O impacto da construção social do patológico no poder judiciário e a reserva do possível

Resumo: O Conceito amplo da OMS de saúde e o fenômeno da construção social do patológico fez com que demandas sobre remédios e tratamentos aumentassem. O mínimo existencial precisa ser atendido sempre, porém, a partir do momento em que o que se demanda são medicamentos para situações que até pouco tempo atrás eram vistas como fatos naturais da vida, o Poder Judiciário precisa analisar a razoabilidade e ponderar, pois o capital que o Estado investirá no litigante é o que deixará de aplicar na saúde da população. Orçamento e reserva do possível não são excludentes do direito à saúde, mas este depende daqueles. