O crime organizado perante a lei penal brasileira e a Constituição Federal

Resumo: A pesquisa apresentada a seguir tem, como principal finalidade, ampliar o entendimento do crime organizado por parte daqueles que não vivem diretamente os seus efeitos. Nos últimos vinte anos, desde o surgimento da principal facção criminosa no Brasil, o país teve de aprender a lidar com um novo tipo de violência. Diferentemente do criminoso comum, o membro de organização criminosa apresenta uma ameaça muito mais grave, que não afeta apenas aqueles que sofrem o impacto direto de suas ações. O tráfico de armas e drogas, a corrupção e todas outras atividades características do crime organizado são graves ameaças à segurança nacional, e devem ser tratadas como tal. Após um lento processo de evolução, o Brasil vem se adaptando a esta nova realidade e tentando implementar técnicas utilizadas com sucesso em outras nações.. Ainda assim, muitos princípios básicos precisam ser revistos para que este combate ao crime organizado seja feito de forma eficaz. A forma como o Ministério Públ i co atua nestes casos é um exemplo do que precisa ser reformado, além de muitos entraves criados pela legislação falha que regula a matéria.[1]


Palavras chave: Crime organizado. Facção criminosa. Legislação. Ministério Público. Segurança Nacional. Tráfico.


Sumário: Introdução; 1- O surgimento do Crime Organizado; 1.1- O Comando Vermelho; 1.1.1- Criação; 1.1.2 Ascensão; 1.1.3- O tráfico; 1.1.4 Expansão; 1.2- O Primeiro Comando da Capital; 2- O COMBATE; 2.1- A atividade de Inteligência; 2.2- O papel do Ministério Público; 2.3 A quebra de sigilo; 2.4- A infiltração policial; 2.5- A ação controlada; 3- Sobre a Lei nº 9.034/95; Conclusão; Referências.


Introdução


A obra apresentada a seguir tem como maior motivação o crescente poder que as organizações criminosas vêm adquirindo no Brasil e no mundo todo. Seus objetivos são os de dar um maior entendimento sobre a matéria àqueles que não são atingidos diretamente pelas consequências deste tipo de violência e discutir sobre a forma como o problema é enfrentado.


Para atingir esta meta, o trabalho divide-se em três partes. A primeira tem como foco o surgimento do crime organizado no mundo e no Brasil, o modo como as principais facções criminosas se estruturaram para conseguir o poder que hoje possuem, e uma análise mais profunda dos dois principais exemplos: o Comando Vermelho, no Rio de Janeiro, e o Primeiro Comando da Capital, em São Paulo.


Este entendimento inicial do cenário é essencial para o próximo passo, que é o de analisar o combate ao crime organizado. Serão demonstradas, nesta segunda parte do trabalho, as técnicas utilizadas para repressão ao crime organizado, não só no Brasil como no mundo inteiro. O objetivo, além de citar tudo o que foi feito de correto, é, também, o de analisar novas formas de encarar o problema.


A terceira e última parte aborda as implicações da lei brasileira no crime organizado. Serão analisados o Código Penal, a Constituição Federal de 1988 e a Lei 9.034/95, batizada de Lei do Crime Organizado.


È, de certa forma, pacífica a opinião geral ao concluir que o aparato legislativo possui diversas falhas no que tange à repressão ao crime. Os principais obstáculos serão apontados, mas a pesquisa não se resumirá a isto. De forma humilde, serão apresentadas algumas possíveis alterações que poderiam trazer qualquer benefício neste sentido.


O que se espera de qualquer leitor que venha a estudar por completo o presente trabalho é  um melhor entendimento do crime organizado, como gravíssimo problema social que é, causador de milhares de mortes por ano em nosso país e no mundo, além da disseminação do tráfico de drogas, que produz novos viciados a cada dia.


1  O SURGIMENTO DO CRIME ORGANIZADO


Antes de ser iniciado qualquer estudo sobre o crime organizado, há que se discorrer, obrigatoriamente, sobre o conceito por trás deste termo. O presente trabalho tem como tema principal as facções criminosas e os crimes por estas praticados, não cabendo aqui um entendimento de crime organizado como sendo qualquer crime praticado por um grupo de pessoas de maneira organizada.  Nossa própria legislação fomenta discussão acerca deste conceito por não apresentá-lo de forma clara na Lei 9.034/95, como veremos de maneira mais detalhada na última parte da pesquisa. Melhor seria se o legislador tivesse conceituado expressamente o termo, dando a este tipo de fenômeno o reconhecimento específico que merece e pondo fim a qualquer discussão.


Boa parte dos doutrinadores remonta o surgimento do crime organizado aos séculos XVII e XVIII. As atividades do contrabandista francês Louis Mandrin, assim como as dos piratas e bucaneiros da época contavam com o apoio de algumas nações, estabelecendo-se assim um esquema de corrupção parecido com o que verificamos hoje em dia entre as facções criminosas e as autoridades.


O exemplo mais claro, porém, que vem à cabeça de qualquer pessoa quando se fala em crime organizado, é o da máfia italiana. Os esquemas de corrupção e tráfico praticados pelos chefões que tratavam os integrantes da facção como família é um exemplo clássico do funcionamento do crime organizado. As facções criminosas do país obtiveram poder suficiente para se tornar praticamente inatingíveis pelas autoridades, graças aos montantes irreais de dinheiro que lucravam com o tráfico de drogas.


Foi um grande exemplo, também, o modo como o governo italiano conseguiu combater e enfraquecer substancialmente a máfia. Hoje em dia, apesar de existentes, as facções criminosas italianas não possuem o mesmo poder de antigamente, graças a um extensivo trabalho de combate ao crime organizado no país. Com certeza nos seria de grandíssima valia aproveitar alguns métodos utilizados pelo governo italiano em nosso proveito, numa tentativa de reduzir o crescente poder que o crime organizado vem adquirindo ao longo destes anos no Brasil.


A existência de uma máfia, na verdade, chegou a ser questionada a um tempo atrás. Muitos doutrinadores recusavam-se a aceitar a idéia, mantendo posturas céticas. Um exemplo disto foi o estudioso Christopher Duggan, que em 1989 sustentou em sua tese de doutorado que estas organizações criminosas não existiam, e que as afirmações sobre a máfia na Sicília e nos EUA eram infundadas. Logo depois, porém, a discussão chegou ao fim quando houve a operação italiana batizada de operazione mani pulite, que revelou muitos dos chamados pentiti, membros da máfia.


Entre os pentiti, podemos citar um dos mais famosos, o mafioso Tommaso Buscetta, que atuava nos EUA e em alguns países sul-americanos, chegando a ser preso no Brasil e extraditado em 2 de novembro de 1972. Esta operação de combate à máfia trouxe, inclusive, forte retaliação por parte dos criminosos. Podemos citar entre as vítimas o general Carlo Alberto Dalla Chiesa, que comandava os carabinieri da Sicília, e era um dos maiores responsáveis pelo combate repressivo à máfia, além dos juízes Giovanni Falcone e Paolo Borselino, que mesmo sob forte esquema de proteção, acabaram assassinados em retaliação. Este foi um dos episódios que contribuiu para eliminar qualquer dúvida então remanescente sobre a existência dessas organizações criminosas, além do seu poder inquestionável.


Como alguns exemplos de organização criminosa, podemos citar: Cosa Nostra (Sicília), Organizacija (Rússia), Tríade Chinesa (Hong Kong, Taiwan, Pequim), Lobos Cinzas (Turquia), Comando Vermelho e PCC (Brasil). Estas duas últimas são,  no nosso país, as duas facções criminosas que se destacam por sua abrangência e capacidade de organização, cada uma delas tendo origem em uma das metrópoles brasileiras. Veremos a seguir a história de ambas, cabendo aqui exaltar o belíssimo trabalho realizado pelo jornalista Carlos Amorim, autor de diversas obras, dentre as quais se destaca o livro “CV_PCC: a irmandade do crime.”, que considero a maior e mais completa pesquisa já feita no país sobre crime organizado.


Neste momento, porém, cabe analisar primeiro a forma como estas facções agem para obter tamanho poder, sendo aqui bastante úteis os ensinamentos de Mingardi (1998) acerca da relação entre o crime organizado e o Estado. Primeiramente, o doutrinador divide o crime organizado em duas espécies, o tradicional e o empresarial. O primeiro trata-se do grupo de pessoas que, possuindo hierarquia própria, pratica atividades ilícitas e clandestinas, utilizando violência e intimidação para dominar certo território, além de contar com ajuda de alguns setores do Estado.


O controle territorial é exercido, aqui no Brasil, principalmente nas comunidades pobres. Nestes locais, onde muitos indivíduos consideram-se marginalizados e esquecidos pela sociedade, a facção criminosa apresenta-se para suprir algumas destas necessidades, sejam materiais ou até de proteção, pois de fato os criminosos chegam a agir como polícia nas favelas, resolvendo vários dos conflitos internos. Estes grupos obtém, assim, a simpatia dos moradores destes locais, como veremos mais à frente no caso do Comando Vermelho.


Através da simpatia dos moradores pobres, o crime organizado obtém, inclusive, poder político. É inegável o poder de voto presente na grande massa de moradores de favela no Rio de Janeiro, e em alguns casos, como o do filho de Toninho Turco que analisaremos neste capítulo, as facções criminosas chegam a colocar participantes diretos no poder. O princípio é simples: de forma alguma o governo estaria disposto a lidar com um traficante. Mas com um presidente de uma associação de moradores, com certeza não haveria problema algum. Sabendo disto, o crime organizado utiliza estes representantes das comunidades como ferramentas para obter verbas e benfeitorias que convenham à atividade criminosa. Possuindo o apoio destes líderes comunitários, o C.V. possui meios de conseguir, indiretamente, benefícios do governo. Como nada relacionado ao crime é feito de forma pacífica, a oposição é simplesmente eliminada. Sabe-se de diversos casos em que estes líderes comunitários, ao recusarem colaborar com os traficantes, acabaram sendo assassinados a sangue frio e substituídos por outros que aderissem aos seus interesses. O relatório do serviço secreto da Polícia Militar de São Paulo mostrado abaixo corrobora esta idéia:


“A exemplo do que fizeram os banqueiros do jogo do bicho, que têm representantes até no Congresso Nacional, os traficantes pretendem conquistar um espaço no cenário político brasileiro. […] Na sociedade desorganizada, atenua-se a fronteira entre o moral e o imoral, o lícito e o ilícito, domina o pragmatismo mais desabusado, de sorte que o crime tende a se organizar à imagem do que seria a própria sociedade. […] No estado do Rio de Janeiro, o tráfico de maconha e cocaína constitui-se numa espécie de “república livre”, impune e independente. Seu domínio se estende a várias regiões, sua economia fatura bilhões de cruzeiros. […] O Comando Vermelho já domina a terça parte das associações de moradores dos morros e exterminou treze líderes comunitários que resistiram à sua tirania.” (Serviço de Informações da PM-SP, 1991)


Houve, também, por parte da polícia do Rio, uma tentativa de entender a ligação do Comando Vermelho com a política, por meio de uma investigação no mesmo ano de 1991. Uma equipe do Serviço de Informações da Divisão de Repressão e Entorpecentes foi montada exclusivamente para este fim. Descobriu-se que os traficantes planejavam eleger vereadores e deputados estaduais. O repórter Jorge Luiz Lopes publicou, no dia 12 de maio de 1992, uma matéria no jornal O Globo baseada no relatório final da operação:


“Dois desses candidatos seriam Sebastião Teodoro, presidente da Associação de Moradores do Morro Pavão-Pavãozinho, em Ipanema, e Pedro José de Assis Batista, o Tota, cunhado do presidente da Associação de Moradores do Morro de São Carlos. (…) Os dados do documento, que não cita partidos, baseiam-se em informações levantadas pelos policiais e na correspondência apreendida com marginais. (…) Segundo a polícia, o Comando Vermelho vem dominando as associações de moradores de comunidades carentes com o intuito de formar uma base eleitoral para seus candidatos. Aqueles que se opõem a este poder sofrem represálias, como aconteceu no ano passado no Morro Dona Marta, em Botafogo, quando um casal da associação foi seqüestrado e morto.” (LUIZ LOPES, 1992 apud AMORIM, 2004 p. 283)


Outra característica do crime organizado é a sua relação com o aparelho estatal através da corrupção. Possuindo grande poder aquisitivo, obtido com o tráfico ilícito de drogas e outros materiais, grande parte do dinheiro é utilizado para corromper autoridades, que fornecem em troca serviços diversos ou apenas “vista grossa” a algumas das atividades do grupo. Como exemplo deste tipo de interação, podemos citar os recorrentes casos em que a polícia, ao apreender o traficante de drogas, cobra pagamento em dinheiro ou até mesmo em parte da droga para soltá-lo de imediato. Em seu estudo, Mingardi revela a existência de outras formas de corrupção como esta, como o pagamento mensal que policiais exigem diretamente no ponto de distribuição de drogas, e o modo como presos pagam honorários a seus advogados, que em seguida repassam o valor a autoridades corruptas, de forma que a investigação e denúncia torna-se difícil.


