Direito Penal

O Crime de Descumprimento de Medida Protetiva de Urgência e Suas Implicações Jurídicas

Autora: Silvia Maria Marques Lima [1],

 

RESUMO

O presente estudo possui como tema da pesquisa a tipificação do crime de descumprimento de medida protetiva de urgência, promulgado em 13 de abril de 2018, através da Lei 13.641/2018, incluindo na Lei Maria da Penha o artigo 24-A. Possui como objetivo realizar um apanhado teórico acerca da controvérsia existente antes da tipificação, visto que haviam decisões conflitantes no sistema judiciário Brasileiro acerca da sanção correspondente ao descumprimento de medida protetiva de urgência, analisar a nova tipificação, verificando suas especificidades, as modificações que sua implementação trouxe, bem como sua aplicação no sistema judiciário. Possui como problema de pesquisa analisar como o novo crime de descumprimento de medida protetiva de urgência vem sendo empregado e suas implicações jurídicas. Para isso, será utilizado o método pesquisa bibliográfica dedutiva, analisando o posicionamento de doutrinadores, realizando coleta de dados no Sistema Themis Web do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, bem como análise de decisões judiciais acerca do tema. A tipificação do novo crime preenche lacunas existentes na lei e oferece maior proteção para a mulher vítima de violência doméstica e familiar no Brasil.

Palavras-chave: descumprimento de medida protetiva. novo tipo. violência de gênero. crime de desobediência.

 

ABSTRACT

The present study has as a topic of research the typification of the crime of noncompliance with a protective measure of urgency, promulgated on April 13, 2018, through Law 13.641 / 2018, including in the Maria da Penha Law, article 24-A. The purpose of this study is to provide a theoretical overview of the controversy that existed prior to the typification, since there were conflicting decisions in the Brazilian judicial system regarding the sanction corresponding to the non-compliance with a protective measure of urgency, analyzing the new typification, verifying its specificities, brought, as well as its application in the judicial system. It has as a research problem to analyze how the new crime of noncompliance with emergency protective measures is being used and its legal implications. For that, the method will be used deductive bibliographic research, analyzing the position of doctrinators, performing data collection in Themis Web System of the Court of Justice of the State of Piauí, as well as analysis of judicial decisions on the subject. The typification of the new crime fills gaps in the law and offers greater protection for women victims of domestic and family violence in Brazil.

Keywords: non-compliance with protective measures. new type. gene violence. crime of disobedience.

 

SUMÁRIO

Introdução. 2 Do descumprimento de medida protetiva de urgência. 2.1 Do crime de desobediência previsto no Código Penal. 2.2 Do crime de descumprimento de medida protetiva de urgência. 3 Considerações finais. Referências.

 

INTRODUÇÃO

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher define a violência contra a mulher como: “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. A violência de gênero é aquela que se baseia no papel social da mulher e não apenas no sexo, visto que o conceito de sexo masculino e feminino está ligado às condições biológicas do indivíduo. Assim, tais conceitos, invocados na exposição de motivos da Lei Maria da Penha, serviram de base para o legislador criar mecanismos de defesa para a mulher vítima de violência doméstica.

Dessa forma, a Lei Maria da Penha, em seu artigo 5°, definiu a violência doméstica e familiar contra a mulher como qualquer ação ou omissão baseada no gênero, que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação intima de afeto.

Maria Berenice Dias (2019) aduz que o fundamento da violência contra a mulher baseada no gênero é cultural, decorrente da ideologia patriarcal, no qual a figura masculina se encontra em posição superior à da mulher, sendo considerado proprietário de seu corpo e de suas vontades. Durante muito tempo, o patriarcado foi incontestado por ambos os gêneros, atribuindo à mulher o papel de cuidar da família e do lar, de reproduzir e de ser submissa ao homem.

Entretanto, com a evolução da sociedade, surgiram as lutas promovidas pelo movimento feminista, resultando na desintegração parcial do patriarcado. Nesse contexto, a mulher passou a ser inserida no mercado de trabalho, ser provedora do lar e a ter mais independência, dessa forma, redefinindo o modelo ideal de família, no qual a mulher apenas cuidava das obrigações do lar. A autora afirma que essa mudança gerou insegurança na sociedade pois a mulher passa a lutar mais pela sua independência, afastando-se do parâmetro preestabelecido pela cultura do patriarcado. Assim, surge a violência, resultante de uma luta travada para “compensar” as falhas no cumprimento dos papéis de cada gênero.

Apesar da Constituição Federal Brasileira de 1988 equiparar o homem e a mulher, em seu artigo 5°, I, a desigualdade entre os gêneros é dominante na sociedade, bem como a ideia de família como sendo uma entidade que deve ser considerada inviolável, não devendo o Estado interferir nas relações, assim, a violência contra a mulher vem se tornando cada vez mais crescente e pior, invisível para a Justiça.

Ademais, o medo, a dependência emocional e o sentimento de inferioridade fazem com que a mulher se cale diante da violência sofrida, gerando um ciclo vicioso, onde primeiro surgem as reclamações e reprovações, em seguida as punições. Maria Berenice (2019) relata que com o tempo, a violência psicológica transforma-se em violência física, os gritos e xingamentos transformam-se em empurrões, tapas, socos e pontapés. Após o episódio de violência, vem o arrependimento e a mulher sente-se novamente amada e protegida, gerando um ciclo de agressões.

Em 22 de setembro de 2006, entrou em vigor a Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha. Segundo Dias (2019), foi fruto de um projeto elaborado por ONGs que trabalhavam lutando contra a violência doméstica e familiar. Surgiu como forma de adequar o Brasil às convenções e aos tratados internacionais do qual faz parte, bem como cumprir com o dever instituído pela Constituição Federal, em seu artigo 226, § 8°, que impõe ao Estado o dever de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares. A nova lei trouxe inúmeros avanços, dentre eles, a criação das medidas protetivas de urgência.

Maria Berenice Dias (2019) aduz que as Medidas Protetivas de Urgência se tratam de medidas cautelares inominadas previstas na Lei Maria da Penha, que visam proteger a mulher vítima de violência ou fazer cessar as agressões no âmbito doméstico e familiar de forma rápida. Segundo a Lei 11.340/2006, deverão ser deferidas pelo Juiz a depender do caso concreto no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, ou pela autoridade policial, que deverá comunicar ao Juiz no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, podendo ser medidas que obrigam o agressor ou ligadas à ofendida.

