O contraditório substancial e a atuação do juiz: Uma nova leitura dos artigos 462 e 131 do Código de Processo Civil

I  – INTRODUÇÃO


O presente artigo analisa o princípio constitucional do contraditório, em suas facetas formal e substancial, procurando apontar, a partir da análise de normas processuais européias, o adequado alcance do princípio no Estado Democrático de Direito.e uma releitura do conteúdo dos artigos 131 e 461 do Código de Processo Civil.


Com efeito, um dos grandes questionamentos da doutrina processual atual é precisar os limites do agir de ofício do juiz, diante a necessidade de observância do contraditório em sua faceta substancial.


Procurando responder ao questionamento relativo aos limites da atuação do juiz frente ao princípio do contraditório, o artigo divide-se em três partes.   Na primeira, procede-se à   análise do princípio do contraditório, em suas facetas substancial e formal.   Na segunda, cuida-se dos artigos 131 e 462 do Código de Processo Civil.   Na terceira, analisa-se a legislação estrangeira sobre o tema e, finalmente, na quarta, expõeexpõem-se as conclusões finais sobre o assunto.


II – O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO EM SUAS FACETAS FORMAL E SUBSTANCIAL


Tradicionalmente, a visão de contraditório no direito brasileiro implica a aplicação do brocardo romano   audiatur et altera pars.   Trata-se da audiência bilateral das partes, de forma obrigatória, em qualquer momento processual.   Nesse sentido, a doutrina tradicional, como a lição de Ada Pelegrini Grinover, Antônio Cintra e Cândido Rangel Dinamarco:   “ o juiz, pro força de seu dever de imparcialidade, coloca-se entre as partes, mas eqüidistantes delas: ouvindo uma, não pode deixar de ouvir a outra somente assim se dará a ambas a possibilidade de expor suas razões, de apresentar suas provas, de influir sobre o convencimento do juiz. Somente a soma da parcialidade das partes (uma representando a tese e a outra a antítese) o juiz pode corporificar a síntese, em um processo dialético” (CINTRA; DINAMARCO, GRINOVER, 1999, p. 55).


Contudo, essa faceta básica do princípio contraditório não é a única.   Com efeito, Fredie Didier indica que essa é a faceta formal do princípio do contraditório. Assim, além dela, há que se referir à faceta material.   Essa consiste na possibilidade de a parte efetivamente influenciar na decisão do juiz, ou seja, sempre que o juiz resolver conhecer de ofício de um determinado ponto, de direito ou de fato, deverá possibilitar que as partes sobre esse ponto se manifeste, antes de proferir a sua decisão.


Cuida-se de pensamento que cada vez mais vem tendo o apoio da doutrina processual pátria. Nessaa esteira desse pensamento, , asassim se manifesta José Roberto Bedaque:


“A liberdade conferida ao julgador, quanto à identificação da norma jurídica aplicável, também deve compatibilizar-se, todavia, com o princípio do contraditório.    Não podem as partes ser surpreendidas com a incidência de regra não cogitada, especialmente se as conseqüências forem diversas daquelas submetidas à discussão” (BEDAQUE, 2002, p.38)


Consoante se verifica, o autor se orienta no sentido de entender que a garantia do contraditório não se encontra completa tão somente com a audiência bilateral das partes, sendo necessário, dessa forma a efetiva possibilidade de influenciar no julgamento da causa, através da possibilidade de manifestação integral sobre os elementos de convicção do julgador.


Também nesse sentido a lição de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira:


“ Dentro dessas coordenadas, o conteúdo mínimo do princípio do contraditório não se esgota na ciência bilateral dos atos do processo e na possibilidade de contraditá-los, mas faz também depender a própria formação dos provimentos judiciais da efetiva participação das partes. Para isso, para que seja atendido esse mínimo, insta a que cada uma das partes conheça as razões e argumentações expendidas pela outra, assim como   os motivos e fundamentos que conduziram o órgão judicial a tomar determinada decisão, possibilitando-se sua manifestação a respeito em tempo adequado” (OLIVEIRA,   1999, p. 144).


De acordo com as posições apontadas, a tendência da doutrina mais atual do direito processual se orienta no sentido de realmente possibilitar que as partes influenciem na decisão do juiz.   Propõe-se, assim, a questão que ora se discute, que é justamente saber se a autorização expressa nos artigos 131 e   462 do CPC permitem   que o juiz na sentença leve em consideração matéria de direito ou de fato não suscitada pelas partes, sem antes converter o julgamento em diligência, para ensejar a manifestação das partes sobre o ponto suscitado.   É o que se verá no item a seguir.


III-DA AUTORIZAÇÃO EXPRESSA NOS ARTIGOS 131 E   462 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL


Disciplina o artigo 131 do CPC que   “o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento”.


Por seu turno, estabelece o artigo 462 do CPC que “Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença”.


A partir da leitura dos dispositivos citados, é indubitável que o juiz pode levar em consideração matéria de direito ou de fato, mesmo que não alegada pelas partes.   Contudo, questiona-se se pode fazê-lo sem antes provocar as partes para se manifestar sobre o ponto que pretende levar em conta.


