Resumo: O presente artigo abordará o caráter fragmentário do direito penal, este como óbice a atividade persecutória do estado, realizado através do direito processual penal.
Palavras-chave: Fragmentariedade. Mínima intervenção. Controle processual. Condutas minimamente lesivas.
Sumário: Introdução. 1. Princípio da intervenção mínima – subsidiariedade da demanda penal. 2. Princípio da fragmentariedade do direito penal. 3. Caráter fragmentário – controle através do processo penal. Conclusão. Referências.
Introdução
O direito penal é realizado pelo direito processual penal, posto que sem este a norma de proibição estaria fadada a ausência de efetividade. Ocorre que, a realização do direito material encontra óbices indisponíveis, notadamente quando os bens tutelados pelo tipo penal formal são resguardados pelas outras searas do ordenamento. Assim, o interprete deve superar a interpretação meramente literal para, ao cabo, contrabalancear a necessidade/adequação e utilidade da persecução penal.
1. Princípio da intervenção mínima – subsidiariedade da demanda penal.
O Direito Penal, conforme abalizada doutrina, somente deve “preocupar-se”, ou melhor, conferir proteção aos bens mais relevantes e necessários à manutenção pacifica da sociedade.
Partindo-se desta premissa, passamos ao estudo do postulado da intervenção mínima, ou ultima ratio do direito penal. Com escopo em reduzir o raio de incidência da seara penal, o princípio da mínima intervenção, subtraí do resguardo daquele os bens passíveis de proteção por outros ramos do direito. Ora, o direito penal deve interferir o menos possível na vida em sociedade, devendo ser vindicado somente quando os demais ramos do direito não forem suficientes para proteger os bens de maior importância.
A problemática, no entanto, se dá quando da escolha daqueles bens, efetivamente, necessários de proteção. Como bem sabido, ao Poder Legislativo é estabelecida a prerrogativa de inovar a ordem jurídica, quer seja em benefício do coletivo, quer seja em benefício de certos fragmentos da sociedade. Ingênuo, portanto, é aquele que acredita, piamente, que o poder legislativo é neutro a pressões sociais, ou ainda, que este prima pela melhor representação da sociedade.
Na verdade, a própria sistemática adotada no Estado Brasileiro propicia o conchavo político, a troca de favores, o resguardo de interesses particulares e escusos, tudo em detrimento do bem maior, qual seja, o interesse público primário (o cidadão), isto porque, qualquer pessoa que pretenda candidatar-se a algum cargo político demanda o incremento de altos investimentos, que serão, inevitavelmente, objeto de cobrança pelo financiador.
Sobre os custos de uma campanha política, oportuno é o levantamento noticiado pelo site de notícias Terra[1], em Junho de 2012, constatando o aporte de quase R$ 40 (quarenta milhões) de reais, por candidato, para chefiar a gestão municipal da maior cidade do Brasil. Após a leitura do artigo, pairam certas dúvidas, mas duas em especial: a) De onde sai toda essa verba? B) Quanto custará para a sociedade a retribuição política em razão do financiamento da campanha?
Pois bem, sem pretender analisar o sistema de democracia optado pelo Constituinte Originário como mais adequado à época, nem muito tecer críticas ou elogios ao sistema posto, voltamo-nos a análise da mínima intervenção e a implicação desta no campo penal.
Se, de início, receai sobre o Legislador a escolha de quais bens serão objeto de tutela penal, num segundo instante, ao Magistrado é transferida essa incumbência, principalmente quando instado a verificar a plausibilidade da persecução penal deflagrada pelo Estado Acusação. Assim, o Estado Jurisdição, desvestindo-se da feição inquisitiva reinante no sistema inquisitorial e com atenção redobrada ao sistema constitucional acusatório, imparcial por excelência, compete analisar o fato praticado, as consequências deste e, por fim, contrabalancear a necessidade/adequação e utilidade da persecução penal, tendo em mente que o direito penal deve ser a última opção, substituído por todas outras, por ventura, existentes.
Sobre o tema, oportunas são as lições doutrinárias de Cezar Roberto Bitencourt[2],
“O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanções ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização será inadequada e desnecessária. Se para o restabelecimento da ordem jurídica forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o direito penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade.”
