O direito ao autoreconhecimentos dos povos indígenas e o direito ao sobrenome indígena

Resumo: O presente ensaio se propõe dos principais aspectos do direito ao reconhecimento dos povos indígenas no ordenamento jurídico brasileiro à luz da Constituição Federal, bem como os efeitos práticos desse reconhecimento e as obrigações decorrentes ao Estado brasileiro no âmbito internacional, o que inclui o direito ao reconhecimento ao sobrenome indígena.

Palavras-chave: Povos Indígenas. Direito ao autoreconhecimento. Sobrenome Indígena. Constituição Federal. Direitos Fundamentais.

Abstract: The present essay proposes the study of the major aspects of Indians rights at the Brazilian jurisdiction, as well as its practice effects and the Brazilian state obligations in the International community, including the knowledge of the Indians surname.

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Key words: Indians people. Right to self knowledge. Indians Surname. Federal Constitution. Fundamental Rights.

Sumário: Introdução. 1. Os povos indígenas à luz da constituição de 1988 2. O direito internacional e a necessidade de observância do direito ao autoreconhecimento. 3. O direito ao nome como direito de personalidade. 4. O direito ao sobrenome indígena 5. Conclusão. Referências.

Introdução

Os povos indígenas e os remanescentes desses povos no Brasil possuem os mesmos direitos previstos pelo artigo 5º da Constituição da República, sendo ainda garantido o direito a preservar sua cultura, seu nome e sua ancestralidade, o que engloba o direito ao nome.

O presente trabalho defende o direito ao auto reconhecimento dos povos indígenas no ordenamento jurídico brasileiro à luz da Constituição Federal, além dos demais direitos insculpidos na Carta Constitucional pátria, sendo o direito ao nome elemento basilar para a promoção dos direitos da minoria indígena no país.

1. OS POVOS INDÍGENAS À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

O direito dos povos indígenas no Brasil sofreu profunda modificação após a promulgação da Constituição de 1988. Se anteriormente o princípio integracionista insculpido nas Constituições de 1934, 1937 (Ato institucional 1º do Regime Militar), replicadas no chamado Estatuto do Índio – Lei 6.001/73, previam a necessidade de integração dos povos indígenas a sociedade brasileira, a nova carta constitucional de 1988 alterou profundamente essa visão, resgatando o indígena como membro nato da sociedade brasileira, devendo ser respeitados e resguardados o seu direito ao seu modo de vida, costumes e tradições.

O artigo1º do Estatuto do índio ainda dispõe que: “Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.”.

Assim, fica claro o intuito do legislador, refletindo o pensamento da sociedade brasileira predominante à época de sua promulgação, que o intuito do Estado brasileiro era integrar os povos indígenas à sociedade brasileira.

A Constituição de 1988 alterou a situação do indígena, dedicando um capítulo para tratar a questão indígena ainda que resumidamente. O artigo 231 da CF/88 dispõe que:

Art. 231. “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Os direitos dos povos indígenas estão assegurados pela Constituição de 1988 nos artigos 231 a 232, estando ainda resguardados pela dignidade da pessoa humana que é fundamento do Estado brasileiro, despontando como preceito axiológico do ordenamento jurídico pátrio.

O constituinte da Constituição de 1988 elegeu o valor da dignidade um dos fundamentos do Estado democrático de direito, servindo como parâmetro que deve nortear a interpretação das normas constitucionais e as ações do Estado em prol de uma sociedade solidária e igualitária.

O Estado Democrático de Direito brasileiro adotou como seus fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (art. 1º, incisos I a V, CF/88), bem como estabeleceu seus objetivos fundamentais: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, incisos I a IV, CF/88), o que demonstra a predisposição do constituinte em transformar o País em uma sociedade plural, onde o respeito e a promoção dos direitos humanos têm um papel fundamental.

A Constituição fixou ainda entre os princípios que regem o país em suas relações internacionais: prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos (artigo 4º, incisos II e III).

A nova ordem política iniciada após a redemocratização pode ser notada na adoção e ratificação dos instrumentos internacionais dos direitos humanos, a exemplo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotados pela ONU em 06.12.1966 e 16.12.1966, respectivamente, que somente foram ratificados pelo Brasil em 24.01.1992.

Outro ponto relevante a ser mencionado é a importância destinada aos instrumentos internacionais que reconhecem os direitos humanos, assegurando a Constituição de 1988 que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (§ 2º, art. 5º da CF/88), havendo posterior inclusão pela Emenda Constitucional n. 45 do seguinte texto: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (§§ 3º, art. 5º da CF/88)[1].

Dessa forma, a nova carta constitucional inaugurou um novo paradigma com a adoção do Princípio da dignidade da pessoa humana como vetor axiológico do ordenamento jurídico pátrio, apresentando-se como faceta dos direitos humanos reconhecidos pelo Estado brasileiro, notadamente os direitos previstos nos documentos internacionais ratificados pelo país, o que sem dúvida é um avanço para a promoção dos direitos humanos.

