Resumo: O presente trabalho pretende discutir os crescentes confrontos entre a liberdade de crença e os direitos dos homoafetivos, além da possibilidade de convivência entre esses dois direitos constitucionalmente garantidos a partir da análise de preceitos da atual Constituição Federal e da desmistificação do conceito de homofobia, o qual invocado por aqueles que consideram a discordância à prática sexual homoafetiva por “religiosos” uma discriminação ou preconceito. Abordar-se-á a proteção dada à liberdade de crença no Brasil ao longo de sua história, e da importância daquela ser mantida. Serão expostas, ainda, as técnicas constitucionais pelas quais poderão os dois direitos coabitar, além do entendimento das Cortes de Justiça brasileiras quanto ao assunto. [1]
Palavras-chave: Direito Constitucional. Liberdade de Crença. Direitos Homoafetivos.
Abstract: The present study intends to discuss the crescents confrontations between the freedom of belief and the homoaffective rights, besides of the possibility of this two rights constitutionally guaranteed live together by the analysis of precepts of present Federal Constitution and from the demystification of the concept of homophobia, which invoked by those who consider the discordance to homoaffective sexual practice by “religious people” as a discrimination or a prejudice. It will be approached the protection given to the freedom of belief in Brazil along its history, and the importance of its maintenance. It will be exposed, yet, the constitutional techniques in which both rights can cohabit, besides the understanding of Brazilian Courts of Justice towards that subject.
Keywords: Constitutional Law. Freedom of Belief. Homoaffective rights.
Sumário: Introdução. 1 – A preocupação legislativa para a proteção da liberdade de crença. 2 – O aspecto da homossensualidade nas correntes religiosas. 3 – O aparente conflito normativo constitucional entre a liberdade religiosa e a homossensualidade. 4 – Posicionamento de nossas Cortes sobre o conflito aparente das normas. Conclusão. Referências bibliográficas.
“Uma sociedade sem religião é como um navio sem bússola” (Napoleão Bonaparte)
INTRODUÇÃO
O interesse inicial pela temática em foco deu-se pela visibilidade que têm adquirido as discussões acerca dos direitos concernentes à população que se declara homossexual e a busca dessa parte da sociedade por reconhecimento de direitos, edição de legislação protetiva e realização de políticas públicas que lhes favoreçam; e por outro lado, o confronto que têm causado tais mudanças sociais na crença de milhões de brasileiros, que muitas vezes não concordam com a homossexualidade e, menos ainda, com as tentativas da parcela homoafetiva da sociedade de conquistar direitos iguais aos que já detém a parcela heteroafetiva.
Assim, ao mesmo tempo em que devem ser satisfeitos os direitos aos poucos conquistados da parcela homoafetiva e simpatizante – o mais recente exemplo pode ser a decisão do Supremo Tribunal Federal assegurando a possibilidade de união estável homoafetiva -, outra parte da sociedade brasileira tem se insurgido contra tais vitórias, como fez na chamada “Marcha da Família” em Brasília, que reuniu cerca de 50 mil pessoas, na sua maioria católicos e evangélicos.
Dessarte, o que se pretende é verificar a possibilidade de equilíbrio entre os dois interesses, de modo que a liberdade de crença de milhões de brasileiros não seja sobreposta pela igualdade de direitos defendida pela população homoafetiva, e que as opiniões de ambas as partes convirjam para o fim comum da coexistência pacífica.
Para tanto, foram utilizadas na elaboração do presente trabalho análises bibliográficas e doutrinárias especializadas, bem como a Constituição Federal vigente, sítios virtuais, periódicos e demais materiais que tornaram o trabalho mais robusto e concreto.
Assim, já no primeiro tópico deste artigo tem-se uma explanação acerca da importância da crença religiosa para as sociedades em geral, e de como a nação brasileira se apresenta como uma sociedade predominantemente religiosa, de modo que todas as Cartas Constitucionais brasileiras trouxeram em seu texto a garantia à liberdade de crença, além de fazerem referência a Deus no texto preambular – à exceção das Constituições de 1891 e de 1937.
No segundo tópico, por sua vez, será feita uma simples análise de como as religiões mais presentes no Brasil encaram o fato da homossensualidade, conforme suas crenças e costumes, e de como a discordância da homossexualidade por questões de crença não pode ser considerada homofobia.
O terceiro capítulo adentra no núcleo do trabalho e confronta os dois institutos supramencionados, fazendo alusão ao aparente conflito normativo entre a liberdade de crença e os direitos recentemente adquiridos pela população homoafetiva, expondo a importância de proteção a ambos os direitos em confronto, e do princípio da proporcionalidade – em especial, no âmbito do juízo de ponderação – como balança para buscar o equilíbrio entre eles.
O quarto e último capítulo, por fim, trará o posicionamento das Cortes de Justiça brasileiras acerca do conflito entre os direitos fundamentais de homoafetivos e a liberdade de crença, explorando a atitude dos Tribunais de Justiça do país no tocante ao confronto a tais direitos através da análise de casos concretos.
Assim, encerra-se a reflexão desse tema tão relevante à sociedade e ainda pouco explorado cientificamente – no tocante à liberdade de crença -, na busca de alternativas práticas para a coexistência dos dois direitos constitucionais no dia a dia da sociedade.
1 A PREOCUPAÇÃO LEGISLATIVA PARA A PROTEÇÃO DA LIBERDADE DE CRENÇA
A religião, como elemento formador de opinião e cultura, sempre esteve presente na história do Brasil, sendo evidenciada sua predominância desde a colonização da população indígena pelos padres jesuítas até o culminar numa sociedade predominantemente cristã, sendo a católica a que possui o maior número de fiéis.
Segundo dados recentes do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o povo brasileiro se compõe de 64,6% de católicos, 22,2% de evangélicos, 2% de espíritas e 8% de pessoas sem religião. Isso indica que a população do país se constitui, em um número impressionante de 90%, por pessoas declaradamente religiosas (IBGE, 2010).
Acerca da importância da religião para as pessoas e para a sociedade em geral, importante ressaltar entendimento doutrinário sobre o assunto:
“A religião, como um elemento central da cultura, dá forma e orientação à ação, ao sentimento e ao pensamento do homem. Estabiliza as orientações humanas, seus valôres, suas aspirações e seus ideais do ego. (O’DEA, 1969, p. 163)[…]
A religião é um aspecto central e fundamentalmente importante da cultura, e, como a cultura global, seu conteúdo concreto pode estar em conflito ou em harmonia com situações existentes na sociedade, ou com transformações que nesta ocorrem. Uma consideração da religião como um elemento nuclear da cultura nos auxilia a sumariar a sua significação humana.” (O’DEA,1969, p.158-159)
Desse modo, mostra-se essencial a defesa à liberdade de crença religiosa, apresentando-se esta como uma das liberdades constitucionais elencadas na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso VI: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
Não é nova, porém, a proteção constitucional à liberdade de crença religiosa, estando esta presente no ordenamento jurídico brasileiro desde a primeira Constituição produzida após a independência do Brasil, a Constituição de 1824.
No entanto, não se pode considerar plena a liberdade de crença expressa na Constituição Imperial de 1824, haja vista, apesar de trazer em seu preâmbulo a menção a Deus[2], a mesma nomeia, em seu artigo 5º, a religião católica como a religião oficial do império do Brasil, excluindo às demais religiões a possibilidade de reunião em locais públicos e manifestações exteriores ao seu templo. Às demais religiões ficava restrito o direito de serem praticadas em culto doméstico ou em locais específicos para tal, como adiante se observa:
“Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do imperio. Todas as outras Religiões serão permittidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior de Templo.”
A Constituição de 1891, a chamada “Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil”, primeira constituição após a proclamação da República, por sua vez, não traz mais a menção a Deus em seu preâmbulo, nem tampouco estabelece religião oficial na República do Brasil. Produz, por conseguinte, uma mudança considerável no que tange aos poderes que detinha a Igreja Católica, além de estender a todos os indivíduos o direito de exercer pública e livremente o seu culto[3]. Acerca dessas modificações trazidas pela Constituição de 1891, renomados doutrinados se posicionam, merecendo destaque o entendimento de que:
“O Brasil, nos termos do que já havia sido estabelecido pelo Decreto n. 119-A, de 07.01.1890, constitucionaliza-se como sendo um país leigo, laico ou não confessional. Retiraram-se os efeitos civis do casamento religioso. Os cemitérios, que eram controlados pela Igreja, passaram a ser administrados pela autoridade municipal. Houve proibição do ensino religioso nas escolas públicas. Não se invocou, no preâmbulo da Constituição, a expressão “sob a proteção de Deus” para a sua promulgação” (LENZA, 2008, p. 36).
A Constituição seguinte, promulgada no ano de 1934, fez retornar ao preâmbulo a referência a Deus (“pondo nossa confiança em Deus”), além de manter assegurados a liberdade de consciência e de crença e o livre exercício de cultos religiosos, “desde que não contravenham à ordem pública e aos bons costumes”. Afora isso, adicionou a seu texto duas inovações, quais sejam: (I) possibilidade de aquisição de personalidade jurídica pelas associações religiosas, nos termos da lei civil; e (II) permissão de assistência religiosa nas expedições militares, hospitais, penitenciárias e outros estabelecimentos oficiais, sem ônus para os cofres públicos e sem constrangimento ou coação dos assistidos. Esta assistência religiosa, entretanto, somente poderia ser realizada por sacerdotes brasileiros natos.
Em 1937, o então Presidente da República Getúlio Vargas outorgou uma nova Constituição Federal, influenciado por valores fascistas e autoritários, sob o pretexto de haver um plano comunista com o fim de tomar o poder no país, conforme observamos da doutrina especializada:
“A Carta de 1937 não teve, porém, aplicação regular. Muitos de seus dispositivos permaneceram letra morta. Houve ditadura pura e simples, com todo o Poder Executivo e Legislativo concentrado nas mãos do Presidente da República, que legislava por via de decretos-leis que ele próprio depois aplicava, como órgão do Executivo”. (SILVA, 2011, p. 83)
A Magna Carta brasileira de 1937, quanto à liberdade de crença, manteve as garantias de liberdade religiosa e de culto já conquistadas nas Constituições anteriores – ao menos em teoria -, apesar de ter excluído de seu texto as novidades trazidas pela Constituição Federal de 1934. Importante ressaltar que, do mesmo modo que a Carta Constitucional de 1891, a Constituição de 1937 não fez referência a Deus em seu preâmbulo, sendo estas as duas únicas Cartas Constitucionais que no preâmbulo não há menção ao nome de Deus.
Em 1946, após a destituição de Getúlio Vargas do poder, e “sob a proteção de Deus”, como ressalta seu preâmbulo, foi promulgada a nova Constituição do Brasil. Restituiu, esta, os direitos de assistência religiosa e de possibilidade de aquisição de personalidade jurídica pelas associações religiosas, além de aduzir que:
“Por motivo de convicção religiosa, filosófica ou política, ninguém será privado de nenhum dos seus direitos, salvo se a invocar para se eximir da obrigação, encargo ou serviço impostos pela lei aos brasileiros em geral, ou recusar os que ela estabelecer em substituição daqueles deveres, a fim de atender escusa de consciência” (CF/1946, artigo 141).
Invocando a proteção de Deus, em 1967, a Constituição Federal promulgada neste ano manteve os direitos inerentes à liberdade de crença em seu texto, assim como a vigente Constituição Federal de 1988, no já mencionado art. 5º, nos incisos VI a VIII. Além disso, a atual Carta Magna brasileira faculta às escolas públicas de ensino fundamental o ensino religioso (art. 210, § 1º, CF).
Como se percebeu a partir da breve explanação supra, ao longo da história do Brasil a liberdade de crença sempre foi uma das preocupações do legislador constituinte, de modo que esta se manteve presente em todas as Constituições Federais. Inclusive, acerca do motivo pelo qual se mostra tão importante o resguardo dos direitos concernentes à liberdade de crença, não deixaram de se pronunciar grandes mestres:
“O reconhecimento da liberdade religiosa pela Constituição denota haver o sistema jurídico tomado a religiosidade como um bem em si mesmo, como um valor a ser preservado e fomentado. Afinal, as normas jusfundamentais apontam para valores tidos como capitais para a coletividade, que devem não somente ser conservados e protegidos, como também ser promovidos e estimulados” (MENDES, 2009, p. 463).
Por sua vez, lecionando a respeito da abrangência da liberdade de crença, verifica-se o seguinte posicionamento assaz didático:
“Na liberdade de crença entra a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença, pois aqui também a liberdade de alguém vai até onde não prejudique a liberdade dos outros”. (SILVA, 2011, p. 249)
Desse modo, podemos concluir que a liberdade de crença garantida na Lei Maior brasileira se refere, também, à proteção aos costumes e liturgias de cada religião – desde que não contrariem os bons costumes ou firam algum direito superior -, não podendo qualquer pessoa impedir o livre exercício de qualquer religião, como bem pontifica José Afonso da Silva no trecho supracitado.
Neste momento, portanto, passaremos a analisar a crença das religiões mais comuns no Brasil, no que se refere ao aspecto da homossensualidade, de acordo com seus respectivos costumes, livros sagrados ou convenções de seus líderes.
2 O ASPECTO DA HOMOSSENSUALIDADE NAS CORRENTES RELIGIOSAS
A homossensualidade foi considerada de formas diversas pelas religiões do mundo ao longo dos anos. Entretanto, compete-nos, nesse momento, apresentar apenas o entendimento das religiões mais comumente encontradas no Brasil, e abrangidas, portanto, pela liberdade de crença religiosa garantida na Constituição Federal.
Em primeiro lugar, temos que o Cristianismo, de maneira geral, trata da homossensualidade como pecado, e condena sua prática. Em inúmeras passagens da Bíblia – e não somente no Velho Testamento, como afirmam alguns defensores de movimentos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) -, há recomendações acerca da proibição de práticas sexuais e sensuais entre pessoas do mesmo sexo, senão vejamos as mais citadas:
“Se um homem se deitar com outro homem como quem se deita com uma mulher, ambos praticaram um ato repugnante. Terão que ser executados, pois merecem a morte.” (Levítico 20:13)
“Trocaram a verdade de Deus pela mentira, e adoraram e serviram a coisas e seres criados, em lugar do Criador, que é bendito para sempre. Amém. Por causa disso Deus os entregou a paixões vergonhosas. Até suas mulheres trocaram suas relações sexuais naturais por outras, contrárias à natureza. Da mesma forma, os homens também abandonaram as relações naturais com as mulheres e se inflamaram de paixão uns pelos outros. Começaram a cometer atos indecentes, homens com homens, e receberam em si mesmos o castigo merecido pela sua perversão.” (Romanos 1:25-27)
“Vocês não sabem que os perversos não herdarão o Reino de Deus? Não se deixem enganar: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem homossexuais passivos ou ativos, nem ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdarão o Reino de Deus”. (1 Coríntios 6:9-10)
Além das advertências bíblicas, a Igreja Católica fez recomendações próprias no Catecismo, em seu artigo 6, denominado “O sexto mandamento”, no qual afirma o seguinte acerca da homossexualidade:
“A homossexualidade designa as relações entre homens e mulheres que sentem atração sexual, exclusiva ou predominante, por pessoas do mesmo sexo. A homossexualidade se reveste de formas muito variáveis ao longo dos séculos e das culturas. Sua gênese psíquica continua amplamente inexplicada. Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves, a tradição sempre declarou que "os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados". São contrários à lei natural. Fecham o ato sexual ao dom da vida. Não procedem de uma complementaridade afetiva e sexual verdadeira. Em caso algum podem ser aprovados” (verso 2357 – p. 531).
Por outro lado, a homossensualidade não é negligenciada e as pessoas denominadas “homossexuais” não são banidas pela Igreja Católica; não sendo incentivada sua discriminação. Ao contrário, é aconselhado que sejam tratadas com “respeito, compaixão e delicadeza”, ainda conforme as exortações do Catecismo:
“Um número não negligenciável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente enraizadas. Esta inclinação objetivamente desordenada constitui, para a maioria, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á para com eles todo sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar a vontade de Deus em sua vida e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar por causa de sua condição. As pessoas homossexuais são chamadas à castidade. Pelas virtudes de autodomínio, educadoras da liberdade interior, às vezes pelo apoio de uma amizade desinteressada, pela oração e pela graça sacramental, podem e devem se aproximar, gradual e resolutamente, da perfeição cristã.”
O Protestantismo, outra corrente do Cristianismo, julga de forma semelhante ao Catolicismo, de modo que, apesar de não ter uma liderança central que abranja todas as suas igrejas como faz o Vaticano, de modo geral, interpreta a Bíblia de modo a reprovar a prática homossensual.
Assim como se baseiam o Catolicismo e o Protestantismo na retrocitada passagem bíblica presente em Levítico 20:13 para condenar a homossensualidade, da mesma forma também faziam os judeus. No entanto, com o passar dos anos e devido à ramificação do Judaísmo em grupos de pensamento diverso, o entendimento adotado pelos judeus passou a ser determinado pela corrente da qual faziam parte. Desse modo, convém que sejam mencionadas a seguir as principais correntes em que se dividem os judeus e a sua particular opinião acerca da homossexualidade.
Em primeiro lugar há o Judaísmo Ortodoxo, que é considerado a vertente mais conservadora do Judaísmo. Os judeus ortodoxos rejeitam a possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo ser comparado ao casamento entre homem e mulher, e sustenta que “éticas hedonistas” não poderiam justificar a homossexualidade como algo moral. Em outras palavras, segundo o judaísmo ortodoxo, ainda que práticas homossexuais satisfaçam prazeres humanos e levem algumas pessoas à felicidade, não devem ser consideradas como “morais”. Dessa forma, traduzindo o entendimento dos judeus ortodoxos acerca da homossensualidade, o Rabino Immanuel Jakobovits aduz o seguinte:
“Jewish law, then, rejected the view that homosexuality was to be regarded merely as a disease or as morally neutral, categorically rejecting the view that homosexual acts "between two consenting adults" were to be judged by the same criterion as heterosexual marriage – that is, whether they were intended to foster a permanent relation of love. Jewish law holds that no hedonistic ethic, even if called "love," can justify the morality of homosexuality any more than it can legitimize adultery or incest, however genuinely such acts may be performed out of love and by mutual consent”[4] [5].