Entretanto a lei não previa tipificação própria para o caso de descumprimento das medidas protetivas, gerando várias decisões conflitantes acerca da medida a ser tomada no caso do descumprimento, visto que algumas decisões consideravam a ocorrência do crime de desobediência previsto no Código Penal e outras consideravam como fato atípico. Essa controvérsia no judiciário trazia insegurança jurídica para as partes, bem como não protegia a mulher de forma eficaz.

Dessa forma, em 03 de abril de 2018 foi sancionada a Lei 13.641, que tipificou o descumprimento de medida protetiva de urgência, inserindo no ordenamento jurídico o artigo 24-A, o qual prevê a pena de detenção de 03 (três) meses a 2 (dois) anos para o sujeito que descumprir a medida protetiva de urgência imposta. Assim, o presente estudo irá tratar acerca do tema, analisando o crime de desobediência, as decisões conflitantes dos tribunais, bem como a nova tipificação do crime de descumprimento de medida protetiva de urgência e suas implicações jurídicas, sendo um tema de grande relevância acadêmica e social, visto que se tratam de medidas que interferem na vida das pessoas que necessitam do amparo da Lei 11.340/2006, bem como trata-se de uma tipificação nova e ainda pouco discutida.

 

2          DO DESCUMPRIMENTO DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA

2.1       DO CRIME DE DESOBEDIÊNCIA PREVISTO NO CÓDIGO PENAL

O Código Penal Brasileiro prevê em seu artigo 330 o crime de desobediência, tipificando a conduta do sujeito que deixa de obedecer a ordem legal de funcionário público. Masson (2018), afirma que a conduta poderá ser através de ação ou omissão, tendo como pena detenção de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses e multa, tratando-se, portanto, de uma infração penal de menor potencial ofensivo. Afirma ainda que o crime de desobediência protege e assegura o devido cumprimento das ordens emanadas pelo sujeito competente previsto no tipo, ou seja, o funcionário público no exercício de suas funções. Vejamos: “Art. 330 do Código Penal- Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena – detenção, de quinze dias a seis meses, e multa”.

Segundo Capez (2018), o descumprimento em questão deverá ser de uma ordem formal e materialmente legal, emanada por funcionário público competente, e dirigindo-se àquele que tem o dever legal de obedecer, não sendo necessário o uso de violência ou grave ameaça para a sua caracterização. O destinatário da ordem deverá ter ciência da legalidade e da competência do funcionário que a ordenou, devendo ser devidamente cientificado do seu dever de cumprimento.

“Para que exista o crime de desobediência é necessário que haja ordem legal emanada de funcionário público competente. Não se cuida aqui de pedido ou solicitação, por exemplo, promotor de justiça que, mediante ofício, solicita documentos. É necessário que haja uma ordem, uma determinação expressa, e que esta seja transmitida diretamente ao destinatário, isto é, àquele que tenha o dever de obedecê-la. Se o destinatário não foi devidamente cientificado, não se poderá falar no delito em tela.” (CAPEZ, 2018, p. 639)

Assim, conforme Capez (2018), o sujeito ativo poderá ser qualquer pessoa que possua o dever de cumprir a ordem, visto que se trata de crime comum. O elemento subjetivo é o dolo, ou seja, o sujeito deverá ter vontade livre e consciente de não obedecer, não trazendo previsão de modalidade culposa. Inclusive, segundo doutrina majoritária, o funcionário público também poderá figurar como sujeito ativo do crime, desde que a ordem emanada não possua relação com suas funções, não podendo haver relação de hierarquia.

Ademais, o sujeito passivo será o Estado, tendo em vista que o crime se encontra previsto no Título XI do Código Penal, que trata acerca dos crimes praticados contra a Administração Pública, logo contra o regular funcionamento estatal em seu sentido amplo, abrangendo não somente a atividade administrativa, mas sim a atividade total do estado, como a Judiciária e a Legislativa. Além disso, figura no polo passivo o funcionário público que emitiu a ordem que deverá ser cumprida.

Pedro Lenza (2018) entende que o crime de desobediência possui caráter subsidiário, contudo, haviam divergências acerca do cabimento de sua aplicação no caso do descumprimento de medidas protetivas de urgência, gerando insegurança jurídica e carência de uniformidade na atuação perante o Poder Judiciário. Alguns Juízes entendiam que era cabível a aplicação do artigo 330 do Código Penal, alegando que as eventuais medidas legais previstas na Lei Maria da Penha não possuem caráter sancionatório. Vejamos:

“JUIZADOS ESPECIAIS. DIREITO PENAL. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. MEDIDA PROTETIVA. FATO TÍPICO. SENTENÇA CONFIRMADA. 1 – O DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA, PREVISTA NA LEI MARIA DA PENHA, CONFIGURA CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. AS MEDIDAS LEGAIS PREVISTAS NA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL OU NA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL PENAL, NÃO TÊM CARÁTER SANCIONATÓRIO, POIS TRATAM DE MEDIDAS DE NATUREZA CAUTELAR, QUE VISAM ASSEGURAR A EXECUÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA. PRECEDENTES. 2 – A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE EM REGIME SEMI-ABERTO NÃO MERECE QUALQUER REPARO, DIANTE DAS CONDIÇÕES PESSOAIS DO RÉU, QUE É REINCIDENTE EM CRIME DOLOSO. 3 – RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA.” (TJ-DF – APJ: 20120910290140 DF 0029014-16.2012.8.07.0009, Relator: LEANDRO BORGES DE FIGUEIREDO, Data de Julgamento: 17/09/2013, 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do DF, Data de Publicação: Publicado no DJE : 20/09/2013 . Pág.: 291)

A Lei 11.340/2006 prevê como medidas legais a serem adotadas no caso de descumprimento de medida protetiva a aplicação de multa, a possibilidade de prisão preventiva, bem como requisição de auxilio de força policial. A multa é prevista no artigo 22, §4° da supracitada lei e segundo Maria Berenice Dias (2019), serve para assegurar a aplicação das medidas protetivas que obrigam o agressor, sendo transportadas para o âmbito da Lei Maria da Penha regras do Direito Processual Civil relativos ao cumprimento das obrigações de fazer ou não fazer.

