O crime de estupro e a sua evolução no sistema jurídico-penal

Resumo: Diante da evolução social e surgimento de novos bens jurídicos a serem protegidos, este trabalho objetiva demonstrar como a tutela penal evoluiu no que tange ao delito de estupro, evidenciando a dinâmica que envolve o direito penal.

Palavra-chave: Crime de estupro; Evolução; dignidade sexual.

Abstract: In view of social evolution and emergence of new legal rights to be protected, this study aims to demonstrate how the criminal protection has evolved in relation to the offense of rape, highlighting the dynamic that drives the criminal law.

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Keywords: Crime of rape; Evolution; sexual dignity.

Sumário: 1- Disciplina do crime de estupro no Código de 1940. 2- A reforma penal de 2009 e a alteração no objeto de tutela.  Considerações finais.

1. Disciplina do crime de estupro no Código de 1940

A tutela penal da liberdade sexual existe desde a elaboração do Código Penal de 1940, o qual entrou em vigor dois anos depois. Este bem jurídico envolve muitos tabus, considerando o tempo da feitura do digesto penal.

 A evolução social, em especial o deslocamento da mulher de uma posição de subordinação para uma situação de igualdade com o homem, tornou a proteção de sua pessoa  mais rigorosa, uma questão de ordem pública.

À época, não se vislumbrava a possibilidade de a mulher praticar as condutas tratadas no crime de estupro, o que também contribuiu para o modo como foi feita a normatização, pois que a atuação do legislador foi muito mais no intuito de protegê-la do homem do que vê-la como possível delinquente. 

O Direito Penal caminha conforme os anseios e necessidades sociais, uma vez que é um instrumento de controle social, e, nesse contexto, as mudanças sociais posteriores à década de 40 tornaram necessárias as mudanças no diploma penal, já que o que constava dos textos do antigo Código destoava da nova realidade.

A aplicabilidade da norma resta frustrada, no que tange ao fim social, quando sua previsão não corresponde à realidade e ao interesse geral. Ao incidir no caso concreto, a norma pode gerar injustiças, porque certas condutas, que constavam, ou que constam, no digesto penal, não merecem ser punidas pela irrelevância, configurando-se um excesso incluí-las na órbita penal.

É equivocada a interpretação extremamente extensiva, pois os problemas suprarreferidos são consequências desta. Nas lições introdutórias de hermenêutica já se apreende que normas restritivas de direito devem ser interpretadas restritivamente.

Para que os delitos nele compreendidos estejam em consonância com o interesse geral, o Direito Penal deve ser aplicado conforme o contexto social, além de manter-se atualizado com a época de sua aplicação.

Foi assim que, de um estágio de proteção meramente consuetudinário, de valores morais, sem negar seu caráter ético-social, conforme se depreende dos delitos fiscais ou contra o meio ambiente, passou-se para algo maior, interligado à dignidade da pessoa humana.

Nas lições de Nucci:

“A disciplina sexual e o mínimo ético exigido por muitos à época do Código Penal, nos idos de 1940, não mais compatibilizam com a liberdade de ser, agir e pensar, garantida pela Constituição Federal de 1988. O legislador brasileiro deve preocupar-se (e ocupar-se) com as condutas efetivamente graves, que possam acarretar resultados igualmente desastrosos para a sociedade, no campo da liberdade sexual, deixando de lado as filigranas penais, obviamente inócuas, ligadas a tempos pretéritos e esquecidos.”.[1]

O Direito Penal, enquanto ultima ratio, limita-se a zelar pelos bens jurídicos mais relevantes, e a recente alteração reforçou essa característica, já que falar em ‘‘proteção dos costumes’’ está se limitando a fins sem tanta relevância. O campo de abrangência do Direito Penal não pode ser amplo, no sentido de proteger muitos bens jurídicos, contudo deve tratar destes de forma que sejam cuidados em sua integralidade.

