Sumário: 1 Introdução – 2 A afetividade como argumento jurídico – 3 O embate das teses biologista e socioafetiva a partir da Súmula 301 do STJ – 4 Hipóteses do mundo fático – 5 Conclusões – 6 Referências.
1 Introdução
Considerando que no estágio atual do direito de família brasileiro o instituto da paternidade encontra-se diante de uma dicotomia conceitual e que isso reflete diretamente sobre a atribuição ou reconhecimento de paternidade de filhos extramatrimoniais (que não se encontram sob o pálio da presunção pater is est), duas correntes se digladiam nos tribunais: a teoria da afetividade e a do biologismo. A primeira tem como fundamento a afetividade humana, construída no dia-a-dia, nas relações cotidianas; a segunda tem como esteio a herança genética, a ser facilmente comprovada pelo exame de DNA.
Nessa travessia do novo milênio, em que se busca a nova configuração familiar (FACHIN, 2001, p. 9-13), a palavra de ordem é flexibilização. Flexibilizar a norma, permitir e ampliar a interpretação, preencher nos casos concretos o conteúdo de normas abertas e princípios norteadores. Não se pode tratar com rigorismos, com regras fechadas ou generalizações o que, por natureza, não se pode tipificar, sobretudo quando ainda não se está assentado em certezas sequer relativas. A família contemporânea e tudo o que está diretamente ligado a ela encontra-se no meio de um processo de mudanças; justamente por isso pode-se perceber o grau de incertezas, de experimentos, de desejos de estabilização. Contudo, não se pode dizer ainda até quando esse estágio de coisas poderá durar, pois as mudanças muitas vezes implicam readaptações culturais, o que leva certo tempo para ser absorvido pela sociedade e pelo Estado como um todo.
No caso da afetividade, por exemplo, a sociedade vem absorvendo cada vez mais a suplantação da consangüinidade pelo afeto nas relações familiares, em virtude de situações que decorrem do cotidiano das pessoas e que as afetam diretamente, porém o Estado, sobretudo quanto aos Poderes Legislativo e Judiciário, ainda não conseguiu acompanhar os passos dessas mudanças, o que fica evidente diante da ambigüidade do Código Civil de 2002 e da impropriedade da Súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça.
2 A afetividade como argumento jurídico
É possível invocar a afetividade no direito de filiação em duas perspectivas: como fundamento para o estabelecimento de vínculos paterno-filiais e como forma de impedir o rompimento destes mesmos vínculos, impossibilitando a sua desconstituição. Nas duas situações, o que se tem é a confirmação formal de uma realidade fática, através do reconhecimento formal de uma situação já existente, mas ainda não juridicizada, seja para a manutenção de uma situação já existente e juridicizada.
Embora o Código Civil de 2002 possa parecer ambíguo, já que não abandona o uso das presunções e ainda as alia à vinculação biológica, como nas hipóteses de presunção de paternidade por inseminação artificial homóloga, não deixa de ser referido como inclusivo da paternidade ampla e do princípio da afetividade (LOBO, 2006, p. 3), decorrentes dos arts. 1.593, que se refere ao parentesco natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem; 1.596, que transcreve a regra da igualdade entre os filhos, presente na Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, § 6º; 1.605, que consagra a posse do estado de filiação, através de presunções veementes resultantes de fatos certos, aqui exemplificadas pelo autor como os filhos de criação e a adoção à brasileira (aquela que não observou os trâmites legais); e 1.614, que possibilita o filho reconhecido rejeitar esse reconhecimento, seja o pai biológico ou socioafetivo, desde que não tenha havido ainda o registro público.
Diante disso, não se pode mais falar em paternidade exclusivamente biológica como presunção de paternidade legítima, devendo-se observar que os critérios para o reconhecimento de paternidade plena devem levar em conta primordialmente a afetividade.
