Resumo: No mundo globalizado em que vivemos não é difícil de perceber a necessidade do direito de dialogar com outras disciplinas. E se torna necessário entender como o direito dialoga com as artes e o que é que as artes têm a dizer ao direito: direito e imagem, direito e música, direito e poesia, direito e literatura, direito e narração, direito e artes plásticas, direito e cinema, direito e tragédia, direito e estética, direito e teatro, direito e caricatura, direito e charge etc. É o que pretende o presente artigo no que diz respeito à análise da interface do direito com a tragédia, a caricatura e a charge, mais especificamente nas obras de François Ost e Mônica Sette Lopes.
Palavras-Chave: Direito. Arte. Tragédia. Charge.
Abstract: It is urgent for the right to engage in dialogue with other disciplines . We know that the law is language and concepts, but also know that the narratives of life involve not only the right, but mostly art . Thus, one must understand how the right dialogue with the arts and what the arts have to say the right . Even as the law was seen as imagery for a long time, only then started to walk to the word image .
The law has been rather a knowing look, worrying about the ceremony in a ritualistic mode, whose manifestations were externalized in symbols, gestures, colors, metaphors, rituals, liturgies, maps etc. . Currently, we have observed that return the image to the right and the technology is one of those responsible for it, it has changed the ways of presenting the right . It is the return of visuality of law, return to the symbolic world of law. And right image, and right music, poetry and law, law and literature, law and narrative, law and arts, law and film, law and tragedy, law and aesthetics, law and theater, law and caricature, law and charge are some of the examples of the interconnection between law and other fields of knowledge, between law and art. In this article, we analyze the interface right with the tragedy, the caricature and the cartoon, specifically the works of François Ost (jurist and philosopher, an expert on Human Rights and Environmental Law) and Monica Lopes Sette (philosopher, teacher and researcher of law), respectively.
Keywords: Right. Art. Tragedy. Charge.
Sumário: 1. Introdução. 2. No começo era o juiz – A Oréstia ou a invenção da justiça. 3. Uma composição polifônica na Oréstia. 4. Direito, conhecimento, auditório e ironia: imagens da justiça. 5. Na saúde e na doença: a força da caricatura em Daumier. 6. O direito na era da imagem: a charge jornalística de Angeli. 7. Considerações finais. 8. Referências.
1. Introdução
É premente a necessidade do direito de dialogar com outras disciplinas. Sabe-se que o direito é linguagem e conceitos, mas sabe-se também que as narrativas da vida envolvem não só o direito, mas, principalmente, a arte. Assim, é preciso entender como o direito dialoga com as artes e o que é que as artes têm a dizer ao direito. Mesmo porque o direito foi tido como imagético durante muito tempo, só depois passou a caminhar da imagem para a palavra.
O direito já foi sim um saber visual, preocupando-se com a solenidade numa modalidade ritualística, cujas manifestações eram exteriorizadas por símbolos, gestos, cores, metáforas, rituais, liturgias, mapas etc. Atualmente, tem-se percebido esse retorno da imagem para o direito e a tecnologia é uma das responsáveis por isso, pois tem alterado os modos de se apresentar o direito. É a volta da visualidade do direito, o retorno ao mundo simbólico do direito.
Direito e imagem, direito e música, direito e poesia, direito e literatura, direito e narração, direito e artes plásticas, direito e cinema, direito e tragédia, direito e estética, direito e teatro, direito e caricatura, direito e charge, são alguns dos exemplos da interligação entre o direito e outros campos de conhecimento, entre o direito e a arte.
No presente artigo, analisaremos a interface do direito com a tragédia, a caricatura e a charge, mais especificamente nas obras de François Ost (jurista e filósofo, especialista dos Direitos do Homem e do Direito do Ambiente) e Mônica Sette Lopes (filósofa, professora e pesquisadora de direito), respectivamente.
O texto de François Ost faz parte da Coleção Díke, que reúne obras de autores nacionais e estrangeiros sobre temas essenciais do pensamento jurídico e é dividido em: Prólogo; Capítulo I: No começo era a lei – O Sinai ou a lei negociada; Capítulo II: No começo era o juiz – A Oréstia ou a invenção da justiça; Capítulo III: No começo era minha consciência – A Antígona de Sófocles: resistência, aporias jurídicas e paradoxos políticos; Capítulo IV: No começo era meu direito – Robinson Crusoé e a apropriação do mundo – O Pacto faustiano ou os avatares da liberdade; Capítulo V: E no fim? – Kafka ou o aquém da lei.
O objetivo do presente é analisar, em especial, o capítulo segundo desta coleção, intitulado No começo era o juiz – A Oréstia ou a invenção da justiça, que trata da relação entre direito e literatura, propondo o autor uma forma de perceber o Direito a partir da sua manifestação no imaginário social do indivíduo, o que demonstra a importância da interdisciplinariedade.
Já a obra Imagens da Justiça é de autoria de Mônica Sette Lopes juntamente com o professor Bruno Amaro Lacerda. O livro é composto por oito capítulos, quatro de cada um dos autores, nos quais se enfocam as relações entre direito e arte. Os dele voltados para a cultura e pintura e os dela para a charge, a caricatura e a literatura. Evidencia-se a presença de símbolos marcantes do Direito na arte e monumentos públicos, como a balança, a espada, a mulher de olhos vendados, entre outros.