Pablo Cordeiro de Almeida (2014) aduz que a controvérsia acerca de sua aplicabilidade como sanção surge diante da alegação de que as multas possuem tutela inibitória ou coercitiva, de forma a compelir àquele que tem a obrigação de fazer ou não fazer, por força de medida protetiva de urgência, ao cumprimento da obrigação de forma integral, dessa forma, dando efetividade à execução das mesmas.

Além disso, o artigo 17 da Lei 11.340/2006 prevê expressamente a proibição da aplicação de prestações pecuniárias e multa de forma isolada nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de forma a garantir maior proteção à vítima e punições mais severas ao agressor, sendo teoricamente possível a sua aplicação em conjunto com o artigo 330 do Código Penal, conforme se vê:

“Art. 17.  É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.” (BRASIL, 1940)

A possibilidade de prisão preventiva do requerido é prevista no artigo 20 da Lei Maria da Penha, podendo ser decretada pelo juiz de oficio, a requerimento do Ministério Público ou através de representação da autoridade policial em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal.

Conforme previsto na Lei, só poderá ser decretada caso não haja nenhuma outra medida cautelar capaz de proteger a vítima dos atos do agressor, possuindo natureza subsidiária, pois limita o direito individual à liberdade de ir e vir do acusado, devendo ser meio adequado e proporcional ao caso concreto. Nesse contexto, Aury Lopes Jr. (2016) aduz que a decretação de prisão preventiva deverá obedecer aos requisitos presentes no Código de Processo Penal, quais sejam, fumus comissi delicti e periculum libertatis, tratando-se de última ratio do direito.

A controvérsia acerca da decretação da prisão preventiva é no sentido de que se trata de prisão cautelar, não sendo classificada como sanção, ou seja, visa garantir o normal desenvolvimento do processo de forma instrumental, sendo meio idôneo para fazer cessar a violência praticada contra a mulher e proteger a mesma de ameaças à sua integridade física e psicológica. Nesse sentido é a doutrina majoritária:

“Fica evidenciado, assim, que as medidas cautelares não se destinam a “fazer justiça”, mas sim garantir o normal funcionamento da justiça através do respectivo processo (penal) de conhecimento. Logo, são instrumentos a serviço do instrumento processo; por isso, sua característica básica é a instrumentalidade qualificada ou ao quadrado.” (LOPES, 2016, p. 347)

Dessa forma, considerar a prisão preventiva como sanção, seria uma forma de antecipação da pena, ferindo o artigo 5°, LVII, da Constituição Federal, que trata acerca da presunção da inocência. De acordo o Ministro Celso de Mello, em julgamento de Habbeas Corpus n° 80.379-2, “a prisão cautelar, que tem função exclusivamente instrumental, não pode converter-se em forma antecipada de punição penal”.

Ademais, a Lei Maria da Penha ainda prevê medidas administrativas a serem tomadas no caso de descumprimento, como é o caso da requisição de força policial, previsto no artigo 22, §3° da referida lei, entretanto, conforme previsto no próprio artigo, será utilizada para garantir a efetividade do cumprimento das medidas protetivas de urgência, não sendo considerada uma forma de sanção, assim, seria um meio de compelir o requerido ao cumprimento das mesmas.

Em contrapartida, apesar das decisões dos Tribunais Estaduais considerando que as medidas previstas na Lei Maria da Penha a serem tomadas em caso de descumprimento não seriam sanções, é majoritário o entendimento de que a tipificação do crime de desobediência não é cabível no caso do descumprimento de medidas protetivas de urgência, considerando tais medidas como sanções.

Dessa forma, não seria cabível a aplicação, visto que o crime de desobediência possui natureza subsidiária, ou seja, somente será configurado nos casos em não haja expressa previsão legislativa de sanções administrativas, cíveis ou processuais. Esse entendimento foi consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, alegando que nos casos envolvendo o descumprimento de medida protetiva de urgência, a própria legislação prevê sanções específicas ao caso, bem como leva em consideração o princípio da intervenção mínima do direito penal, decidindo pela atipicidade da conduta de descumprir medida protetiva de urgência.

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS. LEI MARIA DA PENHA. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. ATIPICIDADE. 1. O crime de desobediência é um delito subsidiário, que se caracteriza nos casos em que o descumprimento da ordem emitida pela autoridade não é objeto de sanção administrativa, civil ou processual. 2. O descumprimento das medidas protetivas emanadas no âmbito da Lei Maria da Penha, admite requisição de auxílio policial e decretação da prisão, nos termos do art. 313 do Código de Processo Penal, afastando a caracterização do delito de desobediência. 3. Agravo regimental improvido.” (STJ – AgRg no REsp: 1476500 DF 2014/0207599-7, Relator: Ministro WALTER DE ALMEIDA GUILHERME (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), Data de Julgamento: 11/11/2014, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/11/2014).

O princípio da intervenção mínima do direito penal, segundo Cleber Masson (2018), decorre do fundamento de que a lei deve prever penas somente quando estritamente necessário, ou seja, quando for meio indispensável para proteger determinado interesse, de forma a não atentar contra a dignidade da pessoa humana. Afirma ainda que a criminalização de determinado comportamento só deverá ser feita quando a satisfação do interesse pretendido não puder se dar por outra área do direito, sendo este o entendimento do Superior Tribunal de Justiça nos julgamentos acerca da atipicidade do descumprimento de medida protetiva de urgência.

“Em atenção ao princípio de intervenção mínima do Direito Penal – ultima ratio –, esta Corte tem entendido que, para configurar o crime de desobediência (art. 330 do Código Penal), não basta o descumprimento de ordem legal emanada por funcionário público competente, é indispensável que inexista sanção administrativa ou civil determinada em lei específica no caso de descumprimento do ato.” (STJ, HC 348.265/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª T., DJe 26/08/2016).