Falemos, agora, da organização criminosa empresarial. Na CPI da Assembléia Legislativa Paulista, o coronel Claudionor Lisboa, comandante da Polícia Militar do Estado de São Paulo, admitiu saber da existência do crime organizado com organização empresarial, com hierarquia, estrutura e objetivos próprios. A atividade deste tipo é diferente daquela praticada pelo crime organizado tradicional, visto que coloca-se como uma verdadeira empresa, atuando em áreas como o jogo do bicho, tráfico, lavagem de dinheiro, receptação etc. Recentemente, no Rio de Janeiro, constatou-se o envolvimento de donos dos restaurantes Capricciosa e Satyricon com lavagem de dinheiro, sendo que os estabelecimentos, dentre os melhores da cidade, eram inclusive utilizados para este fim, um claro exemplo do que seria a organização criminosa empresarial. Aproveitando a menção à cidade, agora seria um bom momento para falar da facção situada na mesma, a maior e mais abrangente do país,  o Comando Vermelho.


1.1. O Comando Vermelho


1.1.1 Criação


A primeira facção, precursora do crime organizado no país, surgiu com o nome de “Comando Vermelho”, ou simplesmente “C.V.”, no estado do Rio de Janeiro, nos anos 70. Nesta época encontravam-se no Instituto Penal Cândido Mendes, situado na Ilha Grande, os criminosos de maior periculosidade do país, dentre eles muitos militantes de esquerda. Os presos políticos chegavam à cadeia esperando tratamento diverso daquele dado ao ‘bandido comum’. Não gostavam de ser comparados a estupradores, ladrões de banco e assassinos. Faziam, por este motivo, grandes esforço para se manter afastados dos outros presos.


De fato, havia grande diferença entre as duas “classes”. A maioria dos militantes possuía escolaridade, não sendo raros os casos de professores e indivíduos de cultura acima da média, presos naquela época em virtude da guerra política. De maneira oposta, tínhamos do outro lado indivíduos marginais, sem qualquer tipo de educação. Estes não possuíam poder organizacional, e sua estadia no presídio resumia-se a lutar pela sobrevivência, não aspirando qualquer tipo de mudança. Já os presos políticos, inconformados com o tratamento animalesco na cadeia, pareciam possuir o poder de revolucionar. E foi com este poder que conseguiram muitas mudanças dentro do presídio, algumas inclusive boas.


As condições de vida no presídio da Ilha Grande eram realmente desumanas. Graças, em grande parte, à violenta crise econômica sofrida no país, o lugar era um verdadeiro depósito de pessoas. Construída para abrigar 540 presos, em 1979 o lugar alojava 1.284 homens. Superlotação e  inexistência de visitas ou qualquer atividade para os presos eram apenas alguns dos problemas. Os presos chegavam ao cúmulo de se matar por um prato de comida. Encontrando este cenário, os presos políticos uniam-se e realizavam greves de fome, obrigando o governo a ceder às suas exigências por condições melhores, tentando evitar que as mortes dos presos trouxessem maior repercussão no cenário mundial.


O contato inevitável destes militantes com os presos comuns acabou trazendo uma mudança no comportamento de muitas pessoas que se encontravam ali. Carismáticos, os líderes revolucionários eram respeitados dentro da cadeia pelos outros presos, que exaltavam sua extensa lista de crimes e o modo como utilizavam seus conhecimentos de guerrilha para praticá-los. Alguns presos foram aprendendo com estes militantes, como foi o caso do primeiro líder do Comando Vermelho, Willian da Silva Lima.


 O hábito de estudar e se organizar foi passado aos bandidos, e estes mantiveram estes princípios mesmo após a saída dos presos políticos. Neste sentido temos o depoimento do assaltante Osvaldo da Silva Calil, publicado em entrevista na edição de 22 de outubro de 1981 da revista IstoÉ.:


“Fiquei com os marinheiros presos em 64. Depois, com os rapazes da ALN, MR-8, VAR-Palmares, Colina, Juventude Operária e Juventude Universitária. No começo estranhei um pouco mas, com o passar dos anos, eles fizeram a minha cabeça, e cheguei até a ler a Bíblia.” (ISTO É apud AMORIM, 2004, p. 100)


Estes presos, “doutrinados” pelos presos políticos de maneira natural e até involuntária, passaram por sua vez a ensinar os outros, à medida que eles iam sendo transferidos ou libertados, como vemos na sequência da entrevista: “Os alunos passaram a professores. Convencemos os presos de que eles tinham que estudar e se organizar. Foi assim que tudo começou.”


Esta é a origem do Comando Vermelho, e podemos dizer que é também a origem do crime organizado da maneira como vemos hoje em dia no Brasil. Uma mistura do conhecimento de guerrilha e dos ideais revolucionários da milícia de esquerda com a frieza e o terrorismo do bandido da favela, que resultou em uma combinação letal, geradora de mais mortes por ano no país do que em todas as guerras pós-vietnã.


Rapidamente a organização foi crescendo dentro do presídio. Os presos filiados ao Comando Vermelho eram respeitados pelos outros, e sua maneira estruturada era novidade. Possuíam o lema “respeite o companheiro”, e entre as regras estabelecidas estava um pacto de não-violência entre os membros.


O grupo trouxe várias mudanças, como o “Clube Cultural e Recreativo do Interno” (CCRI), instituição inédita no sistema penal brasileiro. Este grêmio começou administrando uma cantina, onde os presos sem recursos poderiam conseguir em “fiado” coisas como cigarro e bebida. Aos poucos foi recebendo ajuda financeira de fora, das famílias dos presos e dos traficantes. Chegou a abrir uma farmácia dentro da cadeia, onde os presos que possuíssem dinheiro poderiam comprar remédios.


Em um local onde os presos viviam como mendigos, estas mudanças instituídas eram ótimas para o bem coletivo, e o Comando Vermelho apenas crescia em simpatizantes. O CCRI chegou a fundar um time de futebol, um jornal intitulado “O Colonial” e até mesmo uma biblioteca. As sementes plantadas pelos presos políticos começavam a dar frutos, e de fato causaram uma verdadeira revolução no presídio. A idéia de se organizar e criar uma estrutura finalmente havia chegado à cabeça dos presos, que antes não possuíam esta mentalidade.


O código de ética do C.V. instituía que coisas como o estupro e o assalto dentro do presídio deveriam ser abolidas. Havia, porém, grande parte da massa que ainda praticava estas atitudes, e estavam dispostas a evitar que a “tradição” fosse quebrada. O choque entre os dois grupos era inevitável, e de fato aconteceu de maneira muito violenta.


1.1.2 Ascensão


Em 17 de setembro de 1979, o Comando Vermelho assumiu em definitivo a hegemonia no presídio da Ilha Grande, na base da violência. Ao invadir a ala de presos onde estavam concentrados os inimigos da facção, a chamada “Falange Jacaré”, os “Vermelhos” anunciaram em voz alta que aqueles que se rendessem continuariam vivos. E então invadiram, armados de tudo que pudesse ser considerado arma num presídio. Houve um massacre, do qual entre centenas de presos apenas pouco mais de dez saíram vivos.


A guarda do presídio, curiosamente, não se envolveu, vindo a aparecer apenas quando a briga havia se encerrado, muito tempo depois. É sabido que nos presídios superlotados e sem recurso daquela época, a administração preferia que sempre houvesse disputa entre as gangues e facções. Estes conflitos sempre geravam morte em massa, o que na prática resultava em menos presos para alimentar.


O massacre foi o marco que estabeleceu apenas uma liderança no presídio. Todos os outros presos não filiados ao C.V. passaram a submeter-se às suas regras a partir daquele dia. O episódio ocorrido na Ilha Grande foi documentado pelo comandante Nelson Salmon, que enviou um relatório descrevendo detalhadamente a luta travada, e em que aquilo poderia implicar a partir daquele dia. Inexplicavelmente, o relatório foi ignorado. A medida adotada foi a pior possível. Os líderes do Comando Vermelho foram separados uns dos outros, transferidos para diversos presídios do estado do Rio de Janeiro.


     A medida trouxe alívio imediato ao conflito, mas a longo prazo tornou-se letal. Em pouco tempo, a facção havia se espalhado por todas as instituições penais do Rio. Suas regras eram conhecidas pelos presos:


“Morte para quem assaltar ou estuprar companheiros; Incompatibilidades trazidas da rua devem ser resolvidas na rua, porque a rivalidade entre quadrilhas não pode perturbar a vida na cadeia; Violência apenas para tentar fugir; Luta permanente contra a repressão e os abusos”. (AMORIM, 2004, p. 137)


 O slogan da organização “Paz, justiça e liberdade” pode ser visto ainda nos dias de hoje pelas favelas. A expansão do Comando Vermelho foi meteórica, e logo os presos começaram a se comunicar com os outros presídios e favelas, utilizando um sistema de mensagens que até hoje é utilizado. Celulares, advogados, tudo que pode ser utilizado como mensagem ao mundo exterior. Apesar de encarcerado, o líder comanda sem problema algum os seus subordinados, e a ideologia dos “Vermelhos” é adotada por quase todos os comandantes do tráfico carioca.


Nas favelas, os bandidos passaram a se organizar em estrutura hierárquica, criando um sistema em que cada um dos membros da facção exercia o seu papel. As crianças passam a ser utilizadas como “aviãozinho”, aproveitando sua inimputabilidade penal para levar a droga até o consumidor. Há os soldados, os chefes de boca, os traficantes. Nunca houvera tamanha organização no tráfico de drogas, e como acontece com uma empresa que adota nova administração, o negócio começou a gerar muito lucro.


O novo poder aquisitivo deu ao Comando Vermelho um arsenal que nunca antes havia sido visto em posse de qualquer bandido. Granadas, rifles, pistolas, metralhadoras e até bazookas eram encontradas em posse dos criminosos. O C.V. começava a se dividir em células, que atuavam de maneira muito organizada.


Como exemplo, podemos citar uma célula comandada pelo bandido apelidado de “Saldanha”. Ele e mais alguns membros da facção se estabeleceram no conjunto habitacional dos bancários, localizado na Ilha do Governador. Saldanha possuía documentos falsos que lhe conferiam o título de Juiz de Direito. Carismático, o suposto juiz fazia amizade com os funcionários dos bancos, obtendo informações vitais sobre as agências. Utilizava, então, tudo o que colhia para programar seus assaltos. Em uma operação, um grupo policial tentou prender os bandidos da célula. O resultado foi um massacre, que produziu cinco mortos e vinte e quatro feridos, a maioria policiais, sobrepujados pela superioridade bélica dos criminosos.


A equipe de policiais designada para a missão era composta, em sua maioria, por oficiais com menos de trinta anos. O grupo havia recebido a informação de que uma quadrilha estava agindo sob disfarce na área, mas não sabia exatamente do que se tratava. Em poucos minutos vasculhando a área, sua presença foi notada por alguns dos membros da célula do Comando Vermelho, que após breve troca de tiros conseguiu escapar. A outra parte do bando entocou-se em um dos milhares de apartamentos do conjunto habitacional, e logo os oficiais encontravam-se tentando adentrar o apartamento, sob rajadas de balas incessantes dos bandidos, que utilizavam metralhadoras com poder de fogo muito maior que o armamento simples utilizado pelos policiais, constituído por pistolas e espingardas calibre doze.


A duração total do confronto beirou o tempo de um dia inteiro, e a resistência apresentada por Saldanha, o chefe e último homem do grupo a ser neutralizado, causou mais prejuízo do que o esperado. O confronto ficou conhecido como “quatrocentos contra um”, e é considerado o marco do conhecimento por parte do público do Comando Vermelho. Saldanha literalmente cuspia balas pela janela nos civis e policiais, gritando o nome da facção pela qual estava disposto a morrer. O nome “quatrocentos contra um” foi dado pelo fato de que ao fim do conflito, aproximadamente quatrocentos policiais civis e militares estavam amontoados sem a menor idéia de como reagir à maneira organizada e feroz como o bandido e seus comparsas resistiam à prisão. Sem ninguém no comando e sem experiência com aquele tipo de situação, a tragédia era inevitável.


Após despejar uma de suas saraivadas pela janela, o bandido recebeu uma resposta que demonstrava claramente o despreparo dos oficiais para lidar com aquela situação.  Ao mesmo tempo, a maioria deles descarregou uma verdadeira chuva de balas, assim como mais de dez granadas incendiárias contra o prédio, que por incrível que pareça, ainda possuía civis dentro. O resultado, obviamente, foi desastroso, destruindo vários dos apartamentos. O bandido ainda conseguiu ferir mais dois ou três oficiais até ser finalmente morto com um tiro.


