O direito à saúde e sua judicialização no acesso ao canabidiol

Resumo: Historicamente, o direito à saúde foi um dos últimos a ser proclamado pelas constituições da maioria dos países e está incluído na lista dos direitos sociais, sendo uma prestação positiva do Estado. Em nosso país, por uma distorção, a implementação das políticas públicas saiu da órbita dos Poderes Executivo e Legislativo e migrou para o Poder Judiciário. O canabidiol (CBD) é um dos componentes não psicoativos da cannabis sativa, conhecido pela ação anticonvulsivante, pelo efeito ansiolítico e antitumoral. No Brasil, o CBD não tem registro, o que leva a muitas ações judiciais para assegurar o recebimento da substância. Apesar do direito à saúde de fato configurar despesa pública, não se pode admitir a invocação da reserva do possível como fator limitante ao fornecimento de remédios quando servir de subterfúgio para o Estado se eximir das obrigações que lhe são impostas por meio de mandamentos constitucionais sob pena de violação a princípios insculpidos na Carta Magna e ao próprio Estado de Direito

Palavras-chaves: canabidiol. direito à saúde. judicialização da saúde.

Abstract : Historically, the right to health was one of the last to be proclaimed by the constitutions of most countries and is included in the list of social rights, and providing a positive state. In our country, a distortion, the implementation of public policies left the orbit of the executive and legislative branches and migrated to the Judiciary. Cannabidiol (CBD) is a non-psychoactive components of cannabis sativa, the known by anticonvulsant, anxiolytic effect and antitumor activity. In Brazil, the CBD has no record, which leads to many lawsuits to ensure the receipt of the substance. Although the right to health in fact set public expenditure can not be allowed to invoke the reservation possible as a limiting factor to the supply of medicines when used as a excuse for the state to evade the obligations imposed on it by constitutional commands under penalty violation of the principles sculptured in the Constitution and the very rule of law.

Key Words: canabidiol. right to health. health’s judicialization.

Sumário: Introdução. 1. Direito à Saúde. 2. Judicialização do Direito à Saúde. 2.1 Acesso ao Canabidiol . Conclusão

INTRODUÇÃO

A saúde, como premissa básica no exercício da cidadania do ser humano, é de extrema relevância para a sociedade, uma vez que a saúde diz respeito à qualidade de vida, objetivo de todo cidadão, no exercício de seus direitos. Isto posto, na esfera jurídica, o direito à saúde se consubstancia como forma indispensável no âmbito dos direitos fundamentais e sociais. (HUMENHUK, 2004).

É consenso entre os profissionais da área que a saúde das pessoas é determinada por uma série de fatores sociais, econômicos, ambientais e biológicos inter-relacionados, e não exclusivamente pelos cuidados médicos a que têm acesso. (FERRAZ; VIEIRA, 2009)

O caráter fundamental atribuído ao direito à saúde lhe concedeu o status de direito subjetivo, oponível contra o Estado, permitindo a judicialização deste, de modo a oportunizar a sua efetivação. (MARINHO, 2013)

A discussão do tema abordado é relevante tendo em vista o número de famílias que precisam recorrer ao judiciário para obter acesso ao canabidiol (CBD) cuja controvérsia é recente e assim, efetivar o direito à saúde. O presente artigo pode atender a advogados, magistrados, médicos e familiares de pacientes.

Para esse trabalho foram consultados livros e artigos sobre direito à saúde, canabidiol e judicialização do direito à saúde. Também foram consultados sites institucionais, resoluções, nota técnica, texto constitucional e infraconstitucional bem como jurisprudência dos tribunais a respeito do canabidiol e fornecimento de remédios.

1 DIREITO À SAÚDE

Em todo Estado que se pretenda de Direito deve haver uma preocupação por parte do legislador em positivar leis referentes ao direito à saúde. Essas leis além de atenderem anseios da sociedade atendem questões de ordem politica e econômica.

De acordo com a World Health Organization (WHO):

 “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consiste apenas na ausência de doença ou enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social. ”

Historicamente, o direito à saúde foi um dos últimos a ser proclamado pelas constituições da maioria dos países (SALZANO, 2002) e está incluído na lista dos direitos sociais, sendo uma prestação positiva do Estado.

No Brasil, a Constituição Federal (CF) no artigo 196 coloca o direito à saúde na lista das obrigações do Estado ao declarar que: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal, igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. (BRASIL, 1988).

Da mesma forma, no artigo 6o a CF declara o direito à saúde como obrigação do Estado estabelecendo que: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. (BRASIL, 2015)

A CF no artigo 197 reafirma a importância da saúde ao declarar que:

“São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.”

Apesar do direito à saúde ter recebido atenção em todas as constituições brasileiras, somente na Carta Magna de 1988, a saúde se tornou direito fundamental, o que demonstra a intenção do legislador brasileiro de estabelecer uma sintonia com as declarações internacionais que vinham sendo elaboradas, com o objetivo de garantir os direitos inerentes a pessoa humana. (MARINHO, 2013)

A efetivação do direito à saúde é imprescindível para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana positivado no artigo 1º, III da CF. (BRASIL, 1988). A CF eleva o princípio da dignidade à posição de normas das normas dos direitos fundamentais, situado no mais alto posto da hierarquia jurídica do sistema constitucional como princípio fundamental da República Federativa do Brasil. (FALCÃO, 2013)

 A dignidade da pessoa humana é o principal direito fundamental constitucionalmente garantido, pois é este o primeiro alicerce de todo o sistema constitucional e o último refúgio dos direitos individuais. A dignidade é qualidade intrínseca do ser humano, sendo, portanto, irrenunciável, e inalienável. É ela que qualifica o ser humano e dele não pode ser destacada e por tal ela não pode ser criada, concedida ou retirada, embora possa consistir em objeto de violação. (CAMPOS; SARLET, 2011)

