial as crianças e adolescentes. Entende-se que a proposta do projeto de lei tem grande dificuldade de poder ser aplicada no âmbito escolar, mesmo com modificações, uma vez que essas penas não poderiam ser aplicadas aos menores de idade. Aos menores não se aplica as sanções do código penal, mas sanções próprias dispostas no ECA. O projeto parece restrito à criminalização da intimidação que é cometida por adultos.
O projeto fala em motivo torpe, o que no bullying se pode pensar em inferiorização devido a um estigma social. Porém, as semelhanças são inúmeras e a criminalização dessas condutas seria de enorme valia. É importante a presença de um dispositivo legal proibindo e sancionando essa prática de inferiorização, para indicar que essa conduta não deve ser aceita, inclusive quando se trata do bullying escolar.
Há particularidades em práticas de desrespeito semelhantes como o bullying, a intimidação e os assédios moral e físico, que não podem ser desconsideradas. Como a palavra bullying foi inicialmente cunhada para retratar a violência e desrespeito no ambiente escolar, entende-se que é melhor aplicá-la para esse contexto. Há uma particularidade do bullying escolar, que é lidar com uma outra esfera de regramento que é a esfera da escola (seja ela uma escola de educação particular, estadual ou mesmo de educação especial, como no caso de esportes ou línguas). O bullying escolar também tem como particularidade lidar com a dificuldade de se sancionar a conduta de menores de idade. Para os outros casos de desrespeito e inferiorização do outro é possível a utilização de um instrumental jurídico para sua coibição ou mesmo sanção, porém no caso do bullying escolar não há essas possibilidades.
Uma tentativa de definição do que é a prática do bullying é fundamental, para não se confundir com outras práticas, especialmente quando se está investigando a questão no âmbito escolar. O bullying é uma prática grave e não apenas um mero desentendimento entre crianças ou adolescentes. Não se pode confundir, sob pena de julgar que há mais bullying do que realmente existe e por outro lado, de desconsiderar uma prática de bullying com conseqüências graves, pensando ser apenas um mero desentendimento, alguma discussão pontual ou um pequeno problema de socialização. Há muitas pesquisas apontando um número alarmante de bullying, porém muitas delas pedem as próprias crianças para falarem se sofreram ou não bullying, sem por vezes tentar verificar se a prática realmente ocorreu. Outras vezes, ocorreram realmente práticas não toleradas na escola, ou mesmo ilícitas, mas não bullying.
O bullying é um fenômeno complexo por se tratar de uma prática que engloba uma série de atos ocorridos em um espaço de tempo relativamente longo. Algumas ações criminosas podem ser confundidas com o bullying, mas é possível também que esses atos façam parte da conduta de bullying. Assim, furtos, roubos, ameaças, extorsões, agressões físicas, estupros, podem ocorrer no ambiente escolar e serem apenas crimes, porém as ações desses crimes podem indicar que o que se objetivava era o bullying e não necessariamente cometer um ou outro crime. A dificuldade é grande pela amplitude das várias ações para se cometer o bullying. Não se pode colocar tudo sobre o rotulo de bullying, mas também não se pode esvaziá-lo por completo. A tentativa de conceituar minimamente esse fenômeno visa fornecer elementos para mapear o bullying escolar.
2. Bullying: um problema social
Alguns estudiosos tendem a tratar o bullying como um problema de alguns indivíduos na sociedade e não de um problema social. A abordagem de um problema individual e social é totalmente diferente. O bullying é um problema social, pois sua ocorrência social é muito grande, podendo ser encontrada em diversas localidades, não sendo um fenômeno isolado. Há uma tentativa de se individuar o problema, levando à diminuição da questão, já que de acordo com esse entender a adoção de práticas inibidoras da ação de alguns indivíduos seria suficiente para resolver a questão.
O bullying também não pode ser simplistamente considerado um reflexo de uma sociedade que de certa forma incentiva a violência. É comum a repetição insensata de que os culpados do bullying são a televisão, os videogames, shows de rock, a facilidade de se obter armamentos, etc.. Essas afirmações também estão na esfera de que o bullying é um problema social, porém elas erram por apontar fora de uma dinâmica social ancestral, que é a discriminação e o ódio ao outro.
Um dos maiores problemas do bullying é que ele pressupõe a aceitação da prática por parte de pessoas que não estão diretamente envolvidas, como alunos e trabalhadores da escola. Esses alunos podem ser considerados como espectadores ou mesmo como testemunhas, porém eles têm um papel importante de legitimar o bullying, que não deve ser desconsiderado. A conduta geralmente passiva dessas pessoas pode denotar tanto uma aceitação, quanto uma postura de tentativa de não envolvimento. Depoimentos de pessoas que sofreram bullying apontam para uma postura omissa em relação aos funcionários da escola e mesmo professores, que buscam não interferir nas relações entre os alunos, mesmo em casos de agressão. A omissão de pessoas que deveriam cuidar dos alunos que estão sob sua responsabilidade, pode ser entendida como uma conduta que leva à responsabilização.
Os alunos que são testemunhas do bullying, concordando ou não com a prática, servem de público para o espetáculo de violência, que se desenrola em um longo tempo. Nesse sentido o bullying pode ser entendido como um teatro de humilhações de longa duração, que somente é possível por existir um público. O público pode ser levado lentamente a uma legitimação da conduta do bullying. Em um primeiro momento podem existir alunos dentro do grupo do agressor que não legitimam sua conduta. Porém, assistir ou mesmo chegar a participar de um espetáculo de humilhações faz com que surja um sentimento de união entre os participantes. Esse sentimento pode ser semelhante ao que ocorre na guerra, em que pessoas se unem em torno de um inimigo.
No caso do bullying o agredido não precisa ser um inimigo, mas simplemente ser um elemento de agregação para pessoas tão distintas, que tem naquele momento uma coesão efêmera. Não é raro nos casos de bullying os alunos agirem como uma massa, que se une em torno de um objetivo. A massa, como aponta Elias Canetti[4], faz com que comportamentos não praticados individualmente, sejam estimulados. As pessoas em uma massa se sentem iguais, não há diferenças significantes entre elas. Esse sentimento de igualdade, acolhimento perante seus pares é um aspecto fundamental no bullying. A reunião dos alunos em uma massa faz com que se siga um líder que comanda, diminuindo outras tensões. Dessa maneira, a massa é disciplinadora, porém o preço a pagar não é baixo, especialmente quando se busca uma sociedade democrática e autônoma.
Há testemunhas que incentivam o comportamento do buller, mas há testemunhas que não aprovam, porém se sentem impotentes para contestar o bullying. Isso pode ocorrer por medo de também serem alvos do buller ou por entender que não se pode ou é difícil mudar a situação. O medo de se tornar denunciar a prática de bullying é um fator importante, pois indica que essa conduta aparentemente não desejada no âmbito escolar, não é totalmente desincentivada. O não respaldo à denúncia de bullying pelas testemunhas também é um aspecto que deveria ser pensado em uma política anti-bullying.