A segunda corrente judaica a ser exposta é o judaísmo conservador, também conhecido como judaísmo Masorti. A compreensão dessa divisão do judaísmo acerca da homossensualidade foi expressa pela Comissão da Lei e Padrões Judaicos (em inglês, Committee on Jewish Law and Standards – CJLS), que em março de 2011, através de decisão em Assembleia, reafirmou princípios declarados anteriormente em 1990 e declarou que a comunidade judaica deveria promover a inclusão de judeus gays e lésbicas nas congregações judaicas e combater a discriminação, promovendo um ambiente receptivo aos judeus homossexuais[6].
O judaísmo reformista, vertente predominante na América do Norte, entende a homossensualidade de maneira mais liberal, se comparada às correntes anteriormente citadas. Desde 1977 defende o fim da discriminação de gays e lésbicas, e já no ano de 1990 passou a admitir rabinos de qualquer orientação sexual. Em março de 2000, nessa esteira, a CCAR (Central Conference of American Rabbis) emitiu uma resolução[7] acerca da realização da cerimônia de casamento entre pessoas do mesmo sexo através de rituais judaicos, na qual afirmou que tal solenidade poderia ser realizada livremente por aqueles que concordassem com a mesma; da mesma forma que eximiu da obrigação de realizar a cerimônia aqueles que com a qual não estivessem de acordo.
Por fim, há o Judaísmo reconstrucionista, que, assim como o reformista, apresenta uma visão diferente das demais correntes judaicas no que tange ao homossexualismo. Desde a sua criação, em 1974, a Reconstructionist Rabbinical Association permitiu a presença de quaisquer membros, independente de sua orientação sexual. Já em 1984, ou seja, dez anos depois, autorizou a ordenação de rabinos gays e lésbicas. Recentemente, em março de 2004, emitiu uma resolução[8] em que apoia o reconhecimento civil do casamento entre pessoas do mesmo sexo, requerendo, inclusive, que fossem estendidos aos casais homoafetivos os direitos já garantidos para os casais heteroafetivos.
Alargando estudos na análise do entendimento das diversas religiões acerca da homossensualidade, convém, portanto, que seja citado o que a doutrina do Espiritismo dispõe sobre o assunto. De acordo com Allan Kardec em “O livro dos Espíritos”, os espíritos não têm sexo, podendo o mesmo espírito animar homens e mulheres. Afirma também que os espíritos enfrentarão as dificuldades de ser homem ou mulher, a depender do sexo da pessoa na qual encarnar (KARDEC, 1998).
Desse modo, entendem alguns doutrinadores espíritas que a preferência de um espírito por um ou outro sexo pode demonstrar o seu desequilíbrio, tendo a homossexualidade uma “conotação patológica”, segundo Jorge Andréas na obra intitulada “Forças Sexuais da Alma”. Aconselha o autor, ainda, aos que têm inclinações homossexuais, o que chama de castidade construtiva, “a fim de encontrar a harmonia para as futuras formações corpóreas que as reencarnações podem propiciar”. (ANDRÉAS, 1987)
Nesse ínterim, advertem os espíritas que sejam respeitados e tratados com dignidade os homossexuais, de modo que sejam acompanhados e auxiliados na caminhada em direção ao equilíbrio espiritual[9].
O Islamismo, por sua vez, apesar de não ter tantos adeptos no Brasil quanto as religiões anteriormente citadas, também deve ser mencionado. Em seu livro sagrado, o Alcorão, há pelo menos duas condenações à prática da sodomia, como a seguir demonstrado:
“Dentre as criaturas, achais de vos acercar dos varões, deixando de lado o que vosso Senhor criou para vós, para serem vossas esposas? Em verdade, sois um povo depravado!” (Alcorão – “Os Poetas”, 26a:165-166)
“E (enviamos) Lot, que disse ao seu povo: Cometeis abominação como ninguém no mundo jamais cometeu antes de vós, Acercando-vos licenciosamente dos homens, em vez das mulheres. Realmente, sois um povo transgressor”. (Alcorão – “Os Cimos”, 7ª, 80-81)
Além disso, em determinados países islâmicos há a utilização da Sharia, lei muçulmana que determina a pena de morte de apedrejamento para pessoas que cometerem atos sexuais ilícitos, quais sejam, adultério – condenação tanto homens quanto mulheres – e relações homossexuais. Ou seja, por mais que no Alcorão não haja menção ao apedrejamento, a Sharia é seguida de forma literal por alguns países, como o Irã[10], o Sudão e a Nigéria[11][12].
Por último, convém que seja mencionado, também, o entendimento das Religiões Africanas acerca do homossexualismo, haja vista estarem aquelas bastante presentes no Brasil desde a sua colonização e até os dias atuais. E, quanto a religiões africanas, pretendemos tratar de uma forma geral o candomblé, a umbanda e tantas outras vertentes de religiões africanas, cada qual com suas peculiaridades.
As religiões africanas, como um todo, são notoriamente conhecidas pela presença frequente de homossexuais em seus cultos, de modo que para as mesmas não há empecilho para a filiação de membros homoafetivos (SANTOS, 2008 / GUIMARÃES, 2011).
Assim, segundo a minuciosa análise efetuada, não é difícil perceber que a maioria das religiões presentes no país não aprova a homossensualidade como ato normal; cada uma, conforme os seus dogmas, condena o homossexualismo de alguma forma.
