Sumário: 1. Introdução ao direito de família; 2. União estável; 3. Diferenças entre concubinato e união estável; 4. O reconhecimento da relação concomitante ao casamento como concubinato e a jurisprudência brasileira; 5. Considerações finais; 6. Bibliografia.
1. Introdução ao direito de família.
O direito de família é o ramo do direito privado que trata das relações pessoais e patrimoniais entre sujeitos ligados por uma entidade familiar ou parentesco. Como a família é a base de organização do próprio Estado, considerada como o núcleo da sociedade, o direito de família é regido por normas que limitam a autonomia da vontade das pessoas, tendo em vista o interesse público (artigo 226 da Constituição Federal de 1988). Assim, as pessoas não podem decidir o que bem quiserem para a constituição e efeitos de suas famílias, é preciso observar o que a lei permite.
No direito brasileiro, durante muito tempo, o casamento foi considerado como a única forma de constituição de família legítima. Tal situação foi alterada com a Constituição Federal de 1988 que permitiu o reconhecimento de outras entidades familiares. A Constituição Federal trata expressamente do casamento civil, da união estável e da família monoparental (entidade familiar formada por um dos genitores e seus descendentes). Podemos notar, portanto, que a Constituição Federal de 1988 ampliou o conceito de família no direito brasileiro.
Atualmente, podemos elencar como princípios elementares do direito de família: a) igualdade entre filhos e entre homem e mulher; b) respeito à dignidade humana; c) afeição; d) liberdade na constituição familiar e, e) solidariedade familiar.
2. União Estável.
A Constituição Federal de 1988 reconheceu expressamente a união estável entre homem e mulher como entidade familiar. De fato, a relação não matrimonial entre homem e mulher existe há muito tempo e sempre foi conhecida como concubinato, mas foi somente em 1988 que a legislação constitucional brasileira considerou a relação não matrimonial entre homem e mulher como forma legítima de constituição de família, conhecida como união estável. A alteração de nome foi importante para retirar o sentido negativo que sempre acompanhou o termo “concubinato”.
Após a Constituição Federal de 1988 a matéria foi tratada pela Lei 8.971/94 e, posteriormente, pela Lei 9.278/96, além do Código Civil de 2002 (artigos 1723 a 1727).
A Lei 8.971/94 determinou regras sobre alimentos e direito sucessório aos companheiros, conceituando a união estável como a união de pessoas solteiras, separadas judicialmente, divorciadas ou viúvas, que convivam por mais de 5 anos ou que tenha filhos comuns. Mais tarde, a Lei 9.278/96 ao conceituar a união estável, retirou o prazo de duração da relação, bem como o estado civil das partes e indicou novos requisitos como: durabilidade; publicidade do relacionamento e objetivo de constituir família. Portanto, a lei atual não estabelece mais prazo de duração do relacionamento para ser considerado como entidade familiar formada pela união estável. O Código Civil atual praticamente reproduziu o que consta da lei de 1996, acrescentando, entretanto, mais um requisito, qual seja, a não existência de impedimento matrimonial, exceto no caso de pessoas separadas de fato ou judicialmente (artigo 1723 do Código Civil). Como podemos verificar, a lei não diz claramente o que é ou não uma união estável, mas fornece elementos para que o magistrado possa formar um convencimento a respeito da constituição da entidade familiar, dependendo do caso concreto.
Em assim sendo, o juiz de direito deve ser criterioso e estudar o caso verificando se a situação pode ou não ser considerada como entidade familiar, fazendo a diferença entre namoro e noivado que, por sua vez, não podem ser considerados como família e, entre união estável e concubinato (CAVALCANTI, 2004:130). Salientamos ainda que, não é necessário que ambos morem sob o mesmo teto para que a união estável seja configurada. Obviamente que a morada conjunta ajuda a identificar se a relação é uma entidade familiar ou um namoro ou relação amorosa, mas não é requisito legal essencial para seu reconhecimento.