Em A ironia e a imagem do direito: a expressão da justiça na caricatura e na charge, Mônica Sette Lopes se dedica, principalmente, à obra já clássica do francês Daumier e ao cartunista brasileiro Angeli.
2. No começo era o juiz – A Oréstia ou a invenção da justiça
François Ost inicia o capítulo sobre a justiça falando da relação entre a literatura e o direito, com ênfase, em especial, nos temas jurídicos tratados por ela, relacionando a vingança com a justiça, abordando o processo de evolução da própria justiça e terminando com a análise de Billy Budd sobre a justiça como um mal necessário.
Efetivamente, de todos os temas jurídicos tratados pela literatura, o do juiz (que envolve julgamento, processo, condenação, etc) se torna o mais corriqueiro, em razão da intensidade dramática e da forma teatral, e porque o processo é o direito em ação (é a vida que interroga a lei) e a ficção judiciária ultrapassa a ficção jurídica, o que também acontece com as caricaturas, que será visto mais adiante.
Na história do direito consta que o juiz foi a primeira autoridade que, destacando-se da comunidade, foi investida da tarefa de dizer o direito para a comunidade. Mas foi a comunidade que renunciou a fazer justiça por si mesma, recorrendo a um terceiro imparcial para decidir a contenda e que estava acima das partes. É o que afirma François Ost:
“A Oréstia de Ésquilo é uma trilogia trágica escrita no século V a.C. que conta essa passagem e é representada diante de um público ateniense que, nesse momento preciso, fazia a experiência histórica sem precedente da democracia e da renúncia progressiva à lei do talião, em favor de uma justiça deliberativa baseada em provas fatuais, em argumentos racionais, em votações e na referência a uma lei comum” (OST, p. 97).
O texto mostra então a passagem do PRÉ-DIREITO (DA VINGANÇA) ao DIREITO (DA JUSTIÇA), o que implica também o recuo da palavra mágica (maldição, juramento, ordálio, etc) em favor de uma palavra dialógica que busca convencer por argumentos racionais e provas verificáveis (OST, p. 98).
Na verdade, “esse entrelaçamento da vingança e da justiça e os retornos sempre ameaçadores do talião ocupam um lugar considerável na ficção literária” (OST, p. 99), afirma o autor, citando exemplos: Racine, Shakespeare (Tito Andrônico, Júlio César, Macbeth, Hamlet, O mercador de Veneza, Romeu e Julieta) e Kleist (O cântaro quebrado e a tragédia justiceira Michäel Kohlhaas).
Verifica-se, assim, que a ficção literária tem por função crítica não se limitar a lembrar à justiça suas origens violentas e sua face oculta vingadora, dedicando-se também a denunciar (temas como arbitrariedade dos juízes, lentidão e custo da justiça, formalismo e imbróglio dos procedimentos e venalidade dos homens da justiça são repisados no tema literário).
Exemplos são vários: Após As Eumênides, Aristófanes oferece As Vespas. Dez anos após, Eurípedes compõe Orestes. A partir daí tem: o juiz Bridoye, de Rabelais, Montaigne, As Fábulas de La Fontaine, O asno de Les Animaux, La Bruyère, o Scapin de Molière, Victor Hugo em Les Châtiments, Charles Dickens, em Bleak House, o magistrado Bourriche descrito por Anatole France etc.
Observa-se que as sátiras e críticas elevam-se à meditação metafísica ou à imprecação religiosa: exemplo é a denúncia do sacrilégio que é a presença do crucifixo numa sala de audiências onde se pratica uma justiça corrupta e criminosa, que é feita por Victor Hugo, Anatole France e Tolstoi (OST, p. 102).
O que faz François Ost, na obra Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico, é analisar a trilogia grega Oréstia, escrita por Ésquilo em 460-459 a. C. A trilogia narra uma história baseada na lenda dos Atridas, composta por três peças distintas: Agamêmnon, As Coéforas e As Eumênides, ou seja:
“Narra as aporias da lei do talião e, em contraponto, a experimentação da justiça humana que sabe integrar a dimensão do perdão e confia na deliberação: é que Orestes, o matricida, acabará sendo finalmente absolvido, quando se esperava que se juntasse à sua mãe Clitemnestra (assassina do esposo Agamêmnon) na posição maldita do vingador condenado” (OST, p. 105).
Agamêmnon é a primeira peça da trilogia, que se realiza em Argos, mais precisamente no Palácio dos Atridas, onde há uma ansiosa espera pelo retorno das naus gregas que há dez anos saíram em expedição à Tróia. É com a pergunta um novo vingador irá surgir? que se inicia As Coéforas. O momento agora é de ação, a palavra reencontra seu poder de afirmação, e a inquietude do passado dá lugar à resolução quanto ao futuro. Quando acabará a maldição dos Atridas? No momento em que a cortina se ergue na abertura da terceira peça, As Eumênides, reencontramos Orestes em Delfos, como suplicante no templo de Apolo. Ao fundar o tribunal do Areópago, Atena consegue pôr um fim ao implacável determinismo do talião e inventa a justiça dos homens- uma justiça decidida por votos. A tragédia se encerra com um grito de alegria que antecipa o êxito da aposta feita na justiça deliberativa e no respeito às leis.