Decisões judiciais isoladas nesse sentido já podem ser vistas no País, como a proferida pelo Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, José Ataíde Siqueira Trindade, que decidiu pelo reconhecimento da paternidade e maternidade socioafetivas, em decorrência de situação fática (filho de criação), mesmo possuindo o filho pais biológicos referidos em registro civil. Ao argumento de que o pedido, nesta hipótese, não é juridicamente impossível, por se tratar de regularização de verdadeira filiação, por estar estabelecida no terreno da afetividade, tendência que o julgador esclarece decorrer do direito internacional, houve o afastamento da tese biologista e a primazia da socioafetividade (Apelação Cível Nº 70010408508, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, julgado em 30/12/2004). No mesmo sentido, decidiu a Desembargadora Maria Berenice Dias, ao determinar o prosseguimento de ação negatória de paternidade cumulada com nulidade de registro de nascimento, para permitir a investigação da existência de socioafetividade, já que o pai, autor do feito, falecera no curso deste, e o recurso visava à regularização de legitimidade de parte. Neste caso, o pai ingressara com a desconstituição do vínculo de parentesco, após descobrir que o seu filho não fora fruto de uma inseminação artificial heteróloga consentida por ele próprio, mas sim de uma relação extraconjugal de sua esposa, motivo que fora alegado para fundamentar a negatória (Apelação Cível Nº 70011878899, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, julgado em 14/09/2005). Ainda, em direção semelhante, o Desembargador Antônio Eduardo Duarte, equiparou a posse de estado de filho à adoção, sob o argumento de que o reconhecimento voluntário e consciente, mesmo diante das dúvidas acerca da paternidade, torna o arrependimento inviável, a despeito da comprovada exclusão de paternidade biológica por exame de DNA (Apelação Cível nº 2005.001.40278, TJRJ, Terceira Câmara Cível, julgado em 04.04.2006).
Percebe-se, no segundo caso, que o pai registrara a criança como sua filha e como tal a criara, vindo, após alguns anos, vir a descobrir que a mesma não era resultado de inseminação artificial heteróloga por ele autorizada, mas de concepção natural, entre sua esposa e terceiro. Tomando conhecimento da verdade, o pai ingressara com Ação Negatória de Paternidade, vindo a falecer no curso da mesma, pelo que fora substituído pelos seus irmãos. Claro está que se trata de uma paternidade socioafetiva, até mesmo porque na mente do pai se tratava de uma filiação decorrente de inseminação artificial heteróloga, embora por ele autorizada. Assim, não se pôde desconstituir o vínculo de filiação estabelecido, com base apenas na questão da infidelidade da esposa, pois a relação paterno-filial já constituída teria o condão de afastar qualquer argumento contrário ao princípio da afetividade, justamente o ponto que foi utilizado como fundamento para o prosseguimento do feito. No último julgado acima transcrito, apesar da ausência da expressão socioafetividade, é clara a opção por esta tese, quando o julgador reconhece que, apesar da desvinculação biológica efetivamente comprovada pelo teste de DNA, a paternidade já estabelecida não poderia ser desconstituída por esse motivo.
Esse é também o pensamento de Paulo Lobo:
Toda vez que um estado de filiação estiver constituído na convivência familiar duradoura, com a decorrente paternidade socioafetiva consolidada, esta não poderá ser impugnada nem contraditada. A investigação de paternidade só é cabível quando não houver paternidade, nunca para desfazê-la (LOBO, 2006, p. 3).
É de se observar, porém, que no primeiro caso retro-mencionado, a decisão judicial foi mais além, possibilitando a discussão jurídica de paternidade socioafetiva, inclusive nos casos de pais biológicos referidos no registro de nascimento, o que só vem demonstrar como a doutrina, a jurisprudência e – com muito menos razão, a legislação –, ainda não encontraram um discurso único na matéria, sobretudo diante de alguns julgados recentes que ainda privilegiam a verdade biológica, como a proferida pelo Desembargador Antônio Carlos Stangler Pereira, que declarou a verdade biológica sobre a verdade socioafetiva, ao argumento de que o reconhecimento de uma filiação, que não corresponde à verdade biológica, poderá ser impugnado por falsidade material ou ideológica, sobretudo nos dias de hoje, diante do progresso da ciência, em relação à verificação de descendência biológica pelo exame de DNA e, ainda, que a paternidade socioafetiva só encontra compasso quando a afetividade provém de ambos os litigantes, estando ligada e atrelada ao conceito de reciprocidade de sentimento e afeto (Apelação Cível Nº 70007685290, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, julgado em 15/04/2004). No caso, o dado interessante é a antinomia entre afetividade e litigância, não se podendo estabelecer uma vinculação necessária entre a afetividade durante a fase processual e a história dos ora litigantes, devendo o magistrado estar atento a essas situações, pois de fato dificilmente se poderá encontrar afeto em pessoas que se encontram em lados opostos pela relação processual que se impõe. Não obstante isso, já se decidiu que a verdade biológica deve se sobrepor à verdade socioafetiva, quando excluída a paternidade biológica pelo exame de DNA, ao argumento de que a paternidade biológica há de ser respeitada, não importando outras conotações (Acórdão nº 2.230, Ação Cautelar Inominada nº 01.001782-8, Câmara Cível, Relator originário Desembargador Ciro Facundo, Relator designado Desembargador Eliezer Scherrer, Julgado em 24.02.2003).