Por ter esse aspecto do público é que a conduta do bullying também se diferencia de brigas ou desentendimentos individuais. O bullying tem um caráter público, mesmo quando alguns atos são cometidos fora dos olhos de testemunhas. O buller chama as testemunhas para participar de sua conduta de violência e desrespeito. A humilhação tem um caráter público, pois o desrespeito tem uma ligação com padrões sociais esperados e tem seus efeitos quando é publicizado. Assim, o bullying não precisa de testemunhas reais para os atos, mas a possibilidade de que estas existam, uma vez que a humilhação é social.
Outro aspecto importante de ser analisado nos casos de bullying são seus protagonistas: ofensores (bullers) e ofendidos (vítimas). O bullying pode ser praticado por uma ou mais pessoas, sob um ou mais ofendidos. A pluralidade aumenta enormemente a complexidade da questão, em especial quando se busca punições para a conduta de bullying. A diferenciação dos ofensores e ofendidos também é algo complicado de ser estabelecido, um vez que podem existir diversas práticas de bullying ocorrendo em um mesmo espaço, e é possível que o ofendido assuma o papel de ofensor em outra relação social para se esquivar de sua postura inferior. Isso quebra um pouco com a dicotomia de buller e vítima, que se estabelece em alguns estudos. A situação de ofensor e ofendido pode se perpetuar em uma relação, pode se inverter ou pode ser modificada em outra relação social. Porém, é muito provável que a relação entre buller/testemunhas e vítima não seja alterada na mesma relação.
“Quem jamais duvidou que o violado sonha com a violência, que o oprimido ‘sonha, pelo menos uma vez ao dia, em colocar-se’ no lugar do opressor, que o pobre sonha com as posses do rico, o perseguido em trocar ‘o papel de caça pelo de caçador’ e os últimos do reio onde ‘os últimos serão os primeiros e os primeiros os últimos’? O caso é que, como Marx percebeu, os sonhos nunca viram realidade. A escassez de rebeliões de escravos e de levantes de deserdados e oprimidos é notável;nas poucas ocasiões em que transformou os sonhos em pesadelos para todos. Em nenhum caso, que eu saiba, a força destas erupções ‘vulcânicas’ era ‘igual à da pressão sobre elas, como diz Sartre”[5].
A análise de Arendt sobre a violência serve tanto para o âmbito do Estado, quanto para a violência na esfera do indivíduo. Pela impossibilidade de sair do papel do ofendido, é o que jovem se torna vítima e é ainda mais inferiorizado por não ter poder de reverter a situação. Fala-se em vítima de bullying porque o jovem que é alvo da pratica, não é um jovem qualquer, há nele algo de “diferente” a ser odiado, e a diferença geralmente está calcada em preconceitos, um estigma. Assim define estigma, segundo Goffman:
“Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser – incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável – num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande – algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem – e constitui uma discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social real”[6].
É também difícil o buller se identificar como tal, uma vez que poucos têm o prazer de assumir atos discriminatórios, ainda mais quando podem ser punidos por isso. Porém, em uma análise empírica da dinâmica das relações sociais na escola, não é difícil identificar aquele que pratica o bullying. Nessa análise é possível identificar o prestígio, o poder e a popularidade do buller, em relação aos seus colegas. Há um certo reconhecimento da coragem do buller de fazer algo que quase todos entendem como desrespeitoso/proibido/errado.
O bullying é um problema social em que a intolerância ao outro está presente. A prática do bullying visa que a pessoa estigmatizada seja banida do grupo e o estigma é colocado como algo inferior ao grupo. Porém, nem todos os estigmatizados podem sair do grupo e isso faz com que um ato se transforme em atos contínuos de inferiorização daquela pessoa. A prática do bullying somente é possível uma vez em que há algum respaldo social que entende que aquele estigma não é bom para a determinada sociedade. Há uma espécie de “racionalização” dos estigmas e dos preconceitos, que impede que eles sejam facilmente detectados como construções de desrespeito e do ódio. Isso é apontado por Goffman, no seguinte trecho:
“As atitudes que nós, normais, temos com uma pessoa com um estigma, e os atos que empreendemos em relação a ela são bem conhecidos na medida em que são as respostas que a ação social benevolente tenta suavizar e melhorar. Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida. Construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social. Utilizamos termos específicos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado original. Tendemos a inferir uma série de imperfeições a partir da imperfeição original e, ao mesmo tempo, a imputar ao interessado alguns atributos desejáveis mas não desejados, freqüentemente de aspecto sobrenatural (…)”[7].
Há aqueles que defendem que o bullying seja combatido como um problema social, porque ele gera prejuízos econômicos, com pessoas inadaptadas para o trabalho. É ainda mais simplista a afirmação: que os ofensores serão necessariamente indivíduos violentos ou mesmo futuros criminosos e que os ofendidos terão graves problemas psicológicos, dificuldade no desempenho escolar e serão pessoas excluídas socialmente. O prognóstico pode ocorrer, porém deve-se salientar que não é uma verdade intrínseca. Essas afirmações são utilizadas apontar a importância social causada pelo bullying e a necessidade de uma política anti-bullying. Existem diversos fatores que podem causar problemas sociais como os apontados. Porém, o bullying deve ser combatido por um motivo maior, qual seja, é uma prática anti-social. Uma sociedade democrática não pode tolerar a intolerância a diferença.
3. O bullying, escola e a responsabilidade da criança frente à sociedade
A sociedade moderna entendeu que as regras sociais estipuladas pelo Direito deveriam ser aplicadas diversamente para os menores, em especial as crianças. Há algumas regras de direito que são aplicadas para os adolescentes, especialmente o direito penal, no caso de infrações consideradas graves. Mesmo as regras de direito civil, que até um século supunha a presença de menores praticando atos da vida adulta, hoje são dificilmente aplicadas. É atualmente excepcional se encontrar um menor casando ou mesmo fazendo negócios como dono de um estabelecimento, mesmo isso sendo permitido legalmente.
A nova orientação a partir da metade do século XX começou a entender que jovens deveriam freqüentar toda uma educação formal em estabelecimentos especiais e que não deveriam, salvo exceções, participar do mundo do trabalho. O direito começa a encarar o jovem como figura a ser protegida do mundo dos adultos. Isso ocorre ao mesmo tempo em que os menores parecem perder grande parte de seus direitos e aparecem como figuras sem voz, descoladas da sociedade.
O século XX cria o jovem, que se diferencia do adulto. Isso é uma criação do século XX, pois menores não eram anteriormente encarados dessa maneira e não havia essa nítida diferenciação, nem essa proteção. Menores tinham tanta responsabilidade quanto os adultos, participavam de negócios, da política, do mundo do trabalho, constituíam família, tendo diversas obrigações. As mesmas regras exigidas socialmente para os adultos eram também exigidas dos menores.
Hoje os jovens são entendidos de forma diferente. Ao mesmo tempo em que ganharam uma proteção, podem estudar mais tempo e não participam efetivamente da sociedade. São figuras com alguns direitos, porém com pouca voz social. Muitas vezes são tratados em um status semelhante a um animal, que é protegido, mas não tem qualquer poder decisório sobre sua vida. Não se pode nem falar de um cidadão, pois os jovens, em muitos casos, sequer são integrados na sociedade em que vivem. Essa participação é diferente de acordo com a condição econômica ou o engajamento social/político dos responsáveis por esse jovem. Umas das únicas esferas de escolha e participação do jovem na sociedade legitimamente permitida na sociedade atual é o consumo. Os jovens entenderam bem esse poder e passam a ser consumidores vorazes e tirânicos frente as possibilidades econômicas dos responsáveis.
Atualmente grande parte dos países ocidentais entende que as regras sociais para os adultos devem ser aplicadas de maneira diferente para os menores. O direito penal é aplicado de maneira diversa para os menores, em grande parte dos países. Ainda há pena de morte para menores em muitos países, porém não é essa a orientação baseada nos padrões dos direitos humanos.
A escola se tornou a maior instituição disciplinadora dos menores. Porém, devidos aos excessos coercitivos dessa instituição, a escola passou a quase não ter coerções para as violações às regras sociais. Os jovens notaram essa mudança e tem respondido de maneira desafiadora, causando espanto aos professores e funcionários que foram formados sob uma exigência muito maior do respeito às normas no âmbito escolar. A escola se tornou esfera disciplinadora, porém essa disciplina não é eficaz. No ambiente escolar as normas sociais não estão sendo respeitadas pelos alunos e não se criou uma outra esfera para exigir essas normas. A escola atualmente é um mundo a parte, em que as regras sociais parecem não valer ou valer de maneira diversa, e principalmente em que sanções de nenhum tipo são aplicadas, levando a um comportamento sem freios. Há muitas escolas que as crianças e adolescentes vivem em um mundo a parte, ou seja, elas não são ensinadas para viver socialmente. E isso ainda pode ser agravado, quando a família não age como uma esfera educacional.
A própria escola teve alterada sua finalidade, uma vez que, hoje em dia, ela busca a formação para o mercado de trabalho. Não se busca formar o jovem para a sociedade, mas se reclama desse objetivo não ser conseguido espontaneamente. A crise em que a escola se encontra é múltipla, indicando uma transformação de uma velha instituição que não alcançou uma nova reformulação e que vem constantemente sendo colocada em questão quanto ao desempenho de seu papel social.
“Ora, o sistema educativo ocidental entrou, há uns vinte anos, em uma fase de desagregação acelerada. Ele está passando por uma crise dos conteúdos: o que é transmitido, o que deve ser transmitido, e a partir de quais critérios? Ou seja: uma crise dos programas e uma crise daquilo em visto do que esses programas são definidos. Ele conhece também uma crise da relação educativa: o tipo tradicional da autoridade indiscutível desabou, e tipos novos- o professor-colega, por exemplo- não chegam a se definir, a se afirmar ou a se propagar. Mas todas essas observações permaneceriam ainda abstratas caso não estivessem ligadas a mais flagrante e perturbadora manifestação da crise do sistema educativo, aquela que ninguém ousa sequer mencionar. Nem alunos, nem professores se interessam mais pelo que se passa na escola como tal, a educação não é mais investida como educação de participantes. Ela se tornou um penoso ganha pão para educadores, uma imposição tediosa para alunos – para quem ela deixou de ser a única abertura extra-familiar- alunos que não tem idade (nem estrutura psíquica) necessária para ver nela um investimento instrumental (cuja rentabilidade, aliás, se torna cada vez mais problemática). Em geral, trata-se de obter um papel que permita exercer um ofício (caso se encontre trabalho)”[8].
O que interessa em particular para a questão do bullying é a dificuldade da escola de exigir as regras sociais necessárias para a socialização desses jovens. Diversas regras não estão sendo aprendidas e os jovens, tendo como o grande valor o consumo, pautam toda relação social por esse único valor. A escola dificilmente consegue reconstruir um micro-cosmo de socialização e os jovens sem socialização se portam muitas vezes como animais: mordendo, batendo, roubando, submetendo, intimidando, agredindo, desrespeitando, etc.. Trata-se de uma situação de plena anomia, pois as normas são entendidas como se não existissem, ou pelo menos não fossem exigidas.
4. Anomia infantil e o bullying
A escola tem grande dificuldade de exigir as normas sociais e de sancionar. Por outro lado, os pais parecem não querer disciplinar suas crianças. O Estado também disse que as crianças são seres a parte e não aplica a elas as mesmas regras de comportamento e sanções. A sociedade moderna está vivenciando uma verdadeira anomia infantil, em que a socialização não acontece plenamente. A autonomia não pode ser alcançada pelas crianças sem que antes seja feita a socialização, assim, não se pode entender como razoável a estipulação de normas pelos jovens que somente são pautados nas suas vontades.
“(…) Sob o pretexto de respeitar a independência da criança, ela é excluída do mundo dos adultos e mantida artificialmente no seu próprio mundo, na medida em que este pode ser chamado de um mundo. Essa retenção da criança é artificial porque extingue o relacionamento natural entre adultos e crianças, o qual, entre outras coisas, consiste do ensino e da aprendizagem, e porque oculta ao mesmo tempo o fato de que a criança é um ser humano em desenvolvimento, de que a infância é uma etapa temporária, uma preparação para a condição adulta”[9].
O estabelecimento de uma lei a ser seguida por todos com base na vontade de um é tirânica e está desconsiderando a sociedade. O mundo moldado à vontade do eu somente é possível logo após o nascimento, quando não há nada a não ser o eu. Quando o eu percebe a sociedade e tem de viver nela, começa a se romper essa necessidade de satisfação plena dos desejos do eu. Quem primeiro rompe com esse domínio do eu é a mãe e o rompimento não adequado pode levar à criança à psicose[10]. O papel da família como socializador do jovem, na sociedade ocidental moderna, é fundamental, pois é ela que irá indicar as normas sociais, os valores aceitos, introduzindo à criança àquela sociedade. A transformação da família patriarcal, com a mudança dos papéis tradicionais, tem levado a uma dificuldade de socialização dos jovens. Há uma dificuldade grande de se romper a onipotência dos jovens, uma vez que ninguém quer exercer a “violência” da socialização.
É também a família que vai ensinar alguns valores importantes para os jovens começarem a traduzir seu mundo. Muitas vezes esses ensinamentos surgem a partir da imitação de atitudes dos pais ou responsáveis. Essa prática de imitação é inerente do aprendizado, porém pode causar problemas quando as práticas estão desconectadas de um discurso ou mesmo de um ideal. Famílias dificilmente irão ensinar, hoje em dia, um jovem a discriminar abertamente outras pessoas. Porém, esses jovens podem aprender condutas discriminatórias, mesmo quando veladas e aplicá-las.
A sociedade moderna pautada no consumo irá discriminar pessoas que estão à margem desse consumo e não tem os signos de riqueza mínimos, como o caso dos moradores de rua. Os pais ensinam a importância de ter signos de riqueza e de consumir, apontando a conduta contrária como símbolo de fracasso social. Um jovem ao se deparar com moradores de rua geralmente pode ter uma postura de desprezo, quando não de desrespeito. O mesmo ocorre com outros valores da moderna sociedade como: ser bonito, ser forte, ser alto, ser popular, ser heterossexual, ser casto, ser branco, ser magro, ser saudável, ser inteligente/esperto, etc..
Essas características apontam para um padrão que é construído para discriminar muitos e exaltar uns poucos. Os bullers (aquele que pratica o bullying) geralmente se utilizam de características consideradas inferiores para realizar o bullying. As características relevantes para a discriminação são apontadas socialmente e serão utilizadas pelo buller. Será maior a eficácia do bullying se o buller utilizar características socialmente relevantes para a discriminação. Nem toda conduta de bullying é declaradamente discriminatória, mas quase todas elas utilizam-se de elementos discriminatórios para gerar a inferiorização. Assim, se pode afirmar que ninguém nasce sabendo discriminar, nem quais características se pode apontar no outro para conseguir a inferiorização. Isso é aprendido socialmente, na família, na escola ou em outras instituições.
5. Legislação sobre o bullying escolar
O Estado vem sendo chamado pela sociedade para elaboração de leis de combate ao bullying. A maioria dos projetos de lei sobre o assunto trata do combate ao bullying na esfera da educação. Quanto ao bullying escolar, existem algumas leis brasileiras tratando do tema na esfera estatal. Destaca-se aqui: lei nº 14.957, de 16 de julho de 2009 da Prefeitura de São Paulo decorrente do projeto de lei 01-0069/2009 do vereador Gabriel Chalita , lei 3887 da prefeitura do Mato Grosso do Sul proposta pelo vereador Maurício Picarelli, lei n.º 5.089 de 6 de outubro 2009 da cidade do Rio de Janeiro proposta pelo vereador Cristiano Girão. Há um projeto de lei em âmbito nacional para tratar do bullying, projeto lei 5369/09. O texto dessas leis é praticamente o mesmo e toma-se para análise o projeto de âmbito nacional
O artigo primeiro irá apresentar o bullying como prática na esfera da educação. O projeto de âmbito nacional institui uma política anti-bullying ligada ao Ministério da Educação e entende que este é o competente para estabelecer as regras, procedimentos e diretrizes para concretização dessa política. No âmbito estadual, o artigo primeiro fala de um programa de combate ao bullying que tem participação do Estado e da comunidade e que é interdisciplinar. A lei estadual aponta para a complexidade do bullying e que para seu combate é preciso de uma série de profissionais em diferentes áreas.
No parágrafo único do artigo primeiro, tanto do projeto de lei no âmbito nacional, quanto nas leis estaduais, procura definir o bullying. O artigo procura descrever qual é a prática do bullying, quem é o ofensor e o ofendido, o número de pessoas que podem ser os agentes e as vítimas, qual é o objetivo do bullying e do que ele é decorrente. A redação do texto é bem sintética, como uma tipificação penal, proporcionando uma boa margem para interpretações, que englobem os diferentes casos concretos. A questão do número de pessoas também é muito importante de ser explicitada, uma vez que o bullying pode ocorrer de vários modos. A questão que parece mal formulada nessa redação é dizer que o bullying decorre de uma relação de desequilíbrio de poder. O bullying não pressupõe uma pessoa indefesa/fraca e outra pessoa forte. A redação pressupõe o conceito de poder como uma coisa que se tem ou não. Porém, o bullying é um grande exemplo de relações pessoais em que o poder é afirmado como uma relação.
Outro engano parece ser considerar que o bullying decorre do desequilíbrio de poder interpessoal e não de uma omissão de poder da esfera da escola, que permite que a violência aflore de maneira descontrolada. A lei, como os educadores, entende que o bullying é uma questão grave e recorrente na sociedade moderna, mas ainda colocam a questão no âmbito do desentendimento pessoal e não de uma falta de atuação institucional.
“bullying é considerado todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo, que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas”.
O artigo segundo da lei procura caracterizar as diversas ações que englobam a prática de bullying. O artigo reforça que a prática do bullying decorre de um desrespeito em relação ao outro que se exterioriza por atos de intimidação, humilhação e discriminação. Entende-se que as ações relacionadas na lei são apenas um indicativo das diversas ações possíveis, logo não é um rol taxativo, mas meramente exemplificativo. Assim, outras ações podem surgir do bullying e serem incluídas nessa prática, sem necessidade de estar expressa na lei. A gravidade do bullying pode ser sentida pela descrição dos seus atos, uma vez que quase todos são considerados à luz do Direito penal como crimes.
“Artigo 2º – A violência física ou psicológica pode ser evidenciada em atos de intimidação, humilhação e discriminação, entre os quais: I) Insultos pessoais; II) Comentários pejorativos; III) Ataques físicos; IV) Grafitagens depreciativas; V) Expressões ameaçadoras e preconceituosas; VI) Isolamento social; VII) Ameaças; VIII) Pilhérias.”
Como o bullying engloba condutas discriminatórias, coloca-se em questão, como ficam os casos de racismo frente a essa regulamentação dupla. Pode-se entender que no âmbito escolar somente há bullying, mesmo quando este expressa uma discriminação do tipo racismo. Pode-se adotar a postura que o bullying não se confunde com o racismo, pois esse é um crime específico. Porém, mesmo essa posição é complicada, uma vez que as práticas de bullying englobam práticas que tem tipificação específica, como a injúria, calúnia, difamação, roubo, furto, etc.. O que deve ficar claro, é que o bullying não tem regulamentação de crime na esfera penal, mas que é uma conduta não desejada, ainda mais no âmbito escolar. Assim, a questão que está em jogo mais uma vez é se as leis penais têm validade no âmbito escolar. A escola surge como uma espécie de território a parte, em que as leis jurídicas parecem quase não valer. Um exemplo para ilustrar o problema: uma criança que rouba pessoas na rua pode ser penalizada pelas leis penais, porém, o mesmo não ocorre se uma criança rouba continuamente na escola, pois seu ato pode não ser considerado roubo, mas bullying.
Os menores estão sujeitos a outros tipos de penas, conforme orienta o ECA, no artigo 104. Porém, é essa mesma lei que determina que crimes e contravenções, assim consideradas de acordo com a lei penal, serão entendidas quando se tratarem de menores como atos infracionais (art. 103). O que geralmente ocorre nos casos de bullying é que os atos não são considerados criminosos, mas simplesmente problemas disciplinares a serem resolvidos no âmbito escolar. A questão é muito complexa e parece descortinar os paradoxos da sociedade moderna na aplicação do Direito. O bullying é uma conduta gravíssima e deve ser criminalizada. Não se pode tratar o bullying como ato indisciplinar, pelo menos na sua forma grave, pois essa prática é altamente anti-social, com efeitos nocivos.
O artigo terceiro da lei procura diferenciar algumas ações de bullying classificando-as como ações de violência sexual, psicológica e ações de exclusão social. Inicialmente a lei fala em violências psicológicas e violências físicas, porém aqui a classificação é outra. É espantoso que a violência sexual também seja considerada aqui como uma das possibilidades da prática de bullying, devido à gravidade que a sociedade moderna atribui ao desrespeito no âmbito dos abusos sexuais de crianças. Ações citadas como o abuso e assédio sexual, parecem mais graves do que as outras citadas nesse artigo.