Conforme explica Ost, todos estes crimes logo serão quitados em Argos, onde reinam a mulher de Agamêmnon e mãe de Ifigênia, Clitemnestra e seu amante, Egisto. O casal de amantes planeja e assassina Agamêmnon. Os anciãos advertem que Orestes, filho de Agamêmnon, então no exílio, regressaria para vingar a morte do pai.
Já na peça as Coéforas, o tom não é impotente e nem enganador como na primeira peça. Ost explica que o título da peça designa as “portadoras de libação”. Portanto, a palavra é liberada, violenta e mortífera. O coro é composto por cativas estrangeiras que lamentam a morte de Agamêmnon e denunciam as desordens correntes no reino de Argos. Dentre as mulheres que compõem o coro encontra-se Electra, irmã de Orestes, filha de Clitemnestra e Agamêmnon.
Orestes representa a esperança de que a morte humilhante do rei seja vingada. Nesse sentido, o desfecho da peça está claramente desenhado: Orestes deve matar a própria mãe e o amante desta, Egisto, uma vez que foram estes os responsáveis pelo assassinato do rei. Ele passa a ser movido pela persuasão do Deus Apolo e pelas Erínias paternas que clamam por justiça. E ao cometer o matricídio Orestes é tido como criminoso e passa a ser perseguido pelas Fúrias maternas, tornando-se alvo da lei de talião. E decide fugir.
Na peça Eumênides, Orestes, em Delfos, apresenta-se como suplicante no templo de Apolo. Orestes é reintegrado ao convívio humano em virtude do ritual da purificação. Mas Apolo encaminha seu protegido ao tribunal em Atenas. Aqui, o coro é encenado pelas Erínias vingadoras de Clitemnestra que tentam de todas as formas enlouquecer Orestes. Este faz uma prece a Atena, suplicando ajuda. A deusa intercede em favor da vítima, convencendo as Erínias a concordarem com o julgamento da causa. Iniciado o julgamento, Apolo se apresenta como defensor de seu suplicante.
Fica instituído o Tribunal do Areópago. Os jurados (juízes) depositam seus votos numa urna e a deusa esclarece que seu voto deve ser contado a favor de Orestes e havendo empate, o réu será absolvido. E assim acontece, há o empate e Orestes sai vitorioso com o voto de Atena.
Após a absolvição de Orestes, o momento crucial se dá com o debate entre as Erínias que querem verter sobre a cidade toda a sua cólera por meio de infortúnios e calamidades. Contudo, Atena convence as Erínias a encarnarem um novo papel. Convencidas, um pacto é selado entre as Erínias e Atena e assim, um processo transmutador se opera. As Fúrias devastadoras não são aniquiladas por Atena, elas deixam de ser as deusas do ódio e se transformam em Eumênides, as deusas protetoras da Cidade.
Atena ao fundar o Areópago consegue conduzir a lei vindita a se transformar em justiça, uma justiça humana decidida por votos após a análise de provas levadas ao tribunal.
3. Uma composição polifônica na Oréstia
François Ost consegue captar na Oréstia, e em cada peça, a presença de cinco “vozes” que ressoam harmonicamente e de forma simultânea, num verdadeiro estilo contrapontístico. Mas Ost prefere desenvolver a análise específica dessas vozes em cada peça.
A reflexão política se faz presente em virtude da instalação do Tribunal do Areópago e tal fundação se dá com bases no poder do demos, o qual por sua vez somente está assegurado graças ao apoio da aristocracia. Mas toda esta estrutura é ameaçada pela guerra civil preenchida pelas sedições e acertos de contas privados.
A voz de natureza religiosa mostra a pólis como que inserida na totalidade do cosmos e, só há harmonia na cidade, quando os deuses se encontram em plena paz. Nesse sentido, a Oréstia pode ser lida como um drama que pretextua assuntos humanos para encenar um drama divino.
Outra voz destacada por Ost é relativa à questão da responsabilidade individual. Ele explica que de Agamêmnon às Eumênides, “opera-se uma passagem destinada a extrair as noções de culpa e de responsabilidade do magma confuso de erro, infração, loucura e infortúnio no qual estavam mergulhadas.” (OST, p. 111). Aos poucos, as motivações individuais e as culpas subjetivas vão sendo consideradas, ocupando o espaço antes preenchido por formas coletivas e materiais. Na ausência de pelo menos um embrião de responsabilidade pessoal, é a vingança (lei de talião) que se aplica de forma mecânica e coletiva, nesse sentido, os descendentes carregavam consigo as faltas cometidas pelos ascendentes.
Finalmente, Ost destaca a última voz representada pelas modalidades e poderes do próprio discurso, como se o acesso da cidade ao meta-nível da justiça se desse somente pela via da liberação da palavra (linguagem). Tal palavra frisa Ost, é enganadora ou impotente no Agamêmnon. Contudo, ela recupera sua ação e a veracidade no término das Eumênides. Mas esse processo evolutivo da palavra é paralelo ao processo evolutivo do próprio direito. E a justiça ao substituir a vindita, passará a invocar paulatinamente o predomínio da palavra racional, dialógica e argumentativa.
