Resumo: O presente trabalho analisa a tensão entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário na efetivação do direito à saúde, especialmente, no tocante ao fornecimento gratuito de medicamentos. Para tanto, intenta-se apresentar toda a complexidade que envolve realizar políticas públicas em um país de modernidade tardia como o Brasil, em que os recursos são escassos e o deferimento de determinadas demandas pode representar a escolha entre a vida de um sujeito e a vida da coletividade. Com base nisso, estuda-se a priorização de demandas coletivas como a melhor forma de efetivação das políticas públicas de saúde, em especial, o fornecimento gratuito de medicamentos. Desta forma, intenta-se traçar limites mínimos entre a intervenção do Poder Judiciário no Poder Executivo, repensando as políticas públicas e suas implicações no Estado Democrático de Direito.
Palavras-chaves: Controle judicial. Direito à saúde. Políticas públicas.
Abstract: The paper analyses the tension between Executive Power and Judicial Power in the case of the right to health, specially, the free supply of medicine. Thus, it tries to present the complexity of achieve public policies in countries not developed, as Brazil, which the financial sources are scant and defer some judicial demands should represent the choice between life of one and life of many people. Based in this facts, it studies the priority of collective judicial actions as the better way of accomplish public policies of health, in special, free supply of medicine. Therefore, it creates limits at the intervention of Judicial Power in Executive Power, rethinking public policies and its implications in Democratic State.
Keywords: Judicial Control. Right to Health. Public Policies.
Sumário: 1. Introdução. 2. A racionalização de recursos voltados às políticas públicas de saúde e a tendência de aumento de demandas individuais em países de modernidade tardia. 3. A priorização de demandas coletivas como forma de efetivação das políticas públicas de saúde. 4. Da elaboração à execução de políticas públicas de saúde no Brasil e os momentos de intervenção na ótica do Estado Democrático de Direito. 5. Considerações Finais. 6. Referências Bibliográficas.
1. Introdução
O tema do controle judicial das políticas públicas, em especial, das políticas de saúde é instigante e ao mesmo tempo crucial. Instigante, na medida em que visa romper com um espaço totêmico do direito administrativo, qual seja a permissividade do controle judicial das políticas públicas, bem como, o estabelecimento de critérios de controle ao Poder Judiciário; e crucial devido o descaso dos agentes responsáveis pela formulação e execução das políticas públicas de saúde, dentre elas, o fornecimentos de medicamentos. Assim, é preeminente uma re-significação da produção de políticas públicas na área da saúde, preconizando atender o posto pela Constituição da República, de 1988.
Nesse sentido, a redemocratização representou uma profunda mudança do sistema jurídico brasileiro. A Constituição Federal de 1988 promoveu uma revisão dos conceitos jurídicos em todos os ramos do Direito. O fenômeno da constitucionalização do Direito é percebido não somente nos debates doutrinários, mas, sobretudo, na prática forense. De sorte que, a Constituição Federal de 1988 ao conferir constitucionalidade a diversos princípios inerentes ao Estado de Democrático de Direito cria um programa salutar a ser seguido pelos agentes públicos no desenvolvimento de políticas públicas à concretização do direito à saúde. O direito ao recebimento de medicamentos, problema eminente e objeto freqüente de demandas judiciais individualizadas; possui o status constitucional de direito social. Ocorre que, o dever de fornecimento de medicamento por parte do Poder Executivo gerou uma judicialização excessiva, sendo necessária a elaboração de critérios de controle judicial adequados, barrando o ativismo judicial e permitindo ao poder público a elaboração de políticas públicas de saúde voltadas à coletividade.
O presente trabalho visa apresentar a relação existente entre um direito individual à saúde e o direito de uma coletividade à saúde, com base na tensão entre Poder Executivo e Poder Judiciário e com vistas a estabelecer a medida para o controle judicial. Por conseguinte, a pesquisa propõe-se a ser um instrumento capaz de contribuir para estabelecer uma perspectiva hermenêutica que permita o acesso ao fornecimento de medicamentos, em que pese se tratar de intervenção do Poder Judiciário no Poder Executivo. No entanto, ao fixar parâmetros hermenêuticos adequados ao Poder Judiciário, limitará o controle a determinadas circunstâncias, tendo em vista o custo do fornecimento dos medicamentos e a possibilidade de com uma política pública voltada ao coletivo.
