Sumário: 1. Palavras iniciais – mesmo que o Supremo Tribunal tenha errado, agora, é necessário obedecer a decisão. 2. A interpretação e sua concretização 3. Se a decisão do STF vale, então exsurge o direito fundamental a conversão da união estável em casamento civil
1. Palavras iniciais – mesmo que o Supremo Tribunal tenha errado, agora, é necessário obedecer a decisão.
Interpretar os efeitos e a efetivação de direitos decorrentes do julgamento da ADPF 132-RJ e ADI 4.277-DF: é isso que pretendemos aqui, – em especial na defesa de que nenhum direito oriundo da união estável (agora reconhecida por casais de sexos idênticos) deva ser suprimido, esquecido ou restringido pela ótica que agora transcende o sexo.
Despiciendo referir que o presente texto – e a posição nele expressa – não significa reconhecer que a decisão do STF no julgamento da ADPF 132 tenha sido correta e/ou adequada a Constituição. Na verdade, a decisão do STF – como já ficou explicitado no texto “Ulisses e o canto das sereias. Sobre ativismos judiciais e os perigos da instauração de um terceiro turno da constituinte[1]” revelou-se desbordante da Constituição, mormente ao fazer uma interpretação conforme de um dispositivo do Código Civil que diz a mesma coisa que a Lei Maior. Ou seja, ao assim proceder, o STF fez uma verfassungskonforme Auslegung bem à brasileira. Entretanto, e levando em conta que, em um sistema democrático, a Suprema Corte tem o “direito” de errar por último, cabe, a partir daí, traçar os horizontes que se abrem (ou que se fecham) com a novel decisão.
2. A interpretação e sua concretização
É na modernidade que passamos a discutir Interpretação e Hermenêutica de maneira contundente, sendo que a crise da hermenêutica jurídica possui uma relação direta com a discussão acerca da crise do conhecimento e do problema da fundamentação. Ou seja, a hermenêutica stricto sensu é um fenômeno que tem relação com o questionamento que o homem passa a fazer de si mesmo e do mundo. E isso ocorre a partir da modernidade.
O ponto comum entre a hermenêutica jurídica e a hermenêutica teológica reside no fato de que, em ambas, sempre houve uma tensão entre o texto proposto e o sentido que alcança a sua aplicação na situação concreta, (processo judicial ou em uma pregação religiosa). A hermenêutica jurídica praticada no plano da cotidianidade do direito deita raízes na interpretação como sendo produto de uma operação realizada em partes, isto é, primeiro compreendo, depois interpreto, para só então aplicar).
O Supremo Tribunal Federal, em 05/05/2011 por unanimidade e utilizando-se da técnica denominada interpretação conforme, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 132-RJ (convertida em ADI) e Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 4.277-DF, reconheceu que o artigo 1723[2] do Código Civil Brasileiro, que trata da união estável, deve ser aplicado em observância (e conforme) ao § 3º[3] do art. 226 da Constituição Federal, estendendo, portanto, os efeitos desta união estável, também para os que se enquadrarem nesta categoria ainda que composta por casais do mesmo sexo. Embora a decisão desborde da contemporânea hermenêutica jurídica, temos que nos curvar ao decisum.
Pois bem. O reconhecimento supra despertou árdua discussão em torno da extensão da figura da conversão da união estável de homossexuais em casamento civil, sobretudo baseada no princípio da igualdade, núcleo primário dos Direitos Humanos.
Segundo informações do Jornal A Folha de São Paulo, matéria publicada em 21/05/2011[4], “entre os 58 registros civis da cidade de São Paulo consultados pela Folha, só 3 aceitam receber o pedido de conversão em casamento e dizem que ela é possível: os de Cerqueira César (região central), Tatuapé e Itaquera (ambos na zona leste). Os outros 55 ou disseram que não receberiam o pedido ou que teriam de consultar a Justiça sobre o que fazer. Os cartórios ouvidos apresentaram diversas justificativas para recusar o pedido: da falta de regulamentação da Corregedoria do Tribunal de Justiça à precaução com os efeitos da decisão do STF”.
Vejamos o que consta no voto do relator, Ministro Carlos Ayres Britto. Nele, deu-se interpretação conforme a Constituição:
“para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas conseqüências da união estável heteroafetiva”. (destacamos)
Apenas para ilustração de alguns votos, a ministra Carmen Lúcia enfatizou que na esteira da assentada jurisprudência dos tribunais brasileiros, que já reconhecem para fins previdenciários, fiscais, de alguns direitos sociais a união homoafetiva, deu ela como procedentes as ações, nos termos dos pedidos formulados, para reconhecer admissível como entidade familiar a união de pessoas do mesmo sexo e os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis serem reconhecidos àqueles que optam pela relação homoafetiva.
