Resumo: O objetivo deste artigo é descrever e analisar a primazia da aplicabilidade das normas do direito de integração nos países-membros do Mercosul. Para tanto, abordar-se-á os princípios e as fontes do direito de integração. Outrossim, utilizar-se-á como estudo de caso do AgReg em Carta Rogatória 8.279-4, no qual se observará o posicionamento do Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Direito internacional, direito comunitário, direito de integração, Mercosul, direito brasileiro, primazia da aplicabilidade.
Abstract : This paper describes and analyzes the the applicability of primacy of Mercosur on the legislation of member countries. The principles and sources of integration law are discussed. Furthermore, the case of AgReg 8.279-4 is analyzed from the position of the Supremo Tribunal Federal (the Brazilian Constitutional Court).
Keywords: International law, Community Law, Integration Law, Brazilian law, Mercosur, primacy (of applicability) of Mercosur.
Sumário: Introdução. 1. Alguns princípios fundamentais do Mercosul e a posição do Brasil no processo integracionista 2. O direito de integração no Brasil: recepção das normas derivadas do Mercosul no ordenamento jurídico pátrio 3. Estudo de caso: AgReg em carta rogatória 8.279-4. Considerações finais. Referências
Introdução
Fala-se em uma união latino-americana há bastante tempo, pois já em 1826, no Congresso do Panamá, essa idéia foi suscitada. O Brasil foi um dos países que não participou deste referido Congresso. Poucos anos depois, em 1864, iniciava-se a Guerra do Paraguai. O conflito resultou da atitude tomada pelo Paraguai que reagiu à interferência do Brasil no Uruguai.
Na década de 60 houve a criação da Associação Latino-americana, composta pelos países da América do Sul (exceto as Guianas) e o México. O intuito da ALALC era estimular o desenvolvimento e a diversificação industrial nos países. Apesar dos esforços, o momento na região não era propício e a instabilidade política culminou em um fracasso. (BAPTISTA, 1998, p. 18)
A fim de superar a falta de sucesso da ALALC criou-se a Aladi – Associação Latino-americana de Integração – constituída através do Tratado de Montevidéu e assinado em 12 de agosto de 1980.
Os então presidentes do Brasil e da Argentina – José Sarney e Raúl Alfonsín –iniciaram uma aproximação entre os países. Em 1986, os países assinaram um Programa de Integração e Cooperação Econômica. De acordo com este programa, os acordos envolviam desde a produção de alimentos até os bens de capital. Argentina e Brasil queriam dar continuidade ao acordo firmado e o ratificaram através de um Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento cujo objetivo era formar um mercado comum no prazo de 10 anos. (FONDACIÓN CÍRCULO DE MONTEVIDEO, 200-?, p. 11) No mesmo ano, o Uruguai resolveu incorporar-se ao processo integracionista e formalizaram o compromisso na Ata da Alvorada em 1998.
Doutrinadores como Maria Luiza Justo Nascimento ao citar Almeida, dizem que há uma estreita ligação entre o Mercosul e a Aladi.
“Aliás, o Mercosul foi gerado na Aladi, dentro de um esquema denominado de processo “minilateral”de integração, por oposição ao estrito multilateralismo das regras do Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e Comércio, pois o Tratado de Assunção, instrumento constitutivo do Mercosul, foi subscrito como Acordo de Complementação Econômica – ACE no. 18, inserido dentro do quadro normativo da Aladi, cujo tratado permitia a criação de associações regionais, compreendidas côo aquelas de cuja celebração não participa a totalidade dos Estados-membros, mas que “criem condições necessárias ao aprofundamento do processo de integração regional, através de sua progressiva multilaterização.” (ALMEIDA; BARBOSA apud, NASCIMENTO, 2008, p. 21)
O instrumento constitutivo do Mercosul é o Tratado de Assunção, o qual figura como fonte de direito internacional de acordo com o estabelecido no art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. [1] É este tratado que constituiu um mercado comum entre os países-membros, conforme o que expressa o art. 1º.[2]
Mas o Tratado de Assunção ainda suscita dúvidas quanto à constituição do Mercosul, o qual teria traços de uma organização regional e não internacional como é o caso da União Européia. “A denominação do bloco levou certos autores a crer que o Mercosul existiria apenas no momento em que se concretizasse o mercado comum.” (VENTURA, 2003, p. 42) O Tratado de Assunção, assim, não passaria de um acordo entre Estados visando à formação de um mercado comum no futuro.
No que tange à organização institucional do Mercosul, ela está prevista no Protocolo de Ouro Preto, assinado em Ouro Preto (MG) 2m 17 de dezembro de 1994, aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro pelo Decreto Legislativo 188, de 18 de dezembro de 1995 e promulgado pelo Decreto 1.901 de 09 de maio de 1995.