Em 2015, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, em julgamento de Recurso Extraordinário, também decidiu pela atipicidade do descumprimento de medida protetiva de urgência, alegando os mesmos fundamentos utilizados pelo Superior Tribunal de Justiça em suas decisões datadas de anos anteriores, qual seja, a existência de sanções especificas na própria Lei Maria da Penha, conforme se vê:

“Diante desse quadro, não assiste razão aos ora agravantes quanto à reforma da decisão agravada, porquanto é do entendimento das duas Turmas que compõem a Terceira Seção desta Corte que, havendo, como de fato há, no Código de Processo Penal, a possibilidade de prisão preventiva, para o caso de descumprimento de medida protetiva decretada por juiz, em processo específico, não há falar em crime de desobediência.” (RE 862844/ DF Brasília, 18 de fevereiro de 2015.Ministro Luís Roberto Barroso).

Entretanto, esse posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal é incompatível com os propósitos da Lei Maria da Penha, que cita em sua exposição de motivos a necessidade da criação de mecanismos que visem coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, baseado nos compromissos internacionais do qual o Brasil é signatário. O artigo 7°, alínea “c’ da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) afirma que o Estado deverá incorporar em sua legislação normas penais, civis, administrativas ou de outra natureza que assegurem o direito da mulher de ser livre de violência e que protejam os seus direitos.

Assim sendo, tendo em vista os fins a que a Lei Maria da Penha se destina e a ausência de uma penalidade mais rigorosa para o descumprimento de medida protetiva de urgência, entrou em vigor em 03 de abril de 2018 a Lei 11.641, que tipificou o descumprimento de medida protetiva de urgência. Segundo Ávila (2018), a Lei surgiu em consequência de uma proposta feita pela Coordenação Nacional da Campanha Compromisso e Atitude, vinculada à Secretaria de Políticas para as Mulheres, incluindo na Lei 11.340 o artigo 24-A, dessa forma com tipificação própria, é garantido à vítima maior segurança, sendo uma resposta do legislador à lacuna jurídica que existia na lei.

 

2.2       DO CRIME DE DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA

Em 03 de abril de 2018 foi publicada a Lei 13.641/2018, que alterou a Lei 11.340/2006, tipificando o crime de descumprimento de medida protetiva de urgência por meio da inserção do artigo 24- A. Segundo Thiago Pierobom de Ávila (2018), participaram da redação do anteprojeto a promotora de Justiça de São Paulo Valéria Scarance, o Juiz do TJDFT Bem-Hur Viza, representando o Conselho Nacional de Justiça, a defensora do MS Graziele Ocáriz, as representantes da Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados Valéria Billafan e Marilia Ribas, a representante da Secretaria de Políticas para as Mulheres e o próprio Ávila, como representante do Conselho Nacional do Ministério Público.

Thiago Pierobom (2018) relata que a proposta recebeu abaixo assinado subscrito por juízes, promotores e defensores públicos que estavam presentes no encontro “Diálogos no Sistema de justiça para o Enfrentamento à Violência Doméstica Contra a Mulher” ocorrido em 26/02/2016, sendo fruto de uma cooperação entre o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e o governo federal com o objetivo de trazer maior proteção e segurança jurídica à mulher vítima de violência doméstica e familiar. Dessa forma, após os trâmites legais e passar pelo devido processo legislativo, foi inserido no ordenamento jurídico o novo crime de descumprimento de medida protetiva de urgência, com pena de detenção de 03 (três) meses a 2 (dois) anos. Vejamos:

“Art. 24-A.  Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos. § 1o  A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas. § 2o  Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança. § 3o  O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.” (BRASIL, 2018).

Em sua exposição de motivos, a Lei prevê a finalidade de dirimir a controvérsia existente no ordenamento jurídico acerca da atipicidade do descumprimento de medida protetiva, bem como oferecer maior proteção à vítima, criando uma punição mais rigorosa para o agressor, tendo em vista que antes da edição da lei era muito mais dificultoso para a mulher noticiar o descumprimento, devendo procurar a Defensoria Pública ou o Ministério Público para esse fim.

Ademais, ainda na exposição de motivos da lei, redigido pelo deputado Alceu Moreira, o autor afirma que em situação de flagrância de descumprimento, a Policia Militar não poderia agir imediatamente, segundo entendimento jurisprudencial. Dessa forma, a Policia Militar só poderia agir se a mulher sofrer nova ameaça ou agressão física, configurando fato típico, não podendo o simples descumprimento acarretar na prisão em flagrante do agressor. Esse tratamento deixava a mulher em situação vulnerável pois para obter proteção estatal, precisaria passar por um novo episódio de violência, o que vai de encontro aos fins sociais e ao espirito da Lei da Maria da Penha, que prevê em seu artigo 1° o objetivo de criar mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Segundo Maria Berenice Dias (2019), o Brasil é signatário de todos os acordos internacionais que asseguram os direitos humanos das mulheres, seja de forma direta ou indireta. A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, assegura em seu artigo 4° que toda mulher tem direito ao exercício e proteção dos seus direitos humanos e gozar de plena liberdade, devendo ser respeitado sua vida, sua integridade física, mental e moral, sua segurança, dentre outros.

Além disso, o artigo 3° da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher assegura que os Estados-Partes deverão tomar medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo para assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, objetivando garantir o exercício e gozo dos seus direitos.

Dessa forma, a criação da tipificação do descumprimento de medida protetiva fez-se necessário, tendo em vista os tratados internacionais do qual o Brasil faz parte, conforme descrito: “Artigo 3o Os Estados Partes tomarão, em todas as esferas e, em particular, nas esferas política, social, econômica e cultural, todas as medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, com o objetivo de garantir-lhe o exercício e gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com o homem.” (BRASIL, 2002).

Segundo Wiliam Garcez (2018), o verbo do tipo é descumprir, ou seja, desobedecer. Para a configuração do delito é necessário que o descumprimento seja de decisão judicial de deferimento de medida protetiva de urgência, ou seja, emanada por um magistrado, que obrigue o agressor a praticar uma ação ou omissão, a depender da medida protetiva a que ele terá a obrigação de cumprir.

Garcez (2018) entende que para que o delito venha a ser caracterizado, o agressor deverá ter sido devidamente cientificado da decisão, ou seja, deverá ter sido intimado. Segundo Aury Lopes Junior (2016), é direito das partes serem informadas acerca de todos os atos que ocorrem no processo, dessa forma, o Juiz tem o dever de garantir que essa informação seja repassada, sendo diretamente ligado ao princípio do contraditório e ampla defesa. Vejamos:

“Contudo, o mais importante é que são todos instrumentos a serviço da eficácia dos direitos fundamentais do contraditório e da ampla defesa. Não se pode mais pensar a comunicação dos atos processuais de forma desconectada do contraditório, na medida em que, como explicamos anteriormente, é dele o direito de ser informado de todos os atos desenvolvidos no iter procedimental. ” (LOPES, 2016, p. 292).

A decisão deverá ser válida, ou seja, concedida por juiz competente e devidamente fundamentada ou pela autoridade policial, que deverá comunicar ao juiz no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, o qual deverá decidir em igual prazo pela manutenção ou revogação das medidas protetivas, conforme artigo 12-C incluído na Lei Maria da Penha através da Lei 13.827/2019.

Segundo Maria Berenice Dias (2019), a competência para deferir as medidas protetivas de urgência é do Juiz Cível ou Criminal dos juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do local onde a vítima se encontre, mesmo que não seja o local da residência da vítima ou do agressor. A vítima deverá requerer expressamente tais medidas, não podendo o Juiz agir de oficio, mesmo mediante registro de ocorrência de violência doméstica. Ainda nesse sentido foi proferido enunciado pelo Conselho Nacional de Justiça:

“ENUNCIADO 3 – A competência cível dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher é restrita às medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, devendo as ações cíveis e as de Direito de Família ser processadas e julgadas pelas varas cíveis e de família, respectivamente” (FONAVID 2018).

Além disso, conforme a jurisprudência pátria, a decisão que concede as medidas protetivas de urgência deverá ser fundamentada com base nos requisitos de concessão das medidas cautelares, qual seja, fumus boni iuris e periculum in mora, consistindo no perigo iminente da ocorrência de qualquer ato violento contra a vítima, bem como o risco de inutilidade do provimento requerido, caso não seja prontamente deferido, conforme artigo 305 do Novo Código de Processo Civil.

“Art. 305. A petição inicial da ação que visa à prestação de tutela cautelar em caráter antecedente indicará a lide e seu fundamento, a exposição sumária do direito que se objetiva assegurar e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.” (BRASIL, 2015).

Nesse sentido são as decisões jurisprudenciais:

“APELAÇÃO CRIMINAL – LEI MARIA DA PENHA – MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA DEFERIDAS COM PRAZO DETERMINADO – POSSIBILIDADE. As medidas protetivas previstas na Lei n.º 11.340/06 possuem caráter excepcional, devendo ser aplicadas apenas em situações de urgência que as fundamente e dentro dos prazos razoáveis de duração do processo, tendo-se sempre como escopo os requisitos do fumus boni iuris e periculum in mora. Assim, não há impedimento na fixação do prazo das medidas, sob pena de se perpetuar indefinidamente um constrangimento ilegal sem a comprovada justa causa.” (TJ-MG – APR: 10707160023347001 MG, Relator: Paulo Cézar Dias, Data de Julgamento: 09/05/2017, Câmaras Criminais / 3ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 16/05/2017).

“APELAÇÃO CRIMINAL – LEI MARIA DA PENHA – INDEFERIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS – FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA – NÃO COMPROVAÇÃO DA NECESSIDADE. Ausentes os pressupostos para a concessão de medida protetiva, quais sejam, necessidade e urgência, não há como aplicar as medidas protetivas. Desprovimento do recurso é medida que se impõe.” (TJ-MG – APR: 10251160014287001 MG, Relator: Antônio Carlos Cruvinel, Data de Julgamento: 31/01/2017, Câmaras Criminais / 3ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 17/02/2017).

“EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR – MEDIDAS PROTETIVAS – FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA – AUSÊNCIA DE PRESSUPOSTO PARA A MANUTENÇÃO DAS MEDIDAS – RECURSO PROVIDO. – Inexistindo o pressuposto do perigo na demora para a manutenção das medidas protetivas, uma vez que decorrido longo período de tempo desde os acontecimentos narrados pela vítima, devem ser elas afastadas – Recurso provido.” (TJ-MG – APR: 10024171154073001 MG, Relator: Corrêa Camargo, Data de Julgamento: 06/02/2019, Data de Publicação: 13/02/2019).

Segundo Eduardo Cabette (2018), o sujeito ativo do crime é o agente que tem a obrigação de cumprir decisão de medida protetiva de urgência, sendo por ação ou omissão, tratando-se de crime próprio, que de acordo as definições de Cézar Roberto Bitencourt (2018), são aqueles praticados por alguém da qual se exija determinada qualidade ou condição. O sujeito passivo é o Estado primariamente, visto que o objeto jurídico tutelado é a administração da justiça e secundariamente a própria vítima da violência doméstica e familiar.

Garcez (2018) afirma que se trata de crime formal, ou seja, basta o simples descumprimento para que seja consumado, não sendo exigido nenhum resultado naturalístico. Também é de forma livre, portanto pode ser praticado através de qualquer conduta, seja de ação ou omissão, que enseje o descumprimento da ordem imposta ao sujeito. Afirma ainda que o crime é de consumação instantânea, diante disso, quando o agente descumprir várias medidas impostas na mesma decisão, incorrerá em um crime único.

Cabette (2018) explica que o crime em questão se trata de um tipo penal preventivo, ou seja, busca essencialmente prevenir a prática de novas condutas de violência contra a mulher que teve medidas protetivas decretadas em seu favor, bem como trata-se de um crime de perigo, pois quando o agente descumpre a medida protetiva, coloca em risco a integridade da vítima, seja física, moral, psicológica ou sexual, mesmo que não venha a praticar o novo ato de violência.

Dessa forma, para que haja o descumprimento, não há necessidade de um novo episódio de violência contra a mulher, bastando para sua configuração a simples desobediência à ordem judicial concedida através de medida protetiva de urgência, como por exemplo, retornar à residência mesmo após concedido o afastamento do agressor do lar, enviar mensagens de forma insistente ou rondar a casa ou local de trabalho da vítima.

Para Ávila (2018), deverá ser obedecido os princípios da lesividade e ofensividade, ou seja, se o agressor praticou uma conduta, mas sem a intenção de violar a ordem judicial, não incorrerá no descumprimento, por exemplo, no caso de envio de mensagem exclusivamente para saber notícias do filho do casal, encontro não intencional, adequações por trabalharem no mesmo lugar, dentre outras.

