Resumo: Discute-se nos meios jurídicos e acadêmicos a questão da descriminalização do aborto dos fetos portadores de anencefalia, invocando-se, para tanto, as mais variadas teorias que guarnecem a seara do direito penal. No entanto, o tema envolve o direito à vida e se insere no campo das garantias individuais, sustentadas pelo princípio da dignidade da pessoa humana, razão pela qual importa ser enfrentado sob a ótica da Constituição Federal e dos preceitos que informam o Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Anencefalia, direito à vida, aborto, cláusula pétrea.
Abtract: It discusses the legal and academic the issue of decriminalization of abortion of fetuses with anencephaly, invoking, for that, all kinds of theories that trim the mobilization of law. However, the issue involves the right to life and within the field of individual rights, underpinned by the principle of human dignity, why should be addressed from the perspective of the Federal Constitution and the precepts that inform the Democratic State.
Keyword– Anencephaly, right to life, abortion, stony clause
Introdução- Permeando discussões nas esferas de poder, nos grupos acadêmicos, religiosos, científicos, filosóficos e doutrinários, os debates referentes ao direito à vida dos portadores de anencefalia têm se tornado a tônica do momento, porquanto tramitam no Congresso Nacional projetos de leis objetivando autorizar o aborto eugênico.
É crescente no meio social a aceitação do aborto eugênico, com tendência a tolerá-lo dentro do ordenamento jurídico, sob os mais variados argumentos e teorias, ante a falta de legislação que o contemple.
Dentre seus defensores, se destacam renomados penalistas sustentando não sofrer a vida qualquer lesão em face da prática do aborto seletivo, porque entendem inexistir vida em potencial para o ser portador de anencefalia ou outra má formação grave e incurável. O feto portador de anomalia incurável não teria direito à vida, pois que este bem jurídico lhes soa como mera expectativa, não sendo juridicamente tutelado, admitindo-se o aborto, nesta situação, por ser um fato atípico.
Asseveram outros que, no atual Estado Democrático de Direito, os direitos e as garantias individuais não são absolutos, nem mesmo o direito à vida, autorizando-se a extirpação da vida intrauterina quando esta não apresenta condições de se sustentar após o nascimento. Neste caso, merece ser preservada a saúde psíquica da gestante, não se podendo invocar o direito à vida do nascituro, até porque, inviabilizada a vida futura do feto, o dano psicológico sofrido pela mãe poderá perdurar por anos.
Malgrado as posições sustentando a legalidade do aborto eugênico, respaldados em princípios éticos, sociais e científicos, a questão que se coloca é se a vida, como direito assegurado constitucionalmente, pode sofrer relativização. Em caso positivo, a questão igualmente chamada a debate é se a lei infraconstitucional, ou a interpretação judicial, pode fazê-lo.
O presente artigo não objetiva contra argumentar as posições doutrinárias tecidas em favor do aborto eugênico, sobretudo do aborto dos anencéfalos, mas trazer à reflexão a questão do direito à vida, consagrado na Constituição Federal, como direito absoluto, que figura no rol das cláusulas pétreas, inclusive.
É uníssono o entendimento segundo o qual o direito à vida é o principal direito individual, o bem jurídico de maior relevância tutelado pela ordem constitucional, uma vez que o exercício dos demais direitos depende de sua existência.
José Afonso da Silva sustenta que o direito à vida deve ser “ compreendido de forma extremamente abrangente, incluindo o direito de nascer, de permanecer vivo, de defender a própria vida, enfim, de não ter o processo vital interrompido senão pela morte espontânea e inevitável”. (apud PINHO, 2009,p.80)
A importância da vida no texto constitucional é evidenciada em vários dispositivos. Cita-se, a título de exemplo, a postura do legislador ao condicionar o equilíbrio do meio ambiente ao controle e fiscalização pelo Poder Público, a fim de se evitar a comercialização, produção e manipulação de substâncias ou técnicas que prejudiquem a vida ou a qualidade de vida. É patente, nesta disposição, o realce que a lei maior conferiu à vida, destacando-a como o mais expressivo e fundamental de todos os direitos.
