“Uma Constituição é, por assim dizer, a miniatura política da fisionomia de uma nacionalidade”, disse Ruy Barbosa. É a “Lei fundamental e suprema dum Estado, que contém normas respeitantes à formação dos poderes públicos, forma de governo, distribuição de competências, direitos e deveres dos cidadãos”, define o dicionário Aurélio. Numa abrangência de seu significado, uma Constituição seria entendida como um conjunto de normas e princípios, oriundos de seu prospecto histórico que visa orientar os atos dos governos e dos cidadãos de um país, sendo a fonte que legitima todo um ordenamento pátrio por ser a mais alta hierarquia normativa.
Um problema muitas vezes comum das normas que compõem a nossa Carta Magna é o exagerado número de artigos e sua complexidade, de forma que entender seus significados, promovendo o pleno atendimento nos moldes da Administração Pública torna-se um obstáculo quase que intransponível principalmente aos olhos dos cidadãos comuns. Tais barreiras amiúde também desafiam os gestores públicos por terem a obrigação de segui-la, uma vez que ninguém está acima da Constituição, nem mesmo o presidente, de forma a desconsiderar os princípios nela insculpidos tais como da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Há ainda, além dos desafios inerentes à própria administração de recursos públicos como a Educação, a Saúde e o Desenvolvimento Social e Econômico, os desafios morais e éticos que, mesmo de uma forma bastante sutil, acabam influenciando a conduta dos servidores públicos. Infelizmente, ainda hoje muitos daqueles responsáveis pela administração do dinheiro público preferem desconsiderar tal preceito e agir segundo as suas próprias intenções e esquecem que uma boa reputação política demora anos para ser construída, mas, por outro lado, um pequeno deslize pode maculá-la para o resto da vida. Em pior situação se encontram os prefeitos de cidades menores cujos implacáveis adversários ficam na iminência de qualquer falha para denegrir a imagem da Administração. Surge, então, a necessidade premente de mecanismos de controle e orientação do gestor público, para coibir abusos e atitudes impensadas, mesmo aquelas oriundas de boas intenções que acabam por afrontar princípios e normas constitucionais.
Assim sendo, a existência de um controle interno torna-se um tema de indubitável interesse, não só da Administração, como também da comunidade, com o escopo de garantir maior eficiência e eficácia nas ações dos governos. Nos últimos anos essa preocupação tem tomado maiores proporções em decorrência do agravamento das penalidades impostas àqueles que eventualmente descumprirem normas e princípios constitucionais relativos aos gastos púbicos. Pode-se dizer, então, que um controle interno, permeado por valores éticos e princípios morais, que prime pela estrita observância à legislação, será um grande auxiliador dos gestores públicos, graças às desmesuradas contribuições emanadas de servidores públicos comprometidos com a justiça social e a transparência dos atos administrativos. Impende destacar a também valiosa parceria com os tribunais de contas dos estados.
Verdade é que muitos gestores têm a irreal convicção de que a existência de um controle interno, mesmo com a imposição constitucional de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, pode ser deixada num plano secundário. Ou seja, como não é possível obter o êxito pleno esperado pela população devido aos parcos recursos das prefeituras, controlar as boas intenções da Administração seria o mesmo que criar barreiras desnecessárias e atravancar ainda mais o já tão burocrático órgão público, afinal, aquilo que se faz bem intencionado não precisa ser fiscalizado, ou ainda, noutra hipótese, os erros quando bem justificados são perdoáveis. A conclusão é que não se deve menosprezar a importância do controle correto, se possível, de todos os atos e funcionários públicos, dos simples aos mais complexos, do menor deles ao prefeito. E para ilustrar o perigo de agir respaldado apenas em boas intenções, oportuno será considerar o exemplo de um jovem chamado Uzá.
Uzá era irmão de Aiô, filho de Abinadabe e morava numa região chamada Quiriate-Jearim. Uzá e seu irmão foram incumbidos de transportar a tão famosa Arca do Pacto até Jerusalém, uma distância de pouco mais de 18 quilômetros. Eles sabiam, como membros de sua nação, que jamais poderiam tocar na Arca. Aiô andava na frente, quando Uzá “estendeu então [a mão] à arca do [verdadeiro] Deus e segurou-a, porque o gado quase causara um transtorno. Nisso se acendeu a ira de Deus contra Uzá, e o golpeou ali pelo ato irreverente, de modo que morreu ali perto da arca.”
A princípio, o relato descrito pode parecer extremamente injusto. Afinal, Uzá agiu dentro de uma atitude considerada correta. Entretanto, o ponto chave está, não em sua atitude em si, mas na sua intenção. A seqüência do relato mostra que Uzá tinha uma intenção não muito clara de seu ato, além do mais, havia nele a disposição de irreverência, ou seja, a vontade de segurar a Arca era devido ao prestígio que ele buscava, uma presunção indevida, agindo com uma desobediência deliberada. Havia instruções de que em nenhuma circunstância a Arca poderia ser tocada por pessoas não autorizadas, aviso que era de conhecimento público e que incorria na pena de morte para os violadores.
De maneira similar, uma coisa é usar a arte de governar para o bem do povo por todos os meios possíveis dentro da legalidade e tendo a consciência de que esses atos foram respaldados por princípios de moralidade (lei + interesse público + moralidade + honestidade + seriedade) e sem visar vantagens indevidas. Outra coisa é usar de técnicas que desabonam o exercício da Administração Pública, tais como mentiras, falsidades e outros meios fraudulentos para agradar a alguns eleitores valendo-se dessas “boas intenções” como justificativa dessa conduta duvidosa, desconsiderando os aspectos legais e éticos envolvidos. Os princípios da impessoalidade – tratar a todos sem discriminação – e o da finalidade, atendendo ao interesse público visado pela lei jamais poderão ser prescindidos. Caso contrário, dar-se-á o desvio de finalidade, que é uma forma de abuso de poder, acarretando até nulidade dos atos praticados e o que é pior para um político, maculando sua reputação.
É verdade que jamais conseguiremos manter uma boa conduta e reputação limpa a menos que ajamos em compatibilidade com as nossas boas intenções, considerando o princípio da razoabilidade, agindo com bom senso e de modo proporcional àquilo que pretendemos. A boa intenção não é produto de qualquer metodologia de ensino aprendida nas faculdades, cursos ou seminários, mas parte do centro das nossas convicções, o coração. Daí o papel relevante dos controladores em inculcar boas intenções e condutas condizentes nos demais funcionários públicos, já que a função constitucional do controle interno é fiscalizar, adotando medidas preventivas, precipuamente focalizadas naqueles que lidam diariamente com os recursos públicos e licitações, cujas ameaças à boa conduta são bem maiores, porém latentes. Assim, quando confrontados com ameaças à lisura das ações públicas, esta talvez seja encarada como dependente para a sobrevivência de um bom governo e de sua reputação, diminuindo as chances de desonestidades.
Atitudes que não refletem como moralmente corretas, é verdade, têm ajudado a evitar que muitas pessoas honestas e inocentes sejam vítimas do desamparo estatal. Em alguns casos, os administradores, guiados pela empatia dos apelos da população, acabaram descumprindo normas impostas, além de utilizarem outros meios duvidosos para ajudá-los, mesmo significando cobrança de valores indevidos, favorecimentos em licitações em detrimento de outros concorrentes, dispensa ou inexigibilidade sem a permissão legal, por estarem convictos da real necessidade deles. Caso não o tivessem feito, os prejuízos sociais seriam muito maiores. Mas é importante lembrar que, como no exemplo de Uzá, nem sempre as nossas boas intenções servirão para justificar os nossos erros, e em qualquer profissão, aqueles que primam pela verdade, honestidade e legalidade em todas as ocasiões granjearão respeito e demonstrarão ser pessoas maduras e responsáveis pelos seus atos.