Acerca da abrangência do novo crime, Alice Bianchini (2018) afirma que a tipificação só poderá ser aplicada em relação ao descumprimento praticado após a vigência da lei, em respeito ao princípio da irretroatividade da lei penal. De acordo com Bitencourt (2018), o referido princípio traz segurança jurídica para as partes, visto que a lei não alcançará fatos ocorridos antes ou depois de sua vigência, admitindo-se somente a exceção da retroatividade da lei penal mais benigna. Entretanto, segundo Ávila (2018), a decisão judicial que concede as medidas protetivas poderá ser anterior à lei, pois apenas a conduta de descumprir é que deverá ser posterior à vigência da norma.

Existem ainda discussões acerca da aplicabilidade do princípio da consunção ao tipo penal de descumprimento de medida protetiva de urgência. Acerca desse tema, aduz Cezar Roberto Bitencourt (2018): “há consunção quando o fato previsto em determinada norma é compreendido em outra, mais abrangente, aplicando-se somente esta”. Segundo Cláudia Garcia (2018), a controvérsia existe diante do argumento de que o descumprimento de medida protetiva seria apenas um meio para a prática de um novo crime contra a mulher, dessa forma, o crime-fim absorveria o crime-meio.

Entretanto, tal pensamento vai de encontro aos fins a que a norma se destina, pois ao aplicar o princípio da consunção, o crime de descumprimento seria sempre desconsiderado. Dessa forma, o crime de descumprimento de medida protetiva de urgência é autônomo e independente, não possuindo como fim a nova prática de um ato de violência, bem como não se trata de um meio necessário a prática de novo crime. A jurisprudência atual tem se manifestado nesse sentido:

“APELAÇÃO CRIMINAL. AMEAÇA E DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. PLEITO ABSOLUTÓRIO. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. INVIABILIDADE. AUTORIA E MATERIALIDADE DEVIDAMENTE DEMONSTRADAS. PEDIDO DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. NÃO ACOLHIMENTO. DESÍGNIOS AUTÔNOMOS. PENA. REDUÇÃO DO QUANTUM DE AUMENTO NAS PRIMEIRA E SEGUNDA FASES DA DOSIMETRIA. DESPROPORCIONALIDADE. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Em crimes praticados no âmbito doméstico e familiar, a palavra da vítima assume especial relevância. Não há que se falar em absolvição por falta de provas diante das declarações da vítima, firmes e harmônicas, no sentido de que o réu a ameaçou, além de ter descumprido as medidas protetivas deferidas anteriormente, ao se aproximar da residência da ofendida. 2.O princípio da consunção só pode ser empregado quando o conjunto fático-probatório apontar que um dos crimes foi cometido somente para a concretização de um delito-fim, de modo que o segundo absorveria o primeiro. Não é a hipótese dos autos, em que o crime de ameaça foi praticado com desígnio autônomo do crime de descumprimento de medidas protetivas. 3. O Magistrado possui certa discricionariedade no momento de estabelecer o quantum de aumento da pena-base, devendo atender, no entanto, aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Na espécie, verifica-se que a majoração da pena na primeira fase da dosimetria se deu em patamar desproporcional, razão pela qual deve ser reduzida. 4. O quantum de aumento pela agravante, na segunda fase da dosimetria, deve guardar proporcionalidade com a pena-base. 5. Recurso conhecido e parcialmente provido para, mantida a condenação do réu nas sanções dos artigos 147, caput, do Código Penal e artigo 24-A da Lei nº. 11.340/2006, ambos c/c os artigos 5º e 7º da Lei n. 11.340/2006, reduzir o quantum de aumento nas primeira e segunda fases da dosimetria, reduzindo a pena de 10 (dez) meses e 20 (vinte) dias de detenção para 05 (cinco) meses e 18 (dezoito) dias de detenção, mantido o regime inicial semiaberto.” (TJ-DF 20180510028670 DF 0002842-39.2018.8.07.0005, Relator: ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, Data de Julgamento: 08/11/2018, 2ª TURMA CRIMINAL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 20/11/2018 . Pág.: 332-342).

Por fim, a própria lei 11.340/2006 prevê no artigo 24-A, § 3° que o delito de descumprimento de medida protetiva não exclui a possibilidade de outras sanções cabíveis. Dessa forma, segundo Ávila (2018), se houver outros delitos praticados em razão do descumprimento, como por exemplo, ameaça, injúria, lesão corporal etc., haverá o concurso formal de crimes, que segundo Bitencourt (2018), ocorre quando o agente, mediante uma única conduta, seja de ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, sejam eles idênticos ou não.

Acerca da competência, de acordo com o artigo 24-A, §1° da Lei Maria da Penha, a configuração do crime de descumprimento de medida protetiva de urgência independe da competência cível ou criminal do juiz que decretou as medidas, tendo em vista que conforme já explicitado, as medidas protetivas podem ser decretadas por um juiz cível ou criminal dos juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Acerca desse tema aduz Rogério Sanches (2018):

“Nos termos do § 1º do art. 24-A, não importa, para a caracterização do crime de desobediência, a natureza da competência do juiz que decretou as medidas protetivas, ou seja, comete o crime o agente que descumpre uma medida protetiva decretada no bojo de um procedimento civil tanto quanto se descumpre uma medida resultante de um procedimento criminal, o que, evidentemente, faz todo o sentido, pois não haveria razão para desprestigiar uma medida protetiva apenas por não ter sido decretada por um juiz criminal. Seria, aliás, desnecessária disposição legal a equiparar as medidas para os efeitos da desobediência. Trata-se apenas de uma precaução adotada pelo legislador, que agiu com o propósito de evitar o surgimento de controvérsias a esse respeito. ” (SANCHES, 2018, p.3).

Existe a discussão acerca da aplicação do procedimento dos Juizados Especiais Criminais ao crime de descumprimento, tendo em vista que possui pena máxima de 02 (dois) anos. Segundo a Lei 9.099/95, em seu artigo 61, será considerado infração de menor potencial ofensivo, as contravenções penais e os crimes com pena máxima não superior a 2 (dois) anos, sendo aplicado a esses crimes o rito dos Juizados Especiais Criminais. Segundo Garcez (2018), caso o crime de descumprimento de medida protetiva seja considerado crime de menor potencial ofensivo, devem ser aplicadas as medidas despenalizadoras, como transação penal, suspensão condicional do processo, lavratura de Termo Circunstanciado etc.