Para tanto, numa primeira etapa, analisar-se-á a relação entre um não desenvolvimento efetivo de um Estado Social em países periféricos, como o Brasil e, por conseqüência, o incremento de demandas judiciais individuais para fornecimento de medicamentos. Na segunda etapa, caberá verificar se a priorização de instrumentos coletivos para controle judicial de políticas públicas não seria o instrumento mais adequado à efetivação de um direito social à saúde. Por fim, estabelecer-se-á as distinções entre os diferentes momentos para intervenção judicial, na elaboração e na execução, fixando-se um marco adequado de forma a não suprimir a esfera de autonomia do Poder Executivo em um Estado Democrático de Direito.
Portanto, é preciso impor limites constitucionalmente adequados para a intervenção judicial nas políticas públicas de saúde (fornecimento de medicamentos), principalmente, em se tratando de países periféricos (de modernidade tardia), nos quais os recursos voltados à saúde são cada vez mais escassos. Além da própria tensão entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário, há um conflito maior entre um interesse (direito) individual à saúde – em última instância, à vida – e um direito coletivo (da coletividade) à saúde.
2. A racionalização de recursos voltados às políticas públicas de saúde e a tendência de aumento de demandas individuais em países de modernidade tardia
Neste ponto, a idéia central é investigar as principais causas do aumento do número de demandas individuais voltadas ao fornecimento de medicamentos (política pública de saúde) e como racionalizar os escassos recursos disponibilizados na peça orçamentária à saúde. Esse é o contexto brasileiro! Junte, então, a esse breve panorama a condição de país de modernidade tardia, predicado adquirido tendo em vista a não realização do Estado social. O resultado de tudo isso vem na contramão da história: mal fixado na Constituição Federal esse modelo, houve (e ainda há) reações tendentes a reduzir a intervenção estatal ao mínimo – diga-se: ao mínimo do mínimo. Ou seja, nada se tinha, mas, mal se fixou um rol de direitos sociais na Constituição que não foram concretizados, e já se pensa em excluí-los.
Em um contexto mundial, a crise do Estado Social e a derrota dos socialismos reais foram pressupostos perfeitos à modernização neoliberal. A política econômica do neoliberalismo tem como estratégia a privatização, desregulamentação, flexibilidade, dívida externa, ajuste e, como finalidade essencial, a adjudicação de recursos da sociedade e do poder, favorecendo a transnacionalização da economia, da política e da cultura.
A tese do Estado Mínimo confronta-se com as bases do Estado Social (países centrais). Em países periféricos, como o Brasil, de curtos e incipientes lapsos de democracia do Estado Social, as diferenças sociais crescem de forma progressiva, rumo ao mínimo do mínimo. O discurso moderno do neoliberalismo é assentado sob a privatização, o confisco de direitos trabalhistas, a eliminação de estabilidade de funcionários públicos, o ajuste fiscal para equilibrar as receitas e as despesas, a privatização de serviços públicos e a dolarização da economia.[1]
No Brasil, intenta-se retornar a um Estado Mínimo, desregulamentado, privatizado, sem ter ao menos efetivado suas promessas da modernidade. Dito de outra forma, não há o mínimo de cidadania (direitos sociais) e vislumbra-se a redução do mínimo: nada mais adequado do que a expressão Estado Mínimo do Mínimo! Isso é reflexo de pensamentos hegemônicos e, portanto, pequeno-burgueses de que o Estado deve atender tão-somente aos contribuintes[2]. Desta forma, há uma ampliação das funções do Estado (formalmente) e dos diretos sociais, porém não se cumprem as chamadas promessas da modernidade. Em outras palavras, há um simulacro de modernidade, uma modernidade tardia[3], na medida em que tão logo foram incorporados esses direitos sociais, intentou-se uma redução desse Estado[4].
Assim, com a precarização dos direitos sociais e econômicos passa a ter relevância a intervenção do Poder Judiciário, havendo um deslocamento da legitimidade do Poder Executivo[5]. Daí o crescente aumento de demandas judiciais visando a efetivação de direitos sociais em países periféricos como o Brasil.
Entretanto, os recursos da saúde são muito escassos, sendo necessária a adoção de algumas prioridades pelo gestor público. Para se ter dimensão, o aplicado em saúde hoje no Brasil, na esfera federal, não representa 2% do Produto Interno Bruto (PIB), conforme apresenta a tabela[6]:
Como se pode observar, não há uma grande variação do total do gasto federal com saúde, em relação ao PIB, entre 1995 e 2006. O PIB, em 2007, representou cerca de 2,5 trilhões de reais[7], destes, cerca de 1,7% é destinado a gastos federais com a saúde. É, nesse contexto, que devem ser efetivados o direito à saúde, o que inclui o fornecimento gratuito de medicamentos.