“Artigo 3º – O bullying pode ser classificado em três tipos, conforme as ações praticadas: I) Sexual: assediar, induzir e/ou abusar; II) Exclusão social: ignorar, isolar e excluir; III) Psicológica: perseguir, amedrontar, aterrorizar, intimidar, dominar, infernizar, tiranizar, chantagear e manipular.”
O artigo quarto da lei mais uma vez reforça o caráter interdisciplinar do bullying, entendendo que para coibir essa prática é necessário uma equipe multidisciplinar, que será formada em cada unidade escolar. O artigo também fala das atividades do programa anti-bulling, dando foco para práticas anteriores ao ato do bullying. Não há referência à sanções quando for praticado o bullying.
“Artigo 4º – Para a implementação deste programa, a unidade escolar criará uma equipe multidisciplinar, com a participação de docentes, alunos, pais e voluntários, para a promoção de atividades didáticas, informativas, de orientação e prevenção.”
O artigo seguinte trata dos diversos objetivos do programa anti-bullying. Esse artigo esclarece as diversas práticas que a escola deverá adotar para implementar o programa. Esse artigo traz como novidade a inclusão do bullying no regimento escolar como prática não desejada. Mesmo para estabelecer essas regras, o texto foi cuidadoso, colocando que o programa será incluído após ampla discussão no Conselho da Escola.
Entende-se que o cuidado deve ser tomado, uma vez que é esse regimento que tem uma esfera punitiva. Assim, o cuidado deve ser tomado mais em relação à sanção, do que propriamente em discutir se a prática do bullying deve ser combatida. O último dos objetivos fala do auxílio ao agressor e às vítimas. Entende-se aqui que se trata de um auxílio interdisciplinar, mas com um foco em uma orientação feita por psicólogos. Mais uma vez não há sanção, mas apenas auxílios. A prática que entende que o agressor deve ser auxiliado e não punido é muito diferente das outras esferas da sociedade que geralmente irão punir. O auxílio aqui pode tanto denotar uma mudança de postura frente a comportamentos não queridos, como também pode denotar uma dificuldade da esfera escolar de exercer uma disciplina que coíba efetivamente infrações graves.
“Artigo 5º – São objetivos do programa: I- Prevenir e combater a prática de bullying nas escolas; II- Capacitar docentes e equipe pedagógica para a implementação das ações de discussão, prevenção, orientação e solução do problema; III – Incluir, no Regimento Escolar, após ampla discussão no Conselho de Escola, regras normativas contra o bullying; IV- Esclarecer sobre os aspectos éticos e legais que envolvem o bullying; V- Observar, analisar e identificar eventuais praticantes e vítimas de bullying nas escolas; VI- Discernir, de forma clara e objetiva, o que é brincadeira e o que é bullying; VII- Desenvolver campanhas educativas, informativas e de conscientização com a utilização de cartazes e de recursos de áudio e áudio-visual; VIII- Valorizar as individualidades, canalizando as diferenças para a melhoria da auto-estima dos estudantes; IX- Integrar a comunidade, as organizações da sociedade e os meios de comunicação nas ações multidisciplinares de combate ao bullying; X- Coibir atos de agressão, discriminação, humilhação e qualquer outro comportamento de intimidação, constrangimento ou violência; XI- Realizar debates e reflexões a respeito do assunto, com ensinamentos que visem a convivência harmônica na escola; XII- Promover um ambiente escolar seguro e sadio, incentivando a tolerância e o respeito mútuo; XIII- Propor dinâmicas de integração entre alunos e professores; XIV- Estimular a amizade, a solidariedade, a cooperação e o companheirismo no ambiente escolar; XV- Orientar pais e familiares sobre como proceder diante da prática de bullying; XVI – Auxiliar vítimas e agressores.”
O artigo 6 fala da competência para a aprovação e implantação das medidas anti-bulling, que pertence à cada unidade escolar. Apesar da gravidade do bullying, não se entende que esse é um problema a ser também regulamentado no âmbito das políticas escolares nacionais, mas que é dado à unidade escolar. A regionalidade da discussão da questão e regulamentação é importante por considerar as peculiaridades do problema em cada região. Porém, alocar na unidade escolar a responsabilidade e a resolução do problema é trazer mais uma responsabilidade para a escola, sem que haja um respaldo institucional para se tratar da questão.
É interessante o estudo de Samara Pereira Oliboni, que aponta para a dificuldade de professores em detectar em suas salas de aula a presença de práticas de bullying[11]. As conclusões desse estudo é que professores, apesar de ter contato direto e diário com seus alunos, não entendem uma ação como pertencente à pratica de bullying e dificilmente intervêm para combatê-la. O papel de grande parte dos professores está mais voltado à transmissão de um conteúdo do programa escolar. Outras atividades são também exigidas do professor, como manter um grupo de alunos relativamente quietos e disciplinados em um espaço e tempo determinados. Ajudar a realizar a socialização parece ter ficado de lado, diante de tantas outras tarefas que a escola parece considerar mais importante.
Dificilmente escolas entendem ser prioridade preparar o aluno para viver em sociedade, mesmo em detrimento do conteúdo informativo a ser passado. Isso porque muitas escolas apesar de terem suas metas voltadas para a estimulação de valores elevados, não se podem negar em privilegiar uma educação voltada para a informação e para o mercado de trabalho. O bullying é uma conduta gerada pela intolerância do diferente e somente pode ser efetivamente combatida, em uma escola que promova a diversidade como fator de integração social.
O artigo prevê a inclusão no Regimento Escolar de regras contra o bullying, depois de discussão sobre essas regras no Conselho Escolar. O regimento escolar passou a ser elaborado individualmente por cada uma das escolas do país, a partir do parecer CEE 67/98 da Secretaria Estadual de Educação. O parecer apenas aponta diretrizes gerais para ser elaborado o regimento. Anteriormente a esse parecer as escolas possuíam uma normatização uniforme entre as escolas em São Paulo, que estava prevista no Decreto 10.623 de 1977, apontando os deveres e direitos do estudante de primeiro grau para elaboração do regimento escolar[12].
O regimento escolar deverá ser elaborado para apontar as sanções para os casos de bullying. A lei estadual aponta para a necessidade de discussão do Conselho escolar sobre o tema, tomando cuidado para que a normatização seja produzida consensualmente e evitem-se com isso exageros. Porém, é preciso destacar que o Conselho Escolar pode elaborar regras para disciplina, mas não para atos infracionais, ou seja, para casos previstos como crime. O bullying não é considerado crime no ordenamento penal no Brasil, porém outras condutas que fazem parte dos atos do bullying são. Em casos em que as ações do bullying são consideradas crimes, é preciso que esses casos sejam retratados ao Ministério Público, pois a escola não tem competência para legislar, nem para sancionar nesses casos. Não é porque não há uma criminalização para a conduta de bullying (que pode ser comparada a tortura) que se abre uma porta para cometer atos ilícitos.
“Artigo 6º – Compete à unidade escolar aprovar um plano de ações, no Calendário da Escola, para a implantação das medidas previstas no programa.”