Com relação ao fornecimento de remédios, a competência da União, dos Estados e Municípios não está explicitada nem na Constituição nem na lei. Entretanto, a Portaria nº 3.916/98 do Ministério da Saúde (MS) estabelece a Política Nacional de medicamentos. (BARROSO, 2006)

A Política Nacional de Medicamentos (PNM), como parte essencial da Política Nacional de Saúde, constitui um dos elementos fundamentais para a efetiva implementação de ações capazes de promover a melhoria das condições da assistência à saúde da população. A Lei n.º 8.080/90, em seu artigo 6º, estabelece como campo de atuação do Sistema Único de Saúde – SUS – a "formulação da política de medicamentos (…) de interesse para a saúde (…)”. (BRASIL, 1998)

A sua finalidade precípua é o de garantir a necessária segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos, a promoção do uso racional e o acesso da população àqueles considerados essenciais. (BRASIL, 1998)

 A referida normatização é uma grande conquista da sociedade brasileira e resultado de um processo de ampla mobilização e debate, que foi promovido, primeiramente, pelos ativistas do movimento de reforma sanitária e, posteriormente, por diversos segmentos da sociedade durante a Constituinte. (OLIVEIRA, L, 2010)

Após 1988, uma vez definida a Política Nacional de Saúde, iniciou-se a construção de um arcabouço legal que permitiu a sua aplicação em todo o território nacional. (NOVOA; BURNHAM, 2011)

Na seara infraconstitucional o direito à saúde é regulamentado pela lei 8080/90 que dispõe sobre o Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS tem como um dos objetivos:

“Art. 5º São objetivos do Sistema Único de Saúde SUS:

II – a formulação de política de saúde destinada a promover, nos campos econômico e social, a observância do disposto no § 1º do art. 2º desta lei;”

A formulação da politica de saúde tem a PNM como parte essencial e um dos meios para o Estado fornecer o direito à saúde.

A lei do SUS aponta como um dos seus princípios:

“II – integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema.”

A edição da lei 12.401/2011 disciplinou esse principio. No entendimento de Guimarães (2014) esse foi o fato mais importante no que diz respeito à judicialização da saúde porque tal lei tenta corrigir a falha legislativa que deu origem a explosão de processo de judicialização qual seja a sua falta de regulamentação.

Entretanto, segundo Silva (2006), o direito à saúde esbarra na escassez de recursos e na escolha de prioridades do administrador público. Associando-se a escassez de recursos na área da saúde e a estreiteza existente entre o direito à vida e o direito à saúde, o cidadão, hoje mais consciente de seus direitos, busca a tutela jurisdicional para ver atendida sua necessidade de saúde, mediante a propositura de ações, que vão desde aquelas objetivando o fornecimento de remédios, à realização de exames, cirurgias e tratamentos diversos. O Poder Judiciário, como consequência, passa a ter papel ativo e decisivo na concretização da Constituição. (BARROSO, 2007)

Assim, na visão de Siqueira (2007) nos parece claro, que não basta a imposição de metas por parte do constituinte originário, estabelecer funções, se não fizer algo mais, não fizer com que tais imposições sejam cumpridas, estabelecendo aplicabilidade e eficácia a estes dispositivos, tais dispositivos permanecerão inertes, permearão o ordenamento jurídico de forma ineficaz, apenas como “belas estipulações, belas previsões de cunho constitucionais”, mas que na verdade, na prática, de nada servirão, não terão serventia prática alguma, não surtirá efeito jurídico algum.

Dessa forma, resta clara a necessidade de recorrer ao judiciário quando há omissão dos poderes Executivo e Legislativo na efetivação do direito à saúde.

2 A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

 O direito à saúde é oponível contra o Estado, e sua judicialização, fruto da CF que garante acesso ao poder judiciário em caso de lesão ou ameaça de lesão a direito. Essa garantia deve ser observada, sob pena de afronta ao princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional.

Uma vez positivados os direitos fundamentais, caberá o todos os poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – efetivar, a princípio, o mínimo existencial, dentro de suas respectivas funções, para que os preceitos constitucionais tenham eficácia prática e concreta. (RIBAS, 2013)

Entretanto, em nosso país, por uma distorção, a implementação das políticas públicas saiu da órbita dos Poderes Executivo e Legislativo e migrou para o Poder Judiciário. O número de demandas foi tal que fez com que o Supremo Tribunal Federal (STF) realizasse uma audiência pública. É a judicialização da política, que por um lado prestigia o Poder Judiciário com discussões que são vitais para o país, mas por outro atesta a falência na resolução dos conflitos nas esferas que lhe são próprias. O Judiciário é sobrecarregado com inúmeras demandas e acaba por se tornar moroso devido à excessiva litigiosidade. (LIMBERGER; GRISON, 2010)

Estas demandas judiciais são de extrema significação. Do ponto de vista jurídico, elas reclamam a realização não só de uma norma constitucional que veicula um direito fundamental com eficácia jurídica imediata, mas de um direito fundamental social, cuja natureza prestacional positiva implica uma série de desafios práticos e disputas teóricas. (RIOS, 2008)

Do ponto de vista da saúde pública, elas apontam para as compreensões e as tensões atinentes aos princípios norteadores das políticas de saúde pública e as conseqüências de sua implementação, com desdobramentos decisivos no direito à saúde dos indivíduos e no desenvolvimento destas políticas. (RIOS, 2008)

 A judicialização não é um fenômeno pontual, existente em um ou dois países, mas sim uma consequência do constitucionalismo moderno, com o reconhecimento, por parte de textos constitucionais diversos, de direitos e garantias fundamentais, cujo respeito e promoção, todo e qualquer Estado, que se pretenda democrático, deve observar. (JUNIOR, 2012)

O Poder Público tem de fornecer não apenas medicamentos, mas também os tratamentos, incluindo exames e cirurgias necessários à efetivação do direito fundamental à saúde. (SLAIBI, 2010)

Com o objetivo de garantir a efetividade do direito à saúde, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu a resolução 107/2010 que institui o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde. (BRASIL, 2010)

Este fórum, além de monitorar as demandas judiciais que dizem respeito aos problemas relacionados a fornecimento de remédios, tratamentos médicos e internações, e as relativas ao SUS, propõe medidas com o objetivo de otimizar rotinas processuais, prevenir o surgimento de novos litígios, definir estratégias em direito sanitário e outras medidas que se mostrarem pertinentes ao cumprimento do fórum nacional.