Por força do princípio da intervenção mínima, o Direito Penal deve se preocupar com os bens que precisam de maior proteção, sobre os quais os demais ramos do Direito não possam exercer com efetividade a função de salvaguarda. Em outros termos, o Direto Penal é a última opção legislativa para disciplinar e compor conflitos, valendo-se de instrumentos mais graves de sanção, razão por que só deve ser utilizado pelo Estado no último caso.

Assim, considerando que a repressão penal é dotada de excepcionalidade, e que as demais formas de composição de conflitos devem prevalecer, somente na derradeira hipótese é que o Direito Penal irá atuar.

Outrossim, o ordenamento criminal não deve se apegar às superficialidades, nem pretender tutelar comportamentos que envolvam a educação e a consciência social da pessoa, já que este não é seu papel, cabendo a outras instituições – a família e a própria sociedade, por exemplo – corrigir estes comportamentos.     

O delito de estupro, na redação original do Código Penal de 1940, trazia a seguinte previsão: “Art. 213 – Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”.

Esse delito era previsto no Título VI, que tratava dos crimes contra os costumes. Da exegese do supracitado artigo, nota-se uma limitação quanto às figuras dos sujeitos ativo e passivo deste delito, pois que necessariamente sobre a mulher recairia o ato de compelir à prática da conjunção carnal, que obrigatoriamente seria praticado pelo homem.

O que se observava era que, sendo este, inevitavelmente, o autor material e direto do crime, podendo, no máximo, haver alguma mulher como coautora ou partícipe, o tipo penal exigia a presença de um homem na empreitada delituosa, haja vista o preenchimento o elemento objetivo “conjunção carnal”.

 Conforme se nota, esta previsão anterior gerava diversos debates em torno da figura da mulher e dos aspectos subjetivos do delito. Desde então, consolidou-se na doutrina e jurisprudência que seria ela sujeito passivo do crime, independentemente de sua idade, virgindade ou anterior dedicação à prostituição, sendo bastante que pertencesse ao sexo feminino.

Durante a vigência desta figura delitiva, na forma originalmente descrita, relevante era saber se a presunção de violência existia, e quando era utilizada. Nesse sentido, os doutrinadores afirmavam que se a vítima fosse menor de quatorze anos, alienada ou débil mental, seu consentimento de nada valia, o que fazia incorrer em estupro o indivíduo que mantivesse conjunção carnal com mulheres, nessas condições.

Um ponto polêmico a ser destacado, com relação à redação original do delito de estupro, era a problemática do marido como sujeito ativo. Sobre este tema, o mestre Nelson Hungria defendia que o cônjuge varão, ao constranger a mulher a copular, estaria atuando sob o pálio do exercício regular de um direito, derivado do compromisso conjugal, já que a cópula ilícita, necessária à configuração do crime, ocorreria apenas fora do casamento.

Também existiam muitas controvérsias entre o delito de estupro e o de atentado violento ao pudor, quando, no caso concreto, entravam em conflito teses referentes a aspectos muito subjetivos, que na prática de nada valiam, principalmente após o advento da Lei n.8.072 de 1990, que cominou pena de reclusão de 6 (seis) a 10 (dez) anos a ambos os delitos, dando o mesmo tratamento aos dois tipos penais.

Outra polêmica girava em torno da conduta da mulher que constrangia um homem a com ela praticar conjunção carnal. De um lado, o professor Luiz Regis Prado defendia que tal conduta se enquadrava no atentado violento ao pudor, não obstante a redação anterior do artigo 214 que, ao prever o referido delito, excluía expressamente a conjunção carnal como finalidade do constrangimento. De outro, Rogério Greco defendia que a mulher incorreria em constrangimento ilegal.

É relevante ressaltar que a polêmica acima relatada “caiu por terra”, tendo em vista as reformas feitas pela Lei n.12.015 de 2009, que trouxe um novo delito de estupro, o qual engloba as condutas anteriormente previstas no atentado violento ao pudor.