Observe-se que a tendência ao estabelecimento de uma linha de tensão nas relações entre o Judiciário, de um lado, e o Executivo e o Legislativo, de outro, entre a filosofia política da Carta de 1988 e a agenda neoliberal, deve ser equilibrada ao estado atual da economia brasileira. Em contrapartida, o welfare state exigiria o acabamento do Poder Judiciário, quando provocado pelas instituições e pela sociedade civil a estabelecer o sentido ou a completar o significado de uma legislação que nasce com motivações distintas às da “certeza jurídica”. Assim, o Poder Judiciário seria investido, pelo próprio caráter da lei no Estado Social, do papel de “legislador implícito”[8].
No entanto, a falta de critérios do Poder Judiciário, aliada a poucos investimentos na saúde pública e a constante negativa por parte do Poder Executivo em fornecer medicamentos, gera a proliferação de decisões extravagantes ou até mesmo emocionais, que condenam a Administração Pública ao custeio de tratamentos descabidos, ou mesmo, ao fornecimento de medicamentos experimentais, de eficácia duvidosa, associado a terapias alternativas.
O casuísmo das decisões judiciais brasileiras levará a não realização do previsto na Constituição Federal[9], impedindo com que políticas públicas coletivas sejam devidamente implementadas. A escassez de recursos faz com que a Administração Pública estabeleça algumas prioridades para a efetivação dos direitos sociais. Todavia, cumpre salientar que não são apenas os direitos sociais que geram um custo ao Estado, os chamados direitos de primeira geração (dimensão) também geram custos à sua realização. Basta imaginar, por exemplo, no custo da segurança pública, no custo da manutenção (pública) de um corpo de bombeiros, tudo isso para a garantia de um direito de liberdade[10]. Coloca-se por terra a tese minimalista que somente os direitos sociais geram custos ao Estado.
O último fator contribui ao aumento da complexidade da nossa equação (fornecimento de medicamentos – direito à saúde – orçamento estatal – escassos recursos), sem esquecer-se das dificuldades do Brasil ser um país periférico[11]. Exatamente pela sua condição de periférico o Poder Judiciário passa a intervir na realização de políticas públicas, necessitando afirmar a sua legitimidade, pois não a obtém por meio de processo eleitoral. A legitimidade do Poder Judiciário reside exatamente na capacidade de proteger os direitos dos cidadão, resistindo à pressão política exercida pelo governo[12].
Contudo, a intervenção, exatamente pela complexidade, não pode ser desmedida, sem a utilização de critérios por parte do Poder Judiciário. O fator econômico (escassez de recursos) não pode ser o único pesado pelo judiciário, no entanto não pode ser esquecido. Ao desconsiderar o fator econômico, pressupõe-se que não há uma organização e planejamento do Poder Executivo em propor políticas públicas de saúde e, ademais, que não há uma lista de medicamentos elaborada conforme estudos regionalizados do Ministério da Saúde.
O Poder Judiciário apresenta-se, então, como a tábua de salvação àqueles que tiveram o fornecimento de medicamento negado pelo Poder Executivo. Na decisão fatores emocionais, ou mesmo um pseudo-ativismo judicial fazem com que todo o planejamento voltado à garantia da saúde de uma coletividade seja comprometido em virtude de uma pessoa necessitar o fornecimento de determinado medicamento. Ignora-se totalmente a apresentada complexidade da equação dos gastos públicos e, ademais, o espaço discricionário – necessário – a proposição de políticas públicas de saúde de determinado governo.
A própria idéia de separação dos poderes (funções) implica num entrelaçamento harmônico entre Judiciário, Executivo e Legislativo, contrariando ao que se observa em relação ao deferimento de demandas individuais para o fornecimento gratuito de medicamento, na medida em que a judicialização excessiva tem dado resultados práticos. Em última instância, pode-se afirmar que o deferimento dessas demandas seria contrario ao próprio projeto de Constituição Federal brasileira.
É evidente a necessidade da intervenção do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas, sendo uma imposição do atual, entretanto, a matéria não pode ser tratada sem os cuidados pertinentes. Como foi apresentado, a matéria envolve uma grande complexidade, a qual não pode ser ignorada pelo Poder Judiciário ao exercer seu controle sobre as políticas públicas de fornecimento de medicamentos.
