Sumário: 1. Breves considerações sobre o crime militar. 2. Os artigos 302 e 303 do CTB; 3. Os artigos 206 e 210 do COM; 4. Precedentes jurisprudenciais; 5. Conflito aparente de normas. 6. Considerações finais.
1. Breves considerações sobre o crime militar
O Direito Penal Militar, sistematicamente, vem sendo desprezado pela imensa maioria dos doutrinadores pátrios, os quais optam por se debruçar sobre outros campos jurídicos. As instituições de ensino superior não buscam implementar em suas grades curriculares o ensino do Direito Castrense, razão pela qual podemos afirmar que a imensa maioria dos bacharéis não sabe diferenciar o crime militar do crime comum.
Não é objetivo deste estudo estancar o assunto, que é por demais controverso e divide a opinião dos doutos. Assim, iniciamos afirmando que os crimes militares são aqueles definidos em lei, adotando-se, portanto, o critério ratione legis, conforme se depreende da leitura do inciso LXI do artigo 5º, artigo 124 e § 4º do artigo 125, todos da Carta Magna.
Da análise dos dispositivos constitucionais acima citados depreende-se, ipso facto, a existência de crimes propriamente militares e, em contraposição, de crimes impropriamente militares. Destarte, crimes propriamente militares são aqueles cuja ação penal somente pode ser intentada contra militares, tendo em vista a sua situação funcional, ou seja, exige uma qualidade pessoal do agente, abarcando os crimes que não possuam igual definição na lei penal comum, tais como a Deserção, a Embriaguez em Serviço e a Violência contra Superior.
O critério acima utilizado se deve, principalmente, em virtude da existência de delitos militares que não possuem igual definição na lei penal comum e que são cometidos por civis, mormente os capitulados no Capítulo I do Título III (Dos Crimes contra o Serviço Militar e o Dever Militar), daí não se poder afirmar que crimes propriamente militares são todos aqueles que não possuam igual definição na legislação comum, como alguns conceituam, uma vez que os delitos acima mencionados não encontram definição no Código Penal e são cometidos por civis, tratando-se, por óbvio, de crimes impropriamente militares.
Os crimes impropriamente militares, ou acidentalmente militares, por sua vez, podem ser cometidos pelos militares e, em situações excepcionais, também por civis, abrangendo os crimes definidos de modo diverso ou com igual definição na legislação penal comum, como por exemplo, o roubo, o furto, o estelionato e a insubmissão.
Porém, não basta que ocorra a subsunção do fato à norma típica, uma vez que os crimes militares apresentam tipicidade indireta, ou seja, há necessidade de se complementar as normas da parte especial com algumas das situações elencadas no artigo 9º do CPM. Diante da impossibilidade de julgamento de civis pela Justiça Militar Estadual, deve-se igualmente verificar se a Justiça Militar é competente para o julgamento do delito, uma vez que, não sendo esta competente para tal julgamento, o fato, encontrando subsunção em alguma norma penal comum, será de competência da jurisdição comum, estadual ou federal.
2. Os artigos 302 e 303 do CTB
Com o advento da Lei nº 9.503, de 23.09.1997, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, houve uma majoração da pena dos delitos cometidos na direção de veículos automotores, além da criminalização de condutas que antes se cingiam tão somente ao campo administrativo. Não se pretende aqui analisar qual a intenção do legislador e nem os seus acertos e desacertos, visto que a tecnicidade jurídica não lhe é totalmente afeta.
Para o eminente jurista Damásio Evangelista de Jesus o crime automobilístico “é toda infração penal oriunda de veículo motorizado, na sua função comum de meio de locomoção e transporte, quer de carga como de pessoas”[1].
A figura típica do homicídio culposo é descrita no artigo 302 do CTB, transcrita, ipsis literis, “praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor”, ou seja, o agente está trafegando com um veículo automotor e, em decorrência de um acidente de trânsito, culposamente vem a causar a morte de uma terceira pessoa, usuária da via ou não, sujeitando-o a uma pena de detenção de 02 a 04 anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor, elencando ainda diversas causas de aumento de pena.
A lesão corporal culposa, por sua vez, é descrita no artigo 303 do CTB, transcrita, ipsis literis, “praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor”, ou seja, o agente está trafegando com um veículo automotor e, em decorrência de um acidente de trânsito, culposamente vem a causar lesão corporal em uma terceira pessoa, usuária da via ou não, sujeitando-o a uma pena de detenção de 06 meses a 02 anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor, exasperadas se concorrerem as situações previstas no § único do artigo 302.
Em interpretação autêntica fornecida pelo CTB, veículo automotor é “todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que não circulam sobre trilhos (ônibus elétrico)”[2].
Impossível, assim, excluir da referida definição os veículos bélicos ou as viaturas pertencentes às Policiais Militares, uma vez que, onde o legislador não diferenciou, não cabe ao intérprete fazê-lo, aliado ao fato de que, em relação aos primeiros, apenas isentou-os do registro e do licenciamento.
3. Os artigos 206 e 210 do CPM
O homicídio culposo está previsto no CPM em seu artigo 206, sujeitando o agente a uma pena de detenção de 01 a 04 anos, elencando como causas de aumento de pena a inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar socorro à vítima.
O artigo 210 do CPM traz a figura típica da lesão corporal culposa, assim entendida como a ação de ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem culposamente, aplicando ao agente a pena de 02 meses a 01 ano, agravada em virtude das mesmas circunstâncias anteriormente citadas.
Os delitos de homicídio culposo e lesão corporal culposa são crimes impropriamente militares, uma vez que apresentam igual definição na lei penal comum, podendo ser cometidos por militares e, em situações excepcionais, por civis.
Assim, apesar de expressamente previsto na legislação penal comum, ocorrendo a subsunção do fato a algum dos delitos citados e às situações previstas no artigo 9º do CPM, em razão do princípio da especialidade, referido delito será considerado como crime militar. Podemos citar como exemplo desta situação a conduta de um militar em serviço ativo que, durante o seu serviço, dispare acidentalmente a arma de fogo que porte e atinja outro militar ou um civil.
4. Precedentes jurisprudenciais
O Superior Tribunal de Justiça, no exercício da competência que lhe confere a alínea “d” do artigo 105 da Carta Magna, já teve a oportunidade de ofertar as seguintes súmulas:
Súmula 06: “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar o delito decorrente de acidente de trânsito envolvendo viatura da Polícia Militar, salvo se autor e vítima forem policiais militares em situação de atividade”.
Súmula 53: “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra as instituições militares estaduais”.
Súmula 75: “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar o policial militar por crime de promover ou facilitar a fuga de preso de Estabelecimento Penal”.
Súmula 78: “Compete à Justiça Militar processar e julgar policial de corporação estadual, ainda que o crime tenha sido praticado em outra unidade federativa”.
Súmula 90: “Compete à Justiça Militar processar e julgar o policial militar pela prática de crime militar, e à Comum pela prática do crime comum simultâneo àquele”.
O insígne mestre José da Silva Loureiro Neto, em sua obra Processo Penal Militar[3], elenca ainda as seguintes decisões:
Acidente de trânsito entre veículo da Força Pública paulista, dirigido por Policial Militar e outro veículo de propriedade privada – Competência da Justiça Comum.
– Entendeu a 1ª Turma do STF que é competente a Justiça Comum Estadual na seguinte hipótese: “Acidente de trânsito entre um automóvel da Força Pública paulista, dirigido por policial militar, e outro veículo de propriedade privada, no qual trafegavam duas pessoas que, em conseqüência, sofreram lesões corporais. Ausência na imputação de referência a que o acusado, no momento do fato, exercesse serviço de policiamento.” (RHC 60.628-8-SP – Rel. Min. Soares Munõz j. 15-4-83 – DJU, 13 maio 1983, p. 6.499 – SIP 18/83.)
Acidente de trânsito com vítimas – Viatura militar – Não caracterização de crime militar – Competência da Justiça Comum.