O que se observa de tudo isso é que apesar de aparentemente as mutações jurídicas ressoarem certa importância, é a palavra o tema fundamental na obra de Ésquilo. Por exemplo: na primeira peça, Agamêmnon, quando não existe ação, toda a tensão da peça se concentra nos rodeios de palavras, nos não-ditos, nos desvios de linguagem, no discurso confuso, dissimulado e falso. A linguagem é ambígua, silenciosa e incontrolável. Nas Coéforas, a palavra ganha força e verdade. Nas Eumênides, a persuasão triunfa. Argumentos racionais substituem as palavras mágicas e imprecativas do pré-direito. O novo modelo jurídico (justiça/direito) exige a evolução da linguagem. As palavras antes sobrecarregadas de emoção, agora são substituídas por palavras racionais e dialógicas.
Analisando-se, detalhadamente, a presença das referidas vozes em cada peça, verifica-se que na peça Agamêmnon todo o potencial dramático se concentra nos não-ditos, nos subtendidos e nos desvios da palavra, conforme destaca Ost:
“Transbordante de paixão contida, prestes a explodir, e cuja própria contenção aumenta ainda mais a violência potencial. Dez anos de espera e uma soma incalculável de crimes montaram uma máquina infernal cuja explosão iminente é pressentida por todos” (p. 113).
No que se refere ao tema jurídico, este é representado pela lei de talião. Este modelo de justiça se impõe como uma necessidade interior da história, estruturando a intriga sem surpresas. Na peça, há inúmeras alusões à vindita, muitas das vezes personificadas, conforme esclarece Ost, nas formas hediondas das Erínias, as Fúrias vingadoras.
O autor prossegue sua explanação ressaltando que nesta primeira peça não ocorre qualquer distinção entre justiça e vingança. Mas é o próprio termo grego dikè e seus derivados que exprimem as idéias de justiça, de vingança e de castigo. Portanto, nesta etapa da trilogia, os juízes são verdadeiros justiceiros. O talião é, pois, apresentado como lei social geral e implacável. Trata-se de um círculo vicioso, interminável, que se prolonga pelos descendentes, uns contra os outros, procurando fazer justiça com as próprias mãos.
A voz da culpabilidade ou responsabilidade se faz ouvir em contraponto ao tema da vindita. Prosseguindo com suas explanações, Ost destaca que sem um mínimo de imputação de uma responsabilidade, não se pode falar em julgamento. Na peça Agamêmnon discute-se a responsabilidade de dois crimes: o primeiro, no qual o próprio Agamêmnon mata a filha Ifigênia e o segundo, no qual Clitemnestra mata o marido Agamêmnon com a ajuda do amante, Egisto. E não menos relevante é a determinação das responsabilidades sobre o assassinato de Agamêmnon.
O tema político é outra voz destacada por Ost e que segundo ele é desenvolvida em menor grau no Agamêmnon. Nesta peça, Ésquilo diz o suficiente, mas sugere que “há algo de podre” no reino de Argos. Já a voz relativa ao tema teológico é semelhantemente ao tema político, ou seja, é fraca e não se faz ouvir plenamente. O tema teológico somente ganhará significância na última peça da trilogia, ou seja, nas Eumênides, quando haverá uma grande explosão de rivalidades entre os deuses subterrâneos e as novas divindades olímpicas, até que selam um acordo que reintegra a paz à cidade.
Já na peça as Coéforas, que conta a história do assassinato de Clitemnestra e seu amante, Egisto, o campo de visão é o futuro e longe de ser temido e o crime é desejado pelos personagens principais. A alteração do ponto de vista se exprime com clareza no coro. Este não é mais composto por anciãos, mas sim por prisioneiras, ou seja, cativas revoltadas.
Para atingir o ápice da peça, que é o matricídio praticado por Orestes, filho de Clitemnestra e Agamêmnon, Ost explica que se faz necessária uma longa preparação psicológica. Após uma série de imprecações, súplicas e juramentos, o espírito vingador do cadáver de Agamêmnon é despertado. Clitemnestra tem um pesadelo e para se ver livre da cólera do ex-marido, ela acredita que com libações em seu túmulo, poderá ter o sossego e satisfazer o espírito de Agamêmnon. Assim, ela envia as cativas ao túmulo do rei, no sentido de que por intermédio de libações rituais, acompanhadas de palavras propiciatórias, o espírito do ex-marido se dê por satisfeito e a deixe em paz.
Ost explica, que nesta segunda peça, não é difícil identificar as cinco “vozes” da composição contrapontística de Ésquilo. O tema jurídico ganha relevo com a reiteração quase obsessiva da lei do talião: Orestes triunfa ao defender a causa do pai, mas compromete-se ao cometer o matricídio.
O tema relativo à responsabilidade/culpabilidade é muito semelhante ao desenvolvido na primeira peça. Contudo, aqui se percebe a questão da responsabilidade no ato criminoso de Orestes que mata a mãe e o amante desta para vingar a morte do pai.
A palavra/linguagem ganha força em Coéforas. Cessa o clima de impotência e de fingimentos tão freqüentes em Agamêmnon. Não há mais palavras veladas e antífrases. As cativas possuem agora o poder de liberar a prece de Electra e dar um sentido às enganadoras libações de Clitemnestra.
A política é, conforme explica Ost, algo muito discreto nas Coéforas. Orestes ao insistir no desvio da ordem feminina, anuncia um tema que se revelará decisivo na terceira parte da trilogia e que vem tratar justamente, da ascensão da força masculina.
O tema teológico opera em segundo plano para explodir com vigor na última parte da trilogia. Contudo, nas Coéforas se destaca a disputa de interesses entre Apolo, que é o deus olímpico guardião da ordem masculina e paterna e, as Fúrias vingadoras, as guardiãs dos túmulos.