O fórum é integrado por juízes atuantes em unidades jurisdicionais especializadas ou não, que tratem de temas relacionados ao objeto de sua atuação podendo contar com o auxilio de autoridades e especialistas com atuação nas áreas correlatas, especialmente do Conselho Nacional do Ministério Público, do Ministério Público Federal, dos Estados e do Distrito Federal, das Defensorias Públicas, da Ordem dos Advogados do Brasil, de universidades e outras instituições de pesquisa.

A criação do fórum visa atender as recomendações nº 31/2010 e 36/2011 do CNJ. Embora não tenham poder vinculante, as recomendações orientam as Cortes a tomarem medidas que subsidiem os magistrados na tomada de decisões, para conferir maior eficiência à solução de demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde.

A recomendação 31/2010 de março de 2010 sugere aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais a celebração de convênios que objetivem disponibilizar apoio técnico composto por médicos e farmacêuticos para auxiliar os magistrados na formação de um juízo de valor quanto à apreciação das questões clínicas apresentadas pelas partes das ações relativas à saúde, observadas as peculiaridades regionais até dezembro de 2010.

Além disso, sugere aos tribunais que orientem os magistrados vinculados a instruir as ações, tanto quanto possível, com relatórios médicos, com descrição da doença, inclusive Código Internacional de Doenças (CID), contendo prescrição de medicamentos, com denominação genérica ou princípio ativo, produtos, órteses, próteses e insumos em geral, com posologia exata.

Os julgadores também são orientados a evitar o deferimento de fármacos ainda não registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei. O julgador deve também ouvir, quando possível, preferencialmente por meio eletrônico, os gestores, antes da apreciação de medidas de urgência.

Os juízes devem verificar, junto à Comissão Nacional de Ética em Pesquisas (CONEP), se os requerentes fazem parte de programas de pesquisa experimental dos laboratórios, caso em que estes devem assumir a continuidade do tratamento bem como determinar, no momento da concessão de medida abrangida por política pública existente, a inscrição do beneficiário nos respectivos programas.

Ainda de acordo com a recomendação, os tribunais devem incluir a legislação relativa ao direito sanitário como matéria individualizada no programa de direito administrativo dos respectivos concursos para ingresso na carreira da magistratura, de acordo com a relação mínima de disciplinas estabelecida pela Resolução 75/2009 do Conselho Nacional de Justiça;

Devem também promover, para fins de conhecimento prático de funcionamento, visitas dos magistrados aos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde, bem como às unidades de saúde pública ou conveniadas ao SUS, dispensários de medicamentos e a hospitais habilitados em Oncologia como Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (UNACON) ou Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (CACON)

É ainda função dos tribunais recomendar à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (ENAMAT) e às Escolas de Magistratura Federais e Estaduais que incorporem o direito sanitário nos programas dos cursos de formação, vitaliciamento e aperfeiçoamento de magistrados além de promover a realização de seminários para estudo e mobilização na área da saúde, congregando magistrados, membros do ministério público e gestores, no sentido de propiciar maior entrosamento sobre a matéria.

De acordo com o relatório de acompanhamento da recomendação 31/2010 feito pelo CNJ, até o mês de junho de 2014 foram ajuizadas 62.291 ações na justiça federal e 330.630 ações na justiça estadual referentes à efetivação do direito à saúde. (QUANTIDADE…, 2014)

Em se tratando de ação objetivando compelir o Estado ao fornecimento de medicamentos, a condenação do ente público se dá através da obrigação de fornecer não apenas os medicamentos, mas também os tratamentos que a Ciência reputar necessários (SLAIBI, 2010).

Quanto a distribuição de medicamentos Souza (2010) afirma que muitos Tribunais deferem os pedidos de fármacos que estejam na lista de atribuições do ente público demandado, respeitando, assim, o princípio da separação dos poderes. Já outros priorizam totalmente o direito daquele demandante que necessita, muitas vezes, com urgência, do medicamento, não importando se são disponibilizados pela União, Estado ou Município.

2.1 Acesso ao Canabidiol

O CBD é um dos componentes não psicoativos da cannabis sativa, conhecido pela ação anticonvulsivante. (RANG et al., 2007), pelo efeito ansiolítico. (NUNES; HALLAK, 2014) e antitumoral. (TIMPAT, 2014). A substância constitui mais de 40% do extrato da cannabis sativa. (ZUARDI et al, 2002)

Adams, Hunt, Clark (1940) isolaram o CBD a partir do extrato da cannabis sativa, mas sua estrutura química foi descoberta em 1963. (MECHOULAM; SHVO, 1963). Os efeitos anticonvulsivantes do CBD foram descobertos em 1973 (CARLINI; LEITE; TANHAUSER, 1973), sendo confirmados em humanos em 1986. (AMES, CRIDLAND, 1986)

Em 1982 foi relatado que o CBD possui também efeito ansiolítico (ZUARDI et al, 1982) e é eficaz no tratamento da esquizofrenia(LEWEKE et al,2012)

Assim como os outros canabinóides, o CBD é lipofílico e, embora tenha efeito retardante no metabolismo hepático do delta-9 tetrahidrocanabinol (THC), o CBD reduz seus efeitos nocivos como ansiedade, crises de pânico e alucinações. (EARLEYWINE, 2002)

A estrutura química do CBD está representada na figura 1:

No Brasil, o CBD não tem registro, o que leva a muitas ações judiciais para assegurar o recebimento da substância.