Portanto, observa-se o aumento progressivo (tendência) de demandas judiciais para a realização de políticas públicas. Contudo, a intervenção do Poder Judiciário não pode ser uma intervenção sem precaução, é uma imposição do atual estágio do Estado Democrático de Direito. Impõe-se uma modificação na perspectiva de que o orçamento é uma peça de ficção ou meramente decorativa, devendo-se admitir, dentro dos parâmetros definidos, o controle excepcional do orçamento público[13].
3. A priorização de demandas coletivas como forma de efetivação das políticas públicas de saúde
A questão tratada anteriormente da complexa equação dos direitos sociais e das políticas públicas para a sua realização, em face da crescente intervenção do Poder Judiciário tendente à implementação das políticas públicas de saúde, como o fornecimento gratuito de medicamentos, coloca em xeque qual a forma adequada de efetivação dessas políticas públicas. Isso porque, observam-se duas formas de intervenção do Poder Judiciário: a tutela coletiva (ação civil pública, por exemplo) voltada à realização do previsto no orçamento ou da lista de medicamentos adotada pelo ente federativo (o que, em alguns casos, pode implicar em inserir um novo medicamento ou tratamento[14] na lista); ou, por meio, de ação ordinária, usualmente chamada de ação de medicamentos, na qual uma pessoa recorre ao Poder Judiciário para conseguir o fornecimento de determinado medicamento, o qual o fornecimento fora recusado por algum dos entes federativos.
No Brasil, proliferam-se ações buscando a tutela de um direito individual ao fornecimento de medicamento. Em muitos desses casos de tutela individual, trata-se de medicamento não previsto em lista de medicamentos, gerando uma despesa excessiva ao Poder Executivo. Além de burlar o planejamento, colocando em risco uma política pública que poderia ser voltada para a coletividade, em um país que, como visto, possui escassos recursos para a saúde. O deferimento de uma ação individual poderá significar o conflito entre a vida de um indivíduo e a vida da coletividade.
Para se ter idéia, quando se faz uma análise sobre a evolução dos gastos com medicamentos, observa-se que ao longo dos últimos anos a sua participação tem aumentado em relação ao gasto total em saúde. Os gastos do Ministério da Saúde com ações do orçamento voltadas ao financiamento da aquisição de medicamentos aumentaram em 123,9%. Esse percentual revela que, para garantir o financiamento da aquisição dos medicamentos, o Ministério da Saúde teve que reduzir o gasto em outras áreas de atuação. Esse comportamento exige que se dedique atenção redobrada aos medicamentos[15].
Além disso, em se tratando de ações judiciais, segundo levantamento do Ministério da Saúde, em três anos gastos com processos para aquisição de remédios aumentou 1.920%. Somente de janeiro a julho de 2008, o governo federal gastou diretamente R$ 48 milhões com ações judiciais para aquisição de medicamentos. Esse valor cresce a cada ano. Em 2007, foram R$ 15 milhões, em 2006, R$ 7 milhões e, em 2005, R$ 2,5 milhões. Neste período, a instituição foi citada como ré em 783 ações para aquisição de medicamentos no Brasil. Em 2007, foram 2.979 ações[16]. Isso só para ficar na esfera federal!
Os recursos são finitos. Direitos custam, dependem de recursos econômicos. Nesse sentido, invoca-se a expressão “reserva do possível” (Der Vorbehalt des Möglichen), que tem origem na Alemanha no início dos anos de 1970. A efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que dependem dos cofres públicos. A partir dessa idéia, traduziu-se que os direitos sociais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares[17]. Todavia, não se mostra lícito ao Poder Público criar obstáculo frustrar ou inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor dos cidadãos condições mínimas de existência, mediante manipulação de sua atividade financeira ou político-administrativa. Advirta-se que a “reserva do possível” não pode ser invocada pelo Estado, com o fim de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, quando esta conduta governamental negativa puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação dos direitos constitucionais.
Cumpre salientar que, os argumentos econômicos, notadamente no tocante ao fornecimento gratuito de medicamentos, não podem ser utilizados para o Estado eximir-se de toda e qualquer prestação. Como se pode observar, o sentido da chamada “reserva do possível” é outro, tendo em vista que a prestação reclamada deve corresponder àquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade. Para tanto, os indicadores econômicos apresentados anteriormente devem ser considerados, porém não podem ser objetos de manobras tendentes a excluir o Poder Público do cumprimento do previsto na Constituição Federal de 1988.