3 O embate das teses biologista e socioafetiva a partir da Súmula 301 do STJ
Um dado interessante que se pode perceber, a partir da jurisprudência, e que já fora observado por Paulo Lobo, é a constatação do estado de coisas, anteriormente à Súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça, no que se refere à primazia ou exclusividade da origem genética para determinar a paternidade, pois até a edição da Súmula 301, do Superior Tribunal de Justiça, despontava a socioafetividade como paradigma das relações paterno-filiais, em decorrência inicialmente da Constituição Federal de 1988 e depois do Código Civil de 2002. Mas, como dito, até a Súmula 301. A partir da presunção de paternidade sumulada, houve um retrocesso nesse estado de coisas, como se infere da decisão proferida pelo Desembargador Paulo Furtado, anteriormente à Súmula, que considerou prescindível a prova pericial do exame de DNA, diante da suficiência da prova testemunhal (Apelação Cível nº 29.669-6/01, Quarta Câmara Cível, TJBA, Relator Desembargador Paulo Furtado)[1], além de outros julgados, que demonstram como vinha decidindo os juízes nessa matéria. Após a edição da súmula, passou-se a considerar o teste de DNA imprescindível, até mesmo para se afastar a ouvida de testemunha, por entender que a prova já estava completa e suficiente. Assim, a prova testemunhal deixou de ser suficiente para o convencimento do juiz, pois, diante do poder discricionário a ele conferido, assiste-lhe a faculdade de ouvir ou não as testemunhas e na quantidade que ele entender suficiente para o seu convencimento. Nesse sentido, “as testemunhas darão ao julgador o valor que merecem de acordo com as circunstâncias da causa, em seu livre convencimento” e, se não há indícios que coloquem em dúvida o resultado científico, nada há que se contraponha à certeza do resultado do exame pericial de pesquisa de impressões digitais de DNA (Apelação Cível nº 36.735-8/2004, TJBA, Primeira Câmara Cível, relator Desembargador Raimundo Antônio de Queiroz). Por fim, em perfilhação clara à Súmula 301, a presunção de paternidade por ausência injustificada ao exame de DNA vem sendo largamente utilizada, ao argumento de que a negativa na realização do exame, caracterizada pelo não comparecimento na data livre e antecipadamente fixada e pelas esquivas às intimações com o fito de remarcá-lo, apesar de intimado o advogado, que também não compareceu, traz consigo a presunção de veracidade da paternidade contestada, situação que é corroborada pelo depoimento pessoal da parte, a confessar o relacionamento íntimo mantido com a mãe do investigando (Apelação Cível nº 34.869-3/2002, TJBA, Quarta Câmara Cível, Relator Desembargador Paulo Furtado)[2].
Nos casos apresentados, percebe-se claramente a mudança de pensamento do julgador, a partir das novas diretrizes apontadas pela Súmula 301, no que se refere à recusa na submissão ao exame de DNA, sendo que na primeira situação o mesmo magistrado considerava desnecessária a prova pericial, quando comprovada a paternidade por outros meios; após o advento do DNA, sobretudo após a edição da Súmula, o conjunto probatório nos autos só restaria completo se realizado o teste sangüíneo ou reconhecida a presunção pela não realização da perícia técnica. A afirmativa de que “inexistem argumentos científicos capazes de se contraporem à certeza do resultado do exame pericial de pesquisa de impressões digitais de DNA” (Apelação Cível nº 36.735-8/2004, TJBA, Primeira Câmara Cível, Relator Desembargador Raimundo Antônio de Queiroz), só tem sentido para a tese biologista, de que a paternidade necessariamente se confunde sempre com o vínculo biológico. Nesse sentido, não se poderia falar em socioafetividade e com isso, estariam afastadas as hipóteses de paternidade decorrente da adoção, da inseminação artificial heteróloga autorizada e da posse de estado de filiação.