Da redação original do artigo 213 sucede, ainda, outra polêmica em torno do estupro de transexuais. Nesse diapasão, perguntava-se acerca da possibilidade de aquele que se submetia a uma cirurgia de reversão genital poder vir a ser sujeito passivo do delito de estupro.

‘‘Neovagina’’ é o nome que a medicina dá à genitália similar à feminina criada cirurgicamente, e o que se questiona é se a penetração desta por um homem configuraria conjunção carnal, fazendo incorrer no delito de estupro o indivíduo que compelisse o transexual ao referido ato.

  A solução para este problema não é tão simples, porque não se está falando em alteração em sua documentação, mas sim em seu órgão genital. Entretanto, com o advento da lei 12.015 de 2009, este debate também não tem mais influência na prática, uma vez que com a alteração legislativa o estupro pode ocorrer mesmo que não haja a conjunção carnal.

Demonstrados os aspectos relevantes acerca das polêmicas que circundavam os tipos penais antes da reforma de 2009, o próximo ponto será a análise do que esta reforma representou para o delito de estupro, e que cuidados devem ser verificados.

2- A reforma penal de 2009 e A alteração no Objeto de tutela

Há considerável tempo os doutrinadores já afirmavam pela necessidade desta alteração no direito positivo brasileiro, e com a entrada em vigor da Lei n.12.015 de 2009 houve a fusão dos delitos de estupro e atentado violento ao pudor.

Conforme se depreende das lições de Rogério Greco, anteriormente à reforma:

“Hoje em dia, tal designação – crimes contra os costumes – vem recebendo críticas por parte de nossos doutrinadores, haja vista que analisando-se as infrações penais constantes do título VI do Código Penal, verifica-se, com clareza, que o que se pretende proteger não são os costumes, […]. Na verdade, a liberdade ao próprio corpo está intimamente vinculada à dignidade da pessoa humana.”.[2]

Pode-se notar que o interesse principal era que o intérprete conseguisse identificar o bem juridicamente protegido, não tendo que se utilizar de uma interpretação que acabasse por desvirtuá-lo do que estabelece a Constituição Federal, pois a exegese de acordo com a Lei Maior é uma exigência da nova hermenêutica. Sendo assim, o foco central se torna a dignidade da pessoa humana, no sentido da liberdade sexual.

A reforma no digesto penal inicialmente comporta uma modificação no Título VI que agora trata “dos crimes contra a dignidade sexual”, expressão esta mais conforme com a Constituição Federal, buscando garantir, acima de tudo, a dignidade da pessoal humana.

Conforme afirma André Estefam:

“A expressão escolhida, em nosso sentir, foi oportuna e se encontra em sintonia com o Texto Maior. Deveras, o Direito Penal não se volta à proteção de regras puramente morais ou éticas, mas notadamente à defesa de bens jurídicos (concepção dominante).”[3]

considerações finais

Assim, evidencia-se importante a mudança decorrente da Lei n.12.015 de 2009, haja vista que se ampliou e ajustou o objeto de tutela ao real fim do Direito Penal, protegendo desse modo explicitamente a dignidade sexual e não meros costumes, conforme se depreendia da antiga redação.  

 

Referências bibliográficas
ESTEFAM, André. Crimes Sexuais. Editora: Saraiva, São Paulo, 2009.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal Parte Geral. Editora: Impetus, Rio de Janeiro, 2009.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal volume III. Editora: Impetus, Rio de Janeiro, 2010.
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes Contra Dignidade Sexual. Editora: Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010.
Notas:
[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes Contra Dignidade Sexual. Editora: Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010. (pág.24).
[2] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal volume III. Editora: Impetus, Rio de Janeiro, 2010. (pág.273).
[3] ESTEFAM, André. Crimes Sexuais. Editora: Saraiva, São Paulo, 2009. (pág. 19).

Informações Sobre o Autor

Italo Barros Santos

Advogado – Graduado pelo Centro Universitário Cesmac


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Equipe Âmbito Jurídico

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