O que se nota é a proliferação de decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração Pública ao custeio de tratamentos irrazoáveis – destituídos de qualquer essencialidade – que implicam em medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, além de terapias alternativas. Ao final, tudo isso representa gastos e desfuncionalidade da prestação jurisdicional.
Isso não implica em dizer que o Judiciário deixaria de tutelar os direitos fundamentais que deveriam ser abarcados com a sua atuação. Ocorre que, o casuísmo da jurisprudência brasileira pode impedir à promoção de políticas públicas voltadas à coletividade sejam devidamente implementadas. Ao agir decidir a partir de casuísmos, deferindo todo e qualquer pedido de medicamento em ações individuais, o Poder Judiciário viola a universalidade da prestação e a isonomia no atendimento aos cidadãos, uma vez que esses deferimentos comprometem a coletividade.
Não se pode ignorar, por exemplo, que há, no Brasil, uma Política Nacional de Medicamentos, facilitando aos mais carentes o acesso aos medicamentos essenciais, além de proporcionar o uso racional de medicamentos que sejam adequados para cada tratamento. A Portaria nº 3916/98 estabelece a Política Nacional de Medicamentos, baseada nas recomendações da OMS (Organização Mundial de Saúde). Visando configurar uma oferta de medicamentos ajustada às necessidades do país, adotou-se a Relação de Medicamentos Essenciais (RENAME). Com base na situação epidemiológica, identificam-se os maiores problemas de saúde e os medicamentos indispensáveis para o seu tratamento, que ficam permanentemente disponíveis à população que deles necessita.
Além disso, a fim de garantir que a oferta de medicamentos seja composta por medicamentos de eficácia comprovada, seguros e com qualidade, o governo brasileiro deve exigir o cumprimento da regulação sanitária e reestruturar a Rede Brasileira de Laboratórios Analítico-Certificadores em Saúde (REBLAS) para verificar a conformidade dos medicamentos com os padrões registrados. Por fim, há o estímulo a produção local de medicamentos, assim, o Brasil deve estabelecer um incentivo à capacitação e o desenvolvimento tecnológico nacional e incentivar a pesquisa visando o aproveitamento do potencial terapêutico da flora e fauna nacionais, além de estimular a produção de laboratórios oficiais cuja produção se destina ao Sistema Único de Saúde (SUS)[18].
A lista de medicamentos não fica, tampouco, estagnada. Na cidade do Rio de Janeiro, para avaliar a necessidade de atualização com inclusão ou exclusão de medicamento, há uma comissão nomeada (Resolução da Secretaria Municipal de Saúde nº 1139 de 2005). Como se pode perceber, existem políticas públicas na área de saúde, especificamente, no tocante ao fornecimento gratuito de medicamentos, não sendo correto afirmar que o Poder Executivo encontra-se inerte, tão-somente, preocupado em negar pedidos de medicamentos.
O Estado e o Direito encontram-se assentados em um paradigma liberal[19]. O Poder Judiciário soluciona conflitos entre sujeitos individuais, sem qualquer perspectiva de alargamento da função jurisdicional do Estado, pois não caberia ao Estado mais do que proteger a autonomia individual de cada sujeito. Não obstante o advento do Estado Social, ainda assim, temos enquanto base uma trans-forma do Estado Liberal. Ademais, os responsáveis (Poder Executivo, Poder Judiciário, Poder Legislativo), por darem essa nova coloração ao Estado, a partir de objetivos sociais e políticas públicas encontram-se vinculados à tradição liberal. Conforme visto, à efetivação dos objetivos e das políticas públicas, o Estado ordena a alocação de recursos e a realização de ações.
Nessa medida, a tutela individual pode se tornar o antídoto para um indivíduo e o veneno à coletividade. A ação coletiva é o modelo mais adequado de intervenção do Judiciário na esfera da Administração Pública para a defesa de interesses dessa espécie. Principalmente, para a inserção de medicamento ou tratamento na lista, tendo como grande vantagem o benefício da coletividade, no caso de seu deferimento. A demanda de tipo individual fica sustentada nas opções de compra do consumidor diretamente no mercado, porque independem de qualquer organização coletiva[20]. O Brasil, por se tratar um Estado de modernidade tardia, essa situação agrava-se, pois não há uma tradição de Estado Social, logo proliferam ações individuais que, pouco a pouco, comprometem (o seu deferimento) a aplicação de recursos voltados à saúde.
