O Superior Tribunal de Justiça decidiu, este mês (HC 61.928-SP, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 4/9/2007), que a reparação do dano no crime de estelionato não é causa de extinção da punibilidade, mas apenas uma causa de diminuição de pena, tal como descrito no art. 16 do Código Penal (arrependimento posterior). Até aí, nenhuma novidade. Trata-se de simples aplicação da lei, que já é bem razoável.
Vejamos: sob uma perspectiva utilitarista, o Direito Penal visa a proteger os bens jurídicos de lesões ou ameaças de lesões. Quanto mais preservados esses bens estiverem, mais próximo de seu ideal estará o Direito Penal. É por isso que se prevê a desistência voluntária e o arrependimento eficaz (CP, art. 15); e o arrependimento posterior (art. 16).
Nesse último caso, reparado o dano ou restituída a coisa, antes do recebimento da denúncia ou da queixa, a pena será reduzida de um a dois terços. O objetivo de política criminal é nítido: dá-se um estímulo ao criminoso para que pague à vítima os prejuízos causados. Por isso, sua pena é reduzida. A punibilidade do crime não é extinta porque, assim, não haveria incentivo para que alguém deixasse de cometer o crime. Nesse sentido, se alguém furta um objeto e deixa de ser condenado porque o devolveu, seu risco é zero, e a lei não terá efeito dissuasório nenhum sobre os potenciais criminosos. É sempre preciso que eles experimentem um prejuízo maior do que o lucro que obteriam com o crime.
O que causa espanto nessa decisão é a tentativa da defesa de adotar, por analogia, a causa de exclusão de punibilidade dos crimes tributários. De acordo com o art. 9° da Lei 10.684/2003, o pagamento do tributo é causa de extinção da punibilidade. Ressaltamos que esse pagamento pode ser feito a qualquer tempo, mesmo depois de recebida a denúncia.
Isso significa que a sonegação de tributos tornou-se uma atividade ilícita que, em termos penais, tem risco zero. Caso o sonegador seja denunciado por crime tributário, basta pagar o tributo para se livrar da pena. Sendo o risco zero, o efeito intimidatório da norma também é zero. Alguém pode sonegar tributos indefinidamente sem maiores receios, pois, na improvável hipótese de ser denunciado, basta pagar a quantia devida. Salientamos: não há nenhum prejuízo na seara penal que decorra dessa atividade ilícita.
Tal causa de extinção da punibilidade é tão bizarra que consegue ferir, ao mesmo tempo, vários princípios do Direito Penal, como a moralidade, a eficiência e a vedação da prisão civil por dívidas. Nesse último ponto, a desvirtuação do caráter do Direito Penal é bastante nítida: o processo penal tornou-se um mero sucedâneo da ação de cobrança, em clara violação à Constituição.
O problema mais sério refere-se ao princípio da isonomia: enquanto a sonegação fiscal – que é um crime contra o patrimônio público – pode ter sua punibilidade extinta com o simples pagamento, crimes contra o patrimônio particular, como o furto e o estelionato, não têm o mesmo privilégio. Fica difícil imaginar que a lesão ao patrimônio particular deva ser tratada de forma mais rígida que a lesão ao patrimônio público, pela óbvia relevância deste.
Assim, o legislador conseguiu dividir nitidamente o Direito Penal de acordo com sua clientela: os sonegadores, pertencentes basicamente à classe média e alta, são tratados de maneira diversa dos “ladrões em geral”, que devem sempre responder por seus atos. A realidade do sistema penal brasileiro sempre foi assim; a diferença é que, agora, a lei a institucionalizou.
A decisão do STJ fere a lógica formal ao não aplicar a analogia a um caso em que a analogia seria perfeitamente admissível. Porém, obedece ao princípio da moralidade ao não estender uma norma espúria a outros casos. Pena, que, no Brasil, exigir-se um comportamento de acordo com a moral e a ética é muito mais fácil quando se trata das classes mais desprovidas de poder político ou econômico…
Procurador do banco Central em Brasília e professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista
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