O artigo sétimo e oitavo permitem que a escola se associe a outras pessoas e entidades para tentar resolver o problema, dividindo um pouco a responsabilidade para o combate ao bullying. Nesse ponto parece central a figura de um psicólogo na escola, para orientar as políticas anti-bullying, e propiciar um trabalho especial com a vítima e também com o agressor, ou pelo menos encaminhar a um tratamento específico. Um convênio com grupos de psicólogos seria interessante, para que eles pudessem orientar os professores, funcionários da escola e pais sobre as ações de bullying e as suas conseqüências. É importante a figura do Ministério Público como um parceiro para garantir a intervenção em casos graves de bullying, que tem envolvidos crimes como agressões físicas violentas, estupro, atentado violento ao pudor, etc..
“Artigo 7º – Fica autorizada a realização de convênios e parcerias para a garantia do cumprimento dos objetivos do programa.
Artigo 8º – A escola poderá encaminhar vítimas e agressores aos serviços de assistência médica, social, psicológica e jurídica, que poderão ser oferecidos por meio de parcerias e convênios.”
6. Estudo de caso: sentença condenando o bullying escolar no âmbito judicial
O bulllying não é um assunto que tem ampla difusão no meio jurídico, por ser considerado um assunto da esfera escolar. Porém, o bullying tem vários pontos de contato com práticas que são analisadas pelo Direito, como a discriminação e o assédio físico e moral. A prática do bullying tem causado preocupação social, em especial devido aos casos de extrema violência com diversas mortes. A legislação existente no Brasil para cuidar da prática do bullying somente atua no âmbito da escola, não existindo uma política para punição dessa prática no âmbito estatal. Logo não se pode falar de criminalização do bullying, bem porque esta prática é formada de ações que já tem regulamentação penal própria. A criminalização também é dificultada por ser uma prática em que o ofensor é menor. Não se pode falar propriamente de bullying quando o agente é maior, pois nesse caso a ele pode ser aplicada a lei penal, que praticamente define quase todas as ações de bullying como crimes. Assim, dificilmente casos de bullying são tratados no âmbito do judiciário.
Há registros de julgados que tratam do bullying, porém como sinônimo de assédio moral no âmbito do trabalho (RO 00156.2005.00323.00-7) ou mesmo como prática de extorsão (Apelação Criminal n. 2004091011545-4APR – DF, 13.10.2008). Foi identificado um caso de bullying que trata de violência no âmbito escolar. Nesse caso a escola é responsabilizada pelos abalos psicológicos a um menor e condenada a pagar indenização por danos morais.
“DIREITO CIVIL. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. ABALOS PSICOLÓGICOS DECORRENTES DE VIOLÊNCIA ESCOLAR. BULLYING. OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA. SENTENÇA REFORMADA. CONDENAÇÃO DO COLÉGIO. VALOR MÓDICO ATENDENDO-SE ÀS PECULIARIDADES DO CASO.
1.Cuida-se de recurso de apelação interposto de sentença que julgou improcedente pedido de indenização por danos morais por entender que não restou configurado o nexo causal entre a conduta do colégio e eventual dano moral alegado pelo autor. Este pretende receber indenização sob o argumento de haver estudado no estabelecimento de ensino em 2005 e ali teria sido alvo de várias agressões físicas que o deixaram com traumas que refletem sua conduta e na dificuldade de aprendizado
2.Na espécie, restou demonstrado nos autos que o recorrente sofreu agressões físicas e verbais de alguns colegas de turma que iam muito além de pequenos atritos entre crianças daquela idade, no interior do estabelecimento réu, durante todo o ano letivo de 2005. É certo que tais agressões, por si só, configuram dano moral cuja responsabilidade de indenização seria do colégio em razão de sua responsabilidade objetiva. Com efeito, o colégio réu tomou algumas medidas na tentativa de contornar a situação, contudo, tais providências foram inócuas para solucionar o problema tendo em vista que as agressões se perpetuaram pelo ano letivo. Talvez porque o estabelecimento de ensino apelado não atentou para o papel da escola como instrumento de inclusão social, sobretudo no caso de crianças tidas como ‘diferentes’. Nesse ponto, vale registrar que o ingresso no mundo adulto requer a apropriação de conhecimentos socialmente produzidos. A interiorização de tais conhecimentos e experiências vividas se processa, primeiro no e, depois em instituições como a escola, no dizer de Helder Barrufi, “Nesse processo de socialização ou de inserção do indivíduo na sociedade, a educação tem papel estratégico, principalmente na construção da cidadania”. Relator Waldir Leôncio Júnior. (Apelação Cível n. 2006.03.1.008331-2 – DF, j. 7/8/2008)
Essa decisão foi tida como uma decisão histórica[13], por responsabilizar a escola ao não tomar atitudes efetivas para combater o bullying. O caso tratado pelo judiciário era de um menino da segunda série, com 7 anos, que teve agressões físicas tão graves que foi encaminhado ao IML para exame de corpo de delito. A referência da ementa à crianças “diferentes”, refere-se a dificuldade de aprendizado do menino.
No que se refere à conduta de bullying foi encontrado somente uma sentença em que os pais de um adolescente agressor, foram condenados à pagar indenização de danos morais à uma adolescente. Trata-se da ação cominatória e reparação de danos no processo n. 0024.08.199172-1 analisado na 27º vara civil da comarca de Belo Horizonte, Minas Gerais. Nesse caso, apesar da escolar figurar como réu, o magistrado entendeu que ela de certa forma tomou medidas para combater a prática de bullying. A sentença do magistrado de primeiro grau entende que os pais do menor são responsáveis por suas condutas. Trata-se de sentença de primeiro grau, que ainda pode ser reformada, porém já pode ser considerada como uma sentença paradigmática para o caso de bullying, por ser uma das primeiras a sancionar de alguma forma a conduta do agressor. Essa sentença teve ampla divulgação na mídia via internet, em jornais impressos e revistas especializadas em educação e inclusive nos telejornais nacionais, especialmente pela condenação.
A sentença do magistrado aponta para um caso clássico de bullying entre adolescentes da sétima série. É identificado um menino como o agressor, que em um espaço longo de tempo, insulta e difama uma de suas colegas de sala, tratando-a de lésbica e prostituta. Segundo a sentença a escola toma algumas atitudes conciliatórias entre o agressor e a agredida, porém o agressor não para de praticar o bullying. O magistrado diz não poder via sentença atingir um dos pedidos da autora que é educar o réu, apesar de entender que a educação dada pelos pais do agressor é insuficiente.
Nesse caso, os pais são responsabilizados pelo dano moral causado, uma vez que a responsabilidade nesse caso é objetiva, não sendo necessária a demonstração da culpa. De acordo com o magistrado o nexo causal foi demonstrado, em especial pelo depoimento da psicóloga da menina. O magistrado aponta para uma questão interessante, que é o fato de algumas testemunhas serem menores (nesse caso com menos de 16 anos) e seu depoimento não poder ser tomado como testemunha, de acordo com o artigo 228 do Código Civil. Porém, sabe-se que o bullying é prática entre menores e presenciadas majoritariamente por menores. Por isso, exigir que a testemunha da prática de bullying que seja maior ou que possa figurar como testemunha legal, faz com que grande parte dos que viram ou souberam dos fatos não possa ir a juízo.