“Não há qualquer hierarquia entre o Tratado de Assunção e o Protocolo de Ouro Preto, posto que o último representa norma institucional modificadora do tratado original, especificamente elaborado para criar e regular a estrutura institucional definitiva do Mercosul”. (NASCIMENTO, 2008, p. 29)
De acordo com o POP, o Mercosul é composto pelos seguintes órgãos: Conselho do Mercado Comum (CMC), Grupo Mercado Comum (GMC), Comissão de Comércio do Mercosul (CCM), Comissão Parlamentar Conjunta (CPC), Foro Consultivo Econômico-Social (FCES), Secretaria Administrativa do Mercosul (SAM). Dentre essas, apenas os três últimos têm capacidade decisória.
“A estrutura institucional dos órgãos de tomada de decisões do Mercosul é claramente intergovernamental, ou seja, todos os seus órgãos são constituídos por representantes dos Estados; suas decisões são tomadas por consenso, com a presença de todos os Estados-membros, e os próprios Estados são encarregados de executar caráter supranacional, onde as deliberações são adotadas por votos majoritários e os Estados abdicam, em favor da organização internacional, de suas competências, em determinadas matérias.” (NASCIMENTO, 2008, p. 32)
Um aspecto importante a ser analisado, no estudo da primazia da aplicabilidade das normas comunitárias sobre as dos Estados-membros, é a definição das normas originárias e derivadas.
No Mercosul, as normas originárias são o Tratado de Assunção, o Protocolo de Ouro Preto e o Protocolo de Brasília. Elas são assim classificadas porque instituem princípios e constituem o próprio Mercosul.
Já as normas derivadas são aquelas advindas dos órgãos decisórios do Mercosul e são válidas devido à fundamentação presente nos tratados constitutivos. Estas normas derivadas são as Decisões do Conselho, as Resoluções do Grupo e as Diretrizes da Comissão de Comércio.
“Para que as referidas normas derivadas entrem em vigor e adquiram eficácia nos ordenamentos jurídicos dos respectivos Estados-membros, é necessário, em regra, submetê-las ao processo de incorporação previsto nos respectivos ordenamentos jurídicos. Contudo, dependendo do conteúdo das referidas normas derivadas, será desnecessário este processo de incorporação, bastando apenas a publicação no órgão oficial do Mercosul, vale dizer, o Boletim Oficial do Mercosul, elaborado pela Secretaria Administrativa. São normas cujo conteúdo regulamenta apenas aspectos de organização ou funcionamento do Mercosul, ou sejam, normas auto-reguladoras.” (NASCIMENTO, 2008, p. 50)
1 Alguns princípios fundamentai do Mercosul s e a posição do Brasil no processo integracionista
Os princípios fundamentais do Mercosul são resultado de uma interseção dos princípios fundamentais dos Estados-membros. No caso mais específico do Brasil, a isonomia já está prevista no preâmbulo da Constituição Federal de 1988.
Mas a igualdade não significa a extinção da diversidade, vale mais uma vez salientar esta questão, pois a comunidade é um reflexo da teoria da integração e integrar significa, de acordo com o dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, tornar inteiro; completar; inteirar; juntar; incorporar; juntar-se, tornando-se parte integrante.
Então, se integrar é sinônimo de incorporar, juntar, a igualdade e a isonomia têm por escopo a união de Estados com histórias e situações diversas em busca de um mesmo propósito. Tal objetivo não é compartilhado pelos países-membros do Mercosul, uma vez que o Brasil mostra-se bastante empenhado no estreitamento de relações entre os países que formam o BRIC[3], tendo até mesmo sediado um encontro desses países.
Os países signatários teriam diferentes intuitos no que concerne ao Mercosul desde a época em que foi assinado o Tratado de Assunção. “O Brasil, de sua parte, percebe o Mercosul como elemento de uma estratégia maior que tenta colocá-lo no epicentro de um projeto integracionista, englobando toda a América do Sul.” (VENTURA, 2003, p. 36) Estar a frente das negociações e da assinatura dos tratados referentes ao Mercosul levaria o Brasil a se firmar internacionalmente como grande potência latino-americana de uma maneira democrática e legítima.(VENTURA, 2003, p. 38)
Até a o relacionamento entre o Brasil e o Mercosul tem como uma base o ordenamento jurídico nacional e não o direito comunitário, já a Constituição Federal é a fonte legal do direito comunitário.
Isso é o que acontece na União Européia, todavia, o Mercosul não fala abertamente de igualdade, porém de “equidade”, conforme o art. 4º do Tratado de Assunção:
“Nas relações com terceiros países, os Estados Partes assegurarão condições eqüitativas de comércio. Para tal fim, aplicarão suas legislações nacionais, para inibir importações cujos preços estejam influenciados por subsídios, dumping qualquer outra prática desleal. Paralelamente, os Estados Parte coordenarão suas respectivas políticas nacionais com o objetivo de elaborar normas comuns sobre concorrência comercial.”
Na opinião de Deisy Ventura, “se a dinâmica institucional do Mercosul também se distancia do modelo do Estado, ao contrário da Europa, ela está calcada na dinâmica de seus próprios Estados”. (VENTURA, 2003, p. 75)
2 O direito de integração no Brasil: recepção das normas derivadas do Mercosul no ordenamento jurídico pátrio
As normas elaboradas no âmbito do Mercosul são de direito comunitário ou de integração, conforme a posição doutrinária adotada.[4] Fabrício Motta (2006, p. 287), por exemplo, diz que o direito de integração é um sub-ramo do direito internacional, diferentemente do direito comunitário. Desta forma, a fim de se tornarem eficazes no ordenamento jurídico interno, elas necessitam de serem incorporadas através do processo estabelecido na Constituição Federal.
Deve-se salientar que, caso a proposta fosse realmente a de criar um mercado comum[5] e se almejasse seguir o caminho traçado pela União Européia, as normas criadas no âmbito do Mercosul deveriam gozar de primazia sobre as dos Estados-membros. Porém, na prática, a fim de se tornarem eficazes no ordenamento jurídico interno, elas necessitam de serem incorporadas através do processo estabelecido na Constituição Federal.
O Brasil foi o Estado-membro que se manteve contra o princípio de primazia da aplicabilidade das normas comunitárias durante a Conferência Intergovernamental que ocorreu em junho de 1994.
“Em primeiro lugar, a delegação argentina desejava a constituição de uma ordem jurídica autônoma para o Mercosul, graças à consagração dos princípios de primazia do direito comunitário sobre os direitos nacionais e da aplicação imediata do direito derivado. O Paraguai e o Uruguai compartilhavam essa ideia, acrescentando a proposta de criação de um órgão do tipo jurisdicional, encarregado do controle da uniformidade de interpretação do direito derivado do Mercosul. No entanto, nenhuma delegação propôs a criação de um órgão supracional de aplicação do direito da integração.
Em segundo lugar, embora não tenha empregado a expressão “supranacionalidade”, a delegação argentina vislumbrava um novo Grupo Mercosul, muito próximo das características da Comissão Européia: ele não representaria o interesse comunitário e seria dotado de instrumentos para garantir seu respeito”. (VENTURA, 2003, p. 80)
A Carta Maior brasileira alude à integração no parágrafo único do art. 4º, apesar de não mencionar como se daria a incorporação das normas do Mercosul. Conhecido como Cláusula Montoro, este dispositivo possui apenas um caráter programático e, por isso, não possui eficácia plena. A revisão constitucional, feita em 1993, ensejou, por parte de alguns parlamentares, a proposta de uma emenda constitucional cujo preceito ocasionaria na aplicabilidade imediata de atos advindos de organizações internacionais das quais o Brasil fosse parte. No entanto, a emenda foi rejeitada em fevereiro de 1994.
“Na verdade, a Constituição brasileira não se refere ao Mercosul e, o que é mais grave, não estabelece uma hierarquia entre as normas de origem internacional e origem interna. Na hipótese de conflito de normas, o direito do Mercosul não encontra na Constituição uma regra específica, tampouco uma regra geral que reconheça sua primazia. O silêncio sobre a hierarquia das normas foi considerado como “a grande omissão” da nova Lei Fundamental brasileira. Essa lacuna deu lugar a uma jurisprudência bastante incômoda para as relações exteriores desse grande país. Além disso, várias disposições constitucionais são apresentadas como obstáculo à participação numa futura “comunidade de direito”. (Mello apud Ventura, 2003. p. 190)
Tal situação seria um contraste entre a certeza do objetivo do Tratado de Assunção com os meios utilizados para se pôr em prática o que fora estabelecido entre os Estados-membros. (VENTURA, 2003, p. 41)
Os meios que poderiam ser utilizados para a incorporação destas normas seriam através do Poder Legislativo e do Judiciário, todavia a situação do Mercosul é bastante diversa da situação da União Européia.
No Mercosul, não há eleição direta para os parlamentares que compõem o Parlasul. Ademais, sempre é o Poder Legislativo brasileiro que decide sobre os tratados, acordos ou atos internacionais nos quais o Brasil figura como parte, consoante o preconizado no art. 49, I da Lei Maior.[6]
O papel do Poder Legislativo é bastante significativo haja vista que as normas do Mercosul só possuem efeito nos Estados-membros após a incorporação no ordenamento jurídico do Estado-membro. A partir de então, elas passam a fazer parte da legislação infraconstitucional. Quando há esta incorporação, elas são regidas pelo princípio lex posteriori derogat priori, adotando uma característica eminentemente nacional e tendo reduzido o caráter internacional. (VENTURA, 2003, p. 148)
“Consequentemente, “o legislador pode, à vontade, modificar seus termos e pôr fim a seus efeitos”. É justamente o tipo de problema que se encontra dentro do Mercosul quando se constata que a transposição das normas pode ser feita conforme a conveniência de cada Estado-membro.” (PESCATORE apud VENTURA, 2003, p. 149).
A atitude que o Poder Legislativo brasileiro adota mostra existir uma preponderância da concepção doutrinária tradicional de soberania conforme explica José Souto Maior Borges:
“Será soberano um Estado, na concepção doutrinária tradicional, quando inexista sobre ele outro ordenamento jurídico, inclusive o ordenamento jurídico internacional. Como a soberania é um poder absoluto e incontrastável, segue-se que somente existiriam, sob esse prisma, relações de coordenação internacional: a soberania (absoluta) de um Estado chocar-se-ia com a soberania (absoluta) de outro. Assim, quebra-se a unidade de conhecimento pela ciência do direito. Há tantos ordenamentos (sistemas) jurídicos, objeto de conhecimento pela ciência jurídica, quantos Estados soberanos. Por isso, e não por outro motivo, KELSEN adverte: quando se quiser preservar a tese da multiplicidade de comunidades jurídicas coordenadas entre si e designadas como Estados, há que se renunciar à soberania como atributo estatal; deve abandonar-se o primado do ordenamento jurídico estatal particular em favor de uma ordem jurídica internacional supra-estatal, ou seja, do primado da ordem jurídica internacional”. (BORGES, 2005, p. 141)
Outrossim, o Poder Judiciário brasileiro também pode vetar uma norma internacional que considere inconstitucional através do Recurso Extraordinário, previsto no art. 102, III, b.[7]
Observa-se, pois, que um organismo de jurisdição nacional julga a constitucionalidade do tratado internacional, olvidando-se que, a República Federativa do Brasil – representada pelo Poder Executivo – é a signatária do tratado e deveria obedecê-lo através de princípios como o pact sund servanta, uma vez que se propôs a entrar em um acordo e tomar atitudes condizentes com o que foi previsto em comum entre os países-signatários.
Neste diapasão, ao se sustentar esta teoria da soberana estatal embasada em um enfoque político-ideológico, o ordenamento jurídico nacional seria autárquico e, tal posicionamento, significaria a descrença em um ordenamento jurídico superior, ou seja, o internacional. A soberania é o poder supremo, nas relações internacionais. Inexiste autoridade mais alta que limite o poder soberano. Assim politicamente concebida, a soberania acabaria por inviabilizar a integração comunitária.
Souto Maior acredita, todavia, que o Brasil se rege pelo princípio da independência estatal no âmbito das relações internacionais e não da soberania prevista no art. 1º, I da Constituição Federal. Mesmo assim, o autor acredita que o Mercosul ainda não está em um processo integracionista próximo ao da União Européia também por conta do significado de soberania adotado pelos Estados-membros.
“O Mercosul ainda está muito longe de atingir o objetivo da integração comunitária dos países da América Latina, entendida como uma estruturação política, social, econômica e cultural – e não apenas econômica. Esse distanciamento é facilmente perceptível, não apenas porque só alguns países da America do Sul o integram, mas também porque ele significa pouco mais que um bloco econômico interestatal. Todavia a integração se mostra inviável sem a superação do conceito tradicional da soberania (político-ideológico) pelo seu conceito jurídico-positivo (constitucional). De iure condendum a integração comunitária implica a necessidade de participação cada vez mais intensa do Brasil na comunidade latino-americana das nações.” (BORGES, 2005, p. 185)
Verifica-se, então, que existe no Brasil um apego ao nacionalismo jurídico e a uma idéia de soberania não mais compatível com o processo de integração, pois as normas comunitárias não gozam de supremacia no território nacional. Elas são equivalentes à lei federal e podem ser revogadas pelo critério cronológico (lex posteriori derogat priori).
Dessa maneira estaria o Brasil violando o que estabelece o art. 46, I e II da Convenção de Viena[8]. Atente-se ao fato de que, mesmo não tendo sido ratificada pelo Brasil, ela não é uma fonte de costume de direito internacional.
