Resumo: O artigo aborda um estudo da discricionariedade e seu controle judicial. Busca diversos entendimentos na doutrina pátria para delimitar seu objeto a partir de conceitos estabelecidos. Aborda a previsão legal para o exercício discricionariedade, sua relação com conceitos jurídicos indeterminados, as hipóteses em que é possível verificar a incidência da discricionariedade na lei e a possibilidade de controle de legalidade, especialmente pelo Poder Judiciário.
Palavras chave: discricionariedade; legalidade; razoabilidade; conceito jurídico indeterminado; controle judicial.
Sumário: 1 Introdução; 2 Discricionariedade administrativa e controle judicial; 3 Discricionariedade, vinculação e legalidade; 4 Fundamentos da discricionariedade; 5 Hipóteses normativas geradoras da discricionariedade; 5.1 Discrição e conceitos indeterminados; 5.2 Discrição no comando da norma; 5.3 Discrição na norma e discrição no caso concreto; 6 Considerações finais; Referências.
1.INTRODUÇÃO
A discricionariedade administrativa é tema dos mais relevantes do direito administrativo, não devendo ser confundida com liberdade ampla e irrestrita do agente público, passível de controle judicial.
A doutrina tem se unificado para dizer que os atos discricionários são passíveis de controle jurisdicional, tudo em razão de que a atuação do agente público decorre do princípio da legalidade e, portanto, dela não pode ser afastada.
A discricionariedade somente se justifica em razão danecessidade de satisfação dos interesses de toda a coletividade. Embora nos referindo a conceito jurídico indeterminado terminamos nos referindo ao interesse público, e assim não há como negá-lo.
Embora o conceito jurídico indeterminado objeto de insatisfação de alguns doutrinadores, pretendemos analisar no presente artigo se é necessária a discricionariedade e, caso positivo, quando será impossível fugir da sua incidência. Em outras palavras, este não é um texto que procura esgotar o assunto. Apenas faz algumas reflexões a partir de idéias anteriores colocadas por diversos doutrinadores pátrios.
2 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E CONTROLE JUDICIAL
A discussão que envolve o controle dos atos administrativos está longe de ser pacifica. A discricionariedade prevista na competência é normalmente abordada como um “poder-dever”. A competência deve ser relacionada a um dever, sendo ele vinculado ou discricionário. Tradicionalmente se fala em poder vinculado como aquele que está totalmente vinculado à norma legal, já que o agente público não tem qualquer liberdade para decidir e no qual é possível um maior controle pelo Poder Judiciário, em razão de sua reserva legal absoluta. Já no exercício do poder discricionário, o agente público teria uma margem de liberdade proporcionada pela lei, em decorrência da qual, dizem alguns doutrinadores, o ato administrativos não seria passível de controle judicial. Tal entendimento deve ser visto com cautela, pois não é possível conceber que sendo o exercício do poder, em uma democracia direta ou mesmo representativa, uma expressão da vontade do povo tenha o agente público um poder ilimitado. Sim, porque vedar o controle judiciário do ato discricionário é dar liberdade ilimitada ao agente público. Antes disso, é necessário entender o ato administrativo, discricionário ou vinculado, na acepção exposta por Bandeira de Mello (1996), como decorrente da idéia de dever. No exercício da função pública o sujeito exercita o poder para satisfazer o interesse alheio, em razão de um dever legal. O agente público não tem liberdade irrestrita de agir, pois age somente quando e conforme a lei autorizar. Age em razão do dever legal de agir e não em decorrência de sua vontade. A liberdade é limitada e a própria discricionariedade será vigiada pelo Poder Judiciário, nos limites legais.
Várias teorias, no século XIX, caracterizam na discricionariedade a idéia de livre agir, com base na autoridade do agente público e subtraída de toda disciplina legal. Este entendimento cede espaço ao entendimento de que a discricionariedade é liberdade de apreciação visando ao atendimento de um interesse público, de modo que seu desatendimento acarreta o desvio de poder ou de finalidade. Passa-se a admitir a apreciação jurisdicional, verificando-se a conformidade da ação administrativa à finalidade legal. A partir daí avulta a necessidade de verificação da correlação lógica entre a decisão administrativa e os motivos de fato que a ocasionaram. As modificações de atuação na esfera estatal na segunda metade do século XX, fazem com que a doutrina passe a vislumbrar a necessidade de maior objetividade e imparcialidade nas decisões administrativas e maior controle destas atividades.