No âmbito das ações individuais, a atuação do Judiciário deve ser para deferir os medicamentos constantes nas listas elaboradas pelos entes federativos, efetivando as opções formuladas pela Administração Pública. Cumpre salientar, que a elaboração das listas não se dá ao acaso, como visto, mas de acordo com as necessidades prioritárias a serem supridas e os recursos disponíveis, na peça orçamentária, para a saúde. Os recursos públicos são insuficientes para atender todas as necessidades sociais, impõe-se ao Estado tapar-se com este cobertor curto (investir em determinado setor implica deixar de investir em outro)[21].
A alteração das listas poderá ser objeto de discussão no âmbito de ações coletivas (seja ação civil pública, ação popular ou outros instrumentos). Primeiro, porque a discussão coletiva obrigará um exame no contexto geral das políticas públicas de saúde e os legitimados terão melhores condições de trazer elementos aos autos. Segundo, porque na litigação individual, o juiz perde de vista as necessidades relevantes e as imposições orçamentárias (que serão examinadas na esfera coletiva). Por fim, a decisão, na ação coletiva, produzirá efeitos para todos[22].
4. Da elaboração à execução de políticas públicas de saúde no Brasil e os momentos de intervenção na ótica do Estado Democrático de Direito
Com base nas premissas analisadas anteriormente, notou-se a importância da intervenção do Poder Judiciário para a implementação de políticas, porém a necessidade de uma intervenção responsável, considerando as peculiaridades orçamentárias brasileiras e objetivando conferir sentido aos direito à saúde. Ademais, verificou-se a necessidade de valorizar as demandas coletivas como adequadas (não únicas) para um maior equilíbrio na equação orçamento (gasto público com medicamentos) versus efetivação do direito ao fornecimento gratuito de medicamentos pelo Estado. Agora, cabe analisar qual o espaço de liberdade (discricionariedade) à Administração Pública para a determinação de políticas públicas de saúde, sem intervenção do Poder Judiciário e qual o espaço de intervenção do Poder Judiciário. Para tanto, é preciso compreender o sentido de políticas públicas no Estado (Social) Democrático de Direito.
Desta forma, as políticas públicas[23] são definidas como um programa ou quadro de ação governamental, porque consiste num conjunto de medidas articuladas (coordenadas), cujo escopo é dar impulso, isto é, movimentar a máquina de governo, no sentido de realizar algum objetivo de ordem pública, ou, na ótica dos juristas, concretizar um direito constitucionalmente assegurados[24]. Desta forma, o governo deve traçar uma série de medidas voltadas à coletividade (ordem pública) com o intuito de concretizar um direito e à jurisdição constitucional caberá verificar a constitucionalidade das políticas públicas, interpretando-as conforme a constituição. Nesse sentido, os exemplos clássicos são o direito à saúde e o direito à educação.
Contextualizando historicamente, as políticas públicas surgem no chamado Estado Social, que nada mais é (historicamente) que um intento de adaptação do Estado tradicional (Estado liberal burguês) às condições sociais da civilização industrial e pós-industrial aos seus novos e complexos problemas, mas também com suas grandes possibilidades técnicas, econômicas e organizativas para enfrentá-los. Daí se desenvolve, no primeiro terço do século XIX, as chamadas políticas sociais com o objetivo de remediar as péssimas condições dos extratos mais desamparados da população (sem a intenção de transformar a estrutura social). A atual política social transforma-se em política social generalizada. Isso faz com que as constituições incorporem ao seu texto uma série de direitos sociais. As condições históricas que tornam possível essa nova função do Estado é uma nova etapa do neocapitalismo, ou seja, a necessidade de resolver os problemas gerados pela estrutura do Estado liberal e as possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento cultural e tecnológico do período industrial[25].
No Brasil, isso ocorre no período pós-45, quando há uma forte aceleração na industrialização do país, obrigando-o à adoção dos direitos sociais, que perduram na Constituição de 1988. Ocorre que, em que pese à presença desses direitos na Constituição, eles restaram não efetivados e, mais que isso, quando houve uma forte instrumentalização da jurisdição constitucional atenta à democracia, o projeto de constituição confrontou-se com a agenda neoliberal. Tudo isso, leva a se exigir do Poder Judiciário uma atuação mais comprometida com a Constituição, acima de interesses de cunho meramente econômico[26].