Dentre os efeitos patrimoniais relativos à união estável, podemos citar a regra de regime de bens. Ao constituir uma união estável as partes podem escolher o regime de bens ou caso silenciem sobre o assunto, será observado o regime regra do casamento, qual seja, o regime da comunhão parcial de bens. Assim, diferentemente da situação do casamento, em que os noivos devem fazer o pacto antenupcial, os companheiros não precisam decidir essa questão antes de iniciar o relacionamento, o acordo de união estável não é obrigatório, mas deve ser feito por escrito, a qualquer momento e não necessariamente por escritura pública, apesar de ser mais indicado por meio de documento público. Isto quer dizer que, as partes podem fazer o acordo durante toda a união estável, diferentemente do casamento em que a escolha deve ser feita por pacto antenupcial antes da celebração ou por meio de autorização judicial após a celebração do casamento. O acordo, se realizado, servirá também como meio de prova da existência da relação estável. Portanto, os companheiros também podem escolher o regime da comunhão universal, comunhão parcial, separação de bens ou participação final dos aqüestos, desde que o façam por escrito (artigo 1725 do Código Civil).
A obrigação alimentar na união estável também segue os padrões impostos para o casamento, com uma diferença importante, no casamento a culpa pela ruptura do relacionamento interfere na obrigação de alimentos, determinando a lei que o culpado pelo rompimento perde o direito a receber os alimentos, mas na união estável não há previsão a respeito da culpa o que nos leva a acreditar que não há a mesma implicação legal para esse tipo de entidade familiar. Assim, o que realmente importa para a aplicação da regra dos alimentos na união estável é provar a sua existência e que um dos companheiros é necessitado enquanto o outro tem possibilidades de pagar, aplica-se o princípio da necessidade e possibilidade, para que a obrigação alimentar seja possível.
A união estável poderá ser extinta pela simples vontade de ambas as partes (amigável) ou na forma litigiosa. A união estável não é uma relação formal e solene, como acontece no casamento, assim, as partes podem simplesmente terminar o relacionamento sem a necessidade de qualquer ato que formalize o fim da união. Contudo, se houver divergências e litígio entre as partes, sempre haverá a possibilidade de ir ao judiciário para que as questões sejam resolvidas por um juiz de direito. Neste caso, será necessário que as partes comprovem a existência e duração da união estável para que consigam reconhecê-la e dissolvê-la em juízo. E, para tanto, podem ser utilizadas todos os meios de prova considerados lícitos, como prova testemunhal e documental.
Como vimos, a união estável não é uma relação formal para se constituir, contudo, se as partes quiserem converter a união estável em casamento, será necessário observar procedimento de habilitação para a conversão da união estável em casamento, a ser feito em cartório de registro civil competente do domicílio dos companheiros (como ocorre no casamento), mediante pedido de ambos os companheiros. Note-se, entretanto, que é faculdade, ou seja, não há nenhuma obrigação das partes em converter a sua união estável em casamento (artigo 1726 do Código Civil). Importante, contudo, ressaltar que a lei brasileira não dá preferência legal pelo casamento. Tanto o casamento como a união estável são entidades familiares protegidas pela lei constitucional.
3. Diferenças entre concubinato e união estável
Resumidamente, podemos dizer que a história do concubinato no direito brasileiro sempre foi muito controvertida. Durante muito tempo, o termo concubinato foi aplicado para as relações entre pessoas impedidas para o casamento e que, portanto, não poderiam constituir família. Depois, a doutrina e a jurisprudência passaram a considerar que concubinato poderia ser considerado como toda e qualquer situação de relacionamento que não tinha o vínculo matrimonial, neste caso, a noção de concubinato envolvia também as relações de pessoas que não eram impedidas para o casamento, mas que simplesmente escolhiam viver em uma união sem casamento.
Atualmente, o concubinato vem definido no artigo 1727 do Código Civil como a relação impedida e que não pode ser considerada como entidade familiar. Trata a lei como concubinato a relação não eventual entre o homem e a mulher, impedidos de casar. Exclui-se da noção de concubinato a relação de pessoas separadas de fato e separadas judicialmente que, apesar de serem impedidas para novo casamento, podem estabelecer união estável, conforme previsão expressa em lei (artigo 1723 do Código Civil).
De acordo com o capítulo especial do novo Código Civil destinado à união estável (art. 1723 a 1727), o direito brasileiro além de reconhecer, nos moldes propostos pela Constituição Federal de 1988, a relação não matrimonial entre duas pessoas (homem e mulher), de caráter público, contínuo e duradouro, com o objetivo de constituir família, também estabelece critérios de configuração e efeitos, com o intuito, inclusive, de fazer diferença entre relação concubinária e união estável.