3 DISCRICIONARIEDADE, VINCULAÇÃO E LEGALIDADE
A legalidade pode ser entendida segundo o viés do cidadão e da Administração Pública. Ao cidadão é facultado fazer tudo o que não seja proibido por lei. Em relação à Administração Pública a legalidade deve ser entendida de forma mais estrita pois pode agir desde que autorizada por lei. Tal autorização é decorrência de que a Administração Pública é somente mandatária da coletividade em relação ao interesse público. Estabelece o art. 5º, II, da Constituição da República, que o cidadão poderá fazer ou deixar aquilo que não esteja proibido por lei. A Constituição dá a garantia ao cidadão de que somente em face dela ou da lei poderá ser criado impedimento à sua liberdade. Da mesma forma, preceitua o art. 84, IV, da Constituição da República que ao chefe do Poder Executivo compete a edição de decretos ou regulamentos visando à fiel execução da lei. Trata-se, portanto, de ação administrativa que visa à fiel execução da lei sendo vedado a ele qualquer inovação na ordem jurídica. Bem, a competência citada acima concretiza-se mediante a edição de ato administrativo que não poderá criar qualquer limitação ilegal ao cidadão.
De outro lado, estabelece ainda a Constituição da República em seu art. 5º, XXXV, que nenhuma lesão ou ameaça a direito deixará de ser apreciada pelo Poder Judiciário. Ao mesmo tempo em que veda a dualidade de jurisdição o preceito define a quem compete o controle judicial. Em virtude deste controle estabelecido constitucionalmente é que vamos afirmar que a simples ameaça a direitos do cidadão é razão para que seja chamado o Judiciário a se manifestar. Isso porque o controle judicial é verdadeiro princípio constitucional, eis que define a lógica e a racionalidade do sistema normativo.
Quais os limites de vinculação e discricionariedade? Medauar (2000) afirma que no mundo contemporâneo, a vinculação corresponde às matérias de reserva legal absoluta, enquanto a discricionariedade, às de reserva legal relativa. Eis por que há na discricionariedade uma possibilidade de escolha de soluções legais diversas.
“Com base em habilitação legal, explícita ou implícita, a autoridade administrativa tem livre escolha para adotar ou não determinados atos, para fixar o conteúdo de atos, para seguir este ou aquele modo de adotar o ato, na esfera de margem livre. Nessa margem, o ordenamento fica indiferente quanto à predeterminação legislativa do conteúdo da decisão” (MEDAUAR, 2000, p. 129).
Embora o administrador deva agir sempre mediante autorização legal, ao lado da vinculação, haverá casos de liberdade legal para atuação. Na vinculação a norma jurídica apresenta rigor e objetividade absolutos. Na discricionariedade a própria norma permitirá ao administrador uma margem de liberdade que será preenchida com subjetividade quando este estiver no exercício da função administrativa.
Como afirma Bandeira de Mello (1996) a atuação vinculada admite um único comportamento ao administrador, enquanto na atuação discricionária é possibilitada uma apreciação subjetiva quanto à maneira de proceder, segundo os critérios da oportunidade e conveniência.
A discricionariedade provém da própria disciplina normativa. Portanto, correto será observar que “o poder discricionário não resulta da ausência de regulamentação legal de certa matéria, mas sim de uma forma possível de sua regulamentação” (PEREIRA apud BANDEIRA DE MELLO, 2001, p. 775). A discricionariedade visa evitar que uma predefinição normativa especificamente demarcada, que não admita nenhuma subjetividade ao agente público, leve a que a providência por ela imposta conduza a resultados indesejáveis. A discricionariedade situa-se, portanto, dentro das fronteiras da legalidade.
Das conclusões a que chega Bandeira de Mello (2001) sobre a necessidade do uso da discricionariedade em determinadas situações é possível fazer três considerações, que abaixo abordamos.
Uma primeira ponderação seria a de que a lei admite decisões diversas em razão de que cada situação fática espera a decisão que mais lhe satisfaça, de modo que a discricionariedade visa possibilitar que o agente público decida pela solução pertinente para cada situação, o que seria impossível com a vinculação. Porém, esta afirmação, não quer significar que toda e qualquer decisão admitida pela lei vai satisfazer o caso concreto. Neste caso, deve-se analisar o caso concreto e, mediante a razoabilidade da decisão, vai se verificar se a decisão é correta ou não.
A segunda ponderação é que a discrição existente na norma jurídica é condição necessária, mas não suficiente, para o seu exercício. A lei instaura a possibilidade de uso da discricionariedade que poderá ser utilizada ou refutada diante do caso concreto. Portanto, a amplitude da atuação discricionária é decorrente do caso concreto e não do permissivo legal.
A terceira ponderação diz respeito ao controle da discricionariedade, que ocorre mediante análise da razoabilidade. Verifica-se, neste caso, se a permissão abstrata da lei se verifica no caso concreto. A razoabilidade, diante da análise da lei e do caso concreto, vai dizer se a providência tomada pelo agente público era cabível ou incabível.
Esta discricionariedade é mérito do ato administrativo, consistente na margem de liberdade suposta na lei e que efetivamente venha remanescer no caso concreto para que o administrador decida-se mediante critérios de conveniência e/ou oportunidade pela situação admissível ao caso, visando atender ao interesse público.
4 FUNDAMENTOS DA DISCRICIONARIEDADE
A doutrina apresenta diversos fundamentos para a discricionariedade. Bandeira de Mello (2001) afirma que a discricionariedade tem por base quatro principais fundamentos.
O primeiro fundamento decorre da intenção legal de conferir a liberdade em razão da multiplicidade de fatos administrativos que podem ocorrer no caso concreto. A discricionariedade visa possibilitar a melhor maneira de satisfazer a finalidade legal.
O segundo fundamento decorre da impossibilidade de previsão abstrata (legal) de todas as múltiplas situações concretas que poderão vir a acontecer, pelo legislador. Diante disso, frente a um ou outro acontecimento, caberia ao agente público decidir com discrição.
O terceiro fundamento decorre da inviabilidade jurídica de supressão da discricionariedade. Neste caso, o processo legislativo teria que se preocupar com todas as possíveis hipóteses concretas de incidência da norma. Porém, ao adentrar nas hipóteses concretas, individualizando-as, o legislador estaria adentrando na competência administrativa, o que é vedado em razão da separação de Poderes. De outro lado, poderia ocasionar uma lacuna na ação administrativa ao não previr todos os casos em que caberia ao agente público agir vinculadamente.
Um quarto fundamento decorre da impossibilidade lógica de negar a discricionariedade. Se a lei remete a fatos e a situações pertinentes ao mundo da natureza, da cultura, da causalidade ou do valor, fatos estes incertos, estará ora remetendo a conceitos unissignificativos, ora a plurissignificativos. Assim, pela própria natureza das coisas, em determinados casos, haverá necessidade de liberdade para o administrador, já que o termo unissignificativo, cujo valor teórico é a verdade, traz delimitações rigorosas, objetivas, inconfundíveis, que obrigatoriamente conduzem à vinculação. Já o termo plurissignificativo tem como valor teórico a sensibilidade, trazendo indeterminação, fluidez e possibilitando a discricionariedade.
5 HIPÓTESES NORMATIVAS GERADORAS DA DISCRICIONARIEDADE
A discricionariedade resulta, segundo Bandeira de Mello (1996), de três fatores: da hipótese, do mandamento ou da finalidade da norma jurídica. A partir da exposição oferecida pelo autor citado, vamos denominar estes três fatores de hipóteses normativas geradoras da discricionariedade em razão de que a prescrição legal é que vai possibilitar a atuação discricionária ou não.
Assim, a discricionariedade vai decorrer da hipótese da norma jurídica a ser implementada, quando a lei estabelece o pressuposto de fato (acontecimento do mundo da vida que vai deflagrar a atuação do agente público visando atender à finalidade da norma) de modo impreciso, por meio de palavras vagas ou tiver se omitido em descrevê-lo. Portanto, não houve indicação explícita do pressuposto de fato ou foi ele descrito através de palavras que recobrem conceitos vagos, indeterminados ou imprecisos. É o caso da norma jurídica que determina a distribuição de medicamentos a pessoas em estado de pobreza que deles necessitarem, visando garantir a saúde pública. O pressuposto de fato está presente na locução estado de pobreza; a finalidade da norma está presente nos termos saúde pública.
A discricionariedade vai decorrer do comando da norma jurídica a ser implementada, quando a norma possibilitar uma das seguintes alternativas de conduta ao agente público: a) editar ou não o ato (é a conveniência e ocorre quando a norma faculta um comportamento ao invés de exigi-lo); b) apreciar a oportunidade adequada para edição do ato (é a oportunidade e ocorre quando a norma faculta a decisão sobre o momento próprio para que o ato seja praticado); c) liberdade para escolher a forma jurídica que revestirá o ato; e, d) conferir competência para decidir sobre qual a medida mais satisfatória ao interesse público diante do caso concreto.
A discricionariedade poderá decorrer, ainda, da finalidade da norma jurídica a ser implementada, quando a finalidade da norma jurídica tenha sido expressa com palavras cujo conteúdo seja um conceito de valor, vago, indeterminado ou impreciso. É a previsão através de conceitos jurídicos indeterminados, fluídos ou elásticos, que admitem uma interpretação plurissignificativa. É o caso das palavras “segurança pública”, “moralidade pública”, “interesse público” e “urgência”, dentre outras, que são conceitos plurissignificativos, passíveis de interpretações diversas e em graus e medidas variadas, de acordo com o juízo subjetivo do agente público competente. Sendo a finalidade da norma expressa mediante uma palavra cujo conceito seja valorativo e, portanto, plurissignificativo, sua fluidez transporta-se para o pressuposto de fato, de modo que este ganha fluidez em razão da finalidade expressa em conceitos indeterminados.
Vimos, portanto, que a discricionariedade decorre ou tem causa nos três fatores citados: a hipótese, o comando ou a finalidade da norma. Porém, como eles são expressão da norma jurídica, não é neles que vai se expressar a discricionariedade. Diz o autor que a discricionariedade vai se expressar unicamente no “conteúdo do ato” [objeto, segundo nosso entendimento] no momento da decisão em praticá-lo, pelo agente público. “Por força da imprecisão do pressuposto, por força da liberdade no comando ou por força da imprecisão da finalidade – não importa – a discrição vai se expressar exatamente naquele ato que foi praticado” (BANDEIRA DE MELLO, 1996, p. 21). Então, de regra, a discricionariedade não se manifesta na lei, mas no ato consumado. Todavia, deve-se salientar que será possível verificar a discricionariedade na própria norma jurídica quando ela facultar a análise da conveniência ou oportunidade na edição do ato.
5.1 Discrição e conceitos indeterminados
A tese sustentada pela doutrina alemã de que o conceito jurídico indeterminado somente mantenha esta característica na norma em abstrato e não diante do caso concreto (por ocasião de sua aplicação), não podendo ser considerado uma questão de discricionariedade, de modo a supor uma margem de liberdade ao agente público, não é aceita por Bandeira de Mello (1996, p. 22).
Afirma o autor que
“seria excessivo considerar que as expressões legais que os designam [os conceitos jurídicos indeterminados], ao serem confrontadas ao caso concreto, ganham, em todo e qualquer caso, densidade suficiente para autorizar a conclusão de que se dissipam por inteiro as dúvidas sobre a aplicabilidade ou não do conceito por elas recoberto. Algumas vezes isto ocorrerá. Outras não. Em inúmeras situações, mais de uma intelecção seria razoavelmente admissível, não se podendo afirmar, com vezos de senhoria da verdade, que um entendimento divergente do que se tenha será necessariamente errado, isto é, objetivamente reputável como incorreto” [grifos do autor].