O ministro Luiz Fux votou pela procedência dos pedidos formulados na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 – nesta, o respectivo pedido subsidiário – e na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277, de modo a que seja o art. 1.723 do Código Civil vigente (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) interpretado conforme a Constituição, para determinar sua aplicabilidade não apenas à união estável estabelecida entre homem e mulher, como também à união estável constituída entre indivíduos do mesmo sexo.
No mesmo sentido foi o voto do ministro Marco Aurélio que julgou procedente o pedido formulado para conferir interpretação conforme à Constituição ao artigo 1.723 do Código Civil, veiculado pela Lei nº 10.406/2002, a fim de declarar a aplicabilidade do regime da união estável às uniões entre pessoas de sexo igual.
Já o ministro Celso de Melo, ao concluir seu voto, julgou procedente a ação constitucional, para, com efeito vinculante, declarar a obrigatoriedade do reconhecimento, como entidade familiar, da união entre pessoas do mesmo sexo, desde que atendidos os mesmos requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher, além de também reconhecer, com idêntica eficácia vinculante, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendem-se aos companheiros na união entre pessoas do mesmo sexo.
Analisando a parte dispositiva do voto matriz e de relatoria, os efeitos deste reconhecimento não se prestaram tão somente ao exercício da nomenclatura União Estável àqueles que se encontram nesta condição, mas também, óbvio, a eles se garantiu os mais (e todos) fundamentais efeitos tais como recebimento de pensão e herança, partilha de bens, adoção, mudança de nome e, em especial o direito da conversão ao casamento civil, objeto mais apurado de defesa deste artigo.
Mesmo que no voto relator não haja expressa menção sobre o detalhamento da extensão dos direitos garantidos pelo reconhecimento mencionado, por uma interpretação mais acurada dos efeitos do que foi decidido é nítida a possibilidade para a conversão do casamento civil entre homossexuais companheiros, segundo as mesmas regras e com as mesmas conseqüências de uma relação heterossexual.
O objetivo deste artigo, portanto, é trabalhar com o (novo) texto produzido pelo STF. Afinal, como bem diz Gadamer, se queres dizer algo sobre um texto (e o acórdão do STF é um texto), deixe primeiro que o texto te diga algo. Mesmo não concordando com o texto produzido pelo STF, a norma a ele atribuída não pode ignorar os mínimos elementos semânticos. Consequentemente, temos de interpretá-lo sob a luz dos efeitos que possa produzir, em especial demonstrar que se houve por bem efetivar um direito igualitário, que todos seus efeitos devem caminhar pela mesma trilha, sem exceção, inclusive a possibilidade da conversão da união estável em casamento.
Se se pretendeu igualar liberdades públicas, que estas sejam levadas interpretadas de forma integral e sem pitadas de restrição. Do contrário, de nada valeria enquadrar excluídos de uma categoria em uma determinada entidade familiar, se estes não pudessem exercer todos os direitos como integrantes de tais. Ou seja, a decisão do STF não pode ser como uma montanha que dá a luz um ratinho…!
A tese vencedora que exsurgiu do plenário do STF fundamentou-se, em especial, nos princípios da igualdade, liberdade, dignidade e privacidade. Uma leitura, mesmo que superficial, aponta para a possibilidade da conversão da união estável em casamento igualitário.
3. Se a decisão do STF vale, então exsurge o direito fundamental a conversão da união estável em casamento civil
Com efeito.
A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado e para efeito da proteção deste, é, agora – gostemos ou não – reconhecida a união estável entre pessoas (não mais somente a de sexos distintos) como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
Detalhando: a lei 9.278/96 que regula o artigo 226 da Constituição Federal reconhece e protege a união estável, igualando-a, inclusive, em efeitos, ao casamento, e garantindo, com isso, todos os direitos a ele inerentes. Também prevê referida norma, em seu art. 8º, que os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da Circunscrição de seu domicílio, no qual se inclui a conversão ao casamento civil.
Consequentemente, depois da enfática ratio decidendi surgida do julgamento da ADPF e ADI que trataram da questão, tem-se que os casais de sexo idêntico e que se formaram em união estável estão livres a protocolarem seu requerimento ao cartório extrajudicial para a conversão em casamento como manda a legislação infraconstitucional. Se houver a negativa, parece evidente que o poder judiciário pode determinar a conversão. Sob pena de descumprimento da decisão do STF.