As Eumênides, a última peça da trilogia, é dedicada principalmente ao tema teológico. Nesta parte, Orestes nada mais é que um mero joguete entre forças e interesses rivais: de um lado os novos deuses versus os deuses antigos, representados pelas Erínias. As Erínias representam a opinião pública, o senso comum dos gregos. Mas haverá um ponto importante na peça em que ocorre uma mudança, uma transmutação: de Erínias para Eumênides. Tal mudança é acompanhada por outras mudanças simbólicas: de Argos para Delfos e depois, para Atenas. Esta última cidade representa o modelo das cidades boas e somente numa cidade modelo é que se poderia operar a transição da vingança para a justiça.
O ponto crucial da peça é quando Apolo indaga às Erínias os motivos pelos quais não exigiram o julgamento de Clitemnestra quando esta matou o marido. As Erínias respondem que a vítima não era do próprio sangue de Clitemnestra. Portanto, para as Erínias o vínculo genealógico prevalecia sobe o vínculo matrimonial. Daí Apolo introduz a prevalência de seu novo regime, o regime masculino, que deveria substituir a prevalência do feminino. As Erínias se defendem justificando a necessidade da lei de talião e dizendo que quando um mortal derrama seu próprio sangue, elas têm o dever de persegui-lo.
Com a entrada de Atena inicia-se o processo de Orestes, ato que pela primeira vez substituirá a vindita e a espada. Atena ouve as Erínias e após, Orestes. As Erínias insistem em finalizar o processo, dizendo que Orestes não pode jurar inocência, pois está claro que ele cometeu um crime e por isso deve ser punido. Atena se preocupa em instaurar o mundo das provas objetivas e das argumentações racionais e pede a Orestes que nomeie e faça valer seus meios de defesa. Ele, em sua primeira réplica, toma o cuidado de explicar novamente que recuperou o direito da palavra pública, uma vez que se purificou no templo de Delfos. Em seguida, Orestes assume a responsabilidade de seu gesto, não sem esclarecer que foi para pagar o assassinato de seu pai e que Apolo tomou parte nele, pois foi seu cúmplice.
A instituição do Tribunal do Areópago vem justamente para decidir um conflito que mistura desejos humanos e vontades divinas. O processo é claramente teológico, conforme explica Ost. Apolo argumenta que Orestes não é do mesmo sangue da mãe, mas apenas nutridora do germe nela semeado, de modo que quem engendra é o homem que a fecunda.
As Erínias ficam sem voz e Atena pode concluir o processo, pedindo aos juízes para votarem em conformidade com a consciência de cada um. Ela aproveita o ensejo para dizer que o Areópago foi instituído “para sempre” e pede que os cidadãos sejam tomados pelo respeito e temor às leis, afastando-se assim dos crimes e que eles se preservem tanto da anarquia quanto do despotismo.
Os jurados são convidados a depositar seus votos na urna e falando por último, a fim de não influenciar o júri, Atena anuncia que votará a favor de Orestes e que em caso da igualdade de votos, Orestes vence. Na dúvida, a vitória pertence ao mais fraco, ou seja, ao réu. As Erínias se sentem humilhadas com a derrota e anunciam catástrofes e calamidades que devem atingir a cidade. Atena então se vale do último recurso: a persuasão – o encanto da voz, a magia das palavras, a força que a palavra exerce sobre outrem. Mas será um empreendimento difícil, segundo ressalta Ost. Atena prefere não destruir as Erínias e as convida para que convivam com ela na cidade. Atena promete honrarias e por fim, elas acolhem a proposta da deusa.
Com o fim do talião, as Erínias perdem seu campo de atuação. Ao lado da justiça, as Erínias não desenvolveriam bem o seu papel, portanto nada mais restava do que se adaptarem ao novo modelo jurídico que acabava de ser instaurado. De vingadoras deveriam assumir o papel de benévolas – as Eumênides.
O que a Oréstia nos mostra é o caráter interdisciplinar do Direito com as Ciências Humanas, com ênfase na literatura, o que nos faz entender, como afirma Roberta Drehmer de Miranda (2011, p. 30), que o direito não vive sem a narração e que esta não vive sem o imaginário que a precede:
“Ost intenta, principalmente em Contar a Lei, retornar às verdadeiras fontes do direito, que, para “escândalo” de alguns, para surpresa de outros, e para encanto de muitos, encontra proximidade com a própria origem da poesia. Ost fala da “origem comum do direito e da poesia”4, quer dizer, a confluência existente entre o gênero lírico e o didático que influenciam, desde os clássicos gregos, a narrativa do direito e da justiça. O direito não vive sem uma narração; e a narração, não vive sem um lirismo e um imaginário que a precede.”
É o que também se verifica quando se relaciona o direito e a caricatura e o direito e a charge, como será visto no próximo item.
4. Direito, conhecimento, auditório e ironia: imagens da justiça
Na obra A ironia e a imagem do direito: a expressão da justiça na caricatura e na charge, Mônica Sette Lopes vem demonstrar que o direito está interligado a várias outras ciências do conhecimento, por isso ela afirma que “nada há mais interdisciplinar do que o direito” e que “o conhecimento do direito não se esgota nele, já que o caracteriza a intervenção em todas as áreas de interesse da vida humana porque alcança a polivalência dos conflitos” (LOPES, p. 210).