Pode-se perfeitamente concordar que em alguns casos concretos a conclusão é de que o conceito indeterminado previsto em abstrato na norma, foi bem ou mal empregado. Mas este reconhecimento não é regra. Haverá casos em que será impossível contestar a possibilidade de conviverem interpretações divergentes do conceito fluido, de modo que não se poderá afirmar que alguma das interpretações esteja incorreta. “Existe um limite além do qual nunca terceiros podem verificar a exatidão ou inexatidão da conclusão atingida. Pode dar-se que terceiros sejam de outra opinião, mas não podem pretender que só eles estejam na verdade, e que os outros tenham uma opinião falsa” (BERNATZIK apud BANDEIRA DE MELLO, 1996, p. 23). Esta é a razão pela qual se deve aceitar a discricionariedade dos conceitos indeterminados.
Se o agente público agiu com razoabilidade diante da situação real, embora o conceito jurídico indeterminado admitisse outro entendimento, não poderá ser afirmado que ele agiu com desvio de poder ou ilegalmente. O conceito indeterminado constante da norma admitia dupla interpretação e, tendo o agente público chegado a uma interpretação razoável, agiu legalmente. Ou seja, agiu dentro da margem de liberdade que a norma lhe facultava.
“Induvidosamente, havendo litígio sobre a correta subsunção do caso concreto a um suposto legal descrito mediante conceito indeterminado, caberá ao Judiciário conferir se a Administração, ao aplicar a regra, se manteve no campo significativo de sua aplicação ou se o desconheceu. Verificado, entretanto, que a Administração se firmou em uma intelecção perfeitamente cabível, ou seja, comportada pelo conceito ante o caso concreto – ainda que outra também pudesse sê-lo – desassistirá ao Judiciário assumir est’outra, substituindo o juízo administrativo pelo seu próprio. É que aí haveria um contraste de intelecções, igualmente possíveis. Ora, se a intelecção administrativa não contrariava o direito – este é o pressuposto do tópico sub examine – faleceria título jurídico ao órgão controlador de legitimidade para rever o ato (…) [grifos do autor].
“Deveras, a apreensão do significado dos conceitos imprecisos é, sem dúvida, um ato de intelecção e ao Judiciário assiste praticá-lo para interpretar a lei. As decisões de mérito são, induvidosamente, atos volitivos, decididos segundo critérios de conveniência e oportunidade, que traduzem opção por um dentre dois ou mais comportamentos comportados pela norma a ser aplicada. Daí não se segue entretanto que só nesta segunda hipótese esteja a Administração a exercer atividade discricionária” (BANDEIRA DE MELLO, 1996, p. 24-25).
Ao discorrer sobre a discricionariedade radicada na hipótese ou na finalidade da norma em razão do conceito jurídico indeterminado, não há uma pretensão de alargar o campo de liberdade do agente público. Basta atentar para o fato de que os conceitos de que se fala apresentam uma fluidez que não se apresenta ilimitada, pois têm um conteúdo mínimo indiscutível, de modo que o agente público, ao aplicar a lei cuja hipótese ou finalidade é imprecisa, não pode atribuir um conceito dissonante ao socialmente conhecido como o que lhe corresponde. A interpretação do conceito indeterminado deve ser razoável com o sentido atribuído em determinado meio social. Assim, não é o subjetivismo do agente público que delimita o sentido a ser atribuído a determinada palavra normativa, mas o entendimento razoável no meio social. Significa que o agente público deve analisar a norma de acordo com o sistema jurídico vigente e nunca de forma descontextualizada, como demonstraremos a seguir.
5.2 Discrição e norma jurídica
Quando a norma jurídica estabelece uma determinada conduta ao agente público, visa a uma ação administrativa que tenha um bom resultado para o interesse público, isto é, um resultado adequado para satisfazer a finalidade da norma, independentemente de tratar-se de vinculação ou discricionariedade.
A norma possibilita ao agente público uma conduta discricionária para permitir-lhe uma liberdade visando satisfazer à finalidade legal da melhor forma possível no momento do fato gerador da ação. Veja bem, a norma permite a liberdade. A partir do entendimento de Bandeira de Mello (1996) é possível afirmar que em casos de discricionariedade o agente público tem o dever jurídico de praticar, não qualquer ato dentre os permitidos pela norma, mas, única e exclusivamente aquele que atenda com absoluta perfeição à finalidade da lei. Neste caso a norma deixa estabelece margem de liberdade para que o agente público analise o fato e escolha a melhor maneira de concretizar o interesse público. Se alguma norma jurídica estabelecer uma ordem de conduta vinculada, mas através de um conceito jurídico indeterminado, haverá discricionariedade. É o caso que abaixo explicitamos.
A norma constitucional do art. 203 e incisos IV e V, da Constituição da República, prevê o benefício da assistência social a quem dela necessitar.
“Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente da contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
“(…)
“IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;
“V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. (grifei)”
Regulamentando o inciso V, temos a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 que estabelece:
“Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de 1 (um) salário-mínimo mensal à pessoal portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família. (…)
“§ 3º Considera-se incapaz de prover a sua manutenção a pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo.”
A partir destas normas citadas acima, vamos analisar a discricionariedade e a vinculação.
Primeiro vamos analisar sob o enfoque da hipótese da norma jurídica a ser implementada, ou seja, do ponto de vista do acontecimento do mundo da vida que vai deflagrar a atuação do agente público visando atender à finalidade da norma. A norma do art. 203, IV, estabelece que a habilitação e reabilitação de pessoa portadora de deficiência, estabelecendo como única condição que “será prestada a quem dela necessitar”. A condição é a necessidade. A hipótese da norma é clara: existindo pessoa que preencha os requisitos, ela tem direito subjetivo ao benefício. Não cabe qualquer interpretação valorativa sobre o fato por parte do agente público. A norma não estabelece que o agente poderá analisar a necessidade do futuro beneficiário.
Em segundo lugar, vamos analisar a norma sob o aspecto do comando da norma jurídica a ser implementada pelo agente público. O comando da norma jurídica é claro: existindo o fato no mundo da vida, será deferido o pedido. Tratando-se de um comando estabelecido na norma, está estabelecida uma conduta vinculada à Assistência Social do Estado, em virtude de que ao portador de necessidade especial que requerer e comprovar que dela necessita, em nosso entendimento, deverá ser prestado o benefício. A vinculação da decisão está expressa no termo “será”. O agente público não tem respaldo legal para indeferir o benefício nem para apreciar a oportunidade adequada para edição do ato, pois esta decorre do preenchimento dos requisitos e da formulação do pedido.
Entretanto, caso a norma do art. 203 estabelecesse em seu enunciado que “a assistência social poderá ser prestada a quem dela necessitar”, obrigatoriamente teríamos que afirmar que caberia uma decisão discricionária por parte do agente, de acordo com os critérios de mensuração antes expostos, devendo ser motivada a decisão.
Em terceiro lugar, temos a discricionariedade que resulta da finalidade da norma jurídica a ser implementada, isto é, quando o conceito das palavras que expressam a finalidade da norma jurídica sejam indeterminadas ou imprecisas. Admitem uma interpretação plurissignificativa. Por exemplo, a norma do art. 203, IV, estabelece como finalidade a “integração à vida comunitária”. Por integração à vida comunitária podem surgir várias interpretação de acordo com o contexto em que estiver o intérprete da norma. Obrigatoriamente veremos que haverá uma valoração da sua finalidade.
Portanto, a discricionariedade não é algo dado pela norma jurídica. A norma não estabelece “poderá o agente público agir com discricionariedade” ou “o servidor agirá com discricionariedade”. Decorre ou tem causa nos três fatores citados: a hipótese, o comando ou a finalidade da norma. E assim, a discricionariedade vai se expressar unicamente no momento da decisão em praticá-lo, pelo agente público.
No caso do inciso V do art. 203, há uma vinculação no comando da norma. Observe. O artigo estabelece um benefício que será concedido, “conforme dispuser a lei”. Significa dizer que o agente público não tem liberdade para conceder. Primeiro deverá verificar como a lei regulamenta o benefício e as condições para receber a prestação, para somente após tomar a decisão.
A norma do artigo 203 vem regulada pela Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 que, em seu art. 20 impõe condições: comprovar que não possui meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida pela própria família. Em seu parágrafo 3º, está o complemento mais importante para o nosso estudo, a definição de quem é o necessitado: a pessoa portadora de deficiência ou idosa integrante de família cuja renda mensal per capita seja inferior a um quarto do salário mínimo. Há remissão a outra norma jurídica, o art. 16 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, para estabelecer quem são as pessoas que vão compor o grupo familiar.
Esta norma jurídica estabelece um comando do qual vai decorrer uma conduta vinculada do agente público. O benefício somente vai ser concedido no caso de um exato enquadramento nos termos estabelecidos em lei. Evidente que a norma jurídica sempre vai estabelecer as condições quando pretender uma conduta vinculada. Assim, embora em um primeiro momento possa parecer que a norma estabelece a possibilidade de uma conduta discricionária, na realidade há uma vedação.
Vejamos o que aconteceria ao aplicar cada uma das normas.
Vamos supor que a norma do art. 203 tivesse a seguinte redação: “a assistência social será prestada a que receber até um salário mínimo, independentemente da contribuição à seguridade social, (…)”. Neste caso, a hipótese da norma estabeleceria claramente uma possibilidade de atuação vinculada.
Aparecendo dois cidadãos, na mesma ocasião: o primeiro com rendimento de um salário mínimo e meio e o segundo que se enquadrasse perfeitamente no teto legal estabelecido, ao primeiro seria indeferido o pedido, enquanto ao segundo, seria deferido. Supondo-se que o cidadão que percebesse um salário mínimo e meio, fosse casado, tivesse diversos dependentes, e o segundo, que percebia apenas um salário mínimo, fosse solteiro, tivesse pais muito ricos e morasse com eles. Estabelecendo o motivo legal vinculado a “salário mínimo”, não estaria sendo atendida a finalidade legal, eis que estaria sendo beneficiada a pessoa que, embora satisfazendo a exigência legal, não necessitava do auxílio.
Por outro lado, se a norma do art. 203 tivesse a seguinte redação: “a assistência social será prestada aos pobres, independentemente da contribuição à seguridade social, (…)”. Neste caso, a hipótese da norma estabeleceria claramente uma possibilidade de atuação discricionária, salvo se houvesse previsão de regulamentação por lei infraconstitucional em decorrência justamente do conceito jurídico indeterminado. A qualificação de pobreza possibilita que o agente valore a situação para decidir. O deferimento do benefício nesta condição não estaria atendendo à finalidade legal. Por isso que a Bandeira de Mello é enfático em dizer que é justamente em razão da solução perfeita que se quer ao caso concreto que a lei outorga ao agente público esta margem de liberdade para que ele possa satisfazer a finalidade legal. Portanto, a discrição administrativa é maior na norma abstrata do que diante da situação concreta.
5.3 Discrição na norma e discrição no caso concreto
Diz Bandeira de Mello (1996) que a lei comporta a discricionariedade e, portanto, a possibilidade de soluções diferentes em razão de que pretende que o agente público dê uma determinada solução para cada caso, de acordo com a fisionomia própria da situação peculiar que estiver ocorrendo. Isso, porém, não quer significar que em decorrência da outorga legal da discricionariedade serão consideradas todas as soluções previstas como adequadas para todos os casos em que for possível aplicá-las. Significa, unicamente, que cada situação determinada terá uma solução que será adequada para ela e que outras não a satisfarão.
Em razão disso, pode-se dizer que havendo uma hipótese normativa de discricionariedade, diante do caso concreto não haverá esta discricionariedade pois o agente público deverá concretizar a melhor solução possível. No entendimento de BANDEIRA DE MELLO (1996, p. 37), comportando o caso uma determinada decisão e não sendo ela adotada, “haverá pura e simplesmente violação da norma do Direito, o que enseja correção jurisdicional, dado que terá havido vício de legitimidade”.
Se porventura o agente público decidir de forma que não contemple a única possibilidade concreta de satisfação da finalidade da norma jurídica, caberá a adequada revisão legal através da mensuração da razoabilidade da conduta, pelo Judiciário ou pela própria Administração.
A discricionariedade não é uma ampla liberdade concedida ao agente público para que ele possa decidir de acordo com a sua vontade. A discricionariedade somente está presente na norma enquanto possibilidade de alcançar a melhor solução possível para o caso concreto. A melhor solução possível é, todavia, a única admitida. Havendo o agente público decidido por aquela solução que não era a melhor para o caso determinado, é cabível o controle de legalidade pelo Poder Judiciário ou pela própria Administração Pública. Assim, tendo o agente público se utilizado de ato inidôneo para dar solução a determinado caso cuja norma apresentava uma hipótese discricionária, estará ele agindo contra a ordem jurídica. Ou seja, embora a norma possibilite a discricionariedade administrativa deve-se verificar no caso concreto, a “correlação lógica entre o fim a ser atendido e o meio a ser adotado”.