Em janeiro de 2015, a ANVISA retirou o CBD da lista de substâncias proibidas vigente no Brasil, incluindo-o no rol de substâncias controladas. Em maio do mesmo ano a ANVISA elaborou a nota técnica 093/2015 com orientações para a aquisição intermediada de produtos à base de CBD por Secretarias de Saúde para atendimento de decisões judiciais.

A nota prevê que o pedido para importação do CBD deve estar acompanhado da prescrição médica sendo permitida somente para uso pessoal, por pessoa física previamente cadastrada além de laudo de profissional legalmente habilitado contendo a descrição do caso, código internacional de doenças (CID), justificativa para a utilização de produto não registrado no Brasil em comparação com as alternativas terapêuticas já existentes registradas pela ANVISA, bem como os tratamentos anteriores.

A nota ressalta a morosidade e burocracia no processo de importação do CBD, o que leva a atrasos no tratamento e piora do prognostico do paciente.

Segundo a ANVISA, de 2014 até março de 2016, foram recebidas 1.449 solicitações de importação de produtos à base de CBD deferindo-se 1.279 delas. (BRASIL, 2016)

A lei 6.360/76 estabelece como condição para a industrialização, venda e entrega para consumo de produtos tais como medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e correlatos, produtos de higiene, cosméticos, perfumes, saneantes domissanitários, produtos destinados à correção estética e outros o registro prévio no MS.

 No caso de medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, para se obter o registro do produto é necessário que o produto, através de comprovação científica e de análise, seja reconhecido como seguro e eficaz para o uso a que se propõe, e possua a identidade, atividade, qualidade, pureza e inocuidade necessárias.

Apesar do CBD ainda não ser registrado, existem decisões favoráveis ao fornecimento do produto conforme se vê no entendimento do Tribunal de Justiça da Bahia:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE DETERMINOU O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO PELO ESTADO (CANABIDIOL). DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE. NECESSIDADE DA PACIENTE DEMONSTRADA NO CASO. PRAZO SUFICIENTE PARA CUMPRIMENTO DA DECISÃO. VALOR DAS ASTREINTES RAZOÁVEL. DESNECESSIDADE DE OFERECIMENTO DE CAUÇÃO PARA A CONCESSÃO DE MEDIDA LIMINAR. RECURSO IMPROVIDO. 1. A saúde é direito de todos e dever do Estado, que deverá assegurar a sua fruição igualitária por meio da instituição de ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação, com o consequente fornecimento dos medicamentos necessários para tanto.

2. Admite-se excepcionalmente o deferimento de medida antecipatória satisfativa na hipótese em que se pretende a garantia do direito à saúde e/ou da vida, sendo desnecessário o oferecimento de caução.

3. A astreinte não se configura excessiva quando o destinatário não descumpre a ordem judicial que a fixou, além de não ter sido arbitrada em valor desproporcional e/ou irrazoável.

4. O direito fundamental à saúde, até mesmo por possuir uma conexão íntima e direta com o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), deve prevalecer sobre os interesses financeiros da Fazenda Pública em dispor de um prazo maior para se adequar às decisões judiciais que visam efetivar tal direito.

5. Recurso improvido. Tribunal de Justiça – BA. Agravo de instrumento nº 0024989-36.2015.8.05.0000; Relator: Maurício Kertzman Szporer; Órgão julgador: Segunda Câmara Cível; Publicado em: 19/03/2016 .”

Esse julgado deferiu o acesso ao CBD com base na doutrina do mínimo existencial, colocando o direito à saúde como obrigação do Estado. Essa decisão afastou a alegação de ilegitimidade feita pelo Estado vez que a competência relativa à distribuição de medicamentos é concorrente.

O mínimo existencial consiste em um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas. Trata-se de direito pré-constitucional, não positivado na Carta Magna, mas implícito no art 3º, III, como sendo um dos objetivos da República Federativa do Brasil a erradicação da pobreza e da marginalização. (TORRES,1999)

E foi em busca dessa existência humanamente digna que a noção de mínimo existencial se difundiu pela Alemanha. O Tribunal Constitucional Federal Alemão extraiu da dignidade da pessoa humana e do direito à vida e à integridade física, mediante a interpretação sistemática junto ao princípio do Estado social, o direito a um mínimo de existência, a partir do que determinou um aumento significativo do valor da ajuda social, valor mínimo que o Estado está obrigado a garantir aos cidadãos carentes. (KRELL, 2002)

Com base nos mesmos fundamentos outras decisões do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) se mostraram favoráveis ao fornecimento do CBD:

“DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. RECURSO DE AGRAVO NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALEGAÇÃO DE MÁ APLICAÇÃO DO ART. 557, CPC. DECISÃO MONOCRÁTICA TERMINATIVA QUE NEGOU SEGUIMENTO AO RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO DO ESTADO DE PERNAMBUCO EM RAZÃO DA MATÉRIA RECURSAL JÁ SE ENCONTRAR PACIFICADA NO ÂMBITO DO TRIBUNAL. DIREITO HUMANO À SAÚDE. PACIENTE PORTADOR DE ENCEFALOPATIA CRÔNICA NÃO AGRESSIVA POR SEQUELA DE ANÓXIA NEONATAL EVOLUINDO COM RETRASO MENTAL COM DISTÚRBIO DO COMPORTAMENTO E APRAXIA ORAL ASSOCIADO A EPILEPSIA DE DIFÍCIL CONTROLE CHEGANDO A TER 30 (TRINTA) CRISES POR DIA. LAUDO MÉDICO QUE INDICA A NECESSIDADE DO USO DE CANABIDIOL OU CBD (UMA DAS SUBSTÂNCIAS PRESENTES NA MACONHA). DECISÃO QUE DETERMINA QUE O ESTADO DISPONIBILIZE O TRATAMENTO INDICADO. PRECEDENTES DO TJPE. RECURSO IMPROVIDO. Tribunal de Justiça- PE. Agravo no Agravo de Instrumento; Processo n; 0006685-53.2015.8.17.0000; Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Público; Relator: André Oliveira da Silva Guimarães; Data do julgamento: 24/07/2015.”