Portanto, nada mais natural do que a adesão do país à Convenção 169[2] da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre os povos indígenas e tribais, que entrou em vigor no país com a promulgação do decreto n. 5051, de 19 de abril de 2004.

A Convenção 169 da OIT determina no seu artigo 2º que a “autoidentificação como indígena ou tribal deverá ser considerada um critério fundamental para a definição dos grupos aos quais se aplicam as disposições da presente Convenção”, devendo gozar plenamente dos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculos nem discriminação (artigo 3º da Convenção 169 da OIT).

Diz ainda que os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver ação coordenada, com a participação dos povos interessados, com vistas a proteger o direito desses povos e garantir a sua integridade, devendo incluir medidas que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população, bem como que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições (artigo 2º, Convenção 169 da OIT).

A Constituição de 1988 é o marco axiológico para o direito brasileiro, devendo as leis infraconstitucionais ser interpretadas sintonia com o texto constitucional, servindo como vetor de interpretação de todo ordenamento jurídico. Assim, a lei de registros públicos, bem como o Estatuto do índio, 6001/73, devem ser interpretados para intuito assegurar os direitos fundamentais dos povos indígenas, o que inclui o direito ao nome como expressão do direito de personalidade do indivíduo.

2. O DIREITO INTERNACIONAL E A NECESSIDADE DE OBSERVANCIA DO DIREITO AO AUTORECONHECIMENTO

As minorias étnicas têm seus direitos protegidos por tratados e convenções internacionais, os quais foram ratificados pelo Estado brasileiro.

O direito das minorias étnicas pode ser extraído da própria declaração universal dos Direitos Humanos que no artigo II, preceitua que “toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades previstas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.

O Pacto Internacional de Direitos Políticos e Civis, de1966, artigo 1º, também prevê que “todos os povos tem direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que dispõe sobre povos indígenas e tribais, assegura aos povos indígenas a igualdade de tratamento e de oportunidades no pleno exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculos ou discriminação e nas mesmas condições garantidas aos demais povos.

Para tanto reconhece o direito ao auto reconhecimento ou autoidentidade indígena, sendo critério fundamental para a definição dos povos sujeitos aos direitos fixados na referida norma de direito internacional.  Vale ressaltar que o Brasil ratificou a Convenção 169 da OIT em julho de 2002, através do Decreto n. 5051, de 19 de abril de 2004, estando, portanto, vinculado a suas disposições.

Aos membros dos povos indígenas e minorias étnicas são garantidos, em condições de igualdade, os direitos e oportunidades previstos na legislação nacional para os demais cidadãos, sendo obrigação do Estado promover a plena realização dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando sua identidade social e cultural, seus costumes e tradições e suas instituições (art. 2º, Convenção 169 – OIT).

3. O DIREITO AO NOME COMO DIREITO DE PERSONALIDADE

Os direitos de personalidade são direitos subjetivos inerentes à pessoa humana e que estão a ela ligados de modo permanente e perpétuo, sendo condição de existência, a exemplo do direito à vida, direito à liberdade, ao nome, ao seu corpo e sua imagem, razão pela qual são inalienáveis, intransmissíveis, imprescritíveis e irrenunciáveis (Rodrigues, 2003).

Dentre os direitos da personalidade está o direito ao nome, previsto no artigo 16 do Código Civil: “toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome”.

Assim, o nome como direito inerente a todo indivíduo se decompõe em duas partes: o prenome, atribuído à pessoa por ocasião de seu assentamento de nascimento, sendo considerado imutável, salvo exceções legais (artigo 56 e artigo 58 da lei 6.015/73); e o sobrenome (patronímico familiar), que se transmite de pai a filho ou é adquirido pelo casamento (artigo 58 da lei 6.015/73). Pode ainda o nome ser composto pelo agnome, a exemplo de neto, filho, neto ou números ordinais, frequente em nomes da língua inglesa.

A individualização da pessoa natural é feita pelo nome, pelo estado (situação jurídica do indivíduo na sociedade) e pelo domicílio, do que se constata a importância do nome da pessoa para o seu reconhecimento como indivíduo na sociedade.

Para Monteiro (2003, p. 200) o nome “é dos mais importantes atributos da personalidade, justamente por ser o elemento identificador por excelência das pessoas”.

No direito brasileiro ainda vigora o princípio da imutabilidade do nome, contudo admite exceções concernentes à inclusão de apelidos públicos notórios, alteração de prenome quando exponha o seu titular a situações vexatórias ou ainda em caso de fundada coação ou ameaça decorrente de colaboração para a apuração de crime, desde que mediante autorização judicial. 

4. O DIREITO AO SOBRENOME INDÍGENA

Diante da nova ordem constitucional brasileira, bem como a ratificação das convenções internacionais acima tratadas, obrigam a interpretação da lei de Registros Públicos, lei ordinária 6515/73, de forma a comtemplar o direito ao nome indígena em sua integralidade, no que se refere ao nome, sobrenome e filiação.