Um dos oficiais envolvido no conflito, o Capitão Jorge Pimentel, descreveu, em uma entrevista dada ao jornal O Estado de S. Paulo no dia 12 de abril de 1981, como conseguiu sobreviver milagrosamente após receber um tiro no rosto do criminoso:


“Estava tudo escuro. Nesse momento, dentro do quarto, com a porta aberta e agachado, o bandido me viu quase de frente. Disparou a metralhadora em cima de mim a três ou quatro metros de distância. Eu não sabia que ele tinha escapado do quarto de um apartamento para o outro, aproveitando-se da confusão. (…). Quando senti que fui atingido, não desmaiei. Não sabia quantos tiros tinha levado. (…). Comecei a sentir uma dor fortíssima nas costas, na altura da colina cervical. (…). Estava completamente ensangüentado. Pude observar que ainda mexia com as pernas. Cláudio me ajudou a ficar de pé, deu-me o colete, segurando-o com a mão direita para proteger o meu corpo e a cabeça. Cheguei ao corredor. O sangue jorrava. Tentei avisar que o Cláudio estava lá sozinho. Mas não conseguia articular nenhuma palavra. Caí e me colocaram numa maca”. (O ESTADO DE S. PAULO, 1981 apud AMORIM, 2004, p. 153)


Aquele episódio infeliz marcou a vida de todos os habitantes do Rio de Janeiro. No dia seguinte, houve larga repercussão por parte da mídia, e todos passaram a conhecer o Comando Vermelho, inclusive muitos dos bandidos que mais tarde se filiariam à facção. Estava claro que a segurança pública não possuía qualquer tipo de chance contra aquele tipo de ameaça, tamanha a falta de recursos e despreparo da polícia.


Surgiu uma onda de terror na cidade, e o nome do Comando Vermelho se fez presente nos muros da cidade, nas letras de funk, na boca do povo. Tive a possibilidade de presenciar a ascensão do Comando Vermelho nos meus tempos de infância em que residia na cidade do Rio de Janeiro. Lembro daquela época como um período em que falar do C.V. chegou a ser “moda”, e a brincadeira preferida entre as crianças de classe média era, mais que nunca, a de “polícia e ladrão”. Lembro que por todos os bairros surgiam siglas da facção pixadas nos muros, muitas vezes por pessoas que nada tinham a ver com ela. 


De fato, o respeito pelo poder destes traficantes chegava, algumas vezes, a se transformar em admiração. E não somente na cabeça das crianças, como podemos perceber pelo depoimento do ex-Secretário de Justiça de São Paulo, o jurista Manoel Pedro Pimental:


Entendo que, comparado ao mendigo, o ladrão é melhor. O mendigo, cuja honestidade é preferida como mais comovente pela sociedade, é um vencido que desistiu de lutar. Entregou-se, conformou-se com a marginalização e estendeu a mão desarmada à caridade pública. O ladrão não. Reage e enfrenta a sociedade. Arrisca a liberdade e a própria vida. Continua lutando, não se conformando com a sorte que Ihe foi destinada. Estende a mão armada e tira aquilo que muitas vezes é negado ao mendigo. Por isso é que chego a sentir certa admiração e qualificado respeito ao ladrão. Pelo mendigo, não consigo sentir mais do que piedade.” (DE SOUZA, 1983.)


Esta declaração foi apresentada no livro “O prisioneiro da Grade de Ferro”, do autor Percival de Souza. Recentemente, no Encontro Gaúcho de Estudantes de Direito realizado em nossa universidade, tivemos a oportunidade de assistir o filme baseado neste livro. Como percebemos, a “coragem” dos criminosos em desafiar as leis do nosso país é apreciada pelas nossas próprias autoridades. É claro, se a tão admirada “luta contra o sistema”, que o ladrão trava diariamente, tornasse a filha do citado jurista mais uma das incontáveis vítimas de bala perdida ou sequestro que o crime organizado faz anualmente, sua opinião seria diferente, com absoluta certeza.


Quanto à expansão do Comando Vermelho, esta foi realmente meteórica. Nos anos noventa, a facção já dominava quase todas as favelas do Rio. No dia 9 de dezembro de 1990, foi publicada uma extensa matéria sobre o C.V. no jornal O Globo, revelando o espantoso domínio que o grupo exercia na cidade do Rio de Janeiro:


“[…] 90 por cento das 480 favelas do Rio são dominadas por quadrilhas ligadas ao Comando Vermelho. […] os gerentes desses grupos armados de traficantes, sequestradores e assaltantes de bancos impõem suas leis à força aos quase dois e meio milhões de moradores dos morros que dominam.” (O GLOBO, 1990)


Um novo tipo de crime aparecia na cidade, e a diferença estava estampada na forma como os bandidos agiam, principalmente nos assaltos a bancos, que se tornaram inacreditavelmente frequentes. Neste aspecto, pude testemunhar outra experiência nos anos em que vivi na cidade. Minha mãe, Mariza, trabalhou vinte e cinco anos como bancária na Caixa Econômica Federal. Sua agência no Rio de Janeiro, uma das maiores da cidade, estava localizada no Andaraí, um bairro de classe média baixa próximo de onde morávamos. Durante os anos em que trabalhou lá, ocorreram diversos assaltos. Segue abaixo seu depoimento (informação verbal)[2] sobre como era o ambiente de trabalho na época:


“Nós os Caixas Executivos trabalhávamos sob tensão durante o tempo todo, sabíamos que seríamos o contato principal em uma ação de bandidos dentro do banco. Escolhi uma agência mais segura, que ficava em centro de terreno, com uma guarita onde os guardas faziam o seu trabalho e acredito que por isso nesse período foram somente 3 assaltos. Todos aconteceram no segundo dia útil do mês, quando fazíamos o pagamento dos militares e obviamente o cofre estava com muito dinheiro. Nessas datas o trabalho era tenso, olhávamos o tempo todo para a porta de entrada e um barulho ou uma voz mais alta no meio da agência lotada já era motivo para pânico e medo. No primeiro assalto entraram 15 bandidos na agência logo na abertura da agência, aos gritos ameaçando atirar com fuzis se alguém reagisse. O guarda foi desarmado imediatamente enquanto outro grupo se dirigia aos caixas com mochilas esvaziando as 12 gavetas. Tudo acontecia ao mesmo tempo e enquanto entregávamos todo o nosso numerário outro grupo de bandidos já estava na Tesouraria. Lembro que minha colega Tesoureira levou algum tempo para abrir o cofre e sofreu uma coronhada na cabeça e teve que ser atendida no hospital. Eles estavam sempre muito nervosos e tudo tinha que acontecer muito rapidamente. No total ficavam no máximo 4 minutos dentro da Agência. Nesse dia fecharam a rua, para poder fugir com rapidez. Numa outra ação, quebraram a porta de vidro e pessoas se machucaram com os estilhaços. Foi um susto muito grande, os clientes se jogavam no chão e se escondiam embaixo das mesas. Nós caixas não podíamos fugir, com medo de tiros pelas costas. Nesse episódio, alguém na rua viu a entrada dos bandidos na agência e avisou a polícia que chegou no momento em que saíam. Houve troca de tiros e dois bandidos morreram, outros três foram pegos e os outros fugiram. Durante esses onze anos foram muitos os momentos de tensão e medo. Qualquer mal entendido dos bandidos ou reação de nossa parte poderia ter nos custado a vida.”


Os assaltos eram, realmente, muito bem planejados. Não apenas as agências bancárias, mas também as lotéricas e qualquer tipo de estabelecimento que concentrasse dinheiro era alvo. A cidade não estava acostumada com aquele tipo de atividade desde a época da ditadura militar, quando a guerrilha de esquerda praticava atos parecidos. A maioria dos assaltos durava entre quatro a cinco minutos, e os conflitos com a polícia, quando existiam, ocorriam sempre já na fuga, um bom tempo após os criminosos terem deixado o banco.


Um bom exemplo de como as investidas às agências bancárias eram bem planejadas é o caso, já anteriormente citado, da célula do C.V., que, liderada por Saldanha, instalou-se no conjunto habitacional dos bancários para obter informações preciosas sobre os bancos. Com toda a certeza outras diversas células do grupo trabalhavam infiltradas, colhendo informações sobre os lugares que pretendiam assaltar, tamanho o conhecimento que os bandidos demonstravam sobre os alvos, e tamanha a rapidez com que agiam.


Algumas estatísticas nos oferecem um bom panorama da situação em que a cidade se encontrava naquela época. Uma pesquisa feita pelo CESeC[3] – Centro de Estudos de Segurança e Cidadania analisou o número de roubos a instituição financeira no período entre os anos de 1991 a 2008 na cidade do Rio de Janeiro.


Segundo o referido estudo realizado pelo CESeC, o número de roubos a instituição financeira no ano de 1991 foi de 270 (Fig.1). Isto porque nos anos 90 o grupo já não utilizava tanto o assalto como fonte de renda, mas sim o tráfico. Ainda assim, o número espanta. Mais recentemente, no ano de 2008, foram registrados apenas 27 (Fig. 1).


Isto representa uma redução de 90%, o que nos mostra como a segurança pública foi surpreendida na época e precisou de um bom tempo para se adaptar ao novo tipo de criminoso que havia se instalado na cidade. Mais precisamente, o pior ano nesse aspecto foi o de 1995, em que houve 361 roubos a instituição financeira. A partir daí, houve sistemática redução do número, que a partir de 2002 não ultrapassou mais a casa das centenas. Os dados podem ser vistos na Fig. 1 abaixo:


 


Figura 1 – Roubos a instituição financeira. Rio de Janeiro, RJ.


Outro aspecto importante que podemos reparar ao analisar o gráfico, é a forma como os números aumentam e diminuem em forma de ondulação. A explicação para isto é simples: os assaltos ocorriam “em rajada”, em curtos períodos, inclusive muitos ao mesmo tempo, para dificultar a ação da polícia. Desta forma, em períodos que ocorria grande atividade por parte dos assaltantes, a segurança era reforçada. Sabendo disto, os criminosos ficavam algum tempo sem conduzir novos roubos, o que poderia gerar mortes desnecessárias em confrontos com a polícia. Esperavam que a “poeira baixasse”, para então retomar os trabalhos. Isto fica bastante claro principalmente na evolução dos roubos entre os períodos de 1991 a 1995. Em 1992, após um pico de 270 roubos no ano anterior, o número caiu para 153. Em 93 e 94 não aumentou muito, até que em 95 houve um verdadeiro pandemônio na cidade, que registrou 360 assaltos a banco, o recorde de todos os tempos.


A partir de 1996, houve grande queda nos roubos a instituição financeira, e hoje em dia este número é irrisório perto do que era antigamente. Com certeza isto se deve ao fato de que a segurança nas instituições evoluiu de forma considerável, mas este não foi o motivo determinante. O que fez os assaltos diminuírem tanto foi o fato do Comando Vermelho, especificamente, perceber que poderiam investir em algo muito mais seguro e rentável, como veremos no próximo subcapítulo.


Outro fenômeno que aparecia na cidade era o resgate de presidiários. Esta era provavelmente mais uma “herança” dos aprendizados com os presos políticos, que tinham o costume de libertar seus companheiros utilizando diplomatas estrangeiros como reféns. A ação do Comando Vermelho, porém, era diferente. Os criminosos faziam de tudo para tirar os membros importantes da organização que tivessem sido presos. Muitos advogados desprovidos de ética e providos de ganância eram utilizados para isso, mas outras formas mais radicais também eram utilizadas. No próprio presídio da Ilha Grande, por diversas vezes uma lancha foi utilizada para resgatar presos.


Em um dos mais impressionantes e audaciosos resgates de que se teve notícia, dois membros da facção entraram no prédio do Conselho de Sentença da 2ª Auditoria do Exército, localizado no centro da cidade. Armados, os homens aproveitaram o momento em que o seu comparsa, Rubens Pereira da Silva, estava a sós com o juiz Antônio Cavalcanti Siqueira Filho para prestar depoimento. Entraram na sala, renderam a escolta responsável pelo preso e o levaram, diante de aproximadamente quinze homens da polícia do Exército que se encontravam no lugar.


1.1.3 O tráfico


Apesar do respeitável poder que o Comando Vermelho possuía, o que realmente elevou a organização a outro nível foi o investimento pesado no tráfico de drogas. Até então, o tráfico existia, mas era feito de maneira muito mais modesta. Era praticado de forma menos abrangente, em pontos de venda principalmente nas favelas. A partir de 1984, porém, os líderes resolveram expandir o negócio.


O objetivo era controlar toda a região do Grande Rio, assim como cidades próximas e de turismo como Búzios, Cabo Frio, Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. Os líderes da facção haviam percebido com a prática que o tráfico era um negócio muito mais rentável. O lucro era absurdo, o perigo não era tão grande se comparado aos frequentes assaltos à mão armada que eram realizados, e o grupo já era grande o suficiente para que pudesse tomar o próximo passo.


Na verdade, esta mudança nos rumos da facção refletia o que já acontecia a um bom tempo com o crime organizado no mundo inteiro. Antes da entrada nos anos 80, a máfia italiana já utilizava o tráfico de drogas como principal atividade. Atuavam em diversos países como os EUA, onde tinham grande influência, principalmente em Nova York. De 80 em diante, houve destaque por parte dos cartéis colombianos de Medellín e Cali, que rapidamente passaram a fornecer drogas para a megalópole brasileira. O C.V. entrou na história como “sócio” desses grandes fornecedores de cocaína da América do sul. O próximo passo seria obter controle total sobre a venda nas favelas, eliminando os pequenos grupos individuais que não atuassem com a organização.


Começaram, então, os famosos confrontos nos morros do Rio de Janeiro. Os membros do Comando Vermelho formavam grupos com dezenas de “soldados”, geralmente armados com Uzis[4] ou fuzis AK-47[5], e invadiam as favelas, matando ou capturando todos os traficantes pertencentes à quadrilha que dominava o ponto local. Nestas guerras, apesar de comum a morte de muitos inocentes moradores das favelas,não era raro o Comando Vermelho obter apoio das comunidades. A organização se preocupava em realizar um tipo de “trabalho social” nas comunidades onde estabelecia suas bases de operação. O apoio vinha de diversas formas, como distribuição de botijões de gás roubados, comida, e até construção de creches.