Assim, a união estável entre homossexuais merece tratamento isonômico ao oferecido às uniões heterossexuais em respeito aos princípios constitucionais da da dignidade da pessoa humana, igualdade e da promoção do bem de todos sem discriminação ou preconceito.
Não esqueçamos que o Código Civil – esse mesmo que sofreu (ou ganhou) uma interpretação conforme no art. 1723, logo em seguida diz que a união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil. Ora, se a união estável está relida em conformidade com a Constituição, assim como os elementos circundantes da quaestio júris decorrente de casais homossexuais, não há como barrar as pretensões de conversão.
O que queremos dizer é que, a partir da referida interpretação conforme elaborada pelo STF, tudo o que estiver relacionado a essa quaestio júris deverá também ser relido em conformidade com a decisão do STF. Isso quer dizer que o art. 1525 do CCB/02, ao prever que o requerimento de habilitação para o casamento será firmado por ambos os nubentes, de próprio punho, ou, a seu pedido, por procurador, e deve ser instruído com certidão de nascimento ou documento equivalente; autorização por escrito das pessoas sob cuja dependência legal estiverem, ou ato judicial que a supra; declaração de duas testemunhas maiores, parentes ou não, que atestem conhecê-los e afirmem não existir impedimento que os iniba de casar; declaração do estado civil, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus pais, se forem conhecidos; certidão de óbito do cônjuge falecido, de sentença declaratória de nulidade ou de anulação de casamento, transitada em julgado, ou do registro da sentença de divórcio, tudo isso significa: onde está escrito companheiros, etc, leia-se, pessoas de sexo diferente e do mesmo sexo. Sem discriminação. A ordem do Supremo Tribunal é taxativa.
Portanto, se até em relação a regra positivada do reconhecimento da união estável entre homem e mulher o legislador preferiu não trazer maiores detalhes, fazendo com que na prática fosse muito mais simples casar (ao converter-se a união em casamento) imagine-se em relação as uniões homoafetivas em que não há (ainda) legislação sobre matrimônio igualitário (como em países vizinhos como Argentina) e a questão acaba de ser (meia) enfrentada no Supremo, portanto recentíssima.
Certamente, a forma que mais se mostraria razoável na prática seria a aceitação dos trâmites administrativos para a conversão, observando o mesmo art. 1525 e 1726 do Código Civil Brasileiro, na qual as partes se dirigiriam ao Cartório e apresentariam toda documentação, inclusive o pacto de união estável ou sentença que reconheça a relação por exemplo. Todavia já se prevê na prática empecilhos a este reconhecimento e certamente pedidos nesse sentido desaguarão no judiciário.
De toda sorte, como já dissemos anteriormente, não se pretende discutir erros ou acertos do que decidiu o Supremo Tribunal Federal, mas, uma vez reconhecido que a união estável também se aplica a casais de sexo idêntico, não seria lógico impor restrições aos direitos provenientes do instituto.
Logo, perfeitamente possível a aplicação do art. 1726 do Código Civil, podendo os conviventes, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união estável em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz para posterior assento no Registro Civil da Circunscrição de seus domicílios, até porque a Constituição, nos moldes construídos no interior daquilo que denominamos de Constitucionalismo Contemporâneo é a manifestação do grau de autonomia do direito e a partir da hermenêutica filosófica, é perfeitamente possível alcançar uma resposta constitucionalmente adequada – a partir do exame de cada caso.
Numa palavra final: na democracia, podemos discordar das decisões dos Tribunais. Mesmo quando o equívoco advém do Tribunal Maior, a função da doutrina é o de elaborar um discurso crítico, criando, até mesmo, sendo o caso, “constrangimentos epistemológicos”. Entretanto, o que não se pode fazer é deixar de cumprir a decisão.
Referências bibliográficas:
Professor titular da UNISINOS; visitante/colaborador da UNESA-RJ, ROMA-TRE, FDUC (Portugal);
Membro catedrático da ABDCONST; coordenador do DASEIN – Núcleo de Estudos Hermenêuticos; pósdoutor em Direito (FDUL – Portugal). Procurador de Justiça-RS.
Doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá do Rio de Janeiro, Juiz de Direito Substituto do Tribunal de Justiça de Rondônia. Professor da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça de Rondônia e programas de graduação e pós-graduação.
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