Para isso, a autora mostra a ironia como um recurso de retórica de formas múltiplas, que mostra clareza e equivocidade, além de espaços de ambigüidade na análise do cotidiano. De acordo com Mônica Sette Lopes, a ironia trata o direito a partir do ressalto da incongruência e da falência das expectativas formais.
Ironias como aquela que traduz o desconforto que vem do ato de julgar, que é incindível do ofício do juiz e como aquela que recobra da advocacia uma linha comezinha de crítica, ou seja, a possibilidade de usar argumentos em favor de quaisquer das partes, desde que se estabeleça o contrato e pagamento pelos serviços, são comuns.
Frases como a de Millôr Fernandes, citadas por Mônica Sette Lopes, como “se tua causa é justa, é melhor dar no pé”, “justiça – loteria togada” ou “a justiça, como todo mundo sabe, é a busca da verdade. Ao contrário da lei, que, como ninguém ignora, é o encobrimento da mentira”, demonstram que a incerteza ganha o centro do jogo argumentativo em sua apreciação sobre a justiça, além de mostrar a ineficiência dos tribunais, das leis e da própria justiça.
Trata-se, na verdade, de “perceber a imagem do direito pela imagem propriamente em sua acepção visual e muito especialmente por aquela que vem carregada de ironia na charge e na caricatura”, esclarece a autora (LOPES, p. 218).
De vários nomes citados por ela, o de Honoré-Victorien Daumier ganha destaque especial, tendo em vista que fez caricaturas de profissões, em especial, das profissões jurídicas. Ele se liberta do humor puro e simples e busca a expressão. E é considerado um dos grandes nomes durante a fundação da caricatura como matéria jornalística.
Daumier foi um caricaturista, chargista, pintor e ilustrador francês. Ele foi conhecido em seu tempo como o "Michelangelo da caricatura". Atualmente ele também é considerado um dos mestres da litografia e um dos pioneiros do naturalismo.
Suas primeiras litografias datam de 1820, quando Daumier estava empregado como ilustrador em diferentes centros gráficos da cidade. Sua caricatura Gargântua, que ridicularizava o rei Luís Filipe, custou-lhe seis meses de prisão em 1831. Privado da liberdade, o ilustrador matava o tempo retratando os presos. Já em liberdade, assinou um contrato com a revista La Caricature e mais tarde com a célebre Le Charivari.
São conhecidas mais de 4 000 litografias de Daumier. De fato, ele foi um dos litógrafos mais especializados. Nelas reproduziu uma visão crítica, às vezes irônica, às vezes direta e certeira, dos acontecimentos de sua época. Seu estilo é dinâmico e jovial.
Depois de dominar a técnica da litografia, Daumier trabalhou como ilustrador para publicidade e o mercado editorial, influenciado pelo estilo de Charlet. Ele desenvolveu a linguagem da charge e da caricatura, caracterizada pela crítica social e política.
5. Na saúde e na doença: a força da caricatura em Daumier
De acordo com Mônica Sette Lopes, uma forma de mostrar a força das caricaturas de Daumier está centrada na comparatividade das ideias de saúde com a de justiça e de doença com a de injustiça, onde o ressalto do desequilibrio e da destemperança são focos de intervenção na natureza das coisas. Neste caso, médicos e juízes são os artifícios, pois só têm lugar onde não há saúde e onde não há justiça, não há decisão que esgote absolutamente os papéis que os personagens-sujeitos desempenham, pois apenas somam circunstâncias e atraem conseqüências.
Nas caricaturas feitas por Daumier (Les Amis e La comédie humaine), Mônica Sette diz que nas duas caricaturas tanto o médico quanto o advogado-orador parecem falar para si e nenhum deles atina para a reação do destinatário. Na primeira o médico reporta-se ao paciente como se fora seu amigo. Mas as palavras em torno da amizade escondem um tratamento violento e doloroso que se seguirá em busca da saúde, não se explicando os porquês. E na segunda o advogado treina o uso da retórica diante de uma imagem de juiz composta de um chapéu e um pedaço de pau, para a qual ele se dirige como se fosse uma alta autoridade real.
Em outra caricatura analisada por Mônica Sette Lopes, Les Jeaux Jours de La Vie, Daumier mostra o médico examinando o paciente e que conclui que ele padece de febre amarela. Na figura o médico se regozija de haver diagnosticado a doença pela primeira vez. Já na figura quatro, Les Gens de Justice, a mensagem diz que o juiz de paz acaba de dar seu veredicto e que as partes se acertaram. Mas não é isso que se percebe da imagem. De costas para um juiz com aparência resignada, duas mulheres discutem e se olham com desprezo, demonstrando uma disposição que é totalmente diversa da idéia de conciliação.
Por sua vez, a figura intitulada Croquis Parisiens mostra a relação entre dois advogados cujos clientes litigam um com o outro. A postura deles é de impulsão para o conflito. O ar arrogante afasta a possibilidade de solução por outro meio qualquer. Já em outra caricatura, sem título, Daumier mostra o advogado gastando todos os seus recursos físicos e verbais de argumentação, mas não conseguindo manter acordados aqueles a quem se dirige. E na figura sete, intitulada novamente como Les Gens de Justice, ele ressalta o interesse escuso do advogado na abordagem de uma cliente, fomentando-se a imagem da distância entre forma e substância e do discurso para fins escusos.