A valoração dos elementos delineadores da moralidade administrativa não pode ser direcionada por critérios de ordem ideológica ou de estrita subjetividade do administrador. Ao interpretar e aplicar a norma, o agente deve considerar todos os valores e princípios norteadores do sistema jurídico, ainda que se apresentem dissonantes de sua visão pessoal, tendo o dever de agir em harmonia com as finalidades próprias do órgão que ocupa. As penalidades que a legislação vem carreando ao longo dos anos aos administradores públicos desonestos são severas e será função do controle interno prever essas intencionalidades a fim de se evitar tais punições. Para tanto, existe o princípio da autotutela, sumulado pelo Supremo Tribunal Federal (346 e 473), que permite à Administração corrigir seus atos, revogando os irregulares ou inoportunos e anulando os ilegais (mesmo os bem intencionados), respeitados os direitos adquiridos e indenizando os prejudicados, se for o caso.
Nem sempre haverá normas que definam claramente como proceder. Desta forma, a melhor maneira de agir por parte do controle interno é, antes de tudo, basear-se nos princípios de direito. Havendo um conflito de princípios, estes poderão ser sopesados. O princípio da máxima efetividade diz que o intérprete deve emprestar ao texto constitucional a intelecção que confira a maior eficiência possível dentro daquilo que se espera da Administração. Tal princípio pode ser medido com o da interpretação intrínseca, ou seja, o significado e o alcance do texto não devem transbordar o caráter intrinsecamente legal da norma, deixando as interpretações dúbias de lado e aquelas atitudes consideradas válidas por serem precedidas de intenções justificáveis e metas de efetividade.
Muito importante considerar que a atuação do controle interno envolverá muito mais do que apenas verificar documentos e relatórios para encontrar as falhas e identificar os responsáveis. Em alguns casos, a idéia de que o controle interno só procura desvios de conduta dos funcionários pode ser invertida, em vez de procurar culpados, poderá procurar as vítimas. Há outra seara de atuação pouco explorada pelos controladores, talvez por estarem preocupados demasiadamente com os gastos públicos, que acabam obnubilados com relação ao relacionamento com os servidores.
As condutas abusivas normalmente praticadas pelos gestores públicos nem sempre se resumirão aos atos administrativos em si, ou seja, o uso indevido da autoridade pode transcender o aspecto legal dos procedimentos corriqueiros passando a se manifestar por meio de um assédio moral. O assédio moral praticado em subordinação hierárquica pode ser agravado com o conluio dos próprios colegas de trabalho, buscando o isolamento da vítima ou a sua exoneração a fim de que esta não interfira nos “esquemas”. Pode ocorrer também que o superior redistribua as funções dentro da prefeitura fazendo com que a vítima se sinta inútil ou incapaz de executá-las, imputando-lhe incumbências extras, quase que inatingíveis, ou ser escolhida a desempenhar tarefas desagradáveis. Esse assédio, o mais comum de todos, inicia-se na maioria das vezes de maneira sutil e com o tempo o funcionário acaba se acostumando com o tipo de tratamento. Mais tarde, porém, quando percebe a gravidade da situação, sente-se desanimado e sem ter a quem recorrer, como que envolto por uma doença contagiosa da qual não vê saída, por permitir uma vida que não deseja e não suporta.
O “terror psicológico” praticado pelo superior e seus comparsas também pode ser entendido como “qualquer conduta imprópria que se manifeste especialmente através de comportamentos, palavras, atos, gestos, que acaba por degradar o ambiente de trabalho” forçando ao cumprimento de metas por vezes desonestas e imorais. É apropriado, então, que a violência psíquica sofrida pelas vítimas, que tanto podem ser homens e mulheres, ou até mesmo estagiários, seja entendida como estafa. Ou seja, exaustão física e emocional, fruto de um envolvimento com pessoas de muita cobrança emocional e pressão para agirem de forma contrária aos bons costumes, que acabam por responsabilizá-las por qualquer atraso na execução de obras e fracasso na consecução de alvos pré-estabelecidos pela Administração. E não raro os efeitos dessa intimidação repercutem muito além do ambiente de trabalho.