Na sentença o magistrado tem o cuidado de destacar que a quantia indenizatória se trata de uma indenização e não de uma punição. Essa é a teoria relevante no Brasil para os casos de assédio moral. Devido ao caráter indenizatório, o magistrado entende que a quantia não deve ser vultosa. Ao tratar desse tema, o magistrado acaba por tecer considerações sobre a tutela jurisdicional a respeito do bullying. Para o magistrado essa é uma questão escolar, que veio parar no judiciário, uma vez que o comportamento do agressor não cessou, nem pela intervenção da escola, nem dos pais.
“O litígio tem como base o desentendimento entre menores de idade, com danos pontuais e provisórios que, ao que parece, já foram superados pela autora. Ainda que se trate de questão grave, as conseqüências de se trazer uma questão escolar para as barras da Justiça, envolvendo menores de idade, não são boas. Em primeiro lugar porque expõe os próprios adolescentes a situações potencialmente constrangedoras e desnecessárias em sua idade, como colocá-los na frente de um Juiz para responder perguntas de seu dia a dia escolar. Em segundo lugar por ensejar, na própria escola, o efeito nefasto apontado pelo procurador dos pais de L., concernente à alcunha de “réu” e “processado” com que vem convivendo o referido adolescente. De qualquer forma, embora lamentável a necessidade de intervenção do Estado-Juiz, a tutela jurisdicional encontra-se prestada neste ato”.
O magistrado faz uma longa digressão sobre a diferença de punição e indenização, deixando claro que o valor fixado remete-se à indenização, uma vez que o trata-se de uma questão civil. Apesar do caráter de indenização, não se pode deixar de identificar na sentença alguma relação uma espécie de sanção. O magistrado relata que as “sanções escolares” foram aplicadas, no caso, o agressor foi suspenso das atividades escolares, mas isso não impediu que o bullying continuasse. De certa maneira, a sentença judicial visa colocar limites em um comportamento indesejado.
“Quanto às atitudes do menor, L.A, não é preciso dizer que toda criança e adolescente passa por fases difíceis de adaptação, transformação, superação, afirmação, entre várias outras que se apresentam no decorrer de sua formação física e moral. Todos nós, quando crianças, chamamos ou fomos chamados por nossos colegas por adjetivos pejorativos e depreciativos como “magrelo”, “narigudo”, “baleia”, “zézão”, “bobão”, “mongol”, “retardado”, e tantos outros que a imaginação fértil da juventude extrema pode criar. Da mesma forma, tivemos nossas brigas, nossos desencontros e até mesmo nossos “puxões de orelha” da diretora ou do diretor da escola. Todavia, há um limite que, se ultrapassado, pode gerar situações como a do caso dos autos. A meu ver o menor L.A. não passa do que antigamente chamaríamos de um menino “levado”. Entretanto, suas atitudes parecem não ter limite, posto que subsume-se do depoimento de sua orientadora (Sra. Ana Maria, f. 148-152) que mesmo após conversas com suas supervisoras/coordenadoras o menor prosseguiu em suas atitudes inconvenientes de “intimidar” ou tentar se “afirmar”, perante suas colegas de sua classe.”
O magistrado expressa que comportamentos indesejados são recorrentes entre as crianças, mas que há uma limitação, levando à criança a se socializar. É a socialização que impede a criança dizer o que quer sem ter conseqüências, assim como impede o adulto de fazer o que bem entende. Do mesmo modo que adultos não podem roubar, matar, extorquir, porque comportamentos assim destroem a sociedade, não deve ser permitido as crianças apenas seguir suas vontades narcísicas, sob pena de se tornarem bichos e não homens socializados.
O pagamento do dano moral não deixa de ser uma forma de alertar os pais para o comportamento social inadequado do filho e de apresentar um “estímulo” para a repreensão desse comportamento. O combate ao bullying acaba passando, nesse caso, pela questão pecuniária, uma vez que as práticas educativas não foram eficazes. A sentença se torna paradigmática uma vez que abre caminho para que uma questão que dificilmente tem uma resolução no campo escolar possa ter uma resolução no âmbito jurídico. É paradigmática também por ser uma manifestação do poder estatal de que o bullying deve ser combatido e propiciar um mecanismo, no mínimo, interessante para que a prática não se repita. Esse mecanismo de indenização foi utilizado quando todos os outros falharam. Porém, sabe-se que “sanções econômicas” significativas não podem ser aplicadas em todos os casos, especialmente em grande parte da população brasileira. É preciso que se criem instrumentos na esfera das escolas ou mesmo na esfera do direito penal para combater o bullying de maneira eficiente, sem precisar apelar para o caráter “educativo do bolso” dos pais.
7. Políticas para combater e sancionar práticas de bullying escolar
Durante muito tempo o bullying não foi encarado como um problema social, mas como prática individual de falta de indisciplina escolar. Há poucos anos o bullying começou a ser encarado como um problema social e surgiram as discussões para elaboração de políticas de combates no âmbito escolar. Essas primeiras políticas incluem desde elaboração de novas regras de disciplina escolar, como a divulgação da existência do problema para alunos, pais, corpo docente e funcionários. O bullying parece ainda ser considerado uma prática mais rara do que realmente é, pois não é raro a escola isolar o problema ao propor a resolução do conflito entre o ofendido e o ofensor. Essa tentativa de resolução de conflito geralmente é feita por um profissional ligado à psicologia. Porém, o que é estranho é tentar resolver um conflito pela via da elucidação, da conversa individual, de uma questão que tem como ponto central o extermínio do outro. Se o ofensor quer eliminar o ofendido, com base em valores discriminatórios, não há resolução para o caso. O bullying não pode ser tratado como outros litígios em que se pode chegar a um acordo entre as partes. Não há acordo, pois discriminar, violentar, inferiorizar, não podem ser condutas socialmente aceitas.
A atuação para o combate ao bullying somente tem sentido quando feita tentando apresentar como a conduta é maléfica socialmente. O que falta é a socialização e ela tem de ser realizada. Nesse caso, a escola tem de surgir como uma esfera disciplinadora, podendo impor sanções adequadas ao caso. O que importa é gerar a socialização, quebrar a onipotência do eu do ofensor, levando-o a considerar o outro. A escola não pode se omitir nesses casos. Porém, sabe-se que há uma limitação para a ação da escola, que lhe é particular. Nesses casos, entende-se que chamar outras instituições como a família e até o Estado é fundamental. Essas outras instituições poderão sancionar para levar o comportamento social do ofensor à socialização.
A esfera sancionadora do Estado, da escola ou da família é fundamental, mas está voltada para o ofensor deixando de lado outras pessoas como as testemunhas/partícipes. Para tentar resolver o problema é preciso o envolvimento de toda a sociedade. O bullying somente pode ser combatido no seu cerne com uma política que leve a conscientização da necessidade de se viver em sociedade e não querer o extermínio do outro. Nesse sentido o combate ao bullying tem de ser feita por uma política de educação, que não pode ser restringida apenas à escola.