Em primeiro lugar, o artigo 1723 do Novo Código Civil reconhece a união estável como entidade familiar, reproduzindo quase que completamente o artigo 1º da Lei 9278/96. Nota-se que o mencionado artigo não estabeleceu prazo mínimo para a caracterização da mesma, mas fixou elementos mínimos para sua configuração e comprovação como: a) convivência pública; b) contínua; c) duradoura; d) com o objetivo de constituir família; e) entre homem e mulher.
Contudo, inova a mencionada lei (art. 1723 § 1º) ao definir que a união estável não poderá ser constituída se presentes um dos impedimentos matrimoniais previstos no artigo 1521, exceto a proibição contida no seu inciso VI – “pessoas casadas” – possibilitando na ocorrência e comprovação de separação de fato ou separação judicial, a configuração da união estável. E, finalmente, determinou o legislador do Código Civil de 2002 (artigo 1727) que as relações não esporádicas entre homem e mulher impedidos de casar denominam-se concubinato, fazendo uma distinção terminológica entre concubinato e união estável.
Nesse último tópico, acreditamos que o legislador não acertou em denominar simplesmente a “união entre pessoas impedidas pelo casamento” como concubinato, posto que, no artigo 1723 § 1º estabeleceu que os separados de fato e os separados judicialmente podem constituir união estável. Portanto, mesmo “impedidos” podem constituir união estável.
Podemos verificar do acima disposto, que o Código Civil faz nítida diferença entre “concubinato” e “união estável”, salientando a importância da lealdade e da monogamia. Percebemos, assim, que a nova legislação não aceitou o concubinato adulterino ou incestuoso como entidade familiar, por outro lado, definiu a situação jurídica dessas relações extramatrimoniais consideradas como concubinato, como sociedade de fato, aplicando-se as regras do direito das obrigações.
Portanto, o concubinato de hoje não pode ser considerado como entidade familiar e só poderá receber as regras do direito das obrigações, já que é considerado como uma sociedade de fato entre pessoas. Assim, vemos que não é permitida, nestes casos, a aplicação das regras de direito de família.
4. O reconhecimento da relação concomitante ao casamento como concubinato e a jurisprudência brasileira.
Em julgamento de 03 de junho de 2008, o Supremo Tribunal Federal decidiu por maioria dos votos que a concubina não tem direito à divisão de pensão por morte. A decisão foi tomada levando-se em conta o artigo 226 § 3º da Constituição Federal, entendendo os Ministros Marco Aurélio, Menezes Direito, Ricardo Lewandowski e a Ministra Carmem Lucia que a Constituição Federal brasileira não autoriza o reconhecimento de famílias paralelas, afirmando os Ministros citados que o conceito de união estável não engloba a situação de relacionamentos impedidos e concomitantes. Foi vencido o Ministro Carlos Ayres Britto que defendeu a tese de que não existe concubinato, a Constituição Federal só fala em união estável, não trata de concubinato, para a Constituição Federal de 1988 só existe o companheirismo, independentemente de ser concomitante à outra relação ou não, no núcleo doméstico estabilizado no tempo o que vale é o sentimento e é dever do Estado amparar as relações familiares. A ementa da decisão é a seguinte:
“COMPANHEIRA E CONCUBINA – DISTINÇÃO. Sendo o Direito uma verdadeira ciência, impossível é confundir institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel. UNIÃO ESTÁVEL – PROTEÇÃO DO ESTADO. A proteção do Estado à união estável alcança apenas as situações legítimas e nestas não está incluído o concubinato. PENSÃO – SERVIDOR PÚBLICO – MULHER – CONCUBINA – DIREITO. A titularidade da pensão decorrente do falecimento de servidor público pressupõe vínculo agasalhado pelo ordenamento jurídico, mostrando-se impróprio o implemento de divisão a beneficiar, em detrimento da família, a concubina”. (Recurso Especial n. 397762, Bahia – BA, Primeira Turma do STF, Relator: Min. Marco Aurélio, julgamento em 03/06/08, publicação em 12/09/08).