O Supremo Tribunal Federal proferiu acórdão, em 17 de junho de 1998, negando exequatur à medida clamada por pessoa jurídica argentina. A empresa autora pleiteava a aplicação do Protocolo de Medidas Cautelares, norma derivada do Mercosul.
Tal decisão se mostra inconcebível, visto que a partir do momento que o tratado internacional é assinado torna-se válido (neste caso, a norma adotada pelo Mercosul, do qual o Brasil é Estado-membro fundador). Não poderia, neste sentido, decidir o Brasil não aplicar o que está previsto no tratado, pois iria contra um princípio comum entre os tratados e os contratos: o pact sunt servanda. Ademais, as normas convencionais, como no caso dos tratados, não podem ser revogadas unilateralmente.
Através da análise do agravo regimental acima mencionado, realizada no capítulo seguinte, poder-se-á observar o conceito de soberania vigente na instância máxima da justiça brasileira e relacionar-lo com o entendimento doutrinário acerca da aplicação das normas comunitárias sobre as legislações dos Estados-membros.
Verificar-se-á, pois, em um estudo concreto, que o Brasil não adota o princípio da primazia da aplicabilidade das normas comunitárias como ocorre na Europa. Comprovar-se-á ainda que, apesar do discurso integracionista, o Brasil optou pelo critério cronológico – lex posteriori derogat priori.
3 Estudo de caso: AgReg em carta rogatória 8.279-4
O Agravo Regimental em carta rogatória 8.279-4 é um exemplo do posicionamento brasileiro quanto à aplicabilidade das normas do MERCOSUL. Este recurso foi interposto contra ato decisório que negou exequatur a carta rogatória encaminhada pela Justiça Federal da República da Argentina.
A decisão do ministro Celso de Mello preconiza, na ementa, o seguinte:
“a recepção dos tratados ou convenções internacionais em geral e dos acordos celebrados no âmbito do Mercosul está sujeita à disciplina fixada na Constituição da República.
A recepção de acordos celebrados pelo Brasil no âmbito do MERCOSUL está sujeita à mesma disciplina constitucional que rege o processo de incorporação, à ordem positiva interna brasileira dos tratados ou convenções internacionais em geral.”
Ele ainda afirma que
“Embora desejável a adoção de mecanismos constitucionais diferenciados, cuja instituição privilegie o processo de recepção dos atos, acordos, protocolos ou tratados celebrados pelo Brasil no âmbito do MERCOSUL, esse é um tema que depende, essencialmente quanto à sua solução de reforma do texto da Constituição brasileira, reclamando, em conseqüência, modificações de jure constituendo”.
A fim de justificar o posicionamento adotado, o ministro alega que
“A recepção dos tratados internacionais em geral e dos acordos celebrados pelo Brasil no âmbito do MERCOSUL depende, para efeito ulterior execução no plano interno, de uma sucessão causal e ordenada de atos revestidos de caráter político-jurídico, assim definidos: (a) aprovação, pelo Congresso Nacional, mediante decreto legislativo, de tais convenções; (b) ratificação desses atos internacionais, pelo Chefe de Estado, mediante depósito do respectivo instrumento; (c) promulgação de tais acordos ou tratados, pelo Presidente da República, mediante decreto, em ordem a viabilizar a produção dos seguintes efeitos básicos, essenciais à sua vigência doméstica: (1) publicação oficial do texto do tratado e (2) executoriedade do ato de direito intenacional público, que passa, então – e somente então – a vincular e obrigar no plano positivo interno. Precedentes.
O SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO NÃO CONSAGRA O PRINCÍPIO DO EFEITO DIRETO E NEM O POSTULADO DA APLICABILIDADE IMEDIATA DOS TRATADOS OU CONVENÇÕES INTERNACIONAIS.
A Constituição brasileira não consagrou, em tema de convenções internacionais ou de tratados de integração, nem o princípio do efeito direto, nem o postulado de aplicabilidade imediata.
Isso significa, de jure constituto, que enquanto não se concluir o ciclo de uma transposição, para o direito interno, os tratados internacionais e os acordos de integração, além de não poderem ser invocados, desde logo, pelos particulares, no que refere aos direitos e obrigações neles fundados (princípio do efeito direto), também não poderão ser aplicados, imediatamente, no âmbito domestico do Estado brasileiro (postulado da aplicabilidade imediata).
O princípio do efeito direto (aptidão de a norma internacional repercutir, desde logo em matéria de direitos e obrigações, na esfera jurídica dos particulares) e o postulado da aplicabilidade imediata (que diz respeito à vigência automática da norma internacional na ordem jurídica interna) traduzem diretrizes que não se acham consagradas e nem positivadas no texto da Constituição da República, motivo pelo qual tais princípios não podem ser invocados par legitimar a incidência, no plano do ordenamento doméstico brasileiro, de qualquer convenção internacional, ainda que se cuide de tratado de integracao, enquanto não se concluírem os diversos ciclos que compõem o seu processo de incorporação ao sistema de direito interno do Brasil. Magistério da doutrina.”