Comentando referido dispositivo, artigo 225, parágrafo primeiro da CF, Paulo Gustavo Gonet Branco assevera que o “preceito enfatiza a importância do direito à vida e o dever do Estado de agir para preservá-la em si mesma e com determinado grau de qualidade”. (BRANCO; MENDES; COELHO, 2009, p. 393)
Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital. “É também por essa razão que se considera legitima a defesa contra qualquer agressão à vida, bem como se reputa legitimo até mesmo tirar a vida a outrem em necessidade da salvação da própria”. (SILVA, 2009, p.66)
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aprovado pela XXI sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, reza que o direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei, ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida.
Luiz Flávio Gomes, entendendo que o direito a vida não é absoluto, ensina que “não se pode ignorar que o valor vida conta com prioridade (ou seja: prepondera sobre qualquer outro direito. O direito à vida é inderrogável e inviolável (CF, art. 5º caput), ou seja, não pode ser restringido nem sequer em época de exceção”. (GOMES, 2009.p.36)
Pontuando o valor máximo conferido ao direito à vida, O Ministro Gilmar Mendes assinala que:-
“[…] dada a capital importância desse direito e em reconhecimento de que deve ser protegido, sobretudo nos casos em que seu titular se acha mais vulnerável a Constituição Federal, no artigo 227, dispõe ser dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida.[…]Proclamar o direito à vida responde a uma exigência que é previa ao ordenamento jurídico, inspirando-o e justificando-o. Trata-se de um valor supremo na ordem constitucional que orienta, informa e dá sentido último a todos e demais direitos fundamentais.” (BRANCO; MENDES; COELHO, 2009, p.394)
Reconhecendo a vida como o maior de todos os direitos, não se pode compactuar com a ideia de que a sua manifestação precária, intra uterina, retire do ser o direito de tê-la tutelada pelo Estado até que se esgote de forma natural, pois tanto a lei maior, quanto as demais que lhe são inferiores obrigam o Estado a proteger o direito à vida desde a sua concepção, sem condicionar esta proteção legal a qualquer outro requisito.
Dalmo Dallari, sobre o tema é incisivo ao lembrar que “a vida é um bem de todas as pessoas, de todas as idades e de todas as partes do mundo. Nenhuma vida humana é diferente de outra, nenhuma vale mais nem vale menos do que outra. E nenhum bem humano é superior à vida”. (DALARI,2009)
Daí porque não se pode abarcar a ideia de que o direito à vida, no Estado de Direito, reclame apenas proteção relativa.
O elemento decisivo para se reconhecer e se proteger o direito
à vida é a “verificação de que existe vida humana desde a concepção, quer ela ocorra naturalmente, quer in vitro”. (BRANCO; MENDES; COELHO, 2009, p.397).
Neste sentido, continua Branco,
“O direito à vida não pressupõe mais do que pertencer à espécie homo sapiens. Acreditar que somente haveria pessoa no ser dotado de autoconsciência é reduzir o ser humano a uma propriedade do indivíduo da espécie humana, que inclusive pode ser perdida ao longo de sua existência. O indivíduo que se consubstancia da fusão de gametas humanos não é apenas potencialmente humano ou uma pessoa em potencial; é um ser humano, por pertencer à espécie humana. Por conta dessa sua essência humana, o ainda não nascido tem direito à vida como os já nascidos, até por imposição do princípio da igual dignidade humana. O direito à vida tem seu termo inicial na fecundação e, na morte, o seu temo final.” (BRANCO; MENDES; COELHO,2009,398).
O caráter absoluto do direito à vida ressoa de forma a impedir confronto com qualquer outro direito individual, devendo sempre prevalecer, mesmo porque, sem a vida, os demais direitos desaparecem.