Um interessante depoimento, prestado pelo criminoso Jorge Zambi, filiado ao C.V., na edição de 10 de dezembro de 1984 no Jornal do Brasil, mostra esta idéia:


“Nós, ex-assaltantes de bancos que entramos no mercado do tóxico, catequizamos os favelados e mostramos a eles que o governo não está com nada e não faz nada para ver o lado deles. Então, nós damos alimentação, remédios, roupas, material escolar, uniforme para crianças e até dinheiro. Pagamos médicos, enterros, e não deixamos os favelados saírem de lá para nada. Até briga de marido e mulher nós resolvemos dentro da favela, pois não pode pintar sujeira para polícia não entrar”. (JORNAL DO BRASIL, 1984 apud AMORIM, 2004, p. 217)


Este tipo de atitude não existia na relação entre os moradores da favela com os criminosos comuns, não filiados ao C.V. Por este motivo, ainda que os moradores tivessem que conviver com tiros e explosões, ou até mesmo sair de suas casas por quanto durasse os conflitos, sabiam que o tratamento que receberiam seria “melhor” que o anterior.


Outro aspecto que preocupa em relação ao exército criminoso formado nas favelas, é a capacidade de rápida substituição. Sempre que cai um líder, outro estará prontamente capacitado para tomar o seu lugar. O índice de natalidade nas comunidades carentes é bem maior que nas classes média e alta, e isto proporciona uma fonte inesgotável de possíveis novos criminosos. Cada criança destas que nasce em meio ao crime, convivendo com traficantes que lhes dão quase tudo o que a sociedade não lhe proporciona, se tornará possivelmente um novo soldado do crime. O depoimento prestado pelo traficante William da Silva Lima, um dos líderes do C.V., ao detetive João Batista Pereira Neto, ilustra esta idéia:


“À medida que não nos deixamos usar, comprovamos, sem soberba, que conseguimos aquilo que a guerrilha não conseguiu, o apoio da população carente. Vou aos morros e vejo crianças com disposição, fumando e vendendo baseado. Futuramente, elas serão três milhões de adolescentes que matarão vocês nas esquinas. Já pensou o que serão três milhões de adolescentes e dez milhões de desempregados em armas? Quantos Bangus Um, Dois, Três, Quatro, Cinco… terão que ser construídos para encarcerar essa massa?” (AMORIM, 2004)


Muitos violentos conflitos ocorreram nos anos subseqüentes, mas o poder de fogo e organização do Comando Vermelho estavam lhe conferindo a vitória na guerra. Ao final de 1985, o grupo dominava setenta por cento dos pontos de venda da cidade, e ainda assim continuava sua busca pela hegemonia no tráfico. Ao final de cada batalha no morro, uma imensa cruz iluminada era construída no alto do morro, representando o domínio exercido pelo C.V. naquela área.


Quando criança, morador do bairro do Grajaú, frequentemente observava pela varanda do prédio um morro que ficava bem próximo. Lembro-me perfeitamente do dia em que reparei uma imensa cruz brilhante no alto do morro, surgida de um dia para o outro. Ao perguntar a algum adulto do que se tratava, disseram-me que era provavelmente uma igreja. Dei-me ao trabalho de inspecionar a tal cruz com um binóculo emprestado, percebendo então que não estava acima de uma igreja, mas simplesmente fincada no solo. Mais de quinze anos depois, realizando esta pesquisa, consegui finalmente entender do que se tratava aquilo.


As guerras no morro produziam vítimas muito além das que ali estavam. Algumas das armas utilizadas possuíam longo alcance, como os rifles AK-47. O projétil desta arma pode viajar a uma distância superior a 1,5Km. Com isso, todos os bairros de classe média localizados nas proximidades dos morros, como o meu, eram frequentemente alvejados. Lembro-me de pelo menos uma vez em que uma dessas balas atingiu o prédio onde morava, em uma área onde costumava brincar com os amigos, no playground. Uma das amigas de nossa família, Heloísa Borges, também moradora do Grajaú, teve seu apartamento atingido três vezes por bala perdida e decidiu compartilhar sua experiência (informação verbal)[6], contribuindo com a pesquisa:


“O primeiro tiro atingiu a porta da varanda do meu quarto que fica de frente para a rua Castro Barbosa, ou seja não é de frente para o morro. Foi num domingo às 18:00 mais ou menos. Neste mesmo  dia, minutos antes, eu havia falado no tel sentada na varanda no exato lugar aonde o tiro atingiu a porta. Quando acabei a ligação fui para a cozinha e o Claudio estava no quarto vendo televisão. Da cozinha ouvi um barulho e fui ver o que era. Quando cheguei ao quarto a porta estava quebrada. Só não despencou porque tinha “insulfilm”. Procuramos e achamos o projétil caído no chão. Tb houve um tiro no portal da cozinha para a área de serviço em outra ocasião. Este cômodo fica de frente para o morro do Andaraí. Seu pai levou o projétil para analisar e constatou ser de fuzil. Desta vez eu não estava em casa. Os vizinhos não se espantaram muito pois outros apartamentos já haviam sido atingidos e já foram encontradas balas caídas na piscina do prédio. E assim fica tudo por isto mesmo.”


Depoimentos como este são comuns, inclusive hoje em dia. As chamadas “balas perdidas” fazem muitas vítimas todo o ano no Rio de Janeiro, em alguns casos resultando em morte. Foi assim com o famoso caso da estudante atingida na cabeça enquanto transitava nas dependências da faculdade em que estudava.


Paralelo à guerra pelo controle do tráfico, continuavam os resgates a líderes presos. José Carlos dos Reis Encina, conhecido como “Escadinha”, foi um dos que desfrutou desse tipo de operação. Exatamente na véspera do ano-novo, em 1985, Escadinha foi resgatado do presídio da Ilha Grande para ajudar na guerra pelo tráfico. No período da tarde, à plena luz do dia, um helicóptero pousou sem a menor preocupação no pátio do presídio, embarcou Escadinha e uma mulher que o acompanhava, e voou de volta para o continente sem o menor problema. A desculpa alegada pelos funcionários da cadeia era de que acreditavam tratar-se do helicóptero usado pelo diretor do Desipe[7]. Durante  o carnaval seguinte, no ano de 1986, o criminoso chegou a desfilar em uma escola de samba, sendo até mesmo entrevistado por iniciativa própria por emissoras de rede nacional. Apenas mais uma demonstração da incapacidade do poder público perante os grandes chefes do tráfico daquela época. Segue abaixo relato publicado na já mencionada obra de Carlos Amorim, “CV_PCC A Irmandade do Crime”, dado pela jornalista Lily Yusim, que conversou com o bandido enquanto este se encontrava foragido:


“Conversamos muitas vezes. Escadinha pedia que eu fosse me encontrar com ele. Ficava desmentindo o noticiário dos jornais.  Dizia que era tudo um tremendo sensacionalismo.  Foi uma experiência muito curiosa. O mais engraçado é que ele ligava para a rádio e mandava me chamar.  Na época, tive muito medo disso”. (AMORIM, 2004)


E a fuga de prisioneiros continuava de forma desenfreada. O diretor do presídio da Ilha Grande chegou a afirmar, no ano de 1986, que nada menos que 36 prisioneiros sumiram da instituição, sem que se pudesse explicar como. De qualquer forma, a presença de Escadinha figurando na liderança do grupo pareceu acelerar o processo de tomada dos morros, e algumas das maiores favelas do Rio, como o Vidigal e a Rocinha, foram tomados de vez pela facção nesta época. Em 1987 a guerra é dada como encerrada, e o Comando Vermelho possui poder sobre quase todos os pontos de tráfico da cidade. Chegava a hora de fechar negócio com os grandes fornecedores.


Sabe-se que o primeiro grande acerto de importação de cocaína feito pelo C.V. foi negociado diretamente com o cartel de Medellín, da Colômbia. O negócio foi feito com o traficante considerado o mais poderoso do mundo, o colombiano Pablo Escobar. A cocaína que chegava da Colômbia possuía mais de 90% de pureza. Nas favelas do Rio de Janeiro, porém, sofria um processo de modificação. Eram adicionados ao pó substâncias de aspecto semelhante, como bicarbonato de sódio, talco e pó de mármore. Mesmo após este processo, o grau de pureza da cocaína permanecia muito acima do que se costumava ver à venda na cidade, e por este motivo era vendida – literalmente – a preço de ouro. Naquela época, 1 grama de cocaína equivalia exatamente a 1 grama de ouro.


A máfia colombiana já era monitorada a algum tempo pela polícia federal americana. Quando descobriu-se o envolvimento de Pablo Escobar com o Brasil, houve uma ação conjunta entre os países para reprimir a atividade. O DEA (Drug Enforcement Administration) e o FBI (Federal Bureau of Investigation) forneciam  informações valiosas à polícia federal brasileira, e desta ação conjunta resultaram grandes apreensões. As cidades em que a operação do tráfico era mais incisiva eram Rio de Janeiro, São Paulo e Florianópolis. Grandes apreensões eram feitas, como em 1988, quando a Delegacia Federal de Repressão a Entorpecentes prenderam no centro de Florianópolis o traficante Gerson Palermo, do Cartel de Medellín. O criminoso enviava do Brasil à Colômbia materiais necessários para o refinamento da cocaína, como éter, acetona e lâmpadas infravermelhas. Recebia de volta grandes quantidades de cocaína para revender. No dia de sua prisão, a polícia interceptou dez caminhões e seis aviões contendo milhares de recipientes com este material para refino.


Já em São Paulo, em outubro do ano de 1990 foi feita outra grande apreensão com a prisão de três italianos e um colombiano, todos traficantes. As informações necessárias à prisão dos criminosos foram fornecidas pela Interpol à Polícia Federal, que desta forma ficou sabendo que dois dos traficantes encontravam-se no Rio, e dois em São Paulo. Juntamente com a prisão, foi apreendida a quantia de 500 kg de cocaína, o que equivalia a 5 milhões de dólares. Cada vez mais se percebia o lucro irreal que era obtido com o tráfico de drogas, principalmente da cocaína.


Estas grandes apreensões revelavam como o panorama havia mudado no país após o envolvimento das máfias internacionais, principalmente dos cartéis colombianos. A cocaína estava disponível em quantidades jamais vistas antes, e estava claro que seria essencial tentar reprimir este intercâmbio, se não cortando o elo entre os traficantes dos dois países, ao menos enfraquecendo-o.


Começaram a ser elaboradas operações tentando inibir o tráfico internacional de drogas. Uma delas, a Operação Mosaico[8], revelou, em agosto de 1987, outro dos grandes personagens no tráfico de drogas brasileiro, o traficante Antônio José Nicolau, também conhecido como “Toninho Turco”. Ao analisar as rotas do tráfico internacional, a Polícia Federal descobriu que trinta e uma das favelas do Rio de Janeiro eram “abastecidas” com cocaína por este mesmo indivíduo, que possuía 52 anos na época. O traficante era envolvido ainda com o jogo do bicho, uma espécie de “hobbie”.


Outro aspecto interessante é que seu filho, José Antônio Nicolau, foi eleito Deputado Estadual no ano de 1986. Sua campanha foi financiada pelo próprio pai. Este fato confirma uma característica já mencionada do crime organizado, a de envolver-se com o Estado, possuindo poder dentro do próprio governo. A repórter Mônica Freitas, presente no dia em que Toninho Turco acabou morto em conflito com agentes federais, disse o que sabia sobre o criminoso na edição de 11 de fevereiro de 1988 do Jornal do Brasil:


“A fortuna de Turco financiou a campanha de seu filho José Antônio, eleito deputado estadual em 86 pelo Partido Liberal, e de outros políticos como o delegado José Aliverti, suplente de deputado pelo PL. Ainda hoje, nas ruas de Marechal Hermes, podem ser vistas placas da campanha de José Antônio, um deputado apagado, ideologicamente indefinido, que no ano passado transferiu-se para o Partido Socialista, para assumir a liderança na Assembléia, onde é o único deputado da legenda”. (JORNAL DO BRASIL, 1988)


Especificamente sobre seu envolvimento com o jogo do bicho, a mesma jornalista diz:


“Ligado à contravenção por laços de amizade, Turco seria, pelo que a polícia deduz, o elemento encarregado pelos banqueiros (bicheiros) de fazer o tráfico de drogas. Alguns banqueiros estariam financiando o tráfico


 Interno e externo e emprestando dinheiro para os traficantes comprarem grandes quantidades de cocaína, repetindo assim a trajetória de Turco – aplicar dinheiro sujo em negócios sujos. A ligação de Turco com o bicho era reconhecida até mesmo na Assembléia Legislativa, onde José Antônio é apontado como “filho de bicheiro”. (…) Um documento reservado das Forças Armadas reforça as suspeitas do envolvimento do bicho no tráfico de drogas, através de Turco. Segundo o relatório, após a morte do ex-policial Mariel Mariscotte de Mattos, em 81, houve uma reunião entre os chefões do bicho, que chegaram à conclusão de que, em pouco tempo, o tráfico de drogas se tornaria perigoso e incontrolável.” (JORNAL DO BRASIL, 1988)


Além da participação no jogo do bicho, Toninho Turco chegou a trabalhar como policial no passado. O traficante começou sua carreira como fiscal de barreira, trabalhando em postos de controle de rodovias do Serviço Fazendário da Guanabara. Comercializava ilegalmente as mercadorias apreendidas, sendo mais tarde chamado para trabalhar como detetive na delegacia de Roubos de Automóveis. Em 1982, no entanto, acabou sendo demitido de vez, provavelmente por causa de sua conduta de flagrante corrupção.