Para finalizar, o ministro declara que nem o art. 4º, parágrafo único da Magna Carta, defendido como o pilar do processo de integração pode ser invocado.
“Sob a égide do modelo constitucional brasileiro, mesmo cuidando-se de tratados de integração, ainda subsistem os clássicos mecanismos institucionais de recepção de convenções internacionais em geral, não bastando, para afastá-los, a existência da norma inscrita no art. 4º, parágrafo único, da Constituição da República, que possui conteúdo meramente programático e cujo sentido não torna dispensável a atuação dos instrumentos constitucionais de transposição, para a ordem jurídica domestica, dos acordos, protocolos e convenções celebrados pelo Brasil no âmbito do MERCOSUL”.
Pode-se observar, da leitura dos trechos supracitados da ementa do AgReg 8.279-4, que o posicionamento brasileiro não condiz com o posicionamento adotado nos países-membros da União Européia, a qual se trata de um processo de integração em uma fase já avançada e serve de paradigma para os demais processos de integração.
O doutrinador francês Antoine Masson explica que mesmo não tendo sido prevista a primazia de aplicabilidade do direito comunitário sobre o direito dos Estados-membros, esta característica foi sendo aceita e hoje é regra absoluta no direito comunitário europeu.
“Em 1964, ainda que o tratado não permitisse em nada tal afirmação, o caso Costa/E.N.E.L, reconhece a superioridade da ordem comunitária sobre a legislação nacional. Esta afirmação de primazia do direito comunitário sobre os direitos nacionais ganha uma forma ainda mais audaciosa alguns anos mais tarde quando foi julgado o caso Internationale Handelgesellschaft em 17 dezembro de 1970. A Corte afirma que o na verdade que : « a invocação das infrações seja aos direitos fundamentais, tais quais sao formuladas pela Constituição de um Estado-membro, seja aos principuis de uma estrutura constitucional nacional, nao será afetado pela validade de um ato da Comunidade ou seu efeito sobre o território deste Estado ». A primazia advem assim de uma regra absoluta qual seja a posição destas últimas (lei, regulamento, decreto…), incluindo-se também as constituições dos Estados-membros.
Em razão do princípio da primazia, o juiz nacional deve respeitar e fazer respeitar a primazia do direito comunitária sobre o direito interno. No caso Simmenthal, a Corte precisa assim que o juiz nacional tem obrigação de descartar a regra interna, mesmo posterior, contrária ao direito comunitário, sem esperar a derrogação da norma pelo legislador nacional (invocação de exclusão). Caso contrário, a responsabilidade do Estado pode ser requerida pelos particulares perante o juiz interno ou pela Comissão perante o TJCE, fundamentada numa ação de omissão. (tradução da autora)” (MASSON, 2009, p. 263)[9]
Ao se estabelecer um processo de integração é necessário haver uma cooperação mútua entre os Estados e suas instituições assim como entre os Estados e as instituições comunitárias. Esta cooperação deve ocorrer nos setores jurídicos e administrativos, dentre outros. (MASSON, 2009. p. 263)
“O princípio de cooperação leal é imposto pelo artigo 10 do TCE: “Os Estados-membros tomam todas as medidas gerais ou particulares próprias a assegurar a execução das obrigações advindas do presente tratado ou resultantes dos atos das instituições da Comunidade. Eles facilitam a esta o cumprimento da missão dela. Eles se abstêm de todas as medidas suscetíveis de colocar em perigo a realização dos objetivos deste presente tratado”. (tradução minha) (MASSON, 2009, p. 264)[10]
Entre as várias destinações às quais serve o princípio da cooperação leal estão:
“- destacar as obrigações ao encargo dos Estados-membros, principalmente essas de assegurar o pleno efeito (ou efeito útil) de um regulamento;
– servir como um dos fundamentos da responsabilidade dos Estados-membros por não respeito ao direito comunitário;
– condenar um Estado-membro que não adotou uma sanção para garantir a aplicação de uma regra de direito comunitário, ainda que esta regra não preveja uma sanção;
– punir os Estados que não fizeram tudo que estavam no poder deles para assegurar a boa aplicação do direito comunitário, incluindo rever a autoridade da coisa julgada se essa possibilidade existir no direito interno;
– de maneira geral, punir uma omissão cometida por um Estado, mesmo que a obrigação sob o encargo do Estado não esteja claramente definida.” (tradução da autora) (MASSON, 2009, p. 264-265)[11]
Verifica-se, então, que a decisão proferida pelo Ministro Celso de Melo vai de encontro com a maioria das prerrogativas advindas do princípio da cooperação leal, presente na União Européia.