“Constata-se, por outro lado, que bens juridicamente relevantes podem contrapor-se à continuidade da gravidez. A solução cabível haverá de ser, contudo, a inexorável preservação da vida humana, ante a sua posição no ápice dos valores protegidos pela ordem constitucional. Veja-se que a ponderação do direito a vida com valores outros não pode jamais alcançar um equilíbrio entre estes, mediante compensações proporcionais. Isto porque, na equação dos valores contrapostos, se o fiel da balança apontar para o interesse que pretende superar a vida intrauterina, o resultado é a morte do ser contra quem se efetua a ponderação. Perde-se tudo de um dos lados da equação. Um equilíbrio entre interesses é impossível de ser obtido. O confronto do direito à vida do nascituro com o direito da mãe somente poderá render um resultado favorável a esta nos casos em que a própria existência física dela esteja em jogo”. (BRANCO; MENDES;COELHO,2009,p.399)
Por outro lado, importa destacar que, no atual modelo de Estado de Direito Constitucional, embora o ordenamento jurídico se apresente como um todo, conforme enfatiza Bobbio (2009), devendo ser interpretado sem as regras da temporalidade e hierarquia, a Constituição Federal ainda é a fonte de validade das demais espécies normativas, com autoridade para varrer do ordenamento jurídico o que contradiz seus postulados.
Fundamentadas em outras normas que lhe são superiores, ensina Celso Bastos, que:
“[…] as normas de direito encadeiam-se de forma a dar origem a um complexo sistema normativo, fora do qual não podemos imaginar nenhuma regra de direito: ou bem ela se coloca dentro do sistema, dele passando a retirar sua força obrigatória, ou permanece fora do referido sistema, caso em que deixa de existir como regra de direito”. (BASTOS, 1998, p.383)
Oportuno trazer à colação a teoria kelseniana a respeito da posição hierárquica da Constituição Federal frente as demais espécies normativas, objetivando considerar que os direitos e garantias individuais contidos em sua ordem não podem sofrer exceção por espécie normativa de calibre inferior. Daí porque as propostas legislativas ordenadas em lei, sobre a licitude do aborto eugênico, ferem o Estado Democrático de Direito, porquanto agridem a ordem constitucional.
Kelsen assinala, neste sentido, que:-
“A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas do lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental – pressuposta. A norma fundamental hipotética, nestes termos é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora. Se começarmos levando em conta apenas a ordem jurídica estadual, a Constituição representa o escalão de Direito positivo mais elevado.” (KELSEN,2006,p.247)
O Estado Democrático de Direito elege a dignidade da pessoa humana como um de seus pilares. A dignidade da pessoa humana é, por conseguinte, o núcleo essencial dos direitos fundamentais, a fonte jurídico positiva dos direitos fundamentais, a fonte ética, que confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais, o “valor que atrai a realização dos direitos fundamentais, el valor básico (Grundwert) fundamentador de los derechos humanos. Los derechos fundamentales son la expresión más inmediata de la dignidade humana. (SANTOS,2010)
Os direitos fundamentais estatuídos na constituição federal, denominados de direitos humanos pelo direito internacional, têm em sua base a dignidade da pessoa humana, pois todas aquelas garantias apregoadas pela carta máxima, fruto de conquista histórica do homem e do cidadão ao longo do tempo, se justificam em favor de ser conferida à pessoa humana a dignidade, valor ora negado, ora relegado, nos modelos de Estado anterior.
Para garantir o valor absoluto dos direitos e garantias individuais, protegendo-o contra as investidas do poder, o legislador constitucional instituiu no artigo 60, parágrafo 4º, as cláusulas pétreas, enumerando em seu rol os direitos e garantias individuais.
Enfrentando o tema, sustenta MARIA HELENA DINIZ:
“O direito à vida, por ser essencial ao ser humano, condiciona os demais direitos da personalidade. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, caput, assegura a inviolabilidade do direito à vida, ou seja, a integralidade existencial, conseqüentemente, a vida é um bem jurídico tutelado como direito fundamental básico desde a concepção, momento específico, comprovado cientificamente, da formação da pessoa. Se assim é, a vida humana deve ser protegida contra tudo e contra todos, pois é objeto de direito personalíssimo. O respeito a ela e aos demais bens ou direitos correlatos decorre de um dever absoluto erga omnes, por sua própria natureza, ao qual a ninguém é lícito desobedecer… Garantido está o direito à vida pela norma constitucional em cláusula pétrea, que é intangível, pois contra ela nem mesmo há o poder de emendar…tem eficácia positiva e negativa…A vida é um bem jurídico de tal grandeza que se deve protegê-lo contra a insânia coletiva, que preconiza a legalização do aborto, a pena de morte e a guerra, criando-se normas impeditivas da prática de crueldades inúteis e degradantes…Estamos no limiar de um grande desafio do século XXI, qual seja, manter o respeito à dignidade humana”. (DINIZ, 2009, p.32,34).
Segundo José Afonso da Silva,
“[…] as Constituições Brasileiras Republicanas sempre contiveram um núcleo imodificável. E a Constituição atual ampliou o núcleo, definindo no artigo 60, § 4º, que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes, os direitos e garantias individuais” (SILVA: 1991.)
Ives Gandra diz que:-
“[…] os direitos e garantias individuais conformam uma norma pétrea e não são eles apenas os que estão no art. 5º, mas, como determina o § 2º,do mesmo artigo, incluem outros que se espalham pelo Texto Constitucional e outros que decorrem de implicitude inequívoca. Infere-se, pois, que os direitos e garantias individuais derivam da própria existência humana e se colocam acima de toda e qualquer norma, sendo-lhes inerente o poder de restringir outros direitos inscritos no Texto Maior” (MARTINS: 1995)
Ressalta-se, ainda, que a rigidez constitucional não é a única ferramenta para a tutela dos direitos fundamentais, pois o texto constitucional estabelece, também, um regime jurídico diferenciado de proteção aos direitos fundamentais, segundo leciona Paulo Ricardo Schier.
“Ao definir a auto-aplicabilidade dos direitos humanos, o legislador constitucional insere tais direitos no rol das chamadas cláusulas constitucionais sensíveis (princípios e valores que, uma vez vulnerados, ensejam a deflagração de um processo de intervenção federal); declara esses direitos como invioláveis, dentre outras notas que expressam uma especial preocupação do constituinte brasileiro com a tutela dos direitos fundamentais. Por fim, o sistema de proteção dos direitos fundamentais no Brasil vem coroado com a inserção dos direitos fundamentais no rol das cláusulas pétreas, o que, somado à existência de uma experiência rica de controle de constitucionalidade, tem permitido a declaração de inconstitucionalidade, inclusive, de emendas à constituição. No Brasil, destarte, ao menos no âmbito formal, os direitos fundamentais alcançam um grau de proteção máximo.” (SCHIER, 2010)
Indubitavelmente, os direitos e garantias individuais, sobretudo o direito à vida, são direitos absolutos, intocáveis, irrenunciáveis, constituindo o alicerce do atual modelo de Estado de Direito Democrático, não podendo sofrer exceção por lei inferior, nem mesmo por Emenda à Constituição, posto serem estatuídos por cláusulas pétreas, que são “cláusulas que possuem uma supereficácia, ou seja, uma eficácia absoluta, pois contêm uma força paralisante total de toda a legislação que vier a contrariá-la, quer implícita, quer explicitamente. Daí serem insusceptíveis de reforma”. (BULOS,1999,p.42,44).
CONCLUSÃO– O direito à vida motiva a tutela jurídica dos demais direitos individuais e humanos estatuídos na carta máxima. É por isso, o bem jurídico de maior relevância, merecedor de proteção especial. Somente a Constituição Federal pode excepcionar as garantias pela mesma assegurada aos cidadãos. Isto porque é democrática e popular. Fossem seus princípios modificáveis à luz do entendimento pretoriano ou da atividade legislativa, remontaríamos ao Estado Absolutista, ao Estado Liberal e Social, modelos que fracassaram por sobrepujar os princípios constitucionais da época. Somos Estado de Direito Democrático Constitucional, onde os direitos e garantias individuais prestigiam a pessoa humana desde a concepção, tão somente pelo fato de ser pessoa humana, sem qualquer outra condição ou requisito. O Direito à vida, que no atual modelo de Estado inaugura o rol das garantias sólidas, absolutas, irrefutáveis, incontestáveis, invioláveis, não pode sofrer ingerência por parte de espécie normativa inferior à ordem constitucional, menos ainda por atividade judicial, em sua tarefa de aplicar o Direito e proclamar a Justiça, até porque somos um Estado Democrático de Direito e não um Estado com poder concentrado no judiciário ou no legislativo.
Promotora de Justiça no Estado de Goias, professora universitária, especializanda em ciencias penais, direito ambiental e direito internacional. Doutoranda pela Universidad Del Museo Social Argentino em Buenos Aires
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