É nesse diapasão, que são elaboradas as políticas públicas de saúde, como a de fornecimento de medicamentos. O Estado interventor, o Estado Social, já não interessa no contexto da sociedade globalizada. A nova tendência centrista é o neoliberalismo. Na América Latina, o judiciário não figurou como tema importante em matéria de reforma, cabendo ao juiz a figura inanimada de aplicador da letra da lei emprestada do modelo europeu. A intervenção do judiciário passa a ter relevância com o fim dos regimes autoritários. Com o Estado Social, a legitimidade do Estado passa a fundar-se não na soberania popular, mas na realização das finalidades coletivas, a serem realizadas programadamente, o critério classificatório das funções e, portanto, dos Poderes estatais só pode ser o das políticas públicas ou programas de ação governamental
No Estado Democrático de Direito, como se propõe a Constituição Federal de 1988, o controle judicial de políticas públicas de saúde não pode traduzir-se em demandas individuais visando o acesso a medicamentos que não constam em listas fornecidas pelo Sistema Único de Saúde. Deve-se atentar a possibilidade de controle que estabeleça a efetivação de políticas públicas para a coletividade. É preciso uma atuação comprometida da jurisdição constitucional, principalmente, no controle de constitucionalidade das leis voltadas constituírem um sentido ao direito à saúde, possibilitando a todos o acesso aos medicamentos. Na Suspensão de Segurança nº 3073, o Estado do Rio Grande do Norte requer a suspensão da execução da liminar concedida pela desembargadora relatora do Mandado de Segurança nº 2006.006795-0, em trâmite no TJ/RN, que determinou ao ente federado o fornecimento de medicamentos alto custo e não constantes na lista de medicamentos excepcionais do Ministério da Saúde. A Ministra Ellen Gracie considerou que
“[…] a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se deferir o custeio do medicamento em questão em prol do impetrante, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade. Ademais, o medicamento solicitado pelo impetrante, além de ser de custo elevado, não consta da lista do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional do Ministério da Saúde, certo, ainda, que o mesmo se encontra em fase de estudos e pesquisas”[27].
A temática das políticas públicas, como processo de formação do interesse público, está ligada à questão da discricionariedade do administrador, na medida em que “o momento essencial da discricionariedade é aquele em que se invidualizam e se confrontam os vários interesses concorrentes”. E um interesse é reconhecível como interesse público quando é assim qualificado pela lei ou pelo direito, que é exatamente o que se faz no processo de formação da política pública como dado de direito, ou seja, sancionar determinados fins e objetivos, definindo-os legitimamente como a finalidade da atividade administrativa.
As políticas públicas podem ser entendidas como forma de controle prévio da discricionariedade na medida em que exigem a apresentação dos pressupostos materiais que informam a decisão, em conseqüência da qual se desencadeia a ação administrativa. O processo de elaboração da política seria propício a explicitar e documentar os pressupostos da atividade administrativa e, dessa forma, tornar viável o controle posterior dos motivos[28]. Como visto, na elaboração da lista de medicamentos, uma série de fatores são levados em conta à sua elaboração, motivando as escolhas realizadas pelo agente público, as quais se pressupõem a conformidade com a Constituição Federal.
Assim, o Judiciário não deve invadir a esfera de atuação a área de atuação do Poder Executivo. Deve, por outro lado, corrigir inconstitucionalidades, ilegalidades, abusos ou desvios de poder, decisões desproporcionais, como também promover ou corrigir ações afirmativas, compatibilizando as políticas públicas às diretrizes e metas constitucionais[29]. Entretanto, podem-se observar, neste caso, dois momentos distintos de controle jurisdicional: controle na elaboração e controle na execução da política pública de fornecimento gratuito de medicamentos.
No tocante ao controle na elaboração, o controle deverá ser mais restrito, por se tratar exatamente o espaço de discricionaridade da Administração Pública, para conformar políticas adequadas constitucionalmente, com base em toda a estruturação para a escolha de determinado medicamento ou tratamento. O controle na elaboração, pelo seu caráter político, é um controle de exceção, só cabendo em caso de inconstitucionalidade flagrante na elaboração das políticas públicas (o que inclui eventual desvio de poder). Cumpre salientar, que a idéia de discricionariedade[30] da Administração Pública não implica em ficar ao bel prazer do agente público – o que poderia ser chamado de arbitrariedade. Discricionariedade administrativa é sempre uma escolha adequada à Constituição, uma resposta constitucionalmente adequada[31].