Além desse julgamento, o TJ-PE já havia proferido decisões anteriores no mesmo sentido:

“PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. RECURSO DE AGRAVO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO A CIDADÃO HIPOSSUFICIENTE. CANABIDIOL. DIREITO À SAÚDE E À VIDA DIGNA. DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO. MULTA DIÁRIA. RAZOABILIDADE. I – Cuida-se, na espécie, de pleito relativo à disponibilização, pelo Estado de Pernambuco, de medicamento composto por uma das substâncias da Cannabis Sativa (popularmente conhecida como maconha), o CANADIBIOL, para o tratamento da grave patologia que acomete o agravado.II – O direito subjetivo à saúde está, no ordenamento jurídico pátrio, garantido por meio de norma programática insculpida no art. 196 da Constituição da República.III- Constitui dever do Poder Público, em qualquer de suas esferas, assegurar a todas as pessoas o direito à manutenção da saúde, consequência indissociável do direito à vida. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. IV – Comprovada a necessidade do tratamento associada à falta de condições de adquirir o medicamento necessário, o cidadão poderá, sim, buscar proteção junto ao Poder Judiciário para que sejam disponibilizados pelo Estado os meios necessários ao adequado tratamento da enfermidade. V – O fato de o medicamento requerido não possuir registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, por si só, não tem o condão de afastar o direito do portador de doença grave ao recebimento da medicação pleiteada, sendo possível que, em caráter excepcional, medicamentos sem registro no Brasil venham a ser importados. VI – De qualquer forma, em atenção aos diversos estudos científicos acerca da eficácia do CANABIDIOL no tratamento, dentre outras enfermidades, da epilepsia, a ANVISA, por meio da Resolução nº 18, publicada no DOU nº 90, de 14 de maio de 2015, promoveu o reenquadramento do fármaco para a lista C1 da Portaria nº 344, de 12 de maio de 1998, em razão do qual a substância em evidência, antes proscrita, passou a ser apenas controlada. VII – Mostra-se irrelevante, por outro lado, a circunstância de o medicamento postulado não está presente nas listas de medicamentos fornecidos pelo Sistema Único de Saúde – SUS, posto que tem o Estado o dever de garantir o direito subjetivo à saúde do cidadão. Súmula do TJPE, enunciado nº 18. VIII – É razoável a fixação da multa diária no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), porquanto o que está em debate é o direito à saúde da paciente. IX – Agravo Legal desprovido, à unanimidade. Tribunal de Justiça- PE. Agravo no Agravo de Instrumento; Processo n; 0000902-80.2015.8.17.0000; Órgão julgador:1ª Câmara de Direito Público; Relator: Jorge Américo Pereira de Lira; Data do julgamento: 02/06/2015.”

 Na mesma esteira e com os mesmos argumentos utilizados nas decisões anteriores assim decidiu o Tribunal Regional Federal 4ª Região:

ADMINISTRATIVO. MEDICAMENTO. CANABIDIOL. MEDICAMENTO NÃO PREVISTO EM PROTOCOLO CLÍNICO DO MS. ATENDIMENTO PELO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. AUTORIZAÇÃO DA ANVISA PARA REPRESENTANTE LEGAL DA AUTORA IMPORTAR O MEDICAMENTO. VEROSSIMILHANÇA. Comprovada a submissão de tratamento via SUS ou aos protocolos clínicos do MS para o tratamento da doença neurológica, bem como a autorização excepcional da ANVISA à agravada para a importação do canabidiol, considera-se satisfeito o requisito formal, segundo avaliação da própria Administração, para a importação do fármaco, ainda o medicamento, objeto da lide, não possua registro junto a esse órgão fiscalizador. Inaplicável, no caso, o entendimento que se veda o fornecimento de medicamentos sem o registro respectivo. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Recurso especial em agravo de instrumento; Processo n° 501.4481-06.2015.404.0000; Órgão julgador: 4ª turma; Relator: Luís Alberto D’Azevedo Aurvale; Data: 04/02/2016”.

Essas decisões estão de acordo com a jurisprudência dominante do STF representadas nesses arestos, verbis:

“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO À SAÚDE. SOLIDARIEDADE DOS ENTES FEDERATIVOS. TRATAMENTO NÃO PREVISTO PELO SUS. FORNECIMENTO PELO PODER PÚBLICO. PRECEDENTES. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que, apesar do caráter meramente programático atribuído ao art. 196 da Constituição Federal, o Estado não pode se eximir do dever de propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde dos cidadãos. O fornecimento gratuito de tratamentos e medicamentos necessários à saúde de pessoas hipossuficientes é obrigação solidária de todos os entes federativos, podendo ser pleiteado de qualquer deles, União, Estados, Distrito Federal ou Municípios (Tema 793). O Supremo Tribunal Federal tem se orientado no sentido de ser possível ao Judiciário a determinação de fornecimento de medicamento não incluído na lista padronizada fornecida pelo SUS, desde que reste comprovação de que não haja nela opção de tratamento eficaz para a enfermidade. Precedentes. Para dissentir da conclusão do Tribunal de origem quanto à comprovação da necessidade de tratamento não previsto pelo SUS faz-se necessário o reexame dos fatos e provas constantes dos autos, providência inviável neste momento processual (Súmula 279/STF). Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. Agravo regimental a que se nega provimento. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no recurso extraordinário nº 831385; Órgão julgador: Primeira Turma; Relator: Min. Roberto Barroso; Julgamento: 17/03/2015.”