3 O APARENTE CONFLITO NORMATIVO CONSTITUCIONAL ENTRE A LIBERDADE RELIGIOSA E A HOMOSSENSUALIDADE
Neste momento, convém que seja tratada a questão do conflito constitucional entre a liberdade de crença e os direitos reclamados pela população homoafetiva e seus simpatizantes.
Baseiam suas reivindicações, os homoafetivos, no princípio da dignidade da pessoa humana – que se constitui como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CF/88, Art.1) -, no direito à não-discriminação – que, por sua vez, é um dos objetivos fundamentais brasileiros, os quais expostos no inciso IV do artigo 3º da Constituição Federal -, e nos direitos à liberdade e igualdade elencados no artigo 5º da Magna Carta brasileira.
A liberdade de crença também encontra respaldo no artigo 5º da Constituição brasileira, nos incisos VI a VIII, sendo, como as demais espécies de liberdades constitucionais, inerente à pessoa humana, apresentando-se como condição da individualidade do homem:
“A liberdade, como núcleo dos direitos humanos fundamentais, não é apenas negativa, ou seja, liberdade de fazer o que a lei não proíbe nem obriga, mas liberdade positiva, que consiste na remoção dos impedimentos (econômicos, sociais e políticos) que possam obstruir a auto-realização da personalidade humana, o que implica na obrigação, pelo Estado, de assegurar os direitos sociais através de prestações positivas com vistas a proporcionar as bases materiais para a efetivação daqueles direitos.” (CARVALHO, 2006, p. 512)
Tanto os direitos que fundamentam as reivindicações homoafetivas quanto a liberdade de crença se apresentam como direitos fundamentais, os quais conceituados da seguinte maneira por José Afonso da Silva:
“[…] a conceituação que se recolhe em José Afonso da Silva, para quem os direitos fundamentais designam, “no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que o [ordenamento jurídico] concretiza em garantia de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive”. (SILVA apud CARVALHO, 2006, p. 512)
Além de serem classificados como direitos fundamentais, os direitos em tela são subclassificados como direitos fundamentais de primeira geração, conforme mais balizada doutrina:
“Os direitos da primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.” (BONAVIDES, 2010, p. 563-564)
Desse modo, por serem ambos direitos fundamentais, um não pode se sobrepor ao outro, de modo a excluí-lo, como acontece no caso em que uma norma maior revoga uma de menor hierarquia quando as duas são discrepantes. O que fazer, então, quando os dois direitos colidirem, já que não há possibilidade de revogação de um dos dois?
Tal colisão, apesar de já existir na sociedade brasileira – ainda mais nos últimos anos, quando se intensificou a luta por direitos de pessoas autodenominadas de homossexuais ou homoafetivas -, tem tomado maiores proporções. E uma das causas desencadeadoras disso é a tramitação, no Congresso Nacional, dos Projetos de Lei nº 5.003/01 e 122/06, que visa criminalizar a prática da homofobia e criar o Estatuto da Diversidade Sexual, respectivamente.
No texto do citado Estatuto, por exemplo, há a previsão da pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos se constatada a prática de condutas discriminatórias ou preconceituosas em razão da orientação sexual ou da identidade de gênero[13]. Em primeiro lugar, apenas a título de discussão, há de se constatar que a pena arbitrada é bastante alta se considerado o bem jurídico tutelado, sendo a mesma pena da aplicada no crime de sequestro e cárcere privado qualificado – enquanto que a pena aplicada no crime de injúria, quando praticado com a utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, que poderia ser considerado equivalente ao de homofobia, é de apenas de 1 (um) a 3 (três) anos.
Em seguida, questiona-se: se por motivos de convicção religiosa ou no exercício de sua liberdade de crença alguém exprimir sua opinião contra a homossexualidade? Seria esta pessoa condenada à pena de 2 a 5 anos de reclusão e destinada a umas das superlotadas penitenciárias brasileiras? Onde ficaria a liberdade de crença, desse modo, sendo tanto esta quanto o direito à não-discriminação direitos fundamentais?
Além disso, muito se questiona acerca da hipótese de um líder religioso apregoar a natureza pecaminosa da homossensualidade ante seus fiéis e tal ato ser considerado homofobia. Segundo a Constituição Federal, ao Estado é vedado o embaraço a cultos religiosos[14]; então, como lidar com tal texto que pretende transformar-se em disposição legal?
Em primeiro lugar, compete que seja feita, no presente momento, uma diferenciação entre um termo comumente utilizado pelos defensores dos direitos de homoafetivos, qual seja, a tão falada homofobia, e a discordância por motivo de crença.
Segundo o dicionário Aurélio (2009, p. 1054), homofobia pode ser traduzida como “Aversão a homossexuais e ao homossexualismo”, trazendo sempre consigo, esse termo, uma conotação discriminatória, preconceituosa e/ou violenta. Não se deve confundir, portanto, homofobia com a discordância à prática homossexual declarada pela população considerada religiosa.
A discordância à homossexualidade declarada por membros de religiões que não aceitam tal prática deriva-se de determinações dadas por seus respectivos livros sagrados (como é o caso do cristianismo em geral, do islamismo e do judaísmo), ou por considerações de líderes e outros doutrinadores religiosos (o que acontece no espiritismo, por exemplo), e não por instintos preconceituosos ou discriminatórios.
Em algumas dessas religiões, como já se demonstrado anteriormente, há, inclusive, o incentivo ao acolhimento de homoafetivos com amor e respeito. No caso dos cristãos, por exemplo, há a conhecida determinação de Jesus a seus seguidores: que amem a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmos – e incluídas como “próximos” devem estar, também, pessoas de diferente orientação sexual. Não se vê, ao menos de modo geral, incentivo à violência contra qualquer pessoa por motivos de orientação sexual.
Desse modo, retornando à discussão acerca do tratamento que deve ser dado pelo Direito no caso em tela, sabe-se que não pode haver revogação de um direito fundamental em favor de outro, mas, em contrapartida, sabe-se, igualmente, que nenhum direito fundamental é absoluto.