Os anos como policial serviram, porém, para que Toninho Turco fizesse amizades importantes na sua vida de traficante. A Operação Mosaico descobriu que dentre os 96 criminosos membros da quadrilha de Toninho Turco, aproximadamente 60 por cento deste número eram policiais ou ex-policiais. Até policiais militares e oficiais do exército participavam do esquema, o que acabou explicando o sumiço de grandes quantidades de munição e armas no Exército. Mais uma vez revela-se oportuna a reportagem feita pelo Jornal do Brasil com a repórter Mônica Freitas:


“No segundo semestre de 87, policiais civis prenderam Turco em flagrante, com cocaína, junto com o ex-agente federal João César Rodrigues, o João Fofão, condenado por extorsão e que, para a justiça, deveria estar cumprindo pena na Prisão Especial do Ponto Zero, em Benfica. Os dois ofereceram aos policiais um milhão e 600 mil e foram liberados sem qualquer registro. (…) Em 7 de dezembro, um grupo de policiais civis teria tentado fazer uma mineira (extorsão) em Marechal Hermes. Foram cercados por homens ligados a Turco, que reagiram e chegaram à agressão física. (…) Em 20 de janeiro de 88, uma equipe da Delegacia de Vigilância Norte prendeu três homens no estacionamento da rua Sirici, 44, de propriedade de Turco, em meio a uma venda de dois quilos de cocaína. (…) Os presos foram liberados.” (JORNAL DO BRASIL, 1988)


A participação de policiais e oficiais das forças armadas com quadrilhas criminosas é um fenômeno que ocorre até hoje. Roubos inexplicáveis de armamentos militares continuam a acontecer, o tipo de coisa que só é possível com ajuda interna. O poder de corrupção das quadrilhas ligadas ao tráfico é, de fato, algo a ser levado em consideração. Muitos oficiais não possuem a coragem e pulso firme suficientes para enfrentar as ameaças e propostas dos bandidos.


Muitas vezes um trabalhador honesto e sem prévia participação alguma com o crime se vê sem alternativas ao saber que se cooperar com o tráfico, receberá uma quantia enorme em dinheiro, mas que se não o fizer, pagará com a vida de seus familiares. Da mesma forma existe, claro, aqueles que entram por conta própria no mundo do crime, aproveitando seu cargo de autoridade para lucrar algo que supra o baixo salário e lhe permita uma vida mais confortável.


O fato é que, ao fim da Operação Mosaico, Toninho Turco acabou morto e o tráfico do Comando Vermelho sofreu o maior golpe já recebido até hoje em suas finanças. Afinal de contas, mais tarde descobriu-se que o traficante encarregava-se, sozinho, de mais de 60% da droga distribuída nas favelas do rio. Os detalhes acerca da operação serão dados no próximo capítulo, em que será feita uma análise mais minuciosa daquela que foi considerada uma das operações mais bem-sucedidas da Polícia Federal contra o crime organizado, algo de que devemos realmente nos orgulhar.


Sempre que a polícia realizava este tipo de operação, e o abastecimento da cocaína era cortado, o preço da droga subia de forma instantânea. Assim, muitos dos viciados acabavam comprando a fiado, o que gerava sempre muitas mortes. Não pagar um traficante significa, quase sempre, sentença de morte. Até hoje vemos casos de usuários de drogas, alguns de classe alta, verem sua vida chegar ao fim por problemas com este tipo de organização criminosa.


1.1.4 Expansão


Alguns dos fatos expostos mencionaram o fato do Comando Vermelho possuir ligações com outros lugares do país, principalmente São Paulo e Florianópolis. Ainda assim, a organização não havia se estabelecido estruturalmente nestas cidades. Ocorreu, porém, que com o notável ganho de poder tido pelo C.V. a partir do investimento no tráfico, a cidade de São Paulo foi logo alvo de uma operação que pretendia instalar o Comando Vermelho ali. Alguns dos líderes da facção reuniram-se, e começaram a comprar estabelecimentos e montar bases de operações na capital paulista. Uma reportagem publicada no dia 11 de março de 1993, era anunciada na primeira página do jornal Folha de S. Paulo, com a frase “Comando Vermelho Invade SP”. Segue abaixo um trecho da mesma:


“O Comando Vermelho, agremiação de traficantes de drogas e ladrões do Rio e Janeiro, invade lentamente São Paulo. É o que diz um relatório elaborado pelo Serviço de Inteligência da Polícia Militar, obtido com exclusividade pela Folha. Pelo menos sete assaltos foram praticados em São Paulo, no último ano, por membros do Comando Vermelho. (…) um dos centros de operação é o Conjunto Habitacional Tiradentes. O suposto líder do CV em São Paulo seria o comerciante Mário Sérgio Arias, aponta o relatório. Arias foi preso em maio de 1991 em Monguaguá, sob acusação de portar 680 quilos de maconha. Simulando uma dor de estômago, Arias foi levado a um hospital e resgatado por doze homens armados de metralhadoras. O documento revela ainda que o CV estaria comprando postos de gasolina, lojas, restaurantes e casas lotéricas, por intermédio de bicheiros, para lavar o dinheiro da organização. (…) As quantias arrecadadas pelo CV não mais seriam remetidas ao Rio, e sim instaladas definitivamente em São Paulo”. (FOLHA DE S. PAULO, 1993)


O relatório feito pelo serviço secreto da Polícia Militar trazia um tom de preocupação, e com toda a certeza justificada:


“No COHAB TIRADENTES havia pequenos furtos e brigas de bares. Tudo mudou com a chegada dos líderes do COMANDO VERMELHO: eles recrutavam ladrões e traficantes, entregando-lhes armas pesadas, e passaram a reinar no conjunto. (…) Em janeiro de 91, dois integrantes do  COMANDO VERMELHO foram presos em São Paulo e confessaram ter assaltado cinco prédios residenciais na capital. MARCUS JOSÉ DE OLIVEIRA e ADAUTO TEIXEIRA foram reconhecidos por moradores de três prédios. (…) MARCUS OLIVEIRA informou aos policiais que 10% do valor dos assaltos eram entregues ao COMANDO VERMELHO: “O dinheiro serve para pagar advogados, melhorar a situação dos que estão presos e financiar comida e drogas nos presídios. (…) Representa um problema muito sério o agregamento de presidiários paulistas ao COMANDO VERMELHO, o que poderia proporcionar aos mesmos um “sentimento de superioridade”, tendo em vista a glorificação do mundo do crime em torno do COMANDO, ocasionando rebeliões e, o que é pior, uma situação espelho do estado caótico do Rio de Janeiro.” (FOLHA DE S. PAULO, 1993)


Esta última parte do trecho, em especial, é muito interessante. Os policiais pareciam adivinhar o que estava por vir ao alertar para o convívio dos presos do C.V. com os presos normais de São Paulo. Ocorre que, foi exatamente assim que mais tarde o Comando Vermelho aliou-se com uma das três facções criminosas da capital paulista, o Primeiro Comando da Capital, a qual analisaremos em seguida.


1.2 O Primeiro Comando da Capital


Acredita-se que a primeira pessoa a revelar a existência desta organização foi a jornalista Fátima de Souza, no ano de 1995. Em uma reportagem feita para o Jornal da Band, Fátima denunciava a facção que 6 anos depois se tornaria responsável pela maior e mais violenta rebelião conjunta nos presídios da cidade. Em 2002, a mesma repórter relatou o que sabia sobre o início da organização:


“Na cela sempre escura da Casa de Custódia de Taubaté, numa quinta-feira, os seis detentos ainda estavam com as camisas suadas. Tinham jogado mais uma partida de futebol. O talento com a bola tinha rendido a eles fama e liderança na prisão. E também um nome para o time: “Comando da Capital”. Transferidos de São Paulo para o interior, foram desafiados pelo time local, formado por presos da terra: “Os Caipiras”. Naquela noite, mais uma vitória. Cesinha, franzino de olhos incrivelmente vivos, questiona os companheiros de penas: – Nossa união e luta vai se resumir à vitória no futebol? Por que não aproveitamos esta força para lutar pelos nossos direitos? Até quando vamos ser tratados assim, sem respeito?” (AMORIM, 2004)


Os times de futebol bem-sucedidos no presídio ganhavam o respeito dos presos. Foi assim nos primórdios do C.V., quando o time “Chora na Cruz”, dos integrantes da facção, atuava no presídio da Ilha Grande. Ainda na reportagem, mais esclarecimentos sobre como evoluiu a idéia de expandir o que começou como um simples time de futebol:


“Geléia, amigo de coração e de crime de Cesinha, acompanhou o discurso inflamado do outro e também falou naquela noite: – Como vamos chamar esse novo ‘time’? – Primeiro Comando da Capital – batizou Cesinha, usando parte do nome do time que os consagrara na cadeia. Nascia ali o PCC. Em poucos dias as idéias foram colocadas no papel. E até um Estatuto foi manuscrito. Prometiam fidelidade, luta até a morte pelos direitos jamais respeitados dos detentos neste país. Foi rápido: nas rebeliões, lençóis brancos apareciam com as três letras (PCC) do partido do crime. Subestimado pelo governo, que não conhece a realidade das cadeias, o PCC criou raízes em todo o sistema carcerário paulista. Nas prisões, diretores ultrapassados, da época da repressão, tentavam resolver o problema da maneira em que foram doutrinados: porretes, choques, água fria, porrada… Não foi suficiente. Em menos de três anos, já eram três mil. Em menos de dez anos, 40 mil…” (AMORIM, 2004)


Em 2001, o PCC apareceu para todo o Brasil. O grupo comandou vinte e nove rebeliões simultâneas, em cadeias de todo o estado de São Paulo. O saldo da ação foi de dezesseis mortos e aproximadamente cem feridos. O movimento, com cobertura total da imprensa, anunciava o que a repórter Fátima já havia alertado seis anos atrás.


Algo que os presos sempre respeitaram era o dia de visitas, uma conquista preciosa na luta contra o sistema carcerário opressivo e animalesco. No dia 18 de fevereiro de 2001, no entanto, os presos aproveitaram-se deste dia quase que sagrado para organizar a grande rebelião. Sua exigência era de que os chefes do PCC, transferidos a pouco tempo para localidades no interior do estado, voltassem. A intransigência levou ao grande tumulto que se seguiu, onde familiares e pessoas alheias ao conflito passaram horas em estado de total caos. Mesmo com a convocação de todo o batalhão de choque, que juntou milhares de policiais, a operação foi bastante difícil. Os membros da facção aproveitaram o tumulto para assassinar dentro da cadeia alguns dos chefes das quadrilhas inimigas de forma brutal.


Esta demonstração dada pelo PCC da fragilidade do sistema chamou a massa carcerária para seu lado. Com a popularização da facção, houve um crescimento instantâneo do número de afiliados, que passaram a respeitar o poder demonstrado pelos criminosos, ao mobilizar naquele mesmo dia, 27 mil presidiários para um mesmo objetivo. Foi divulgado na época até mesmo um estatuto com regras de conduta, formulado pelos líderes do grupo, com diretrizes idênticas às do Comando Vermelho.


José Márcio Felício, o já citado Geléia, era o líder da organização. Quando perguntado pelo jornalista Carlos Amorim sobre seu envolvimento com o Comando Vermelho, respondeu: “Tudo o que posso dizer é que estamos associados.” De fato, tudo indicava que havia uma parceria entre as duas facções. Os membros do PCC, assim como os do C.V., utilizavam o Alfabeto Congo para codificar suas mensagens. O antigo lema “Paz, Justiça e Liberdade” também era adotado pela nova organização, assim como os princípios que condenavam a violência entre os presos, os estupros e etc.


Apesar de não possuir poder sequer comparável com o do C.V., o PCC já conquistou a hegemonia entre as quadrilhas da capital paulista. O grupo não é tão bem estruturado nem tão atuante quanto o C.V., mas por ter se aliado ao mesmo representa uma ameaça a ser considerada. As consequências que a aliança entre esses dois monstros criados pelo sistema carcerário brasileiro podem trazer vão além da imaginação de qualquer um. Até o momento não se encontrou a solução ideal, apesar da notável evolução. Analisaremos a seguir os aspectos concernentes à repressão do crime organizado.


2   O COMBATE


As atividades praticadas pelo crime organizado são muitas e variadas. É absolutamente correto dizer que dentre os pilares que sustentam o crime, o tráfico de drogas é o mais forte. Ele dá – em abundância – ao criminoso a sua principal arma: o poder financeiro.  O grande trunfo das principais facções criminosas de hoje em dia é possuir uma economia fora da realidade, que lhe permite lucrar, de modo ilícito, valores acima da capacidade de qualquer outra atividade comercial conhecida.