Na figura oito, também sem título, um homem acompanha, com uma altivez forçada, uma mulher e seu filho, ambos cabisbaixos. Frustrada e sem rumo, pelo destino dado a seu processo, a cliente tem que ouvir o excesso que denota a pura e absurda retórica da eloquência inútil. A pompa do advogado contrasta com o sofrimento da parte (“A senhora perdeu seu processo mas experimentou o prazer de me ouvir sustentando”) (LOPES, p. 236/237).
Na caricatura Les Avocats et les Plaideurs, o personagem é o tempo, a temporalidade especial que percorre os fazeres da justiça. Já na figura Actualités percebe-se uma dança de mesuras entre os personagens, um incensando o outro, com raízes perfumadas e medicinais. Segundo Mônica Sette, não se pode concluir que a dança encerre uma sinceridade no relacionamento entre eles. A deferência recíproca pode ser artificial, mas é ela que se faz visível ao público. A figura onze “anuncia o advogado que não conseguiu provar a inocência do seu cliente. No entanto, ele acena para dias melhores: no próximo roubo ele espera ter mais sorte” (LOPES, p. 239).
O que se verifica é que há na caricatura uma face aberta para a interlocução e mesmo para a troca de papéis entre verdade-mentira, justiça-injustiça, a partir da noção de sorte ou azar. Não interessa o que aconteceu efetivamente, mas o sucesso no manejo dos instrumentos jurídicos puramente. Mônica Sette Lopes afirma que não há nada irreal nas cenas retratadas, mas que é por meio delas que se reelabora o âmbito das necessidades no campo da pesquisa da atuação do direito.
6. O direito na era da imagem: a charge jornalística de Angeli
De Daumier passa-se à charge jornalística contemporânea, especialmente Angeli, que tem publicações na Folha de São Paulo e na Internet, onde basta o exame delas, o acesso aos desenhos, para entender o teor da crítica e sua enorme importância, ressaltando-se o caricato numa situação relacionada com a lei ou com a justiça, num sentido mais amplo. O traço detalha aspectos da cena e os alarga para degradar a eminência ou a seriedade de uma circunstância cara à base conceitual do direito.
Arnaldo Angeli Filho é um dos mais conhecidos chargistas brasileiros e que vem desenvolvendo uma galeria de personagens famosos por seu humor anárquico e urbano, a exemplo do esquerdista anacrônico Meia Oito e Nanico, Rê Bordosa, Luke e Tantra, Wood & Stock, os Skrotinhos, as Skrotinhas, Mara Tara, Rhalah Rikota, Edi Campana etc. Ele mesmo também se tornou um personagem, estrelando de início as tiras "Angeli em crise". Outra versão caricata sua é o personagem Angel Villa de Los Três Amigos.
As figuras de Angeli que são analisadas por Mônica Sette Lopes tratam da justiça, especialmente da balança e da espada. Em uma das figuras a justiça caminha com um andador, o que não só mostra suas dificuldades em mover-se, mas também ocupa-lhe as mãos que deveriam estar livres para o uso da espada e da balança. Na outra a balança cai no chão e ao tentar pegá-la, com as dificuldades impostas pela venda dos olhos, a justiça agacha-se e deixa à mostra suas peças íntimas, desnudando o que não pode ser mostrado, o que mostra a reflexão sobre o estado em que a justiça se encontra, conforme afirma a autora (LOPES, p. 245).
As figuras O crime organizado (vê-se a assimilação de um padrão tradicional de organização do crime: o uso de uniforme e a identificação com crachá e foto), O fim do crime organizado (o paradoxo está entre a imagem da solução do problema e o que é nela representada, não tubarões, mas simples peixinhos de aquário), Os dois poderes do Brasil (ressalta o pluralismo das visões. O direito não tem penetração espontânea e por isto não se oficializa, não se efetiva), Segurança pública (a segurança pública exigiria, na versão dos afoitos, esse simples pisar e trucidar dos maus), Espetáculos em Cartaz (Juízes, delegados, procuradores podem se transformar em seres televisivos, visuais, em modelos da propaganda dos órgãos de imprensa? Aí está a crítica da figura 18).
As demais, O crime organizado, A banalização do crime e Cela comum cela especial, ressaltam, respectivamente, a frugalidade do crime, a concorrência entre seus agentes e a perda da dimensão de consistência para o próprio crime, onde a banalidade é o dado característico e a diversidade na compreensão do crime, a partir de fatores valorativos inerentes na sociedade.
Todas se referem, de acordo com Mônica Sette Lopes (p. 245), às leis penais e à execução da sanção penal, mostrando a impossibilidade de se fazer justiça com as próprias mãos, criando um centralismo que exige atuação intensa do Estado na condução do julgamento e na execução das sanções, quando houver condenação.
Já a figura intitulada O Pagador de Tributos vale-se da coincidência que normalmente se dá entre o prazo para a declaração do imposto de renda e a Semana Santa, para usar o arquétipo mais significativo do período para representar a sobrecarga tributária brasileira. E a figura Salário Mínimo toca no aspecto contundente que é a precariedade do nível de salário no Brasil e a distância que se instala quanto à distribuição de rendas.