O controle interno deverá saber que nem tudo que é lícito acha-se expressamente permitido pela lei. Uma conduta será lícita se não contrariar os fundamentos da ordem jurídica associados com as regras morais de conduta, o que chamamos de bons costumes. O princípio da moralidade servirá para evitar agir e fazer o que for preciso, utilizando meios ardilosos e sutis, mesmo em coisas pequenas, para obter vantagem, impedindo tais práticas logo no início. O gestor que alimenta um anseio imoral pode defender suas idéias até as últimas conseqüências, obrigando seus funcionários a executá-las por meio de pressão emocional e moral, mesmo quando todas as evidências comprovam que está errado e pior, desprovido de amparo legal.
O princípio da legalidade dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Assim sendo, a legalidade é a situação de conformidade com o direito, independentemente de interesses políticos, vontades pessoais, favorecimentos ou pressões, de maneira que uma tarefa a ser executada, embora legalmente prevista, pode ser imoral, injusta ou ainda precedida de uma vontade consciente ou ânimo de lesar interesse alheio. E detectar tais situações de assédio nem sempre será fácil.
Cabe ao controle interno ficar atento a todos os atos da Administração. Orientar o gestor na busca da justa medida de cada instituto jurídico, ponderando entre os meios utilizados e os fins perseguidos, indicando que a interpretação deve pautar o menor sacrifício ao cidadão por escolher dentre vários possíveis significados e metas de execução. De fato, de nada adiantaria haver punições severas, reformular, criar novas leis e impor sua aplicabilidade aos gestores públicos se nós mesmos, ainda que em escala menor, mantivermos certo tipo de aceitação e tolerância à determinada conduta lesiva. Da mesma forma, seria em vão qualquer proposta apresentada ao Legislativo em busca de um método inovador de controle público se as desigualdades funcionais não forem diminuídas e a motivação dos funcionários não for privilegiada. A idéia não deve ser a imposição de mecanismos de controle fictícia por intermédio de leis; isto seria semear a falsidade e a ilusão.
Se os gestores públicos governassem como diletantes e motivados pela vontade de agradar a população antes de tudo, talvez não tivéssemos a necessidade de extensas leis e a comunidade não ficaria tão receosa quanto ao Poder Executivo. O vasto labirinto da máquina jurídica no mundo de hoje é uma triste prova de nossa moderna falta de interesse uns para com os outros. Embora nós não possamos mudar as pessoas, controlar e orientar suas condutas será um bom começo.
É tolice julgar que o exercício público só será gratificante na esfera federal, à base do prestígio e sucesso que nesta é possível conseguir. Os baixos salários pagos pelas administrações municipais não podem ser alegados como pretexto para fomentar a impunidade e a ineficiência dos controles internos municipais. O importante é a realização com a atitude correta. Um trabalho deve ser visto na estrutura daquilo que realiza para os outros, não apenas à luz daquilo que faz por nós em matéria de salário ou prestígio. Um problema bem resolvido e um trabalho bem executado promovem um sentimento gratificante de realização e é motivo de orgulho despretensioso, o que não pode ser medido por qualquer retribuição financeira, cargo ou função.
A solução para tais mazelas advindas da falta de estrutura dos órgãos municipais de controle interno dependerá antes de tudo da melhoria da qualificação profissional e, conseqüentemente, de uma grande mudança de atitude. Métodos inovadores de controle, que valorizem os funcionários independentemente de quaisquer diferenças, que propiciem aos envolvidos com o controle público uma sólida visão ética e profissional, comprometidos com a sociedade sem o emprego de meios duvidosos e fraudulentos, contribuirão para reforçar a idéia de que todo servidor público tem sempre um compromisso com a justiça social; e que não bastará apenas apontar as falhas se sua motivação não for justa. A maioria de nós, entretanto, provavelmente pouco pode fazer para desenvolver uma forma inovadora de controle dentro das prefeituras. Mas a nossa atitude, porém, podemos controlar. E a atitude correta para com a maneira que encaramos o uso do dinheiro público, por resistir àqueles que descumprem as leis e as normas morais, será de grande ajuda para a atuação do controle interno municipal, uma vez que boa parcela da sociedade infelizmente ainda nutre a idéia de que na política, se bem intencionado, tudo é válido, fruto da mais absurda ignorância.
Acadêmico do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Oeste de Minas – FADOM/Divinópolis/MG
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