A expansão da jurisdição constitucional também decorre do entendimento de que a Constituição – como maior expressão de direitos de uma sociedade – possui força normativa[3] capaz de garantir a plena aplicabilidade de suas normas, impedindo a violação de seus dispositivos constitucionais.

Assim, embora o código civilista pátrio e a lei de registros públicos seja omissa em relação a inclusão de nome indígena ao nacional, é forçoso reconhecer o direito de inclusão de sobrenome ao indivíduo indígena, que assim se reconheça, em total observância ao que dispõe o art. 5º, caput, da CR/88 e art. 231 da CR/88, bem como a possibilidade do indígena ao nascer tem direito a ser registrado com prenome, sobrenome e filiação indígena, nos termos do que dispõe o art. 5º, inciso LXXIVI da Constituição Federal de 1988.

O Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT, o que obriga o país a buscar a sua efetividade e observância, sob pena de incorrer em violação de direitos humanos com risco de responsabilização internacional por sua inação.

A existência de vácuo legislativo acerca do tema[4], não pode servir como impedimento para a inclusão do sobrenome indígena ou o registro de pessoas naturais com prenome, sobrenome e filiação tradicionalmente indígena pelos cartórios de registro de pessoas naturais. Tampouco obsta o Poder Judiciário em acolher o pedido de retificação de registro de nascimento para incluir sobrenome e filiação tradicionalmente indígena, na forma do procedimento previsto pela lei de registros públicos.

Neste sentido, o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público editaram a resolução conjunta n. 003/2012, prevendo que no assento de nascimento do indígena, integrado ou não, deve ser lançado, a pedido do apresentante, o nome indígena do registrando, de sua livre escolha, não sendo caso de aplicação do art. 55, parágrafo único da Lei n.º 6.015/73.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os direitos humanos para que sejam exercidos de forma plena devem contar com um arcabouço jurídico que lhes dê sustentação, a fim garantir a sua efetividade com o propósito de promover a igualdade real entre os indivíduos no País.

A hermenêutica constitucional deve ser comprometida com a efetivação dos direitos fundamentais individuais e sociais, sendo a construção do Direito, obra de todos os entes políticos, que são corresponsáveis na criação e efetivação dos direitos fundamentais.

Dessa forma, a possiblidade de reconhecimento do sobrenome indígena nos registros de nascimento civil pelo judiciário tem papel importante no reconhecimento dos direitos dos povos indígenas ao autoreconhecimento e ainda o reconhecimento do Estado aos direitos inerentes a essa minoria que há muito tem seus direitos menosprezados pela sociedade brasileira.

A posição aqui adotada se mostra coerente com os princípios constitucionais vigentes no país, notadamente pelo Princípio da Dignidade Humana, alinhando-se a posição adotada pela comunidade internacional com a ratificação pelo Brasil dos Pactos Internacionais de Direitos Humanos, garantindo a promoção do direito ao nome as minorias étnicas do país.

 

Referências
ALVES, Jane Figueiredo. Novo Código Civil – Questões Controvertidas. Editora Método: São Paulo, 2004.
BARROSO, Luis Roberto. A Reconstrução Democrática do Direito Público no Brasil. IN: BARROSO, Luis Roberto (org.). A Reconstrução Democrática do Direito Público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
GOMES DA SILVA, Paulo Tadeu. Direito Indígena, Direito Coletivo e Multiculturalismo. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; Piovesan, Flávia. (org.). Igualdade, diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Direito da personalidade no novo código civil e os elementos genéticos para identidade da pessoa. IN: DELGADO, Mário Luiz;
OIT. Convenção 169: sobre povos indígenas e tribais. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Parte Geral. Vol. I. 33ª edição. Editora Saraiva: São Paulo, 2003.
SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; Piovesan, Flávia. (org.). Igualdade, diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
Notas:
[1] Embora exista uma discussão doutrinária acerca da natureza jurídica dos tratados de direitos internacionais no Direito pátrio, esse ponto não será objeto de estudo do presente trabalho. Sobre o tema Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009.
[2] A Convenção 169 da OIT foi adotada na 76ª Conferência Internacional do Trabalho em l989, alternado o antigo entendimento da Convenção n° 107, constituindo-se no primeiro instrumento internacional que trata especificamente dos direitos dos povos indígenas e tribais.
[3] Konrad Hesse em oposição a reflexões feitas por Lassale que a Constituição seria uma mera fonte de papel, defende que no conflito entre as forças reais de poder e a Constituição, esta nem sempre sucumbe àquelas, defendendo que “A Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder (wille zur macht), mas a vontade de constituição (wille zur verfassung) (2009, p.19).
[4] Para registro há o projeto de lei n. 803/2011 em tramitação na Câmara dos Deputados, de autoria do Deputado Alberto Filho que prevê a alteração do registro de nascimento do o registro do sobrenome indígena.

Informações Sobre o Autor

Carla Sodré da Mota Dessimoni

Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Pará


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Equipe Âmbito Jurídico

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