O silêncio também caracteriza algumas das charges de Angeli, como se observa das figuras que tratam sobre o Brasil e a Revolução Digital (a figura 24) e as figuras 26 e 27, pois expõem fatores da modernidade das regulações e/ou dos projetos da atualidade: a revolução digital que alcança o direito, a previsibilidade de sua captação dos fluxos processuais, o movimento produtivo da cidade, a preservação da história pelo tombamento. E todos esses silêncios deságuam na prece feita na figura 25: O agradecimento a Deus é sincero, mas o que se volta para o intérprete é a certeza da insuficiência. Todas essas figuras estão disponíveis para consulta na internet.
O que se percebe é que a imagem, por si só, fala, não sendo necessária a utilização de palavras para se conseguir transmitir uma mensagem, o que nos leva a entender que o direito estará sempre acompanhado de imagens, como elucida Roberta Drehmer de Miranda (2011, p. 30):
“O direito e a justiça sempre são acompanhados de imagens. Símbolos. Caricaturas. Arquiteturas clássicas, por vezes gigantescas. Mesmo no século tecnológico-cibernético em que vivemos, a justiça sempre anda acompanhada da simbologia – às vezes personificada nos próprios atores do jogo jurídico, como o juiz de toga preta e o advogado acompanhado de sua pasta de couro.”
É preciso que se entenda que o direito é feito não só por palavras, mas, principalmente, por símbolos. Símbolos esses que muitas vezes valem mais do que as palavras, as quais não precisam ser ditas para serem passadas e compreendidas. É assim que se observa a ligação do direito com as artes, que exige, acima de tudo, a interpretação, como afirma Paulo Queiroz (http://pauloqueiroz.net/direito-e-arte/), que para ser boa é exigido talento e sensibilidade:
“Não se deve, pois, confundir lei e direito, assim como não se deve confundir partitura e música: a música é o que decorre da execução do músico; o direito é o que resulta da interpretação do juiz ou tribunal. O direito, como a música, não é a lei nem a partitura: o direito é interpretação. Algumas interpretações julgamos boas e aplaudimos, outras julgamos ruins e condenamos.”
Conforme esclarecem Germano Schwartz e Elaine Macedo (ver site: www.conpedi.org.br), não é difícil de apontar que Direito e Arte estão conectados e que o primeiro expoente dessa interação é o Law and Literature Movemente:
“Assim, concorda-se com Bagnall, que aponta algumas contribuições do Law and Literature para o estabelecimento da conexão do Direito e da Arte: (1) O movimento reconectou o Direito com a Arte; (2) Com isso, tornou credível o uso de métodos e conceitos artísticos na interpretação do Direito; (3) Conseqüentemente, metáforas e narrativas constituem-se em elementos aceitáveis na explicação de idéias e paradigmas jurídicos; (4) O ceticismo e o relativismo podem destruir o Direito assim como são malignos para a Arte.”
Portanto, cabe aos operadores do direito a tarefa de saber fazer a ligação entre o direito e as artes, seja na música, na literatura, na charge, na estética, na caricatura, na tragédia etc, utilizando-as de forma harmônica e sabendo fazer a interpretação correta a que cabe cada uma.
7. Considerações finais
A relação entre Direito e Arte não é facilmente percebida e nem difundida muito no Brasil. Assim, o mundo acadêmico e o profissional devem começar a reconhecer o ensino da arte aplicado ao direito. A Universidade de Columbia, por exemplo, possui desde 1975 um periódico trimestral – The Columbia Journal of Law & the Arts com temas abordando a relação entre Direito e Arte.
É o que já vem fazendo alguns estudiosos do direito, a exemplo de François Ost, que percebeu a aplicação do direito na tragédia, em especial, na Oréstia, onde ele enxerga a figura do juiz desde a sua gênese. A escolha da Oréstia de Ésquilo se deve pelo que o autor chama de invenção da justiça, então fundada nos deuses e realizada mediante a lei de talião, que aos poucos vai sendo transferida para o Tribunal, símbolo da democracia ateniense, o que dá lugar à deliberação humana e ao discurso jurídico.
Ost constata uma composição polifônica de cinco vozes presentes nas três peças da Oréstia: Agamêmnon, As Coéforas e As Eumênides, o que na verdade nada mais é do que temas abordados na referida da tragédia, como o jurídico (lei de talião), teológico, político, responsabilidade (culpabilidade) e linguagem (evolução da palavra), que ao se articularem constitui para o autor a “invenção da justiça”.
Na verdade, Ost mostra a existência de um diálogo interdisciplinar do direito com as demais disciplinas das ciências humanas, o que também é feito por Mônica Sette Lopes ao analisar a aplicação e a relação do direito com a caricatura de Daumier e a charge de Angeli, que demonstram a utilização dessas ferramentas para falar sobre direito, sobre justiça e injustiça, para denunciar etc.
Cada uma das imagens de Daumier analisadas pela autora encerra, pela ironia, a descrição do muito que há a fazer para que o direito retenha e contenha verdadeiramente o sentido da justiça, pois as manifestações da arte e da cultura que tratam de conflitos e soluções pelo direito podem ser comparadas a um “caleidoscópio”.
No que se refere às charges feitas por Angeli, Mônica Sette Lopes afirma que não há nada de irreal nas cenas retratadas por ele e que é por meio delas que se reelabora o âmbito das necessidades no campo da pesquisa da atuação do direito.
Mestre e Doutoranda em Ciências Jurídicas pela UFPB. Professora da UFPB e UNIPÊ
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