 Essa decisão não é caso isolado no STF, conforme se vê nos dois julgados abaixo:

“ Ementa: AGRAVOS REGIMENTAIS. SUSPENSÃO DE LIMINAR. DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS. SAÚDE PÚBLICA. DIREITO À SAÚDE. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. TRATAMENTO SEM OS RESULTADOS ESPERADOS. NECESSIDADE DE UTILIZAÇÃO DE MEDICAMENTO QUE SE MOSTRA IMPRESCINDÍVEL PARA A MELHORIA DA SAÚDE E MANUTENÇÃO DA VIDA DO PACIENTE. MEDICAÇÃO SEM REGISTRO NA ANVISA. FÁRMACO REGISTRADO EM ENTIDADE GOVERNAMENTAL CONGÊNERE. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS. NÃO COMPROVAÇÃO DO RISCO DE GRAVE LESÃO À ORDEM E À ECONOMIA PÚBLICAS. POSSIBILIDADE DE OCORRÊNCIA DE DANO INVERSO. SUSPENSÃO DE LIMINAR INDEFERIDA. AGRAVOS REGIMENTAIS A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I – Decisão que deferiu o fornecimento de medicamentos não disponíveis na rede pública de saúde para o tratamento do vírus da Hepatite genótipo “C”. II – Tratamento oferecido no âmbito do Sistema Único de Saúde que não surtiu o efeito esperado. Prescrição da utilização combinada dos medicamentos Sofosbuvir 400 mg, Simeprevir 150 mg e Ribravirina 250 mg, única forma viável de evitar o agravamento da doença. III – Discussão sobre a possibilidade do custeio pelo Estado de medicamento ainda não registrado pela ANVISA. IV – Repercussão Geral da matéria reconhecida nos REs 566.471/RN e 657.718/MG, ambos de relatoria do Ministro Marco Aurélio. V – Eficácia do fármaco atestada aprovada por entidade governamental congênere à ANVISA. VI – Decisão de indeferimento da suspensão que preserva a vida do paciente, ante a constatação da não comprovação do grave risco de lesão à ordem e à economia públicas. VII – Agravos regimentais a que se nega provimento. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na suspensão de liminar nº 815; Órgão julgador: Tribunal Pleno; Relator: Min Ricardo Lewandowski; Julgamento: 07/05/2015.”

“EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. SEPARAÇÃO DOS PODERES. VIOLAÇÃO. NÃO CONFIGURADA. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS. PRECEDENTES. HIPOSSUFICIÊNCIA. SÚMULA 279/STF. 1. É firme o entendimento deste Tribunal de que o Poder Judiciário pode, sem que fique configurada violação ao princípio da separação dos Poderes, determinar a implementação de políticas públicas nas questões relativas ao direito constitucional à saúde. 2. O acórdão recorrido também está alinhado à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, reafirmada no julgamento do RE 855.178-RG, Rel. Min. Luiz Fux, no sentido de que constitui obrigação solidária dos entes federativos o dever de fornecimento gratuito de tratamentos e de medicamentos necessários à saúde de pessoas hipossuficientes. 3. A controvérsia relativa à hipossuficiência da parte ora agravada demandaria a reapreciação do conjunto fático-probatório dos autos, o que não é viável em sede de recurso extraordinário, nos termos da Súmula 279/STF. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo n 894.085; Órgão julgador: Primeira Turma; Relator: Min. Roberto Barroso; Julgamento: 15/12/2015.”

Baseando-se nos mesmos princípios das outras decisões, os julgados deferem acesso aos medicamentos, colocando o direito à saúde como prioridade do Estado, afastando alegação de ilegitimidade passiva dos entes públicos e de falta de registro do remédio.

Esses arestos mostram o pensamento dominante do STF e do poder judiciário visto o grande número de julgamentos favoráveis e a tendência dos tribunais em seguir o entendimento da instância superior ainda que por disciplina judiciária.

Esses posicionamentos encontram respaldo nas ideias de Schwartz e Bortolotto (2008) segundo os quais as normas que garantem o direito à saúde têm aplicabilidade imediata, na forma do art. 5º, § 1º, do próprio texto constitucional, constituindo-se em direito prestacional passível de exigência do cidadão perante o Estado.

Ainda segundo os autores diante de tal situação, vem-se consolidando, na doutrina e na jurisprudência, pelo menos no que pertine ao direito fundamental à saúde, a possibilidade de ingerência do poder judiciário no controle das ações Administrativas Estatais para garantir a plena prestação de saúde requerida pelo cidadão.