Em que pesem as críticas ao determinismo biológico, é possível compreender o motivo da edição da indigitada Súmula em confronto com determinado momento histórico; não se sustenta, porém, a sua manutenção hoje, diante dos debates doutrinários – e que vêm timidamente influenciando a jurisprudência, que passa a se dividir, para corrigir os equívocos trazidos pelo instrumento normativo 301 do Superior Tribunal de Justiça, justamente diante da inutilidade da súmula, “equivocada em seus fundamentos e violadora dos princípios constitucionais” (LOBO, 2006, p. 3).
4 Hipóteses do mundo fático
Um sem-número de situações pode ocorrer no cotidiano e, preparado ou não, o juiz deve oferecer uma resposta. Dentre tantas situações que podem vir a existir, é possível imaginar algumas, como as que se seguem: a) investigação de paternidade, para constituir vínculo de filiação, sem que o investigante tenha já constituído qualquer tipo de estado de filiação, com o investigado ou com terceiro; b) investigação de paternidade, para constituir vínculo de filiação com o investigado, sob o fundamento do biologismo, tendo o investigante já constituído estado de filiação socioafetiva com terceiro; c) investigação de paternidade socioafetiva, quando o investigante tenha sido registrado por pai biológico sem que tenha o investigante mantido com este estado de filiação; d) negativa de paternidade, quando já tenha sido constituído estado de filiação; e) negativa de paternidade, sem que tenha havido estado de filiação; f) reconhecimento de paternidade socioafetiva.
Talvez o direito vigente não seja tão justo em sua concretização ao ser aplicado nos casos acima, mesmo assim o juiz deve oferecer uma resposta. Atento à sua responsabilidade como “agente transformador” (DIAS, 2002, p. 12) e agindo com a ética do cuidado, sempre buscando a realização do que lhe parece mais adequado para cada caso, o juiz tem à sua disposição outras possibilidades, além da letra pura da lei. Ele tem os princípios.
Assim, no primeiro caso (letra “a”), tratando-se daquelas situações em que a pessoa tenha apenas o nome da mãe no registro público e não tenha sido “adotada” afetivamente por terceiro, normalmente um padrasto ou figura similar, a doutrina vem apontando a imposição do vínculo biológico como solução patrimonial, uma vez que o filho não pode ficar em estado de abandono material, quando a mãe não possa, sozinha, suprir todas as necessidades da criança. É o direito ao pai, referido por Giselda Hironaka como um direito de personalidade de conteúdo plural, que se compõe de múltiplos sub-direitos, faculdades ou faces, escalonados em graduações distintas, podendo, por isso mesmo, ser exercido pelo seu titular por partes, optando por um interesse em detrimento dos demais, em respeito ao melhor interesse da criança (com destaque em especial, referido pela autora, para as situações de filiação incestuosa), e limitando a extensão do campo de incidência do exercício da paternidade (HIRONAKA, 2000, p. 6).
Igual solução pode ser encontrada em autores franceses, como Michel Dagot, Pierre Spiteri e Pierre Raynaud (apud FACHIN, 1996, p. 38), que se referem à ação para fins de subsídios[3], movida pelo filho biológico sem pai registral, que não implica em reconhecimento de paternidade, pois não se trata de investigação de paternidade. Não se trata, nessa hipótese, de provar ou pretender a paternidade, mas de estabelecer a medida de sua responsabilidade. Nessa mesma linha de pensamento, Paulo Lobo resolve a questão da pretensão patrimonial no âmbito obrigacional, considerando razoável atribuir ao “filho sem pai” um crédito decorrente do dano oriundo do inadimplemento dos deveres impostos pela paternidade responsável, exemplificados pelo autor como dever de assegurar educação, assistência moral, sustento, convivência familiar, sem olvidar, ainda, com absoluta prioridade, do direito à vida, à saúde, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, impedindo por outro lado toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, deveres estes decorrentes do art. 227 da Constituição Federal de 1988. O crédito referido por Paulo Lobo equivaleria a uma quota hereditária, se o filho herdeiro fosse (LOBO, 2006, p.7-8).