Claus Roxin[3] também assevera o caráter subsidiário do Direito Penal, vejamos,
“A proteção de bens jurídicos não se realiza são mediante o Direito Penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. O Direito Penal é, inclusive, a última dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas, quer dizer que somente se pode intervir quando falhem outros meios de solução social do problema – como a ação civil, os regulamentos de polícia, as sanções não penais, etc. Por isso se denomina a pena como a ‘ultima ratio da política social’ e se define sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos.”
Por fim, considerando a subsidiariedade do direito penal frente aos outros meios de proteção previstos no ordenamento jurídico, este somente deve intervir quando as demais soluções, extrapenais, não solucionarem, a contento, o conflito posto à apreciação.
2. Princípio da fragmentariedade do direito penal
O princípio da fragmentariedade, conforme Nilo Batista é uma das características do princípio da intervenção mínima, juntamente com a subsidiariedade. O penalista refere, também, que a fragmentariedade é uma consequência da adoção de três princípios (intervenção mínima, lesividade e adequação social), e não somente de um deles (o da intervenção mínima).
Com fulcro no exposto, a lesão decorrente da conduta imputada não afronta a ordem jurídica de maneira a permitir a aplicação da reprimenda penal, ainda mais quando não há prova da vontade livre e consciente de praticar a conduta penal, bem como o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado naturalístico.
Não se está aqui defendendo a abolitio criminis do crime em estudo, porém, existindo outros meios aptos a reparar a lesão provocada, tal como a aplicação de embargos, multas, apreensão de bens/animais, interdição da área e outras, o direito penal deve ser relegado a um segundo plano, isto em homenagem ao princípio da fragmentariedade do jus puniendi.
Logo, se por outros meios jurídicos foi possível recuperação ambiental da área degradada pela atividade humana ou a redução significativa de novas violações ambientais, temos como injustificável a emissão de juízo condenatório, especialmente em relação ao contexto fático apresentado nesse litígio.
Nesta senda são os julgados emanados da Suprema Corte Constitucional:
“Não há se subestimar a natureza subsidiária, fragmentária do Direito Penal, que só deve ser acionado quando os outros ramos do direito não sejam suficientes para a proteção dos bens jurídicos envolvidos” (STF, RHC 89624/RS, Relatora Ministra Cármen Lúcia, 1ª Turma, DJU. 7/12/2006).
“EMENTA: HABEAS CORPUS – PRETENDIDO TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL – ALEGAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA – SITUAÇÃO DE ILIQUIDEZ QUANTO AOS FATOS SUBJACENTES À ACUSAÇÃO PENAL – EXISTÊNCIADE CONTROVÉRSIA QUANTO À MATÉRIA FÁTICA – PEDIDO INDEFERIDO. – A extinção anômala do processo penal condenatório, embora excepcional, revela-se possível, desde que se evidencie – com base em situações revestidas de liquidez – a ausência de justa causa. – O reconhecimento da inocorrência de justa causa para a persecução penal, embora cabível em sede de habeas corpus, reveste-se de caráter excepcional. Para que tal se revele possível, impõe-se que inexista qualquer situação de iliquidez ou de dúvida objetiva quanto aos fatos subjacentes à acusação penal. – Havendo suspeita fundada de crime, e existindo elementos idôneos de informação que autorizem a investigação penal do episódio delituoso, torna-se legítima a instauração da "persecutio criminis", eis que se impõe ao Poder Público, a adoção de providências necessárias ao integral esclarecimento da verdade real, notadamente nos casos de delitos perseguíveis mediante ação penal pública incondicionada. Precedentes.” (STF, HC N. 82.393-RJ, Min. Rel. CELSO DE MELLO)
Convêm, ao findo deste tópico, enaltecer o acerto da decisão prolatada pelo Juízo Singular, conquanto absolveu sumariamente o Recorrido das imputações atribuídas em razão dos princípios limitadores do jus puniendi, em especial o da intervenção mínima e da fragmentariedade.
3. Caráter fragmentário – controle através do processo penal.
O direito penal somente é instrumentalizado em razão da persecução penal, pontualmente em decorrência do devido processo legal constitucional e a sua implicação no ordenamento jurídico como um todo. Desta feita, o resguardo dos bens significativamente imprescindíveis ao controle da sociedade, com escopo em manter a pacificação social, demanda a instauração da lide persecutória, até porque, como já dito, o Direito Penal somente se realiza no processo penal.