Não foi possível colocar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça porque o direito a saúde é matéria constitucional, sendo de competência do STF

Todavia, existem decisões em sentido contrário conforme se vê no entendimento do TRF da 2ª Região e da decisão monocrática do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

“AGRAVO INTERNO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALCANCE DO ART. 196 DA CF. CANABIDIOL. MEDICAMENTO IMPORTADO NÃO REGISTRADO NA ANVISA. FORNECIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. ISONOMIA. VEDAÇÃO LEGAL. ARTS. 19-M, 19-P E 19-T, II, DA LEI 8.080/90. DECISÃO NÃO TERATOLÓGICA. 1. Em que pese a situação do recorrente, o Judiciário não pode privilegiar situações individuais em detrimento das políticas públicas que buscam o atendimento de toda a população de forma igualitária, sob pena de se concretizar uma alocação desigual de recursos. O fornecimento de medicamento não padronizado à paciente só seria possível caso se pudesse garantir a mesma situação àqueles que passam por circunstâncias igualmente periclitantes. 2. Não cabe ao magistrado, que não possui qualquer conhecimento médico, determinar a disponibilização de remédios que, muitas vezes, nunca sequer ouviu falar, e não integram as listas de dispensação pelo Poder Público. Nesse sentido, merecem destaque as inovações trazidas pela Lei nº 12.401/2011, que condicionou o fornecimento de fármacos pelo Sistema Único de Saúde à incorporação do remédio em protocolo clínico para o tratamento de doença em questão ou à presença nas listas de dispensação regulares mantidas pelas três esferas federativas, nos termos dos artigos 19-M, I e 19-P, ambos da Lei nº 8.080/90. 3. No que tange à alardeada "liberação" do Canabidiol para fins terapêuticos, é preciso trazer limites mais precisos acerca do que restou decidido pela Diretoria Colegiada da ANVISA. A autarquia decidiu, tão somente, pela retirada do CDB da lista de substâncias proibidas, enquadrando-se na lista C1 da Portaria 344/98 (lista de substâncias sujeitas a controle especial) . Isto não significa a existência de medicamento devidamente registrado no país. No site da própria autarquia, há notícia de que o primeiro pedido de registro de um fármaco com CDB foi recebido há cerca de um mês, estando pendente de apreciação. Trata- se, portanto, de tratamento experimental sim, sendo certo que a dispensação do medicamento "Hemp Oil RSHO Blue 16,5%" pelo Poder Público encontra óbice no art. 19- T, II, da Lei 8.080/90. 4. A obrigatoriedade de registro não é meramente burocrática; tem o objetivo de resguardar e proteger a saúde dos consumidores brasileiros, garantindo a eficácia do medicamento e 1 alertando quanto a possíveis efeitos colaterais, após a realização de uma série de estudos clínicos. Dessa forma, via de regra, o registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária é condição sine qua non para o pedido de inclusão de um determinado tratamento na lista de procedimentos padronizados pelo Sistema Único de Saúde, sendo certo que a ausência de registro na ANVISA acarreta na impossibilidade de fornecimento do medicamento. Precedentes. 5. Agravo interno conhecido e desprovido. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Agravo de instrumento n° 0001356-13.2015.4.02.0000; Órgão julgador: 7ª turma; Relator: José Antônio Lisbôa Neiva; Data da decisão: 16/03/2015 Disponibilizado em: 24/03/2015 ”

Essa decisão se baseou na falta de registro e na doutrina da reserva do possível. O magistrado entendeu que, mais do que simples burocracia, o registro na ANVISA constitui condição sine qua non a fim de garantir a segurança e eficácia dos produtos e serviços disponibilizados pelo SUS.

Esse entendimento é corroborado no escrito de Ferraz e Vieira (2009) segundo os quais compreende-se a preocupação do Judiciário sobre o risco de os chamados direitos econômicos e sociais garantidos pela Constituição serem negligenciados por serem normas programáticas, isto é, sem eficácia plena. Porém, isso não justifica descartar o problema da escassez de recursos como se ele fosse ilusório ou secundário. Os autores ressaltam que as necessidades de saúde da população vão sempre muito além dos recursos disponíveis para atendê-las.

Os autores fazem ainda uma dicotomia entre escassez relativa e escassez absoluta no atinente aos recursos disponíveis para área de saúde definindo escassez relativa como:

“ (…) indica-se o fato de que os recursos disponíveis ao Estado para investimento não se destinam apenas à saúde. Desse modo, a saúde compete com outras áreas em que o Estado é também obrigado a investir,como educação, segurança pública, esporte, cultura. No caso brasileiro, há, hoje, apesar de passível de regulamentação, um limite mínimo de investimento na saúde determinado constitucionalmente (Emenda no 29), mas tudo o que ultrapassar esse patamar compete com outras áreas (Senado Federal, 2007). Assim, o que se pode e quer gastar em saúde é sempre relativo ao que se pode e quer investir em outras áreas.”

E escassez absoluta como:

“Por escassez “absoluta”, indica-se o que ocorre em menor ou maior escala em todos os países do mundo, mesmo nos ricos. Por maiores que sejam os recursos destinados exclusivamente à saúde no processo de alocação em que entram as demais áreas, haverá sempre menos recursos disponíveis que os necessários para atender a todas as necessidades de saúde da população. Isso implica, evidentemente, a necessidade de fazer escolhas, muitas vezes difíceis, entre as diversas políticas de saúde possíveis.”

O julgador também considerou que não se pode atender uma pessoa em detrimento da coletividade

“DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. PLEITO DE FORNECIMENTO DA SUBSTÂNCIA CANABIDIOL. PESSOA CARENTE DE RECURSOS FINANCEIROS E COM DIAGNÓSTICO DE EPILEPSIA DE DIFÍCIL CONTROLE DECORRENTE DE ESCLEROSE TUBEROSA. AUSÊNCIA DE EVIDÊNCIAS TÉCNICAS CONSISTENTES. NECESSIDADE DE APROFUNDAMENTO NAS PESQUISAS PARA TESTAGEM DA EFICÁCIA DA MEDICAÇÃO. AUSÊNCIA DE VEROSSIMILHANÇA E RISCO DE DANO IRREPARÁVEL OU DE DIFÍCIL REPARAÇÃO NOS ARGUMENTOS ESGRIMIDOS PELO AGRAVANTE. CONVERSÃO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO EM AGRAVO RETIDO. Tribunal de Justiça – RS, Agravo de Instrumento nº 70064030836; Órgão julgador: Terceira Câmara Cível; Relator: Nelson Antônio Monteiro Pacheco, Julgado em 07/04/2015.”