Ainda assim, há que se atentar para as outras ramificações tomadas pelo crime organizado.  Podemos citar o tráfico ilícito de armas, pessoas, automóveis roubados, recursos naturais, objetos de valor cultural, espécies animais em extinção e até mesmo de órgãos humanos, além da lavagem de dinheiro. Outro mal causado é o da corrupção, que é proporcional ao capital possuído pelos criminosos. Mediante a corrupção das autoridades, o crime organizado obtém maior facilidade para realizar as atividades ilícitas, além de esquivar-se de forma eficaz da lei.


Outro aspecto a ser relevado quando se fala em crime organizado é o da globalização. O estágio atual de tecnologia avançada, ao facilitar as relações humanas de todo o mundo, facilitou também as atividades ilícitas. Como exemplo podemos citar a poderosíssima internet, que trouxe uma nova e vasta gama de opções para os mal-intencionados. A difusão desta tecnologia trouxe grande mudança na natureza e na amplitude do crime organizado. A comunicação rápida e dinâmica simplesmente anula os problemas com tempo e distância, fazendo com que pessoas em lugares opostos do mundo possam trocar informações rapidamente, de forma até certo ponto sigilosa.


Enquanto o criminoso adaptou-se facilmente às novas mudanças trazidas pela tecnologia e aprendeu a utilizar esta situação para seu benefício, os governos evoluem lentamente na criação de leis e outros aparatos impeditivos da prática do crime. Em decorrência disto, o que vemos na prática é a impunidade do infrator, que está sempre um passo à frente das autoridades.


Países em desenvolvimento, como o caso do Brasil, são os que mais sofrem com esta difusão global da criminalidade. O perigo trazido pela corrupção das instituições policiais, alfandegárias e judiciais é ainda mais real, e pode se tornar um entrave na prosperidade da nação. É essencial, neste caso, uma interação entre os países do mundo todo. Adotando as práticas bem-sucedidas pelos outros Estados, trocando informações e aprendendo, serão obtidas as maiores vitórias contra o crime organizado. Os resultados já foram vistos na prática, quando a Polícia Federal brasileira uniu-se à americana na repressão ao tráfico internacional de drogas que havia se instalado no nosso país. Num esforço conjunto, importantes operações foram feitas, e este é mesmo o melhor caminho a ser tomado.


Se o crime aprendeu a se globalizar, fortalecendo-se com isso, a repressão deve tomar o mesmo rumo, de forma a obter melhores resultados. Uma grande esperança neste sentido é a atividade exercida pela ONU – Organização das Nações Unidas – que ultimamente têm se preocupado bastante com este intercâmbio na luta contra o crime organizado, criando resoluções e convenções entre as diversas nações do mundo com o intuito de aprender novas formas de combate ao crime, além de difundir as já conhecidas.


2.1 A atividade de inteligência


Podemos definir a inteligência como “a atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de conhecimentos, dentro e fora do território nacional, sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado”. De forma resumida, o serviço de inteligência procura obter informações sobre as ameaças, no caso em tela o crime organizado e as facções criminosas que o praticam. A inteligência é primordial no combate ao crime organizado, e se mostrou muito eficaz em todas as operações nas quais foi utilizada com paciência e sabedoria.


A atividade de inteligência é um método antigo, utilizado há muito tempo por todas as civilizações. Sua importância sempre foi valorizada pelas nações, não apenas nos tempos de guerra e conflitos, mas até mesmo quando havia relativa paz. Hoje em dia, qualquer Estado necessita deste tipo de serviço para manter a segurança, sendo imprescindível a criação de ao menos um órgão estatal específico para isto.


Em nosso país, os serviços de inteligência começaram já no século XX, apesar da referência mais conhecida ser a do antigo SNI, o Serviço Nacional de Informações. Este órgão possui uma imagem ruim, graças ao radicalismo com que executava suas operações, tentando deter os insurgentes de esquerda utilizando-se da tortura e outros métodos incompatíveis com a nossa realidade atual. Ainda assim, foi o serviço de inteligência que minou a guerrilha de esquerda lentamente, acabando por destruí-la. É importante dizer que os métodos utilizados não correspondem com os princípios humanitários atuais, sendo aqui valorizada apenas a idéia de que o serviço de inteligência é de fato eficaz contra as ameaças à segurança nacional, no caso em tela o crime organizado.


Hoje em dia, o principal órgão de inteligência brasileiro é a ABIN, a Agência Brasileira de Inteligência, criada pela Lei 9.883/99. A lei atribui à ABIN o trabalho de “planejar, executar, coordenar, supervisionar e controlar as atividades de inteligência e contra-inteligência do País, de modo a assessorar o Presidente da República com informações de caráter estratégico”. Na redação, o legislador deixa bem clara a preocupação com o método como este objetivo será alcançado, ao dizer que as atividades deverão ser realizadas com “irrestrita observância dos direitos e garantias individuais, fidelidade às instituições e aos princípios éticos que regem os interesses e a segurança do Estado”.


Desta forma, percebe-se que o atual órgão diferencia-se do antigo SNI da época da ditadura, em que estes princípios não eram muitas vezes levados em conta. Até para que este processo seja feito desta maneira, a Lei 9.883/99 institui um mecanismo de controle externo das atividades da ABIN, por meio de uma Comissão Parlamentar composta por membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, disposta a fiscalizar todas as atividades do órgão.


O Art. 6° desta lei prevê este controle externo da atividade de inteligência:


Art. 6o O controle e fiscalização externos da atividade de inteligência serão exercidos pelo Poder Legislativo na forma a ser estabelecida em ato do Congresso Nacional.


§ 1º Integrarão o órgão de controle externo da atividade de inteligência os líderes da maioria e da minoria na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, assim como os Presidentes das Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.


§ 2º O ato a que se refere o caput deste artigo definirá o funcionamento do órgão de controle e a forma de desenvolvimento dos seus trabalhos com vistas ao controle e fiscalização dos atos decorrentes da execução da Política Nacional de Inteligência.”


A ABIN é o órgão central que faz parte de um conjunto maior, o chamado SISBIN – Sistema Brasileiro de Inteligência – , instituído na mesma lei. O objetivo do SISBIN é basicamente o de obter e analisar os dados, oferecendo subsídios para que o Presidente da República tome decisões no que tange à segurança nacional de forma mais adequada.


O Decreto 4.376/02, em seu Art. 4°, enumera os órgãos que constituem o SISBIN:


Art. 4º Constituem o Sistema Brasileiro de Inteligência:


I – a Casa Civil da Presidência da República, por meio do Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia – CENSIPAM;


II – o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, órgão de coordenação das atividades de inteligência federal;


III – a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN, como órgão central do Sistema;


IV – o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Departamento de Polícia Rodoviária Federal e da Coordenação de Inteligência do Departamento de Polícia Federal;


V – o Ministério da Defesa, por meio do Departamento de Inteligência Estratégica, da Subchefia de Inteligência do Estado-Maior de Defesa, do Centro de Inteligência da Marinha, do Centro de Inteligência do Exército, da Secretaria de Inteligência da Aeronáutica;


VI – o Ministério das Relações Exteriores, por meio da Coordenação-Geral de Combate a Ilícitos Transnacionais;


VII – o Ministério da Fazenda, por meio da Secretaria-Executiva do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, da Secretaria da Receita Federal e do Banco Central do Brasil;


VIII – o Ministério do Trabalho e Emprego, por meio da Secretaria-Executiva;


IX – o Ministério da Saúde, por meio do Gabinete do Ministro e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA;


X – o Ministério da Previdência e Assistência Social, por meio da Secretaria-Executiva;


XI – o Ministério da Ciência e Tecnologia, por meio do Gabinete do Ministro;


XII – o Ministério do Meio Ambiente, por meio da Secretaria-Executiva; e


XIII – o Ministério de Integração Nacional, por meio da Secretaria Nacional de Defesa Civil.


O serviço de inteligência no Brasil é ainda mais complexo, sendo realizado também por empresas privadas e órgãos menores como o Subsistema de Inteligência de Segurança Pública, além de quase todos os órgãos do Executivo que possuam poder de polícia.


No caso específico do crime organizado, a chamada “inteligência financeira” tem obtido resultados expressivos. Esta tem como finalidade atingir a economia das organizações criminosas, o que têm se provado bastante efetivo, visto que a principal arma dos criminosos é o capital absurdo obtido ilegalmente, seja pelo tráfico ou por qualquer outra atividade. A inteligência financeira busca prejudicar este lucro ilegal, observando a movimentação de capital feita e por fim apreendendo grandes valores, que vão direto para o cofre público. Por este motivo, a inteligência financeira é cada vez mais utilizada no cenário mundial de combate ao crime organizado. O impacto que causa nas organizações criminosas e o retorno de capital aos cofres do governo são bastante significativos.


Perante a comunidade internacional, o Brasil possui grande presença neste quesito. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) têm atuado em diversos congressos mundiais, buscando novas opções com este intercâmbio, aperfeiçoando suas atividades. Podemos destacar aqui o Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), considerada a principal instituição contra os crimes financeiros praticados pelo crime organizado. Este órgão realiza diversas reuniões com países do mundo inteiro, onde são traçados os melhores rumos no combate a este tipo de crime. O Brasil é sempre representado por membros do COAF e da ABIN, entre outros.


Diferentemente da Inteligência Governamental explicitada nos parágrafos acima, a Inteligência Policial possui outro papel. Seu trabalho é o de repressão, investigando os ilícitos, e reunindo indícios que auxiliem o judiciário. Este trabalho é realizado em nosso país pelas polícias estaduais civis e militares, assim como pela Polícia Federal. No Manual de Inteligência Policial do Departamento de Polícia Federal do Brasil, temos o conceito das operações de Inteligência Policial:


“(…)conjunto de ações de inteligência policial que empregam técnicas especiais de investigação, visando a confirmar evidências, indícios e obter conhecimentos sobre a atuação criminosa dissimulada e complexa, bem como a identificação de redes e organizações que atuem no crime, de forma a proporcionar um perfeito entendimento sobre seu modus operandi, ramificações, tendências e alcance de suas condutas criminosas”. (AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA, 2004)


Seu trabalho é, portanto, o de prevenir e obstruir as atividades ilícitas, de forma direta. Esta ação seria ineficaz, no entanto, não fosse o trabalho conjunto exercido pelos órgãos de Inteligência Governamental, como a ABIN. Apenas em esforço mútuo podem estes dois tipos de inteligência combater de modo eficaz o crime organizado.


2.2 O papel do Ministério Público


O Ministério Público é um órgão de grande importância na repressão ao crime organizado. Na Itália, onde já mencionamos que houve grande mobilização para combater a máfia, o parquet foi reconhecidamente essencial nesta luta. No país, no entanto, o Poder Judiciário e o Ministério Público são praticamente uma instituição só. O concurso público é o mesmo, e forma os chamados magistrados. Estes, após o ingresso, serão designados para seu cargo, seja ele no Ministério Público ou não. Forma-se um conjunto, podendo os membros de um passar a exercer função em outro, coisa que no Brasil ocorre de maneira diferente.


Em nosso país vemos uma espécie de segregação do Ministério Público, que lhe concede autonomia mas ao mesmo tempo cria certos inconvenientes, principalmente no que tange à repressão ao crime organizado. É sabido, inclusive, que muitos participantes do judiciário, como advogado e juízes, revelam-se incomodados com os poderes e a autonomia que são conferidos aos procuradores do Ministério Público. Vimos, nos diversos exemplos que se seguiram neste trabalho, que o combate ao crime organizado deve sempre ser feito de maneira conjunta, com certa sinergia dos órgãos que exercem esta função. Esta separação do Ministério Público pode ser considerada, de certa forma, um entrave para isto.


Continuemos analisando o ótimo exemplo italiano, que com esta mentalidade de ação conjunta, conseguiu reprimir de forma eficaz o crime organizado que tomava conta do país. A Lei nº 82/91 deu ao Ministério Público a possibilidade de requerer o arresto dos bens das vítimas de sequestro mediante extorsão e de seus familiares, de forma a impedir a sua utilização no pagamento do resgate aos criminosos. Da mesma forma, o órgão possui a capacidade de retardar medidas cautelares como a prisão, de forma até mesmo verbal, sendo mais tarde formalizada. Este método, como já foi explicitado, é essencial na luta contra o crime organizado. Muitas vezes, a prisão antecipada do criminoso pode trazer mais prejuízos que benefícios.


No mesmo sentido, a citada lei estabelece um método eficaz de proteção às vítimas e colaboradores da justiça. Mais uma vez, cabe ao Ministério Público determinar o novo domicílio do protegido, em local próximo a estabelecimento policial ou pessoa de confiança. O órgão pode até mesmo autorizar a polícia local a prender o protegido em estabelecimento que não seja o penal, até que se encontre um lugar seguro. Já outra lei, a nº 8/92, institui a chamada “Superprocuradoria”, que visa coordenar as investigações contra o crime organizado dentro do Ministério Público. Dentro do Código de Processo Penal, há normas que regulamentam o “procurador nacional antimáfia”, uma espécie de procurador especializado no crime organizado, algo que poderia ser estabelecido no nosso país.


Muitas outras alterações foram feitas no Código de Processo Penal italiano, a partir do ano de 1988. Grande parte destas alterações deu ao Ministério Público este papel decisivo no combate ao crime organizado, coisa que não verificamos em nosso país. Analisando de forma fria, o Ministério Público brasileiro na verdade não chega a possuir relevância no atual método de repressão utilizado.


A política de combate ao crime organizado utilizada pelo nosso país com certeza evoluiu nos últimos anos, principalmente no que diz respeito ao já explicitado serviço de inteligência, além da Polícia Federal, que é hoje em dia uma das instituições mais fortes do país. Isso se deu graças ao bom aprendizado que tivemos com outros países que enfrentaram de forma positiva o crime organizado, assim como a Itália. Ainda assim, neste aspecto específico do Ministério Público, vemos um claro atraso. Enquanto o Ministério Público e todo o aparato judiciário não concentrarem suas forças no complicado e extenso processo de repressão ao crime organizado, não será possível obter êxito nesta luta.


Atualmente, o projeto de Lei nº 3.731/97 do Senado Federal visa uma melhoria neste aspecto. O projeto autoriza o Ministério Público, na apuração de crimes praticados por organização criminosa, a instauração de um procedimento investigatório, de natureza inquisitiva, sigilosa e informal. Desta forma, poderiam ser colhidas as provas necessárias antes da instauração do processo, o que hoje em dia acontece, apenas após iniciado o mesmo, e por parte do juiz. A aprovação desta lei seria um ótimo passo neste esforço para tornar o Ministério Público uma instituição mais atuante no combate ao crime organizado.


2.3 A quebra de sigilo


O combate à criminalidade organizada, para conseguir reprimir de forma rápida e eficaz as ações criminosas, algumas vezes se encontra em conflito com as garantias constitucionais ao ser humano. A quebra do sigilo, que é garantido pela carta magna, é um mal necessário à obtenção da segurança pública. O primeiro exemplo a ser analisado será o da quebra de sigilo das comunicações, que acontece quando a interceptação telefônica é utilizada em uma investigação.


A interceptação telefônica tem sido utilizada, de forma muito eficaz, no combate ao crime organizado. Hoje em dia é considerada uma arma vital na obtenção de informações sobre os criminosos, e muitas das operações bem-sucedidas contra o crime organizado basearam-se em dados coletados desta forma. Tratando-se de crime organizado, onde está sempre presente uma complexa e extensa estrutura articulada, a obtenção de provas é difícil. Isto leva o aparato Estatal a utilizar métodos ágeis como a interceptação telefônica, ainda que isto implique na restrição de algum direito.


Este método, ainda que eficaz, inegavelmente acaba por ferir o direito à intimidade dos envolvidos na conversa. O que se deve fazer, então, é um balanceamento sobre os valores envolvidos, utilizando-se do já consagrado Princípio da Razoabilidade, o qual nos permite resolver muitos dos conflitos entre os princípios da constituição, analisando o peso de cada um. De um lado, temos o direito à intimidade, que representa o interesse individual da pessoa em ter sua privacidade respeitada. De outro, temos a segurança pública, que perante o estado avançado da criminalidade, só pode ser garantida com o uso de artifícios como o da interceptação telefônica. Devendo sempre o interesse público preponderar sobre o particular, percebemos que não cabe discussão acerca da utilização deste método, visto que o benefício obtido, no que diz respeito à segurança pública, é muito maior do que a lesão acarretada pelo desrespeito à intimidade.


A interceptação de ligações telefônicas foi regulamentada pela Lei nº 9.296/96. Esta autoriza a interceptação das ligações telefônicas, bem como o fluxo de comunicações em sistema de informática e telemática, para fins de prova em investigação criminal e em instrução processual penal, mediante autorização judicial. Para que esta autorização judicial seja concedida, é exigido que exista prévia investigação criminal formal, ou que a instrução criminal dependa da interceptação. Apenas o Ministério Público possui legitimidade para ser titular da ação penal pública que requer a utilização da interceptação telefônica. A autoridade policial envia requerimento ao M.P., que então realizará a petição.


Dispõe o Art. 2º, III, da Lei 9.296/96, que a interceptação telefônica não será admitida quando o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção. O Art. 5º da mesma Lei determina que a interceptação não poderá exceder o prazo de 15 dias, renovável por igual tempo, uma vez comprovada a indispensabilidade. Em 2003, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça analisou duas questões acerca disto. A primeira, se a interceptação poderia ser admitida no caso de crime apenado com detenção conexo ao crime apenado com reclusão. Entendeu-se que sim, visto que nos casos de macro criminalidade, a interceptação deste tipo de conversa era corriqueira, e seria impossível separar as conversas pela gravidade da pena. O segundo problema seria a renovação por mais de uma vez do prazo de 15 dias. Também se chegou à conclusão que sim, visto que a lei não impede a renovação por ilimitadas vezes, se preciso. Ambas as decisões foram importantes, pois afastaram qualquer possível entrave na utilização desta técnica que em tanto ajuda as investigações de hoje em dia.


Outra medida necessária às investigações feitas contra o crime organizado é a quebra do sigilo bancário. Ao contrário do que vemos no caso do sigilo das comunicações, não há na Constituição Federal proteção específica ao sigilo bancário. Ainda assim, considera-se que o mesmo faz parte da proteção à intimidade, que encontra-se garantida pelo Art. 5º, inciso X da Constituição. A violação do sigilo bancário é permitida com autorização judicial, conforme regulamentação dada pela Lei 4.595/64.


Existem outros dois casos de quebra de sigilo para o auxílio das investigações criminais, quais sejam, a quebra de sigilo fiscal e a quebra de sigilo eleitoral. No primeiro caso, a regulamentação é feita pelo Código Tributário Nacional, no Art. 198, parágrafo único. Mais uma vez torna-se essencial a autorização judicial, que permitirá, então, a análise do histórico fiscal da pessoa física ou jurídica a ser investigada criminalmente. No segundo caso, a quebra do sigilo eleitoral é feita apenas quanto às informações cadastrais dos eleitores, que geralmente são de uso exclusivo da Justiça Eleitoral, sendo a única exceção feita exatamente no caso de investigação criminal, mediante autorização judicial prévia.


2.4 A infiltração policial


A infiltração por parte de agentes nas organizações criminosas é um método que, apesar de arriscado, oferece informações que muitas vezes não poderiam ser obtidas pelas demais técnicas. O risco deste tipo de operação é maior, pelo fato de que a descoberta do agente infiltrado quase sempre resultará em perigo à sua vida. A única forma de se obter êxito com este tipo de atividade é o sigilo total, além do treinamento extensivo do indivíduo a realizar a infiltração. Temos ótimos exemplos, no entanto, dos resultados expressivos que podem ser alcançados assim.


Apesar de não ser uma habilidade desenvolvida no nosso país, outras nações vêm utilizando, de modo muito eficaz a infiltração, em especial os EUA. Diversos agentes do FBI já foram introduzidos no círculo da máfia, resultando na prisão de grandes líderes das organizações, algo que de outra forma não seria possível. Uma destas operações é mostrada no filme “Donnie Brasco”, em que se conta a história real do agente Joseph Pistone, que passou longos seis anos colhendo informações sobre a máfia italiana que atuava em cidades como Nova Iorque e Nova Jersey. Muitas outras operações assim foram feitas, por períodos iguais de tempo.


A infiltração policial, nestes países que a utilizam com sucesso, é regulamentada por lei. No Brasil, de início, não havia esta regulamentação, quando do surgimento da lei 9.034/95. Uma das medidas da lei 10.217/01, contudo, foi o de estabelecer que a infiltração policial se desse por agentes de polícia ou inteligência, em tarefas de investigação, mediante a devida autorização judicial. Com esta mudança, a atividade de infiltração, que antes era feita à margem da lei, teve seu devido reconhecimento e hoje em dia pode ser realizada com as exigências formais contidas na lei.


2.5 Ação Controlada


No combate ao crime organizado, colher informações sobre as atividades dos criminosos faz a diferença entre uma operação bem ou mal sucedida. Muitas vezes vale à pena esperar para agir, ainda que isto implique em observar as operações ilícitas ocorrerem sem intervir, para que em longo prazo, seja este de meses ou anos, o mal seja cortado pela raiz. Um bom exemplo disto foi a Operação Mosaico, realizada no Rio de Janeiro, que após um período de coleta de informações, reuniu as condições necessárias para derrubar o maior chefão do tráfico na cidade.


Muitas vezes, a autoridade policial se vê obrigada a postergar a prisão de um dos elementos da organização criminosa, por saber que o deixando solto e continuando seu monitoramento, conseguirá informações valiosíssimas que não conseguiria caso o mesmo fosse preso. Esta técnica, conhecida como “ação controlada”, encontra respaldo na Lei 9.034/95, e dá ao Juiz a possibilidade de, após ouvir o Ministério Público, suspender a ordem de prisão ou apreensão de bens, quando isto possa ameaçar toda a investigação. A matéria é disciplinada no inciso II do Art. 2º da referida lei:


“II – a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que


se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações”;


O artigo a define como o retardamento da interdição policial em relação às ações tidas como praticadas por organizações criminosas, ou em seu benefício, mediante a observação e o acompanhamento que permitam uma eficaz medida legal tendente a uma boa formação de provas e ao fornecimento e informações.


Embora a lei não exija autorização legal para a prática da ação controlada, há quem entenda que esta seria necessária, pois poderiam ocorrer abusos. A exigência de prévia autorização legal, no entanto, poderia se tornar um entrave desnecessário à prática da ação controlada, de forma que a motivação posterior fornecida pela autoridade policial e o controle externo exercido pelo Ministério Público mostram-se medidas suficientes contra qualquer eventual abuso.


3   SOBRE A LEI Nº 9.034/95


Críticas e defeitos à parte, a Lei 9.034/95 foi a primeira demonstração explícita do legislativo no sentido de preocupar-se em diferenciar o crime organizado, também classificado como “macro criminalidade”, do crime comum, que não apresenta o mesmo potencial ofensivo à sociedade. Esta lei teve origem com o Projeto de Lei nº 3.516, elaborado pelo Deputado Michel Temer, tendo sido feitas diversas alterações em seu texto original.


Infelizmente, a primeira tentativa de ajustar a legislação brasileira contra o crime organizado veio com falhas graves e básicas, sendo a referida lei alvo de crítica pela maior parte dos doutrinadores. Seu maior erro foi, provavelmente, o de não apresentar um conceito do que seria “crime organizado”, ou até mesmo uma “organização criminosa”. No projeto de lei inicial, a organização criminosa era definida como “aquela que, por suas características, demonstre a exigência de estrutura criminal, operando de forma sistematizada, com atuação regional, nacional ou internacional.” No entanto, com as modificações feitas no projeto inicial, este conceito foi retirado do texto.


Na verdade, além de não conceituar crime organizado nem organização criminosa, a lei criou grande confusão ao enunciar, em seu Art. 1º, que dispõe sobre “crime resultante de ações de quadrilha ou bando”. Há que se diferenciar, claramente, a quadrilha da organização criminosa. A quadrilha, conceituada no Art. 288 do Código Penal, é formada por no mínimo quatro agentes, enquanto seria perfeitamente possível a existência de uma organização criminosa composta por apenas dois ou três membros. Além disso, a quadrilha só existe quando há prática de crimes comissivos, e não de contravenções ou crimes omissivos. Sendo assim, estaria excluído da área de atuação da quadrilha o crime de facilitação de contrabando, frequentemente praticado pelas organizações criminosas. Mais adiante, com o advento da lei 10.217/01, foram feitas algumas mudanças no texto original. Uma delas foi a de estender os efeitos da lei 9.034/95, que agora atinge, além dos participantes de quadrilha ou bando, também os membros de associações ou organizações criminosas de qualquer tipo. Ainda assim, não foi conceituada a organização criminosa, sendo sua definição até hoje objeto de discussão.


O conceito de crime organizado apresentado pela Convenção de Palermo diz:


“Grupo criminoso organizado – grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material (…) Infração grave – ato que constituía infração punível com uma pena de privação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior. (…) Grupo estruturado – grupo formado de maneira não fortuita para a prática imediata de uma infração, ainda que os seus membros não tenham funções formalmente definidas, que não haja continuidade na sua composição e que não disponha de uma estrutura elaborada.” (CONVENÇÃO DE PALERMO, 2000)


Podemos dizer que de fato não existe conceito totalmente pacífico do que seria o crime organizado ou as organizações criminosas. O que vemos são idéias semelhantes, com alguns aspectos iguais presentes na maioria delas, mas sempre divergindo em um ou outro detalhe. Em uma situação atípica, o Superior Tribunal de Justiça acabou por reconhecer este conceito dado na Convenção de Palermo para utilização em um caso concreto no Brasil. Cabe aqui citar entendimento dado pelo STJ acerca desta matéria:


“HABEAS CORPUS. LAVAGEM DE DINHEIRO. INCISO VII DO ART. 1.º DA LEI N.º 9.613/98. APLICABILIDADE. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. CONVENÇÃO DE PALERMO APROVADA PELO DECRETO LEGISLATIVO N.º 231, DE 29 DE MAIO DE 2003 E PROMULGADA PELO DECRETO N.º 5.015, DE 12 DE MARÇO DE 2004. AÇÃO PENAL. TRANCAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. EXISTÊNCIA DE ELEMENTOS SUFICIENTES PARA A PERSECUÇÃO PENAL. 1. Hipótese em que a denúncia descreve a existência de organização criminosa que se valia da estrutura de entidade religiosa e empresas vinculadas, para arrecadar vultosos valores, ludibriando fiéis mediante variadas fraudes – mormente estelionatos -, desviando os numerários oferecidos para determinadas finalidades ligadas à Igreja em proveito próprio e de terceiros, além de pretensamente lucrar na condução das diversas empresas citadas, algumas por meio de “testas-de-ferro”, desvirtuando suas atividades eminentemente assistenciais, aplicando seguidos golpes. 2. Capitulação da conduta no inciso VII do art. 1.º da Lei n.º 9.613/98, que não requer nenhum crime antecedente específico para efeito da configuração do crime de lavagem de dinheiro, bastando que seja praticado por organização criminosa, sendo esta disciplinada no art. 1.º da Lei n.º 9.034/95, com a redação dada pela Lei n.º 10.217/2001, c.c. o Decreto Legislativo n.° 231, de 29 de maio de 2003, que ratificou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, promulgada pelo Decreto n.º 5.015, de 12 de março de 2004. Precedente.”