– “O envolvimento do policial militar em acidente de trânsito, com vítimas, quando dirigia viatura militar, não constituindo crime militar, não implica na competência da Justiça Castrense, mas da Justiça Comum.” (Ccomp. 6.007-SP – TFR – DJU, 21 mar. 1985, p. 3.477 – SIP 3/86.)
Acidente de trânsito com vítimas militares entre viatura militar e veículo de propriedade privada – Crimes atribuídos a um civil – Competência da Justiça Comum.
– “Crimes de lesões corporais culposas contra militares e dano culposo em viatura militar dirigida por um deles, tudo imputado a um civil, em abalroamento de veículos. Crimes comuns e não militares. Interpretação do art. 129, § 1º, Const. Federal, e art. 9º, inc. III, d, do Código Penal Militar.” (RECrim, 1.464-2 – v.u. – STF – 1ª T. 3-2-87 – DJU, 20 fev. 1987, p. 2.179 – SIP 3/87.)
5. Conflito aparente de normas
Ocorrerá, in tese, o conflito aparente de normas quando, em um determinado fato concreto, surja a possibilidade de aplicação de duas normas jurídicas. Segundo o eminente jurista Bruno José Ricci Boaventura “os critérios solucionadores das antinomias jurídicas são pressupostos implícitos colocados na legislação pelo legislador para a manutenção da coerência tendencial do sistema, da necessidade social de uniformidade das decisões e também como uma via de saída para o aplicador e interprete das normas. Os critérios ou também chamados de regras fundamentais para solução de antinomia são de três tipos: o cronológico, o hierárquico e o da especialidade. (…)
O cronológico tem a sua idéia expressa no brocardo jurídico: ”lex posterior derogat legi priori”. Assim sendo a lei posterior derrogará a lei anterior dando ao sistema jurídico a sua característica dinâmica. O preceito do presente critério é, justamente, a possibilidade da transmudação das normas componentes do sistema, passando de velhas e não eficazes, para novas e realmente reguladoras, no sentido da visão social atual ou pelo menos mais contemporânea, quando o processo legislativo não obstaculiza por tempo demais. (…)
O segundo dos critérios é o hierárquico, o seu comando é “lex superiori derogat legi inferiori”. O uso deste critério para solução de antinomia remeterá o aplicador ou intérprete ao uso da norma hierarquicamente superior, quando se tratar de normas de diferentes níveis. (…)
“Lex specialis derogat legi generali” descreve o critério da especialidade. A norma é considerada especial, em seu sentido de especificidade, quando possuir todos os elementos típicos da norma geral e ainda acrescentar outros, tanto de natureza objetiva ou subjetiva. Estes elementos acrescidos pela norma especial são denominados, pela doutrina, de especializantes”.[4]
A fim de alcançarmos, portanto, o objetivo do presente estudo, elencamos as seguintes situações hipotéticas:
1. Militar da ativa que, conduzindo viatura policial/militar ou veículo bélico em uma via pública, vem a colidir contra um veículo particular, causando ferimentos em seus ocupantes, ou seja, uma lesão corporal culposa ou homicídio culposo praticado contra civil.
2. Militar da ativa que, conduzindo viatura policial/militar ou veículo bélico em uma via pública, vem a colidir contra um poste ou outro obstáculo qualquer, causando ferimentos em seus ocupantes, ou seja, uma lesão corporal culposa ou homicídio culposo praticado contra outro militar da ativa.
Vislumbra-se, prima facie, no primeiro exemplo, em relação à lesão corporal culposa, a possibilidade de aplicação do artigo 129, §º 6º, do CP (pena de detenção de 02 meses a 01 ano), e do artigo 303 do CTB (pena de detenção de 06 meses a 02 anos), sendo que, pelo princípio da especialidade, tratando-se de crime automobilístico, aplica-se os preceitos do CTB.
Se a hipótese recair sobre o homicídio culposo, igualmente, surge a possibilidade de subsunção do fato ao tipo previsto no artigo 121, §º 3º, do CP (pena de detenção de 01 a 03 anos), e no artigo 302 do CTB (pena de detenção de 02 a 04 anos), sendo que in casu deve ser aplicada a lei especial, conforme anteriormente citado.