Esse julgado se baseia na ausência de verossimilhança na alegação da parte quando esta afirma que a decisão pode trazer danos irreparáveis além de entender que faltam evidências cientificas a cerca da eficácia do CBD.

Segundo essa tese, a atuação estatal seria subsidiária ou supletiva, e somente poderia existir condenação à entrega coativa de medicamentos mediante impossibilidade do interessado de adquirir extrajudicialmente o remédio, por meios próprios, ou com auxílio de familiares. Ou seja, a Constituição, nessa perspectiva, também materializa o princípio da solidariedade, traduzido no objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (art. 3º, I) ou na regra estampada no artigo 229, ao mencionar que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”, valendo tal assertiva, obviamente, para o âmbito assistencial e da saúde.(SCHULZE,2014)

Entendimentos como esses expostos sintetizam a doutrina neoliberal. Sarlet (2001) salienta os impactos negativos dessa doutrina no âmbito dos direitos fundamentais sociais, apontando para uma "crise dos direitos fundamentais" com supressão de vários desses direitos notadamente os de 2ª dimensão (sociais).

Se o posicionamento dos adeptos da corrente neoliberal fosse plausível, as normas atinentes aos direitos fundamentais não teriam sido dotadas de aplicabilidade imediata. Tais normas devem, na pior das hipóteses, assegurar o mínimo de existência condigna às pessoas, na sua vida em sociedade. Assim, o mínimo existencial deve ser garantido de plano por essas normas, independentemente de sua implementação por meio de políticas públicas. De outra forma, as normas programáticas não passariam de meros programas políticos ou apelos ao legislador, sem qualquer grau de vinculação jurídica. (OLIVEIRA, B, 2014)

Ademais, a despesa per capita do governo brasileiro com a saúde foi de somente R$ 946,00 ao passo que as famílias tiveram R$ 1.162,00 de despesa per capita. No que diz respeito aos medicamentos, o governo utiliza somente 0,2% do PIB enquanto que as famílias utilizam 1,5% do PIB consoante dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (IBGE) no ano de 2013. (BRASIL, 2015)

O Brasil investiu 8% de seu PIB na saúde, entretanto, desse percentual os investimentos privados correspondem a 4,4% enquanto que o governo contribuiu com somente 3,6% segundo dados do IBGE para o ano de 2013.(BRASIL, 2015)

O investimento per capita com saúde do governo brasileiro é inferior a média mundial que foi de U$$ 615,00 (R$ 2.177,00) por pessoa. (GASTO…, 2015)

Apesar do direito à saúde de fato configurar despesa pública, não se pode admitir a invocação da reserva do possível como fator limitante ao fornecimento de remédios quando servir de subterfúgio para o Estado se eximir das obrigações que lhe são impostas por meio de mandamentos constitucionais, sob pena de violação a princípios insculpidos na Carta Magna e ao próprio Estado de Direito.

Ademais, a despeito do CNJ recomendar aos juízes que evitem conceder produtos e medicamentos não registrados na ANVISA, é possível seu deferimento nos casos em que os produtos já registrados se revelarem ineficientes em satisfazer as necessidades ou terem baixo custo benefício em relação aos pleiteados.

Por último, é notória a falta de investimento na saúde publica- que é obrigação do poder executivo. Esse fato autoriza a intervenção do poder judiciário a fim de que o direito à saúde seja cumprido e o principio da dignidade humana seja posto em prática.

CONCLUSÕES
O direito à saúde é fundamental na conquista e no exercício da cidadania, sendo indissociável desta. Por isto, a CF deu atenção especial ao tema, dedicando-lhe artigos e o elevou a categoria de direito fundamental oponível contra o Estado. Este fato permite sua judicialização, que é instrumento para efetivação do direito à saúde.

É cediço que o direito à saúde tem aplicabilidade imediata, na forma do art. 5º, § 1º, do próprio texto constitucional, constituindo-se em direito prestacional passível de exigência do cidadão perante o Estado, o que demonstra obrigatoriedade de fornecimento de remédios demandados judicialmente.

O fenômeno da judicialização da saúde é oriundo do constitucionalismo moderno. No Brasil, o CNJ instituiu fórum Nacional da Saúde a fim de efetivar o direito constitucionalmente garantido.

A retirada do CBD da lista de substâncias proibidas é recente. Embora existam julgamentos em sentido contrário, a jurisprudência dominante inclusive do STF coloca o direito a vida e a saúde como deveres do Estado, deferindo produtos ainda que não sejam registrados na ANVISA a exemplo do CBD, baseando-se, sobretudo, na noção de mínimo existencial e dignidade humana enquanto que as contrárias se apoiaram na ideia da reserva do possível.

O pensamento contrário ao deferimento do CBD sintetiza a doutrina neoliberal que defende a não intervenção estatal em setores vitais para a sociedade.

Apesar do CNJ recomendar aos magistrados que evitem deferir produtos e medicamentos não registrados pela ANVISA, entende-se que seja possível sua concessão quando as opções registradas se mostram ineficientes ou com baixo custo- benefício em relação aquelas não registradas.

Além da noção do mínimo existencial, ilustrada na obrigatoriedade de fornecer os medicamentos pleiteados, outro aspecto favorável ao fornecimentos de substancias sem registro na ANVISA na ocasião em que se mostrarem com melhores benefícios em relação as já registradas é o fato do governo fazer escassos investimentos no setor da saúde, o que torna mais urgente a efetivação do direito à saúde.

 

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Informações Sobre o Autor

Tâmara Neto Amorim

Servidora Pública. Bacharel em Direito pela Faculdade Batista Brasileira


Equipe Âmbito Jurídico

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