“Os direitos e garantias fundamentais, em regra, são relativos, e não absolutos. Esse é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Embasado no princípio da convivência entre liberdades, a Corte concluiu que nenhuma prerrogativa pode ser exercida de modo danoso à ordem pública e aos direitos e garantias fundamentais, as quais sofrem limitações de ordem ético-jurídica. Essas limitações visam, de um lado, tutelar a integridade do interesse social e, de outro, assegurar a convivência harmônica das liberdades, para que não haja colisões ou atritos entre elas. Evita-se, assim, que um direito ou garantia seja exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros” (BULOS, 2009, 434).
Assim, havendo um conflito aparente entre os dois direitos, o que deve ser feito, do ponto de vista do Direito, é uma ponderação dos direitos fundamentais em questão, de modo a ser identificado qual dos dois prevalecerá no caso concreto.
Ainda de acordo as lições de BULOS, “O magistrado deve harmonizar esses bens em disputa, promovendo a concordância prática entre eles. Se isso não for viável, resta-lhe eleger qual interesse deve prevalecer”. Ao considerar qual dos direitos fundamentais deve sobressair, o magistrado deve verificar qual deles resolveria da melhor forma a controvérsia, com o menor sacrifício possível do outro direito. Com o escopo de corroborar o entendimento trazido:
“O juízo de ponderação a ser exercido liga-se ao princípio da proporcionalidade, que exige que o sacrifício de um direito seja útil para a solução do problema, que não haja outro meio menos danoso para atingir o resultado desejado e que seja proporcional em sentido estrito, isto é, que o ônus imposto ao sacrificado não sobreleve o benefício que se pretende obter com a solução. Devem-se comprimir no menor grau possível os direitos em causa, preservando-se a sua essência, o seu núcleo essencial” […].(MENDES, 2009, p. 319):
Aplicando, portanto, a tese jurídica ao caso concreto ora ventilado, depreende-se que, no tocante ao aparente conflito existente entre a liberdade de crença e os direitos à igualdade e à não-discriminação, ambos direitos fundamentais da República Federativa do Brasil, deve ser feita uma ponderação dos direitos em questão, considerando-se o seguinte questionamento: Qual direito que mais urgentemente deve ser protegido, de modo que, se mitigado, ocasionaria maior sofrimento ao grupo preterido, afetando mais intensamente a vida da sociedade brasileira em geral?
Em contemplação ao caso concreto, analisaremos, a título de exemplo, qual direito deveria ser tutelado no que tange ao reconhecimento da união estável homoafetiva e à criminalização da homofobia.
No que tange ao reconhecimento da união estável homoafetiva, em primeiro lugar, nos propomos a ponderar qual direito deveria ter sido protegido.
Sabe-se que, faticamente, a união estável homoafetiva há muito já existia. Entretanto, por não haver lei específica que autorizasse que os benefícios concedidos a companheiros heterossexuais fossem estendidos aos homoafetivos, os Tribunais de Justiça, por muitas vezes, não procediam de modo a beneficiar companheiros homoafetivos, seja em causas envolvendo direito previdenciário[15], direito de família ou direito sucessório.
Portanto, o mais sábio a ser feito foi reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo, de modo a garantir a casais homoafetivos que conviviam em união estável direitos relativos a seu status de companheiro/convivente. Pouco foi sacrificada a liberdade de crença nesse aspecto, haja vista ter causado, o reconhecimento da união estável homoafetiva, apenas a declaração da existência de direitos decorrentes da situação fática de convivência.
Quanto à criminalização da homofobia, sabe-se que é um assunto delicado, haja vista a violência contra homossexuais ter se mostrado como um novo mal a ser combatido na sociedade brasileira[16]. No entanto, o que se percebe após breve análise aos Projetos de Lei 5.003/01 e 122/06, é que os mesmos foram produzidos de maneira bastante parcial, sem que houvesse antes um maior estudo acerca do impacto que os mesmos poderiam causar na população – impacto que já vêm causado, sem nem ao menos terem sido aprovados no Congresso Nacional.
Assim, ao invés de investir aos poucos na mudança da mentalidade da maioria dos brasileiros, que, devido à sua tradição religiosa de muito tempo, ainda não conseguiu se acostumar com a homossensualidade, o Poder Legislativo brasileiro resolveu produzir uma lei extremamente abstrata – já que, por conter hipóteses de enquadramento no tipo penal muito amplas, mostra-se passível de diversas interpretações -, visando criminalizar qualquer ato discriminatório ou preconceituoso. Indubitável é o efeito devastador que tal lei, se aprovada, provocará; violando não apenas o direito à liberdade de crença dos indivíduos.
Dessarte, o melhor a ser feito no presente caso é realmente ponderar os direitos em questão, verificando, no caso concreto, qual deles, se sacrificado, acarretará menos prejuízos às pessoas titulares do direito preterido e à sociedade em geral. Sempre pontuando, entretanto, que nenhum dos direitos fundamentais pode ser completamente subjugado, devendo, com a aplicação da devida hermenêutica, buscarmos uma maneira de equilíbrio normativo.
4 POSICIONAMENTO DE NOSSAS CORTES SOBRE O CONFLITO APARENTE DAS NORMAS
Nesse ínterim, já tendo sido discutido o entendimento doutrinário acerca do procedimento que deve ser realizado quando existir um aparente conflito entre direitos fundamentais, compete, por fim, que também se discuta o entendimento dos Egrégios Tribunais brasileiros no que tange a essa questão.
É cediço pontuar, antes de tudo, que ainda não se tornou tão comum haver discussões judiciais em torno da problemática da liberdade de crença quando confrontada com os direitos recém-adquiridos dos homoafetivos. No entanto, conseguimos encontrar alguns julgados interessantes, os quais valem a pena serem colacionados abaixo. Far-se-á a análise dos mesmos, então, nos termos da retromencionada ponderação dos direitos fundamentais.