Disso resulta que, havendo previsão legal de uso da discricionariedade pelo agente público, se ele agir em discordância por ter se utilizado de ato inidôneo para alcançar o fim legal, o órgão de controle deverá verificar a existência da correlação lógica entre o fim buscado pela norma e o meio utilizado, e portanto, se o ato é idôneo para tal. O resultado do confronto pode levar ao desaparecimento da discrição que, existente na norma jurídica, não se sustenta diante das peculiaridades do caso concreto.
A discrição concede liberdade ao agente público unicamente para atender a ordem legal. Nunca para agir segundo sua vontade. Assim, pode-se dizer que o mérito administrativo é o campo de liberdade previsto na lei e que, efetivamente, remanesça no caso concreto, para que o agente público, com base em critérios de conveniência e oportunidade, decida entre duas ou mais soluções admissíveis, tendo em vista o atendimento da finalidade legal da norma pela impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual das soluções seria a única adequada.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da exposição feita é possível perceber que discricionariedade pode ser justificável tão somente como uma competência estabelecida em lei para concretizar aquilo que não pode ser definido abstratamente, em razão de que a norma jurídica pode pretender alcançar diversas condutas compreendidas sob uma mesma hipótese.
Quando se trata do emprego de conceito jurídico indeterminado na norma, aparentemente, ocorre um problema de técnica legislativa. É claro que a indeterminação do conceito vai possibilitar mais de uma interpretação pelo agente público.
Embora seja assim, isso sugere que a existência de discricionariedade não implica na inexistência de limites de interpretação e ação. Assim, o limite está circunscrito ao campo dentro do qual se admitem juízos controversos, ou seja, ao campo da razoabilidade. É o exame do cabimento ou não de interpretações diversas. Diante da possibilidade de interpretações diversas, o controle se dará pela análise da razoabilidade da decisão, para verificar sua legalidade. Ou seja, da razoabilidade da decisão vai se demonstrar ou não sua legalidade. Toda decisão que se distanciar do razoável, deverá ser fulminada por ilegalidade.
Portanto, mesmo sendo discricionário o ato administrativo, verifica-se que ele será passível de controle judicial com base na razoabilidade entre o motivo legal e o motivo de fato.
Tratando-se de discricionariedade, seja ela em razão da hipótese, do comando ou da finalidade da norma a ser implementada, é evidente que ali estará presente o juízo subjetivo do administrador, que vai externar uma determinada valoração ao decidir. Porém, este subjetivismo ou valoração por parte do agente, será sempre limitado, pois a valoração pressupõe a existência do fato a ser valorado. Como a discricionariedade vai ocorrer em razão do fato concreto, o agente não poderá tomar decisões desarrazoadas ou absurdas, pois a correlação lógica entre o fim a ser atendido e o meio a ser adotado, não o permitem. Faltando razoabilidade deverá ser o ato fulminado através de controle, que é possível em decorrência da sua motivação.
Sendo, portanto, o motivo legal vinculado e a prática do ato obrigatória quando de sua ocorrência, a falta de motivação não invalida o ato desde que o motivo de fato realmente tenha existido e seja demonstrada, sem sombra de dúvida, sua anterioridade em relação à edição do ato. Pelo contrário, se a escolha do motivo legal é discricionária ou sua apreciação comportar alguma discricionariedade ou se o conteúdo do ato for discricionário, a motivação será obrigatória, sob pena de invalidade do ato editado.
Portanto, verifica-se que mesmo o ato discricionário está passível de controle pelo Poder Judiciário, mas para que esse controle seja efetivamente possível, necessariamente haverá de estar o ato motivado. Em falta de motivação, entende-se que há vício, razão em decorrência de que deverá ocorrer a anulação do mesmo.
Doutorando e Mestre em Educação nas Ciências Unijuí; Especialista em Direito Tributário Unisul; Graduado em Direito e Administração Unijuí; Professor do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí.
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