A atuação do Estado nos casos de bullying não é consenso entre os estudiosos da questão, que entendem ser um problema da esfera escolar e que deve ser resolvida nesse âmbito. Porém, pode-se pensar em uma proteção Estatal, tanto regulando, quanto intervindo diretamente para resolução do conflito. A regulação do bullying é fundamental, especialmente para a sua caracterização. Definir uma conduta não aceita socialmente sempre foi um papel da lei. A regulação também pode ser feita para a implantação de políticas públicas de combate ao bullying. A intervenção direta, caso a caso é possível, especialmente em casos em que a intervenção da família e da escola para resolução não deram resultado, com atuação do poder judiciário e do Ministério Público.
Se torna necessária a criminalização do bullying, em sua forma geral, englobando o bullying escolar. A regulação criminal para sancionar os casos de bullying é fundamental para dar a devida importância a essa prática tão nefasta e que tem conseqüências tão graves quanto a tortura. Em muitos aspectos o bullying se assemelha à tortura, levando as vítimas à terem problemas sociais, psicológicos, cometerem suicídio ou mesmo homicídio de seus bullers. A aproximação com a tortura e do bullying é feita aqui para apontar a gravidade dessa conduta, e o paralelo não é desmedido. Mais do que um crime, o bullying é uma tortura, pois as ações ocorrem ao longo do tempo, visando inferiorizar/ aniquilar a vítima. O Estado não pode se omitir de legislar sobre essa conduta tão grave que vem causando sérios problemas sociais.
Na especificidade do bullying escolar também é necessário uma sanção para coibir a sua prática. Porém, nesse caso é sempre importante lembrar que os envolvidos geralmente são menores de idade e para eles é necessária uma estipulação de sanção diferente. Não se trata de não sancionar, mas também não se pode permitir essa prática. Sanções podem ser aplicadas pela escola, levando em consideração a idade dos envolvidos e a gravidade da conduta. Dentro da esfera de regulação da escola é possível sanções que tenham um efeito desejado, que é evitar o comportamento do bullying. Para grande parte dos casos não é necessária que a sanção seja física, nem psicologicamente gravosa; mas deve-se indicar a criança e ao adolescente que a conduta como o bullying não é bem quista socialmente.
A legislação estadual prevê a escola como esfera que pode implantar políticas anti-bullying, permitindo inclusive a aplicação de sanções no caso dessa prática. Porém, deixa a critério da escola estabelecer as normas e limites para aplicação das sanções disciplinares. A lei não faz menção a impossibilidade da escola em atuar em casos de bullying grave, em que a sanção disciplinar não é eficaz. Poderia-se pensar no âmbito da escola, ou mesmo de um grupo de escolas, de implementar uma comissão para tratar exclusivamente de problemas relativos ao bullying, possibilitando que fossem implantadas políticas de prevenção por pessoas que tivessem a verdadeira dimensão do problema do bullying. Esta comissão poderia inclusive analisar os casos de bullying e decidir por uma sanção. A legislação estadual existente coloca essas tarefas para os funcionários já existentes da escola, dificultando a resolução do problema, uma vez que já há extensas atribuições para diretores e seus secretários e também dos professores.
No caso de uma conduta de bullying com uma conseqüência gravíssima, seria necessário sair da regulação escolar e passar a pedir intervenção estatal. Inclui-se nesses casos gravíssimos, bullying com conseqüências de homicídio, estupro, violência física grave, etc. Com uma regulação legislativa do assunto, deve-se apontar para quais casos seria necessário pedir intervenção estatal, inclusive com apoio do Ministério Público. Este órgão tem como uma de suas funções zelar pela integridade dos menores, conforme dispõe o ECA (lei 8069 de 1990), no cap. 5, artigo 200 e seguintes. No caso da criminalização da conduta do bullying seria possível o Ministério Público atuar como já atua, em qualquer caso de infração as leis penais cometidas por menores.
É importante também que haja uma especificação da responsabilidade da escola em casos de bullying. A escola tem um papel de educar e não pode permitir que condutas de bullying ocorram no tempo em que os menores foram confiados à sua responsabilidade. É dever da escola, zelar e garantir a saúde física e mental dos alunos, enquanto estes estão sob a sua tutela. Dentro das possibilidades da escola seria interessante a legislação especificar as condutas que esta pode tomar para coibir o bullying e aplicar as sanções. Nos casos graves deveria haver uma obrigatoriedade da escola reportar a conduta ao Ministério Público, sob pena de ser conivente com a conduta do bullying, evitando com isso uma postura omissa da escola.
As políticas de bullying terão poucos efeitos quando se procurar apenas sancionar o buller. Essa é apenas uma das práticas a serem adotadas, mas não pode ser a única. O comportamento do buller é terrível, mas ele é reflexo de uma série de valores e atitudes disseminados na sociedade moderna. Apenas práticas conjuntas podem trazer a diminuição do bullying. A política anti-bullying deve também prestar atenção nas testemunhas/participantes da ação de bullying, estimular as denúncias da prática, amparar vítimas e testemunhas, informar da prática e das suas conseqüências aos pais/professores/população, promover a socialização da criança na escola com difusão da importância de se viver em uma sociedade plural e democrática, difundir que a discriminação/racismo/desrespeito às pessoas é uma atitude nefasta socialmente e tem de ser evitada, valorizar os jovens ouvindo-os e criando esferas de verdadeira integração social, etc.. O fenômeno do bullying é complexo e para ser coibido tem de contar com todas as esferas da sociedade.
Considerações Finais
O bullying necessita ser criminalizado com urgência, pois é de uma prática gravíssima, muito semelhante à tortura e ao racismo. Essa prática necessita ser combatida por meio de sanções e também de políticas públicas que alertem para o problema, informando e também proporcionando a proteção das vítimas. O bullying escolar deve ser englobado nessa criminalização proposta para o bullying em geral, porém é necessário que para o caso de menores, as sanções previstas sejam adequadas as ações, a gravidade e a idade do sujeito e da vítima.
A escola pode em grande parte dos casos aplicar as sanções, que ache cabível para cada caso, dentro das regulamentações da lei estadual. É preciso que os mecanismos previstos nas leis estaduais realmente sejam efetivos e que a escola tenha apoio de pessoas especializadas e também do poder público para implementar as políticas anti-bullying. É preciso que a escola tenha dimensão do que é um caso em que pode resolver, com sanções internas, e os casos em que é preciso a intervenção estatal, com o auxílio do Ministério Público, para não tomar mais responsabilidades do que pode agüentar. Nos casos de bullying graves é preciso que haja sanções estatais, mesmo para menores, que são os atos infracionais.
A mobilização da sociedade para combater o bullying é fundamental, pois um dos fatores do bullying que é a inferiorização por estigmas, somente ocorre porque esses estigmas são respaldados socialmente. A busca por uma sociedade que abarque as diferenças é um grande passo para não aceitar a inferiorização de qualquer pessoa, seja qual for o motivo. Uma sociedade democrática é uma sociedade que aceita e valoriza as diferenças das pessoas. Nesse tipo de sociedade não pode ser aceitável a prática do bullying.
Pós Doutora em Direito pela FD-USP Doutora e Mestre em Direito pela PUC-SP bacharel em História Direito e Filosofia
http://lattes.cnpq.br/7694043009061056
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