Em primeiro lugar analisaremos a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul nos autos de Ação Civil Pública em que se requer a condenação em dano moral coletivo de um autor literário acusado de instigar e encorajar a homofobia; o qual publicou um livro que se intitula “A maldição de Deus sobre o homossexual: O homossexual precisa conhecer a maldição divina que está sobre ele!”. Segue abaixo a ementa do citado processo:
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO MORAL COLETIVO. INEXISTÊNCIA. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE CONVICÇÃO RELIGIOSA. RECURSO PROVIDO PARCIALMENTE. A Constituição Federal é expressa ao garantir ao indivíduo a liberdade de expressão e de convicção religiosa, de sorte que, o inconformismo e a intolerância de parte da população com as ideias do autor do livro não podem gerar, por si só, o dano à moral de um grupo de pessoas” (TJMS – AC 6422 MS 2009.006422-1- 5ª Turma Cível – Relator: Des. Vladimir Abreu da Silva. DJU: 25/02/2010)[17].
No caso em tela, como já mencionado, o réu foi acusado pela Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul de escrever um livro discriminatório e preconceituoso, que incitaria, inclusive, a prática da homofobia. O autor do livro se utilizou de trechos da Bíblia para justificar suas afirmações contra a homoafetividade, fazendo, também, comentários próprios acerca do assunto. Afirmou, em sua defesa, que o livro havia sido escrito no exercício de sua liberdade de crença e de opinião.
O juízo de 1º grau concedeu os danos morais coletivos em desfavor do réu, condenando o mesmo à apreensão dos exemplares que ainda não tinham sido vendidos e à proibição de nova publicação do livro, e de trechos ou partes de seu conteúdo. Por sua vez, o Desembargador Relator afastou a condenação em danos morais coletivos, considerando que “não se pode impingir uma condenação em danos morais coletivos por ter o apelante expressado suas convicções e pelo simples fato de parte da população não concordar com suas ideias”. Manteve nos demais termos, no entanto, a condenação.
O que se atesta na lide é a presença de um problema que poderá ser comumente enfrentado por grande parte da população religiosa brasileira, qual seja: a alegação de homofobia em face de seus posicionamentos desfavoráveis acerca da homoafetividade. Não compete a este artigo se aprofundar nos termos em que foi escrito o livro em questão, porém, a possibilidade de condenação do réu em danos morais coletivos nos faz retomar um questionamento feito neste trabalho noutro momento: se a lei que tipifica a homofobia como crime já tivesse sido aprovada no Congresso Nacional, seria possível que o réu do processo em epígrafe fosse processado e condenado à pena de reclusão de 2 a 5 anos, a qual correspondente ao crime de homofobia?
Segundo as palavras da Comissão de Direitos Humanos “Ricardo Brandão”, da Ordem dos Advogados do Brasil, a qual citada no acórdão em discussão:
“Numa Sociedade Democrática de Direito (como é a nossa), deve ocorrer o equilíbrio dos direitos civis. Se os homossexuais têm o direito de criticar (ou até mesmo de processar judicialmente) os heterossexuais por seus excessos e por suas palavras, estes também têm o direito de expor suas opiniões e ter suas livres expressões de pensamento respeitadas por todos, indistintamente. Não se deve "amordaçar" uma maioria que defende suas convicções, em benefício de uma minoria que também defende as suas (mesmo que sejam equivocadas).”
Segue, assim, outra indagação, que é a seguinte: até que ponto se estende a liberdade de crença de um indivíduo e se inicia o direito homoafetivo de ser recompensado por dano moral ou ver condenado um indivíduo por homofobia?
A resposta desse questionamento nos fará retornar ao método da ponderação, já mencionado no capítulo anterior. O aplicador da norma – no caso, o juiz – deverá exercer seu juízo de razoabilidade, e, através do princípio da proporcionalidade e do método da ponderação, estabelecer os limites de cada direito fundamental. Transcrevemos doutrina sobre o assunto:
“No conflito entre princípios, deve-se buscar a conciliação entre eles, uma aplicação de cada qual em extensões variadas, segundo a respectiva relevância no caso concreto, sem que se tenha um dos princípios como excluído do ordenamento jurídico por irremediável contradição com o outro” (MENDES, 2009, p. 318).
Por ser o juízo de ponderação utilizado em casos concretos apenas, de acordo com as especificidades de cada um, não pode o mesmo ser realizado em casos abstratos. Assim, retornando ao caso concreto em discussão, percebe-se que o juízo de 1º grau, ao fazer uso do juízo de ponderação, considerou mais importante os direitos à honra, à vida privada, à busca da felicidade e à igualdade de um grupo de pessoas do que as liberdades de crença e de expressão e o direito à informação postulados pelo autor do livro.
O Desembargador Relator do processo, por sua vez, descartou a possibilidade de ter sido agredida a população homoafetiva, afastando a configuração de dano moral coletivo. Com tal decisão, o magistrado considerou que o réu estava no pleno exercício de sua liberdade de crença, expondo opiniões derivadas de sua crença religiosa, e não de uma atitude homofóbica e preconceituosa contra os homossexuais.
Desse modo, no confronto entre o possível dano moral coletivo e a liberdade de crença do indivíduo, prevaleceu a liberdade de crença. No entanto, sua liberdade de crença permaneceu mitigada, haja vista perdurarem a apreensão dos exemplares do livro e a proibição de novas edições do livro ou de reprodução de trechos seus. Logo, nenhum dos direitos fundamentais foi absolutamente excluído ou “revogado” por seu oponente; sendo apenas mitigados em alguns aspectos para que pudessem, ambos, conviver.
Outra decisão dos tribunais convém ser discutida. Trata-se de Ação de Indenização por Danos Morais[18] julgada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará, em que o autor afirma ter sofrido danos morais por tê-lo impedido um padre, réu no processo, de ser padrinho de uma criança em razão de sua opção sexual.
No caso concreto em questão, tanto o magistrado do 1º grau de jurisdição quanto o do 2º grau consideraram como latente o dano moral arguido pela parte autora. Em seguida se transcreve a ementa do processo:
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. HOMOFOBIA. DANO MORAL CONFIGURADO. SENTENÇA MONOCRÁTICA MANTIDA. I – Ao reputar irretocável a r. sentença monocrática, deve a mesma ser confirmada pelo Tribunal de Justiça, pelos seus próprios e jurídicos fundamentos, haja vista que o magistrado a quo, bem analisou exaustivamente as provas acostadas, aplicando o direito ao caso sub-judice. II – A unanimidade de votos recurso de apelação conhecido e improvido, nos termos do voto do Relator. TJPA – AC 200830075352 PA 2008300-75352 – 1ª Câmara Cível Isolada – Relator: Des. Leonardo de Noronha Tavares. DJU: 25/05/2009.”