Após a leitura do julgado, cabe mencionar análise feita por Luis Flávio Gomes, dizendo que:


“De três vícios padece o posicionamento do STJ que acaba de ser transcrito: 1º) a definição de crime organizado contida na Convenção de Palermo é muito ampla, genérica, e viola a garantia da taxatividade (ou de certeza), que é uma das garantias emanadas do princípio da legalidade; 2º) a definição dada, caso seja superada a primeira censura acima exposta, vale para nossas relações com o direito internacional, não com o direito interno; de outro lado, é da essência dessa definição a natureza transnacional do delito (logo, delito interno, ainda que organizado, não se encaixa nessa definição). Note-se que a Convenção exige “(…) grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”. Todas as infrações enunciadas na Convenção versam sobre a criminalidade transnacional. Logo, não é qualquer criminalidade organizada que se encaixa nessa definição. Sem a singularidade da transnacionalidade não há que se falar em adequação típica, do ponto de vista formal; 3º) definições dadas pelas convenções ou tratados internacionais jamais valem para reger nossas relações com o Direito penal interno em razão da exigência do princípio da democracia (ou garantia da lex populi).” (FLÁVIO GOMES, 2009)


Diante disto, seria de grande importância uma conceituação clara do crime organizado, assim como das organizações criminosas, na legislação. A atitude do STJ de adotar um conceito criado por uma convenção internacional para aplicação no direito penal interno brasileiro é um exemplo claro das dificuldades encontradas pela falta desta conceituação na lei brasileira. Sem este pré-requisito fixado, torna-se sempre presente a dúvida: determinado crime encaixa-se ou não no que o legislador pretendia regrar com a Lei 9.034/95?


No Art. 2º, a referida lei trata de anunciar alguns procedimentos de investigação novos, já tratados no capítulo anterior deste trabalho. São eles a ação controlada e o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais.


A contradição conceitual já mencionada fica mais visível no caput do Art. 2º, quando a lei dispõe que estes procedimentos investigativos serão admitidos “em qualquer fase de persecução criminal que verse sobre ação praticada por organizações criminosas”.


Já no Art. 3º, a lei trata mais especificamente de como se dá este acesso a dados mencionado no artigo anterior. Diz o primeiro inciso: “§ 1º Para realizar a diligência, o juiz poderá requisitar o auxílio de pessoas que, pela natureza da função ou profissão, tenham ou possam ter acesso aos objetos do sigilo.” Sendo assim, o juiz pode recorrer a funcionários que tenham acesso às informações que sejam objeto da investigação, trazendo-as aos autos do processo. Percebe-se aqui que a função de reunir provas está sendo atribuída ao juiz, o que para muitos se trata de outro equívoco da lei. Teoricamente, esta tarefa seria do Ministério Público, representado por seu Promotor de Justiça, que de fato deveria ser o indivíduo legitimado a requerer estas informações, ainda que mediante autorização judicial.


No segundo inciso, a lei institui:


“§ 2º O juiz, pessoalmente, fará lavrar auto circunstanciado da diligência, relatando as informações colhidas oralmente e anexando cópias autênticas dos documentos que tiverem relevância probatória, podendo para esse efeito, designar uma das pessoas referidas no parágrafo anterior como escrivão ad hoc.”


Seguindo a linha de raciocínio anterior, este relato das informações colhidas deveria, também, ser feito pelo Promotor. Ao juiz caberia apenas tomar conhecimento disto e conforme o caso, designar o referido escrivão. Seguindo ao terceiro inciso, temos:


“§ 3º O auto de diligência será conservado fora dos autos do processo, em lugar seguro, sem intervenção de cartório ou servidor, somente podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as partes legítimas na causa, que não poderão dele servir-se para fins estranhos à mesma, e estão sujeitas às sanções previstas pelo Código Penal em caso de divulgação.”


Aqui se encontra explicada, talvez, a intenção do legislador ao atribuir erroneamente estas funções investigativas ao juiz. A única explicação plausível é a de que com isto seria dado maior sigilo à diligência. Ainda assim, esta idéia não se justifica, por motivos óbvios que não nos permitem dar ao juiz o encargo de produzir as próprias provas que irá julgar, função que cabe à parte encarregada da acusação, no caso o Ministério Público. Seguem os últimos dois incisos do Art. 3º:


“§ 4º Os argumentos de acusação e defesa que versarem sobre a diligência serão apresentados em separado para serem anexados ao auto da diligência, que poderá servir como elemento na formação da convicção final do juiz.  


§ 5º Em caso de recurso, o auto da diligência será fechado, lacrado e endereçado em separado ao juízo competente para revisão, que dele tomará conhecimento sem intervenção das secretarias e gabinetes, devendo o relator dar vistas ao Ministério Público e ao Defensor em recinto isolado, para o efeito de que a discussão e o julgamento sejam mantidos em absoluto segredo de justiça.”


Mais uma vez, fica visível a grande preocupação com o sigilo do auto da diligência, que no caso de recurso, é lacrado e mostrado em “recinto isolado” às partes. Esta preocupação é fundamentada, visto que qualquer dado obtido com a quebra de sigilo deve ser utilizado tão somente na investigação, sem que qualquer indivíduo alheio a esta tome conhecimento. Mesmo assim, a decisão de incumbir ao juiz a função de ir atrás destes dados é flagrantemente falha, pelos vários motivos já expostos.


O terceiro capítulo da lei, elencando os arts. 4º a 12, trata das disposições gerais:


Art. 4º Os órgãos da polícia judiciária estruturarão setores e equipes de policiais especializados no combate à ação praticada por organizações criminosas.


Art. 5º A identificação criminal de pessoas envolvidas com a ação praticada por organizações criminosas será realizada independentemente da identificação civil.


Art. 6º Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um a dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria.


Art. 7º Não será concedida liberdade provisória, com ou sem fiança, aos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa”.


O Art. 4º fala sobre a estruturação da polícia judiciária, questão abordada na segunda parte do presente trabalho. De fato é muito importante a criação de setores especializados no combate ao crime organizado, pois o método investigativo é sempre diferente do normal. Todas as informações obtidas devem ser mantidas em sigilo, assim como as ações a serem tomadas. Sendo assim, a investigação de organizações criminosas deve ser feita totalmente à parte da investigação criminal comum.


No Art. 5º, é feita uma exceção quanto à regra disposta na Constituição Federal acerca da identificação criminal. Em seu Art. 5º, inciso LVIII, a carta magna estabelece que “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”. A identificação criminal consiste em um processo de coleta de dados sobre o acusado, quando não há como identificá-lo civilmente. É um procedimento, até certo ponto, complexo, e por isto é dispensado quando o acusado já se encontra civilmente identificado. No entanto, esta exceção feita pelo Art. 5º da Lei 9.034/95, que permite aos acusados de envolvimento com o crime organizado serem identificados criminalmente, independentemente da identificação civil, é importantíssima. Isto porque é sabido que muitos dos criminosos atuantes em organizações criminosas possuem identidades falsas, o que poderia complicar bastante toda a investigação.


O Art. 6º trata do que chamamos de “delação premiada”. Esta permite ao agente obter uma grande redução em sua pena, caso colabore com a investigação, proporcionando informações decisivas no esclarecimento de outros crimes. Tendo em vista que todas as atividades das organizações criminosas são realizadas com extrema cautela, e o tráfico de informações é sempre muito cuidadoso, a delação premiada pode trazer dados que de outra forma não viriam à tona. O incentivo de redução de um a dois terços da pena é grande, e se faz necessário se levarmos em conta que a delação, por muitas vezes, implicará em risco de vida sofrido pelo delator, que se expõe à represália do grupo do qual participava.


Já no Art. 7º, vemos uma restrição ao benefício da liberdade provisória àqueles que tenham tido participação “intensa e efetiva” nas organizações criminosas. Para alguns doutrinadores, o dispositivo é inconstitucional, pois nega ao indivíduo o direito à liberdade, concedido pela Constituição Federal. Para outros, como Luiz Flávio Gomes, o artigo não possui eficácia, exatamente pelo fato de se dirigir aos membros de organizações criminosas, sem que haja conceito claro sobre o que viria a ser isto.


De fato a restrição à liberdade provisória seria uma medida importante no combate aos membros de facções criminosas, impedindo que estes pudessem continuar comandando suas operações com total liberdade, facilitando inclusive a sua fuga para outro país. No entanto, o modo como esta restrição foi imposta parece ser equivocado, na medida em que visa se opor à Constituição Federal, e baseia-se em um conceito vago e indefinido de organização criminosa.


Os últimos três artigos da lei 9.034/95 tratam da matéria processual e do regime carcerário. O Art. 9º expõe que o réu não poderá apelar em liberdade, quando se tratar de crime previsto na referida lei. Já o artigo seguinte impõe que, para os crimes decorrentes de organização criminosa, o regime inicial será o fechado.


Ambas as medidas revelam a intenção legítima de tratar o membro de organização criminosa com o rigor que sua periculosidade à sociedade requer, ainda que deficientes pelo fato de estarem baseadas num conceito nebuloso, como foi explicado anteriormente.


Conclusão


A análise histórica do crime organizado no Brasil, desde seu início nos anos 70, até sua consolidação e expansão, nos traz uma clara constatação de que, hoje em dia, esta se trata de uma ameaça grave à segurança nacional.


A batalha travada entre os órgãos de repressão e as facções criminosas fez muitas vítimas, dentre elas pessoas inocentes. Mas talvez a maior vítima do crime organizado seja o desenvolvimento do país. O tráfico internacional e a corrupção, principalmente, constituem grande atraso ao país na luta pelo desenvolvimento.


Muitos aspectos tiveram clara evolução, como o Departamento de Polícia Federal, líder na América latina de apreensão de drogas, a Agência Brasileira de Inteligência e outros órgãos investigativos. Ainda assim, o grande problema, no que diz respeito ao combate ao crime organizado, parece ser a legislação.


Tanto o procedimento quanto a própria tipificação dos crimes necessitam urgente reforma, e isto parece ser um consenso entre os doutrinadores. O modo como o Ministério Público atua nesta área precisa ser revisto, e sua presença nas investigações contra o crime organizado deve ser mais ativa.


Esta sinergia entre os três poderes, assim como a união do Ministério Público com a polícia judiciária, foi o caminho encontrado pelo governo italiano para reprimir o câncer que era o crime organizado no país.


Da mesma forma, a legislação específica sobre a matéria apresenta falhas inadmissíveis. O modo incompleto como a lei 9.034/95 foi apresentada e entrou em vigor deixou isso bem claro. Ainda assim, em mais de dez anos, pouca coisa foi alterada na lei. Sua principal omissão, o conceito do que seria o crime organizado e as organizações criminosas, é um incômodo constante nos processos criminais relativos a estes crimes.


Se o próprio crime organizado é uma estrutura complexa, o seu combate também deve ser. O sucesso obtido pelos criminosos ao dividir funções, agindo rápida e conjuntamente, será o mesmo sucesso obtido pelo governo brasileiro ao fazer exatamente isso: se organizar.


 


Referências

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VASCONCELOS, Márcio. Segurança e crime organizado internacional. Disponível em: <http://www.editoraferreira.com.br> 2009.


Notas:

[1] Professor Orientador: Mário Ribeiro

[2] Informação fornecida por M. MADEIRA em entrevista realizada pelo autor em Rio Grande, em Junho de 2009.

[3] Disponível em: http://www.ucamcesec.com.br/est_seg_evol.php

[4] Submetralhadora de fabricação israelita fabricada no final da década de 40

[5] Fuzil automático produzido pela União Soviética em 1947

[6] Informação verbal obtida através de entrevista feita com H. Borges pelo autor, em setembro de 2009.

[7] Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro

[8] A operação recebeu o nome de “Operação Mosaico” por tentar desvendar todas as “peças” que compunham o mosaico: tráfico de drogas, contrabando de armas, lavagem de dinheiro, roubo de carros etc. Como peças de um mosaico, as atividades interligavam-se e encaixavam-se, permitindo à polícia federal desvendar toda a rede envolvida na atividade ilícita.

Informações Sobre o Autor

Felipe Madeira

Acadêmico de Direito da FURG/RS


Equipe Âmbito Jurídico

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