Entretanto, a própria Lei 11.340/2006 veda expressamente em seu artigo 41 a aplicação da Lei dos Juizados Especiais aos crimes praticados com violência doméstica e familiar, independente da pena prevista. Vejamos: “Art. 41.  Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995”. Tal artigo foi objeto de Ação Declaratória de Constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, o qual decidiu pela constitucionalidade do mesmo, tendo em vista que está em consonância com o artigo 226, §8° da Constituição Federal, o qual trata acerca da obrigatoriedade do Estado em criar mecanismos para garantir maior proteção à mulher.

“VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER – REGÊNCIA – LEI Nº 9.099/95 – AFASTAMENTO. O artigo 41 da Lei nº 11.340/06, a afastar, nos crimes de violência doméstica contra a mulher, a Lei nº 9.099/95, mostra-se em consonância com o disposto no § 8º do artigo 226 da Carta da República, a prever a obrigatoriedade de o Estado adotar mecanismos que coíbam a violência no âmbito das relações familiares”. (Acórdão da ADC nº 19, STF,  DJE nº 80, divulgado em 28/04/2014, pag. 02).

Conforme preceitua Alexandre Restani (2018), a aplicação da Lei Maria da Penha deverá levar em conta nos seus critérios de interpretação os fins sociais a que ela é destinada, bem como as condições peculiares das mulheres que se encontram em situação de violência doméstica e familiar. Assim, seguindo o entendimento jurisprudencial da Suprema Corte, não será aplicado aos crimes de violência doméstica e familiar previstos na Lei 11.340/2006 os procedimentos referentes aos Juizados Especiais Criminais, previstos na Lei 9.099/95.

Em consulta realizada no Sistema Themis Web do Tribunal de Justiça do Estado do Piaui, filtrando pela data de 03 de abril de 2018 a 03 de abril de 2019 referente à 5° Vara Cível e Criminal de Teresina – PI, foram localizados o total de 696 denúncias, dentre elas apenas 6 (seis) foram pelo descumprimento de medida protetiva de urgência, todas seguindo o rito comum ordinário, que segundo Aury Lopes Junior (2016), deverá ser aplicado aos crimes cuja pena máxima for igual ou superior a 04 (quatro) anos, em conformidade com os artigos 395 a 405 do Código de Processo Penal.

Tais dados revelam que menos de 1% das denúncias oferecidas pelo Ministério Público no lapso temporal de um ano, tratam-se do crime de descumprimento de medida protetiva de urgência. Ademais, é informado pelo Sistema Themis Web o total de 993 pedidos de medida protetiva de urgência na 5° Vara Cível e Criminal de Teresina – Piauí, ou seja, no período de 03 de abril de 2018 a 03 de abril de 2019 foram ajuizados um número maior de medidas protetivas de urgência do que de ação penal na referida Vara, sendo inversamente proporcional ao número de denúncias pelo descumprimento de medida protetiva de urgência.

Dessa forma, é possível notar que essa tipificação ainda é pouco utilizada, bem como há controvérsias acerca do rito correto a ser seguido, visto que apesar da lei processual penal definir que o rito comum ordinário será aplicado para os crimes com pena igual ou superior a 4 (quatro) anos, conforme já citado, verifica-se a utilização desse rito para o crime de descumprimento de medida protetiva de urgência.

Segundo Rômulo Moreira (2018), a ação será pública incondicionada, devendo o ministério Público propor a ação independentemente de representação da ofendida. Segundo Bittencourt (2017), a regra é de que os crimes previstos na legislação especial possuam ação pública incondicionada, dessa forma, basta a constatação pelo Ministério Público da ocorrência do descumprimento de medida protetiva de urgência, devendo oferecer a denúncia e nas mesmas circunstâncias, a autoridade policial deverá determinar a instauração de inquérito policial para apurar os fatos e imputar responsabilidades.

Por fim, a criação do tipo penal de descumprimento possibilita a prisão em flagrante do acusado. Na exposição de motivos da lei que criou o dispositivo 24-A, o deputado Alceu Moreira explicitou que a atipicidade que antes era aplicada no caso de descumprimento de medida protetiva impedia a prisão em flagrante, visto que segundo o Código de Processo Penal, esse tipo de medida só poderá ser adotada quando o sujeito estiver cometendo um delito, acaba de cometê-lo, for perseguido pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa logo após cometer o delito ou quando for encontrado logo após com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ter cometido o delito. Nesse sentido aduz Aury Lopes Junior (2016):

“O flagrante traz à mente a ideia de coisas percebidas enquanto ocorrem; no particípio, capta a sincronia fato-percepção, como uma qualidade do primeiro. Essa certeza visual da prática do crime gera a obrigação para os órgãos públicos, e a faculdade para os particulares, de evitar a continuidade da ação delitiva, podendo, para tanto, deter o autor” (LOPES, 2016, p. 323).

Dessa forma, com a tipificação do crime a atuação da polícia militar deverá ser imediata ante o descumprimento das medidas protetivas de urgência, o que traz maior proteção para a vítima, possibilitando a prisão em flagrante do agente, podendo ser convertida em preventiva, obedecendo aos requisitos do Código de Processo Penal. Nesse sentido é a jurisprudência atual:

HABEAS CORPUS – PRISÃO EM FLAGRANTE CONVERTIDA EM PREVENTIVA – PRÁTICA, EM TESE, DOS CRIMES PREVISTOS NOS ARTS. 24-A DA LEI N. 11.340/06 E 147 DO CP, POR DUAS VEZES, NA FORMA DO ART. 71, AMBOS DO CP, C/C ARTS. 5º, INC. III, E 7º, INC. II, AMBOS DA LEI N. 11.340/06. PROVA DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS SUFICIENTES DA AUTORIA – NECESSIDADE DE GARANTIR-SE A ORDEM PÚBLICA E ASSEGURAR A INTEGRIDADE DA VÍTIMA – DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS LOGO APÓS A CIENTIFICAÇÃO DO AGRESSOR – DECISÃO FUNDAMENTADA NO RISCO CONCRETO DE REITERAÇÃO – AUSÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE NÃO CULPABILIDADE. O descumprimento de medida protetiva anteriormente imposta é fundamento idôneo para decretação da segregação do paciente a fim de garantir a ordem pública diante do risco de reiteração criminosa. POSSÍVEL FUTURA CONVERSÃO DE PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE EM RESTRITIVAS DE DIREITOS OU FIXAÇÃO DE REGIME MENOS GRAVOSO – CONJECTURA QUE NÃO IMPEDE A SEGREGAÇÃO CAUTELAR. “Descabido o argumento de desproporcionalidade do cárcere cautelar à futura pena do recorrente, porquanto só a conclusão da instrução criminal e a análise completa das diretrizes do art. 59 do Código Penal serão capazes de revelar qual será a pena adequada e o regime ideal para o seu cumprimento, sendo inviável tal discussão neste momento, bem como impossível a concessão da ordem por presunção” (STJ, Min. Reynaldo Soares da Fonseca). PRIMARIEDADE, RESIDÊNCIA FIXA E OCUPAÇÃO LÍCITA – CIRCUNSTÂNCIAS QUE NÃO OBSTAM O INDEFERIMENTO DO PLEITO DE LIBERDADE PROVISÓRIA. “Predicados do acusado, tais como primariedade, bons antecedentes e residência fixa não justificam, por si sós, a revogação da custódia processual, caso estejam presentes outros requisitos de ordem objetiva e subjetiva que autorizem a decretação da medida extrema” (STJ, Min. Laurita Vaz). FIXAÇÃO DAS MEDIDAS CAUTELARES DO ART. 319 DO CPP – INSUFICIÊNCIA, NO CASO. ”

Além disso, a própria lei veda em seu artigo 24-A, § 2° a concessão de fiança pela autoridade policial, afastando a incidência do artigo 322 do Código de Processo Penal, o qual afirma que no caso de infrações em que a pena privativa de liberdade não seja superior a 04 (quatro) anos, a autoridade policial poderá conceder a fiança. No caso do crime de descumprimento de medida protetiva de urgência, apenas a autoridade policial poderá arbitrar a fiança, em respeito ao princípio da especialidade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            A Lei 11.340/2006 foi criada com o objetivo de adequar o Brasil aos tratados internacionais do qual é signatário, bem como oferecer maior proteção para a mulher vítima de violência doméstica e familiar, visto que a violência de gênero se trata de um problema cultural no pais. A supracitada lei trouxe inúmeros avanços para o ordenamento jurídico, dentre eles, a criação das medidas protetivas de urgência.

As medidas protetivas de urgência protegem a mulher de forma rápida contra a violência sofrida no âmbito doméstico e familiar, tendo em vista que deverão ser apreciadas pelo magistrado competente no prazo de 48 (quarenta e oito) horas ou concedidas pela autoridade policial. Para serem deferidas, devem estar presentes os requisitos previstos no Código de Processo Civil, quais sejam, o risco de inutilidade do provimento requerido bem como o perigo iminente da ocorrência de ato de violência contra a vítima.

Entretanto, apesar da lei 11.340/2006 prever as medidas protetivas de urgência, não fez previsão de tipificação própria no caso de descumprimento, dessa forma, gerando controvérsias judiciais acerca do tema, visto que alguns tribunais estaduais do país consideravam a ocorrência do crime de desobediência, previsto no Código Penal Brasileiro, tratando-se de um crime de natureza subsidiária. Ademais, o Superior Tribunal de Justiça e posteriormente o Supremo Tribunal Federal se posicionaram pela atipicidade da conduta de descumprir medida protetiva, visto que a Lei Maria da Penha fazia previsão de medidas legais a serem adotadas no caso de descumprimento, como a possibilidade de prisão preventiva, requisição de auxilio de força policial bem como a aplicação de multa.

Porém, tal entendimento se mostrou incompatível com os objetivos da lei, bem como não oferecia uma proteção eficaz para a mulher na condição de vítima. Assim, diante da falha em proteger a vítima, bem como com o intuito de dirimir as controvérsias judiciais, em 03 de abril de 2018 foi publicada a Lei 13.641, que inseriu no ordenamento jurídico o crime de descumprimento de medida protetiva de urgência, com pena de 03 (três) meses a 02 (dois) anos.

Diante do exposto, é possível averiguar que para a configuração do crime de descumprimento de medida protetiva de urgência basta o simples descumprimento, seja por ação ou omissão, não necessitando que ocorra um novo episódio de violência pois trata-se de um tipo penal preventivo, ou seja, possui como objetivo prevenir a nova prática de condutas agressivas contra a mulher. Ainda, não há a possibilidade de aplicação do princípio da consunção, devendo ser considerado como crime autônomo.

Além disso, apesar da pena prevista se enquadrar na Lei dos Juizados Especiais, a Lei Maria da Penha veda expressamente a sua aplicação nos casos de crimes praticados contra a mulher, no âmbito das relações domésticas e familiares. Ademais, em consulta ao Sistema Themis Web do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, houve a verificação de que o rito que vem sendo adotado para tal crime é o rito comum ordinário, bem como foi possível perceber a pouca utilização da tipificação, visto se tratar de um crime novo.

Pode-se averiguar ainda a trajetória entre as decisões conflitantes dos tribunais até consolidar-se a Lei 13.641/2018, que trouxe maior segurança jurídica para as partes, bem como maior proteção para vítima, dessa forma, superando o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal que consideravam o descumprimento como fato atípico.

Por fim, com a nova lei, o agressor que descumprir as medidas protetivas poderá responder pelo crime tipificado no art. 24-A da Lei 11.340/2006, sem prejuízo a outras sanções cabíveis. Assim, o impacto jurídico trazido pela Lei nº 13.641/2018, é o fato de que a mulher vítima de violência doméstica não ficará sem tutela jurídica de emergência nos casos em que o agressor descumprir medida protetiva de urgência anteriormente imposta, mesmo sem a ocorrência de um novo episódio de violência, possibilitando uma punição mais severa ao agente, bem como a sua prisão em flagrante, dessa forma, garantindo maior efetividade às medidas protetivas de urgência aplicadas em favor das mulheres em situação de violência.

 

REFERÊNCIAS

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ANEXO A – Autorização para utilização de dados

 

[1] Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA,  E-mail: silvinha5357@gmail.com.

Âmbito Jurídico

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