Nesse aspecto, a doutrina mais atualizada, na esteira da compreensão do contraditório na sua faceta substancial descrita no item anterior, vem entendendo que o juiz deverá previamente ouvir as partes sobre o ponto que, de ofício, pretende levar em consideração.   Assim, ao receber os autos conclusos e perceber algum ponto de fato ou de direito que, embora não suscitado pelas partes, poderá influir no julgamento, deverá converter o julgamento em diligência para assegurar às partes a devida manifestação sobre o ponto considerado relevante.


Na esteira desse pensamentoesse sentido, Fredie Didier Júnior diferencia o “poder agir de ofício” e o “agir sem ouvir as partes”.   Nesse sentido, o autor assegura que o juiz pode agir de ofício, inclusive com amparo nos artigos 131 e 462 do CPC, mas antes tem que abrir vistas para a parte se manifestar sobre o ponto considerado relevante. (DIDIER JÚNIOR, 2006, p 59-61).


Na mesma orientação, vale ressaltar a posição de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira:


“(…) inadmissível sejam os litigantes surpreendidos por decisão que se apóie em ponto fundamental, numa visão jurídica de que não se tenham apercebido.   O tribunal deve, portanto, dar conhecimento prévio de qual direção o direito subjetivo corre perigo, permitindo-se o aproveitamento na sentença apenas dos fatos sobre os quais as partes tenham tomado posição, possibilitando-as assim melhor defender seu direito e influenciar a decisão judicial” (OLIVEIRA, 1999, p. 143).


Trata-se, inclusive, de entendimento albergado na legislação européia, que expressamente consagra o contraditório em sentido substancial, consoante se vê no item a seguir.


IV – O CONTRADITÓRIO EM SUA FACETA SUBSTANCIAL E O DIREITO COMPARADOESTRANGEIRO: ANÁLISE DO   § 139 DA ZPO ALEMÃ E O ART. 266 DO CPC PORTUGUÊS.


A legislação européia vem consagrando, de forma expressa, o contraditório em seu sentido substancial ou material, consoante dispositivos da legislação alemã e portuguesa, que aqui são trazidos à baila para ilustrar tal situação:.


Disciplina o §139 da ZPO Alemã  :


“§ 139 ZPO — CONDUÇÃO MATERIAL DO PROCESSO. (1) O órgão judicial deve discutir com as partes, na medida do necessário, os fatos relevantes e as questões em litígio, tanto do ponto de vista jurídico quanto fático, formulando indagações, com a finalidade de que as partes esclareçam de modo completo e em tempo suas posições concernentes ao material fático,especialmente para suplementar referências insuficientes sobre fatos relevantes, indicar meios de prova, e formular pedidos baseados nos fatos afirmados. (2) O órgão judicial só poderá apoiar sua decisão numa visão fática ou jurídica que não tenha a parte, aparentemente, se dado conta ou considerado irrelevante, se tiver chamado a sua atenção para o ponto e lhe dado oportunidade de discuti-lo, salvo se se tratar de questão secundária. O mesmo vale para o entendimento do órgão judicial sobre uma questão de fato ou de direito, que divirja da compreensão de ambas as partes. (3) O órgão judicial deve chamar a atenção sobre as dúvidas que existam a respeito das questões a serem consideradas de ofício. (4) As indicações conforme essas prescrições devem ser comunicadas e registradas nos autos tão logo seja possível.Tais comunicações só podem ser provadas pelos registros nos autos. Só é admitida contra o conteúdo dos autos prova de falsidade. (5) Se não for possível a uma das partes responder prontamente a uma determinação judicial de esclarecimento, o órgão judicial poderá conceder um prazo para posterior esclarecimento por escrito”.


Verifica-se que o artigo citado apresenta uma sistematização regrada para possibilitar a efetiva observância do contraditório no processo alemão.   Com efeito, no primeiro item a lei refere-se ao princípio da cooperação, em que as partes deverão discutir com   o juiz a matéria fática e jurídica necessárias ao deslinde da causa. Por outro lado, os itens seguintes estabelecem o claro dever de o magistrado chamar a atenção para o item que reputa relevante para a sua decisão, bem como sobre as dúvidas.   Toda esse processo deve ser registrado de forma específica nos autos, para que esse registro seja a prova da efetivação da comunicação.


O que se constata, assim, é o regramento para a efetiva realização dessa comunicação às partes, para que se consagre a aplicação do contraditório em seu sentido substancial.


Em relação ao Código de Processo Civil Português, o art. 266 do referido diploma legal  cuida do chamado “ princípio da cooperação”, que vem bem delineado nos seguintes termos: Art. 266 – “1 – Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”.


Na realidade, o princípio da cooperação tem íntima ligação com o do contraditório, uma vez que  a ampla colaboração das partes, tanto no que se refere à pesquisa do fatos, quanto do direito influi de maneira relevante no princípio do contraditório, em seu sentido material .  Nesse sentido a lição de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira: “O concurso das atividades dos sujeitos processuais, com ampla colaboração tanto na pesquisa dos fatos quanto na valorização jurídica da causa, constitui dado que influi de maneira decisiva na própria extensão do princípio do contraditório” (OLIVEIRA,  1999, p. 144).