Neste processo, os direitos fundamentais foram ponderados de maneira completamente diversa do caso concreto analisado anteriormente. Dessa vez, os direitos fundamentais relativos à honra, à imagem e à vida privada do autor homossexual prevaleceram sobre as alegações de exercício da liberdade de crença do réu, que é padre.
Relatam os autos que o réu não permitiu que o autor fosse padrinho de uma criança, sob as alegações de que “gay não serve para ser padrinho” e que na sua igreja o autor do processo jamais seria padrinho de qualquer criança. Em sua defesa, o requerido afirmou que o autor era “pai de santo”, motivo real pelo qual o mesmo não poderia exercer a função de padrinho na Igreja Católica. Alegou também, que, se permitisse o exercício da função pelo ofendido, estaria transgredindo o Código Canônico. Não convencidos pelos argumentos do réu, o juiz de 1º grau e o Desembargador Relator declararam existentes os danos morais pleiteados.
Nos presentes autos, comprova-se a afirmação de que o juízo de ponderação se modifica conforme se modifica o caso concreto. Assim, o que seria um simples exemplo de confronto entre direitos de homoafetivos e liberdade de crença, adquiriu diferente interpretação por ter sido alterado, também, o caso concreto.
O Desembargador Relator deixa evidenciada no acórdão a prevalência dos direitos à honra, à imagem e à vida privada sobre a liberdade de crença mediante a qual agiu o padre, ora réu no processo. Defende seu posicionamento no trecho do acórdão que se vê adiante:
“Portanto, mesmo que religiões tenham juízos de valor teológicos, considerando "pecado", não podem propagar a discriminação, o preconceito ou inverdades científicas, vez que nenhuma pessoa ou instituição nacional, está acima da Constituição e do ordenamento legal do Brasil, que veda qualquer tipo de discriminação ou preconceito.”
Considerou-se, nesse caso, portanto, que, apesar de ter agido segundo as convicções inerentes à sua liberdade de crença, as atitudes do padre foram essencialmente discriminatórias e preconceituosas, motivo pelo qual prevaleceu o direito do autor à compensação por danos morais.
Dessarte, à luz dos casos concretos ora colacionados, percebe-se que o posicionamento dos Tribunais brasileiros acerca do conflito entre os direitos fundamentais em que se baseiam os homoafetivos e o direito fundamental de liberdade de crença não é pacífico – e nem o poderia ser, haja vista se adequar o juízo de ponderação ao caso concreto -, de modo que deve ser analisado o conflito em suas peculiaridades.
Assim, como anteriormente exposto, nenhum dos direitos fundamentais será completamente exterminado; haverá sempre uma mitigação de ambos – mais de um do que de outro, na maioria das vezes -, de modo que possam conviver.
Além disso, deve-se enfatizar que deve haver a consciência, tanto de uma parte quanto de outra do conflito, que, da mesma forma que seus direitos fundamentais devem ser postos em prática e não transgredidos, da mesma forma os direitos da parte adversária. Todos são detentores de direitos, mas, para que possam conviver em harmonia, devem manter o respeito pelo direito dos outros, mesmo que estes pareçam incabíveis ou não importantes.
CONCLUSÃO
Diante de toda a construção retrodesenvolvida, restou evidenciada a importância que têm tanto a liberdade de crença – que se mostrou um direito fundamental protegido no Brasil desde a sua primeira Constituição e que têm agregado mais direitos ao longo dos anos – quanto os direitos à igualdade, à busca da felicidade, à vida privada e à honra conseguidos recentemente pela população homoafetiva brasileira.
No entanto, são, muitas vezes, direitos conflitantes, haja vista as religiões mais comuns no Brasil não aceitarem a homoafetividade com normalidade, tratando a mesma como pecado ou desordem patológica; ao mesmo tempo em que são, um e outro, direitos fundamentais, de modo que um não pode ser excluído em favor do outro.
Assim, devido à intolerância de ambas as partes envolvidas no conflito, não é incomum que uma das partes ultrapasse o limite do seu direito e fira o direito da outra. Por esse motivo, quando essa disputa de direitos adentrar a esfera judicial, caberá ao magistrado competente utilizar-se do juízo de ponderação, a fim de que se analise, a partir das peculiaridades do caso concreto, qual dos direitos deve sobressair em face do outro, e até onde iria a liberdade de crença do indivíduo e começaria o direito à igualdade, dignidade, vida privada e busca da felicidade do outro sujeito.
É necessário, portanto, que haja tal mentalidade em ambas as parcelas da população, tanto a religiosa quanto a homoafetiva, que, como diz um famoso ditado popular, “o seu direito termina quando começa o do outro”.
Sabemos, no entanto, que tal processo para a convivência harmoniosa desses direitos fundamentais não está sendo fácil e continuará a produzir muitas controvérsias. Assim, finalizamos com uma realista constatação, esperando que um dia essa realidade se modifique e direitos de homoafetivos e a liberdade de crença possam juntos conviver.
“Erram os religiosos ao querer impedir a união civil homossexual, calcando-se em suas crenças, as quais, evidentemente, não podem ser impostas à força. Mas erra também o movimento gay em querer enfiar goela abaixo da sociedade seus postulados particulares. Vivemos uma era de homofobia e teofobia, uma época de grupos discutindo não a liberdade, mas quem terá o privilégio de exercer a tirania. Negar o direito dos gays é tirania dos religiosos. De modo idêntico, impor sua opinião aos religiosos, ou calá-los, ou segregá-los nas igrejas como se fossem guetos é tirania do movimento gay.” (Douglas, 2011)
Acadêmica de Direito do Centro Universitário do Rio Grande do Norte
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