Mais tarde, em fevereiro de 2009, a mesma Corte manteve entendimento de que a concubina não tem o direito a dividir a pensão do falecido com a viúva, em julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 590779 interposto pela viúva contra decisão da Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais de Vitória (ES), favorável à concubina. Novamente, o Supremo Tribunal Federal, por maioria dos votos, decidiu que a é impossível a configuração da união estável quando um dos sues componente sé casado e vive maritalmente com o cônjuge, como ocorreu no caso em questão e que, apesar de o Código Civil reconhecer a união estável como núcleo familiar, não há a sua caracterização quando existente impedimento para o casamento, sendo que, o estado civil de casado apenas deixa de ser óbice quando comprovada a separação de fato do casal, ou seja, quando não houver mais comunhão de vida. Portanto, no caso da presença do impedimento matrimonial, que não seja a separação de fato ou separação judicial, a relação deve ser configurada como concubinato (CC, art. 1.727) e não de união estável.
Contudo, mesmo depois das mencionadas decisões da nossa Corte Suprema, vários julgados dos nossos Tribunais Regionais ainda reconhecem a relação dúplice, ou seja, concomitante ao casamento, para fins de reconhecimento de vínculo familiar.
É o caso da recente decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, julgado em 20 de novembro de 2008 e publicado em 10 de dezembro de 2008 em Apelação Cível n° 1.0017.05.016882-6/003 – da Comarca de Almenara que teve como relatora a Desembargadora Maria Elza, com a seguinte ementa:
“DIREITO DAS FAMÍLIAS. UNIÃO ESTÁVEL CONTEMPORÂNEA A CASAMENTO. UNIÃO DÚPLICE. POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO FACE ÀS PECULIARIDADES DO CASO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Ao longo de vinte e cinco anos, a apelante e o apelado mantiveram um relacionamento afetivo, que possibilitou o nascimento de três filhos. Nesse período de convivência afetiva – pública, contínua e duradoura – um cuidou do outro, amorosamente, emocionalmente, materialmente, fisicamente e sexualmente. Durante esses anos, amaram, sofreram, brigaram, reconciliaram, choraram, riram, cresceram, evoluíram, criaram os filhos e cuidaram dos netos. Tais fatos comprovam a concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isso é família. O que no caso é polêmico é o fato de o apelado, à época dos fatos, estar casado civilmente. Há, ainda, dificuldade de o Poder Judiciário lidar com a existência de uniões dúplices. Há muito moralismo, conservadorismo e preconceito em matéria de Direito de Família. No caso dos autos, a apelada, além de compartilhar o leito com o apelado, também compartilhou a vida em todos os seus aspectos. Ela não é concubina – palavra preconceituosa – mas companheira. Por tal razão, possui direito a reclamar pelo fim da união estável. Entender o contrário é estabelecer um retrocesso em relação a lentas e sofridas conquistas da mulher para ser tratada como sujeito de igualdade jurídica e de igualdade social. Negar a existência de união estável, quando um dos companheiros é casado, é solução fácil. Mantém-se ao desamparo do Direito, na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere esconder. Como se uma suposta invisibilidade fosse capaz de negar a existência de um fato social que sempre aconteceu, acontece e continuará acontecendo. A solução para tais uniões está em reconhecer que ela gera efeitos jurídicos, de forma a evitar irresponsabilidades e o enriquecimento ilícito de um companheiro em desfavor do outro.”
5. Considerações finais
Verifica-se a importância de unificação do entendimento sobre o assunto no judiciário, para que pessoas envolvidas em casos semelhantes não tenham soluções conflitantes, por causa da interpretação da lei. Faz parte da justiça, que as decisões tenham coerência e que o princípio da igualdade seja observado. O que não podemos é aceitar que uma família em Minas Gerais, por exemplo, receba um tratamento diferente de uma família que se encontra na Bahia, também como exemplo, sendo que o objetivo das duas era o mesmo, reconhecer o direito de ser considerada como entidade familiar, recebendo os efeitos e benesses do direito de família.
Sobre a questão, somos partidários da tese defendida pelo STF de que, a nossa legislação não reconhece famílias dúplices ou múltiplas, apesar delas existirem de fato. Isto não quer dizer que poderá haver enriquecimento ilícito por uma das partes envolvidas, resta claro que, nestes casos, podemos aplicar as regras do direito das obrigações, reconhecendo-se as relações concubinárias como aquelas que surtem efeito sim, mas não como entidade familiar. A primeira vista e para alguns casos concretos, pode não parecer justo, mas é o que a legislação brasileira determina.
Mestre e Doutora em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, advogada em São Paulo, professora dos cursos de graduação e pós-graduação em direito das FMU
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