Com escopo no mencionado, Aury Lopes Jr[4] refere a incompatibilidade da importação de conceitos de processo civil para a lide penal, eis que aqueles dispõem de objetivos e fundamentos completamente dissonantes do segundo. Logo, “na tentativa de adequar ao processo penal, é feita uma verdadeiro ginástica de conceitos, estendendo-os para além de seus limites semânticos. O resultado é uma desnaturação completa, que violenta a matriz conceitual, sem da uma resposta ao processo penal”.
Díspar do pensamento alhures transcrito, outros processualistas de renome, como Eugênio Pacelli de Oliveira, subdividem as condições da ação similarmente as lecionadas no processo civil, com acréscimo, da justa causa. Esta última, aliás, é acolhida por unanimidade, ainda mais em razão da alteração legislativa sufragada pela Lei 11.719/08.
A justa causa, para Afrânio Silva Jardim[5], impunha ao órgão acusador lastrear a peça acusatória com suporte mínimo de prova, sem os quais a acusação careceria de admissibilidade, até porque o “só o ajuizamento da ação penal condenatória já seria suficiente para atingir o estado de dignidade do acusado, de modo a provocar graves repercussões na órbita de seu patrimônio moral, partilhando socialmente com a comunidade em que desenvolve suas atividades[6]”.
Ao que se percebe, o quarto requisito da ação penal pública, senão o mais significante em relação ao acusado, ao menos tem por objetivo impedir, mediante a rejeição da denúncia, o prosseguimento de lides temerárias, isto como medida de prevalência ao princípio constitucional da presunção de não culpabilidade, posto que a simples existência de um processo já é motivo de constrangimento ao acusado.
A título de exemplificação, valemo-nos dos relatos narrados por Franz Kafta, na obra O Processo. Segundo o Autor, o bancário Josef Kafta, numa manhã fora surpreendido com a informação que este figurava em um processo como réu, notícia de todo ruim, primeiro em relação ao cargo que ocupava na instituição financeira, segundo porque sequer sabia do estava sendo acusado, muito menos a forma de defender-se, quem eram os juízes de sua causa e assim por diante. Portanto, o exemplo de Josef é salutar neste momento, eis que a inserção da justa causa como quarto elemento das condições da ação, ao cabo, evita a instauração de processos sem conjunto de prova mínima, ao bel prazer do órgão acusador, ao inverso, aliás, conquanto deve o Magistrado, uma vez não apurada a existência de indícios razoáveis de autoria e materialidade, rejeitar a peça acusatória.
Aury Lopes Junior[7] relaciona a justa causa a dois fatores, um deles na existência de indícios razoáveis de autoria e materialidade, enquanto o outro constitui o controle processual do caráter fragmentário da intervenção penal.
O primeiro dos fatores, indícios de autoria e materialidade, devem vir comprovados na acusação, pois nada justifica a instauração de uma lide penal processual sem elementos probatórios mínimos, posto que “a acusação não pode, diante da inegável existência de penas processuais, ser leviana e despida de um suporte probatório suficiente à luz do princípio da proporcionalidade[8]”.
O segundo fator, o controle processual do caráter fragmentário da intervenção penal, constitui baliza a atuação do processo em busca de operacionalizar o direito penal, principalmente em relação aos fatos minimamente significantes.
Ora, se o direito penal é fundado no princípio da intervenção mínima, ínsito ao caráter fragmentário deste ordenamento em relação aos demais, não se admite o prosseguimento de um processo em que os bens já são objeto de tutela na seara administrativa, civil, dentre outras.
Posto isto, acertada é a conclusão de Aury Lopes Jr[9], porquanto o controle processual do caráter fragmentário do Direito Penal, apurando-se a inexistência de justa causa, conduz ao julgamento de mérito antecipado, com a absolvição do agente, nos termos do artigo 397, III, do CPP.
Conclusão
A persecução de fatos material e formalmente típicos deve ser limitada àqueles realmente significantes, ou melhor, os desprovidos de qualquer tutela do ordenamento – considerado neste ato em seu todo-, posto que a seara penal repercute na vida coletiva de tal forma que a realização deste, com elevada habitualidade, destoa o direito penal de seu caráter fragmentário. Portanto, como o controle legislativo nem sempre se opera do modo devido, transfere-se ao Estado Julgador e também ao Estado Acusação a responsabilidade de limitar a atividade processual nestas situações, factível em virtude da justa causa.
Defensor Público Federal de 2ª Categoria. Especialista em Processo Civil na Universidade de Caxias do Sul/RS.
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