Em relação ao segundo exemplo, porém, amplia-se a antinomia, uma vez que poderão ser aplicados ao caso concreto as normas do CP, do CPM e do CTB, sendo estas duas últimas leis especiais em relação à regra geral da lei penal comum, devendo-se prevalecer as hipóteses normativas previstas no CTB.
O que se pretende discutir neste estudo é a possibilidade de uma nova interpretação sobre a Súmula 06 do STJ, ou seja, a aplicação das regras contidas no CTB em relação a crimes automobilísticos quando autor e vítimas forem militares. Para tanto, enumeraremos as seguintes considerações:
– o Decreto-Lei nº 1.001, de 21.10.1969, que institui o Código Penal Militar, é uma lei especial que estabelece os delitos castrenses, estando em posição de norma especial em relação à norma geral (Código Penal);
– a Lei nº 9.503/97, de 23.09.1997, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, ao apresentar as figuras típicas autônomas dos crimes automobilísticos, tornou-se igualmente norma especial em relação à norma geral;
– utilizando-se o critério cronológico e o princípio da especialidade se constata, inicialmente, que o CTB é posterior à edição do CPM, sendo que, ao versar sobre os delitos acima mencionados, o Código de Trânsito disciplinou o assunto de forma muito mais abrangente que o CPM, principalmente ao acrescentar o elemento especializante “na direção de veículo automotor”;
– o CTB, em seu artigo 291, determina a aplicação das normas gerais do CP e do CPP, no que não dispuser de modo diverso, bem como, no que couber, a Lei nº 9.099/95; neste sentido, temos que a lesão corporal culposa comporta a aplicação dos institutos da representação, composição civil, da transação penal e a suspensão condicional do processo, fato que não se verifica diante da aplicação do CPM ao referido delito, uma vez que no delito castrense a ação penal é pública incondicionada, exceção feita aos crimes capitulados nos artigos 136 a 141, e não se lhe aplica os institutos da Lei nº 9.099/95 por expressa vedação legal, o que configura uma situação extremamente prejudicial ao militar;
– em relação ao homicídio culposo se constata, em princípio, que o quantum da pena poderia ser mais prejudicial ao militar, porém, existe a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direito, nos termos dos artigos 43 e 44 do CP, o que não se verifica em relação ao CPM, uma vez que as referidas penas não fazem parte do rol taxativo do seu artigo 55;
– em termos de política criminal, a adoção do CTB consagrará a aplicação da lei mais benéfica ao réu e, sem dúvida nenhuma, assoberbará a supremacia dos direitos e garantias fundamentais, sem afrontar os princípios constitucionais da hierarquia e da disciplina.
6. Considerações finais
Diante do acima exposto, face à constante evolução das normas jurídicas pátrias, temos que o conteúdo da Súmula 06 do STJ deve ser rapidamente revisto, com a finalidade de se estabelecer a competência da Justiça Comum para o julgamento dos delitos decorrentes de acidente de trânsito envolvendo viaturas policiais/militares ou veículos de uso bélico, uma vez que se deve buscar no Estado Democrático de Direito sempre a efetivação dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, aí incluídos a categoria dos militares estaduais e federais.
O conflito aparente de normas em relação aos crimes automobilísticos cometidos por militares da ativa, na direção de veículos automotores, tendo como vítimas outros militares, devem ser, hodiernamente, analisados sob a ótica do Código de Trânsito Brasileiro e não mais sob a égide do codex castrense.
A utilização do CTB permite uma interpretação mais benéfica aos sujeitos ativos dos referidos delitos, concedendo-lhes os mesmos direitos aplicáveis aos demais usuários das vias públicas, o que sem dúvida contemplará a mais lídima expressão da Justiça.
Oficial da Polícia Militar de São Paulo. Especialista em Segurança Pública pela PUC/RS e em Direito Administrativo pela UNORP
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