No segundo caso (letra “b”), se o investigante propõe ação de investigação contra pai biológico, já tendo sido registrado por pai socioafetivo, não haveria nenhuma possibilidade de se desconstituir vínculo já devidamente construído através do estado de filiação. Assim, tal pedido há de ser considerado juridicamente impossível, pois a adoção é irrevogável, no sistema jurídico brasileiro, como já visto no item 2.3, do Capítulo 4. Porém, na hipótese do filho socioafetivo desejar conhecer a sua origem genética, cujo direito é de personalidade (LOBO, 2003, p. 151), descabe a ação de investigação de paternidade, para fins de determinação de paternidade, mas tão-somente para conhecimento de identidade genética. O termo mais correto seria ação de conhecimento de identidade genética, de rito ordinário, com ampla produção de provas, primordialmente o teste de DNA, este sim, o mais apropriado para legitimar a procedência do pedido, pois de fato se trata de declaração de vínculo genético entre as partes, que não induz paternidade (LOBO, 2003, p. 153). Assim, são duas as situações que devem ser claramente separadas: o direito à paternidade é direito de família, realiza-se judicialmente através da investigação de paternidade e se baseia na socioafetividade, que pode ser oriunda da filiação biológica ou não (adoção, inseminação artificial heteróloga, posse de estado de filiação); outro é o direito à identidade genética, que deve ser esclarecido em ação de investigação de vínculo genético, limita-se ao direito de personalidade em conhecer a sua origem genética fazendo parte, portanto, da esfera da identidade do indivíduo, sem, no entanto, gerar vínculo paterno-filial e pode, ainda, originar um direito de responsabilidade civil em face do genitor irresponsável.
Na terceira hipótese (letra “c”), o investigante busca a determinação de vínculo paterno-filial com pai socioafetivo, embora já registrado por pai biológico, sem que com este tenha constituído estado de filiação, utilizando a tese da socioafetividade sobre o biologismo. Esse parece ser o caso típico do embate entre as duas teses. É preciso que se tenha presente que o estado ideal de coisas é a reunião, dentro de uma mesma relação paterno-filial, das duas perspectivas, quais sejam: a origem biológica e a afetividade. Na esteira do pensamento desenvolvido por Paulo Lobo de que nem toda paternidade socioafetiva resulta da consangüinidade, o direito à igualdade de paternidade a ser exercida nos casos de adoção, de inseminação artificial heteróloga autorizada e de posse de estado está assegurado, pois, nesses casos a filiação é inviolável e, como tal, não poderia ser desfeito por decisão judicial, ressalvada a hipótese de perda do poder familiar, advertida pelo mesmo autor, que complementa: “a paternidade socioafetiva decorrente da posse de estado de filiação não pode ser contraditada” (LOBO, 2006, p. 8). É possível desenvolver o raciocínio em igual sentido, para afirmar que ao julgador não é lícito desconhecer a posse de estado mesmo que exista um pai registral biológico, afastando na hipótese da letra “c” o pai biológico e anulando o registro civil, para declarar a verdade real da socioafetividade.
Na quarta situação (letra “d”), em que o pai, na dúvida quanto à origem de seu filho socioafetivo e, até então biológico, ingressa com ação negativa de paternidade para desconstituir vínculo paterno-filial, a contradição à posse de estado de filiação já consagrada desautoriza a anulação do registro civil, pela autoridade judiciária, pois deve prevalecer no caso a continuidade da relação de família que já estava estabelecida. A opção pela socioafetividade deve levar em conta a posse de estado já constituída, sendo certo que, embora na prática possa levar a situações difíceis entre as partes, deve-se evitar um mal maior, retirando do filho o único pai que até então aquele conhecia. Outro dado a ser sopesado diz respeito à afetividade como princípio, pois nesta condição a afetividade “é dotada de força normativa, impondo deveres e conseqüências por seu descumprimento. Por isso, não se confunde com o afeto como simples fato anímico e psicológico” (LOBO, 2006, p. 8), afastando a insegurança que tal princípio viria a causar, se a sua aplicação tivesse a mesma ratio que nas relações matrimoniais em geral, em que a sociedade só tem existência enquanto permanecer nas partes o affectus que os uniu.