O posicionamento argentino destoa do brasileiro, uma vez que
“Na Argentina, por sua vez, é importante ressaltar o caso La Virginia, resolvido pela Corte Suprema, no qual se discutia um conflito entre o AAP 1 (Aladi), assinado por nosso país e pelo Brasil, e uma lei posterior. Apesar de não versar o assunto sobre uma norma do bloco, de especial relevância é o voto concorrente do Juiz A. Boggiano, que em várias de suas considerações menciona a forma explícita ao Mercosul e que deixa entrever seu raciocínio que, com maiores fundamentos, seria aplicável ao direito do qual este se deriva. Segundo o Magistrado “o reconhecimento de um direito encabeçado pelos importadores amparados – mesmo que não os mencione – pelo Acordo, cuja vigência e operabilidade não foram questionadas em nenhum instância, é coerente com a finalidade de constituir um mercado comum latino-americano, expressada no art. 1º do Tratado de Montevidéu de 1980, a respeito dos países que o subscrevem, ou seja, no caso em questão, Argentina e Brasil. Mais ainda caso se leve em consideração a recente assinatura do Tratado de Assunção em 1991, que assenta as bases da organização do Mercosul, que mantém a integração regional como um objetivo claro da política internacional argentina.” (tradução minha)[12] (PEROTTI, 2003, p. 43)
O doutrinador Alejandro Perotti acrescenta que
“Na Argentina, apesar da Corte Suprema não ter ainda resolvido um caso no qual tenha sido necessário considerar a natureza e o alcance do direito do Mercosul nem tampouco seu efeito imediato (e direto), existem alguns antecedentes jurisprudenciais que nos podem dar uma ideia acerca da posição que adotaria o máximo Tribunal.” (tradução da autora) (PEROTTI, 2003, p. 62)[13]
Quanto ao efeito imediato, ele significa que quando o órgão regional sanciona e publica no informativo oficial, a norma comunitária, ela passa a ter vigência diretamente sobre o ordenamento nacional dos Estados-membros. Não é necessário incorporar, internalizar a norma, pois a incorporação ocorre de maneira automática. (PEROTTI, 2003)
A posição do Supremo Tribunal Federal ratifica o posicionamento do Brasil tangente a um conceito de soberania estático, o qual coloca a Lei Maior acima de todo e qualquer ordenamento jurídico e que não deixa espaço para a consolidação do processo integracionista no Mercosul.
“Estão sendo pacífica e gradualmente transformada e transtornados moldes e parâmetros legais seculares e multiseculares, em decorrência das imposições teleológicas da integração, abalando o conceito de soberania, em favor de fenômeno novo, até 1951, conhecido somente em teoria, que se positiva com o tratado de Paris (1951), ou alterando substancialmente a delimitação tradicional monismo-dualismo, ocorrendo a interpretação ou concomitância entre o “direito interno” e o direito internacional público e privado”. (CASELLA, 1999, p. 73)
Casella (1999, p.87) ainda afirma que é preciso tomar um posicionamento expresso concernente à posição do MERCOSUL no processo de integração. “Os pressupostos terão de ser expressos concretamente, mediante a opção por determinados modelos de integração e na implementação operacional.”
Ademais, a posição na qual o MERCOSUL se encontra, não condiz, segundo o doutrinador, com algumas posições adotadas pelos países-membros.
“O Mercado Comum do Sul, MERCOSUL, vem se desenvolvendo, de modo extraordinário, desde a celebração do Trato de Assunção (1991) e do Protocolo de Ouro Preto (1994). Não obstante a mutação política substancial do discurso regional, os relevantes progressos econômicos e a permeabilidade sócio-cultural que se começa a perceber, permanece, contudo, relativa indefinição desse processo de integração, ultrapassando os patamares de estrita cooperação intergovernamental, sem que se tenha havido opção clara pela configuração institucional, permanecendo o caráter de provisoriedade.
No caso do MERCOSUL, percebe-se já ter sido ultrapassado o patamar de estrita cooperação intergovernamental, sem que se reconheça, abertamente, a ocorrência de elementos supranacionais. As soberanias nacionais parecem, todavia, querer permanecer nominalmente intocadas, mas na medida em que se vai de economias estritas ou predominantemente nacionais, para a operação de economia crescentemente integrada, as mutações correspondentes na soberania serão irremediáveis. As construções jurídicas, empiricamente desenvolvidas, terão necessidades de enquadrar as necessidades de atuação, em relação à capacidade para atender as necessidades operacionais do processo de integração e a construção de seus resultados.” (CASELLA, 1999, p. 86)
Considerações finais
O Mercosul surgiu através de negociações e imposto através de um tratado comum, ao contrário da União Européia, a qual surgiu naturalmente, de uma maneira pragmática. As aparentes semelhanças históricas, culturais, políticas e econômicas camuflam os problemas referentes ao Mercado Comum do Sul.