Voltando-se ao art. 266 do CPC português,  vale citar o comentário do doutrinador portugês  José Lebre de Freitas:


“o apelo à realização da função processual aponta para a cooperação dos intervenientes no processo no sentido de nele se apurar a verdade sobre a matéria de fato e, com base nela, se obter a adequada decisão de direito.  O apelo ao prazo razoável aponta para a sua cooperação no sentido de, sem dilações inúteis, proporcionarem as condições para que essa decisão seja proferia no menor período de tempo compatível com as exigências do processo(…) No primeiro sentido, poder-se-á falar duma cooperação em sentido material; no segundo, duma cooperação em sentido formal” (FREITAS, 1996, p. 150)


Assim, para o citado autor, o princípio da cooperação, inserto no artigo citado pode se verificar no sentido material ou no sentido formal. No sentido material, cabe às partes o dever de colaboração , ou seja, dever de comparecer e prestar esclarecimento, o que vem expresso nos itens 2 e 3 do mesmo art. 266 do CPC português:


2 – O juiz pode, em qualquer altura do processo , ouvir qualquer das partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de fato ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência


3 – As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no número 3 do artigo 519.


Por outro lado, no sentido formal, o princípio da cooperação impõe ao juiz o dever de promover o suprimento dos obstáculos com que as partes se defrontem na obtenção de informação ou documento necessário.  É o que vem disposto no item 4 do mesmo dispositivo legal:


4 – sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ônus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo.


José Lebre de Freitas, ao finalizar sua análise sobre o princípio da cooperação no processo civil, lembra  que a atual concepção do processo afasta-se da idéia liberal de que o processo seria “uma luta arbitrada pelo juiz” e aduz que a progressiva afirmação deste princípio “leva freqüentemente a falar duma comunidade de trabalho (…) entre as partes e o tribunal para a realização da função processual” (1996, p.153).


Assim é que o dispositivo citado, consagrar o princípio da cooperação no código de processo civil português, acaba por garantir o contraditório substancial, uma vez que atualmente não se concebe o contraditório real e efetivo sem que as partes possam participar da formação do convencimento do juiz.


V – DAS CONCLUSÕES NECESSÁRIAS


Conforme visto no item anterior, a legislação estrangeira, em especial a alemão,   procede à evidente positivação do princípio do contraditório em seu sentido material. Tal regramento é importante porque facilita e educa os operadores jurídicos na correta condução do processo.


No direito brasileiro, contudo, embora inexista tal regramento específico,   a doutrina mais atualizada orienta-se no mesmo sentido de aplicação efetiva do princípio do contraditório, em termos que culmina na operacionalização da mesma atuação prática prevista na legislação estrangeira, sem contudo, encontrar amparo em regras processuais específicas.


Assim, respondendo ao questionamento inicial proposto nesse artigo, tem-se que o juiz, de acordo com as previsões dos artigos 131 e 462 do CPC, tem a plena liberdade de considerar, de ofício, matéria de direito ou de fato não alegada pelas partes, desde que, previamente, conceda oportunidade às partes para que se manifestem sobre o ponto considerado como relevante, tudo isso tendo em vista a necessidade de observância do princípio do contraditório, constitucionalmente assegurado, em seu sentido substancial.


Ressalte-se, contudo, que   dada a inexistência de legislação procedimental que consagre o princípio citado, a operacionalização prática da garantia em nosso direito processual acaba prejudicada, porque os Tribunais tendem a não aplicar o princípio do contraditório em sua acepção substancial, razão pela qual conclui-se que seria desejável que o regramento processual infraconstitucional assegurasse, de forma explícita, a observância do princípio apontado.


 


Referências bibliográficas

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. “Os elementos objetivos da demanda examinados à luz do contraditório”. Causa de pedir e pedido no processo civil (questões polêmicas). José Roberto dos Santos Bedaque e José Rogério Cruz e Tucci (coord.). São Paulo: RT, 2002.

.CINTRA, Antônio Carlos Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2004.

CRUZ E TUCCI, José Rogério (coord.). Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999

ÁVILA, Humberto. Teoriados princípios. 2a ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2003.

DIDIER Jr., Fredie. Direito processual civil. 6a ed. Salvador: Edições JUSPODIVM, 2006, v. 1.

DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio. Direito constitucional tributário e due process of law.  2ª ed. Rio de .

FREITAS, José Lebre de. Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais à luz do código revisto. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.

NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal.   4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997

OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Garantia do Contraditório In: TUCCI, José Rogério Cruz e Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: RT, 1999.

Informações Sobre o Autor

Flávia Moreira Guimarães Pessoa

Juíza do Trabalho Substituta (TRT 20ª Região), Professora Assistente da UFS, Coordenadora e Professora da Pós-Graduação em Direito do Trabalho (TRT 20ª Região/UFS), Especialista em Direito Processual pela UFSC, Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela UGF, Doutora em Direito Público pela UFBA.


Equipe Âmbito Jurídico

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