Na quinta hipótese (letra “e”), em que o pai apontado pelo registro público resolve negar a paternidade biológica, sem ter havido a posse de estado de filiação, duas situações devem ser observadas preliminarmente: o direito do filho ao pai e o direito do filho ao pai socioafetivo. Isto significa dizer que, na ausência da posse de estado em relação ao autor da negatória, por si só não autorizaria a anulação do registro, diante do direito do filho a um pai, mesmo que limitado no exercício do conteúdo múltiplo que preenche o conceito de paternidade, como já visto e referido aqui em Giselda Hironaka (2000, p. 6). De outra sorte, tivesse o filho constituído posse de estado de filiação com terceiro, a negatória teria desfecho diferente, pois o mesmo direito que assiste ao filho em desconstituir paternidade meramente biológica (sem posse de estado) para privilegiar paternidade socioafetiva regularmente constituída, assiste também ao genitor que não constituiu relação paterno-filial com filho biológico, que mantém posse de estado de filiação em relação à terceiro.
No sexto e último caso (letra “f”), em que o filho, na posse de estado, vem a requerer a investigação de paternidade socioafetiva, esta deve ser reconhecida, em razão do afastamento do biologismo exclusivo, da impossibilidade de contraditar posse de estado regularmente constituída, do reconhecimento da continuidade das relações de família, da adoção da afetividade como princípio a impor deveres e conseqüências pelo seu descumprimento. De fato, a solução mais adequada para o caso é o reconhecimento da vinculação jurídica de paternidade, estabelecida sobre a socioafetividade e constituída na posse de estado de filiação.
5 Conclusões
Sabe-se que a dinâmica das relações interpessoais humanas vem acompanhando as mudanças impostas pelo modelo sócio-econômico do capitalismo no mundo ocidental, razão porque toda e qualquer pretensão de generalidade cai por terra. O recurso às normas e princípios de conteúdos mais gerais e abertos, que possibilitam o preenchimento segundo o caso concreto, é ainda a melhor tentativa para a solução das contendas, especialmente em direito de família, pois como visto, a aplicação da estrita legalidade, pode vir a autorizar ainda mais abandonos de filhos, estes os mais prejudicados, pois muitas vezes nunca tiveram e nunca vão ter nenhum tipo de pai.
Sem perder de vista o fim último do direito, que é o de promover a justiça, ao se utilizar o princípio da afetividade como argumento jurídico, torna-se solução mais equilibrada no reconhecimento ou estabelecimento de vínculos paterno-filiais não oriundos de vinculação biológica, como nas hipóteses de investigação de paternidade, para constituir vínculo de filiação, sem que o investigante tenha já constituído qualquer tipo de estado de filiação, com o investigado ou com terceiro; investigação de paternidade, para constituir vínculo de filiação com o investigado, sob o fundamento do biologismo, tendo o investigante já constituído estado de filiação socioafetiva com terceiro; investigação de paternidade socioafetiva, quando o investigante tenha sido registrado por pai biológico sem que tenha o investigante mantido com este estado de filiação; negativa de paternidade, quando já tenha sido constituído estado de filiação; negativa de paternidade, sem que tenha havido posse de estado de filho; reconhecimento de paternidade socioafetiva, entre outras.
Nesse sentido, conclui-se que a paternidade que se identifica hoje é plena quando conjuga os critérios biológico e afetivo, porém, diante da impossibilidade dessa conjugação, deve-se privilegiar a socioafetividade, sobretudo nos conflitos de paternidade meramente biológica e paternidade afetiva já constituída, pois a tese biologista adotada isoladamente, ou seja, sem a associação necessária à socioafetividade para a construção dos laços paterno-filiais, não se presta ao direito: a uma, porque não induz à paternidade responsável, haja vista o elevado número de crianças sem a indicação do nome do pai em seus registros de nascimento; a duas, porque afasta a socioafetividade nas situações em que haja rejeição paterna exclusivamente biológica, uma vez que estaria autorizada a desconstrução do vínculo socioafetivo em função do vínculo biológico com terceiro; a três, porque, nessas hipóteses, estaria o direito colaborando ainda mais com a elevação dos números de filhos sem pai no país, o que, sob hipótese alguma, poderia ser tolerado pelo sistema jurídico brasileiro. Por fim, conclui-se que a adoção da tese biologista representa um verdadeiro retrocesso ao moderno direito de família em vigor no Brasil.
Advogada. Professora Universitária das Faculdades Damas e Maurício de Nassau/PE. Especialista e Mestre em Direito Civil/UFPE
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