Diferentemente, no caso do controle na execução, pelo seu caráter jurídico é mais amplo. Destarte, caberá ao Poder Judiciário intervir no caso de não cumprimento da lista de medicamentos (e tratamentos) estipulados pelo Poder Público e de verificar-se um novo tratamento (medicamento) comprovadamente mais eficiente, pela tutela coletiva seria possível inseri-lo na lista. Enquanto aquele controle tem em vista acompanhar a elaboração conforme a Constituição, esse presume a constitucionalidade e parte a exigir o estipulado pelo Executivo ou mesmo acrescer àquilo que o Executivo definiu.
Portanto, o Brasil remanesce com a espinha de Estado (social) Democrático de Direito, em que pese às reformas liberalizantes, não podendo ser obscurecido o caráter compromissório da Constituição de 1988. Desta forma, é essencial o controle pelo Poder Judiciário, porém esse controle deve ter uma pauta como limites, sob pena de violar a separação (harmônica) entre as diferentes funções (ao invés de poderes), brotando com o Judiciário um verdadeiro Poder que se sobrepõe aos outros. É preciso controle, mas com parâmetros!
5. Considerações Finais
Como se pode observar, a equação – e não se quer com essa expressão, simplesmente, tornar a realização de políticas públicas um mero cálculo – é mais complexa do que o simples deferimento pelo Poder Judiciário de demandas, intentando o fornecimento gratuito de medicamentos. Implementar políticas públicas de saúde em terra brasilis não é tão simples, os recurso são escassos e muitas vezes não resta outra alternativa ao Administrador Público, a não ser negar o medicamento demandado.
O gasto com saúde pública no Brasil representa cerca de 1,7% do Produto Interno Bruto, proporção irrisória dado os imensos problemas que temos na saúde, como falta de leitos ou mesmo a disponibilização de medicamentos por parte de todos os entes federados. Ao cidadão resta buscar por meio do Judiciário o deferimento de um medicamento, por sua vez, o Judiciário com base no artigo 196 da Constituição Federal de 1988 defere. Fazendo isso, o Judiciário atende uma tendência em países de democracia incipiente – é imprópria a expressão redemocratização, pois, no Brasil, nunca tivemos democracia antes de 1988 – de ser o responsável pela aplicação de direitos fundamentais, fruto de uma Constituição dirigente. Porém, no tocante ao fornecimento de medicamentos a equação é mais complexa pois, como dito, os recursos para a saúde são escassos e se nota um expressivo crescimento de demandas individuais pedindo o fornecimento de medicamentos.
Para se ter uma idéia, nos últimos três anos, o gasto com fornecimento de medicamentos com base em demandas individuais cresceu 123%, o que representa um expressivo aumento no gasto da saúde com medicamentos. Não se quer de forma alguma tolher o acesso a medicamentos, pela via judicial, contudo, a Administração Pública na elaboração da lista de medicamentos para fornecimento gratuito, a faz de forma motivada. Isso significa dizer, que a lista não é feita ao acaso, mas considerando as necessidades básicas (e excepcionais) dos brasileiros, em todo o território. Ao deferir a demanda individual, o Poder Judiciário, além de invadir a esfera do Poder Executivo, não sabe se aquele medicamento (ou tratamento) é realmente efetivo para aquele paciente ou se vai surtir o resultado esperado.
Daí que se entende pela priorização da tutela coletiva de direitos, no caso de um medicamento que esteja fora da lista ou de um tratamento novo, ainda não presentes nas listas do poder público. A discussão coletiva obrigará um exame no contexto geral das políticas públicas de saúde e os legitimados terão melhores condições de trazer elementos aos autos. Também, na litigação individual, o Juiz perde de vista as necessidades relevantes e as imposições orçamentárias (que serão examinadas na esfera coletiva). Além, é claro, da decisão, na ação coletiva, produzir efeitos para todos. A tutela individual resta eficiente para aqueles casos em que o Poder Executivo negar o fornecimento gratuito de medicamento presente na lista.
Ao final, estabeleceram-se os parâmetros de controle das políticas públicas de fornecimento de medicamento, a partir de uma constituição de sentido para políticas públicas no Estado Democrático de Direito. Observou-se que, no tocante ao controle da elaboração de políticas públicas, o âmbito de intervenção do judiciário é mais restrito (espaço de discricionariedade da Administração Pública), enquanto que no controle de execução de políticas públicas seria mais amplo.
Portanto, em linhas gerais, intentou-se estabelecer parâmetros ao controle judicial de políticas públicas, com a perspectiva de diminuir a tensão existente entre o Poder Judiciário e Poder Executivo. Demonstrando a complexidade da elaboração de políticas públicas de fornecimento gratuito de medicamentos em países periféricos como o Brasil.
Doutorando em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor substituto da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
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