“Ignora-se no Mercosul algo que já se vive de maneira pragmática na Europa. Acredita-se que consolidação no bloco comunitário do sul pressuponha a formação de uma identidade cultural sul-americana”. (GUSSI, 2006, p. 125)
Quanto às gigantescas discrepâncias econômicas,
“No segundo ponto, temos as dificuldades econômicas. Parece-nos que elas são de duas ordens. Em primeiro lugar uma disparidade macroeconômica em relação aos demais países do bloco. O Brasil, seguido da Argentina, destoa sobremaneira das demais economias regionais. Temos um potencial econômico – em parte já efetivado – que, em determinadas questões torna impossível uma real competição com os países membros.
Em segundo lugar, o fato de as economias, inclusive a do Brasil, sofrerem de enormes patologias em sua ordem interna, como problemas de distribuição de renda, bem como os reflexos nos Índices de Desenvolvimento Humano. São países que ainda têm margens de pobreza acentuadas e carências bastante rudimentares se comparados com os índices europeus.” (GUSSI, 2006, p. 126)
Observa-se que o ordenamento jurídico ainda não é receptivo no concernente às normas comunitárias, devendo tal solução só ser colocada em prática caso houvessem mudanças de cunho político-jurídico nos Estados-membros.
De acordo com Gussi (2006, p. 127), a inviabilidade jurídica do Mercosul ocorre porque os ordenamentos jurídicos dos países “não foram pensados em termos supranacionais, especialmente o brasileiro”. As constituições promulgadas após as ditaduras latino-americanas “foram construídas com base em compromissos políticos, transformando-as em uma espécie de colcha de retalhos”.
“Nesse sentido, os textos constitucionais não foram capazes, como seus correspondentes europeus, de fornecerem bases jurídicas para um consenso interno nos países membros do bloco. Longe estariam, portanto, de contribuir com a consolidação do consenso mais amplo em nível supranacional.
No que tange aos ordenamentos constitucionais, o Paraguai apresenta uma germinal possibilidade de integração no campo jurídico, vez que admite supremacia da ordem supranacional sobre a nacional, desde que seja aprovado pelo Congresso, tendo por pressuposta a ideia de reciprocidade.
A Constituição Argentina, como a paraguaia, admite a existência de uma ordem jurídica supranacional. Aqui, também deverá ser observada a reciprocidade em relação aos demais Estados. “O texto da Constituição Federal Argentina prevê, expressamente, a possibilidade de delegação de poderes soberanos e da jurisdição para as organizações supranacionais, elidindo, assim, qualquer dúvida sobre o alcance da norma constitucional.”
O Uruguai não é tão aberto à integração jurídica como os dois anteriores.” (GUSSI, 2006, p. 127)
Jeanlise Velloso Couto (2006, p. 270) explica que
“A tradição política dos países integrantes do Mercosul influenciou a opção pela instituição intergovernamental. A diferença entre supranacionalidade e intergovernamentabilidade é substancial. Enquanto na instituição supranacional, a exemplo da Comunidade Européia, há uma conjugação de interesses comuns e uma subordinação das unidades em relação todo integrado no qual os elementos no qual os elementos anteriormente nacionais se agrupam em uma unidade autônoma e independente; na instituição intergovernamental, há a conjugação de interesses comuns que se estruturam em uma instituição de mecanismos compartilhados. O fundamento de intergovernamentabilidade é de defesa à soberania estatal. Algo questionável quando se fala em integração regional, pois cabe mais, neste caso, a ideia de soberania relativa e compartilhada.”
Neste diapasão, vê-se que, enquanto os países do Mercosul não revirem o conceito que possuem acerca da soberania não poderá haver uma verdadeira integração
Jornalista e advogada, membro da Société de Législation Comparée e aluna do curso de especialização em direito público do ATF Cursos Jurídicos
Uma das dúvidas mais comuns entre clientes e até mesmo entre profissionais de outras áreas…
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) regula o trabalho aos domingos, prevendo situações específicas…
O abono de falta é um direito previsto na legislação trabalhista que permite ao empregado…
O atestado médico é um documento essencial para justificar a ausência do trabalhador em caso…
O cálculo da falta injustificada no salário do trabalhador é feito considerando três principais aspectos:…
A falta injustificada é a ausência do trabalhador ao trabalho sem apresentação de motivo legal…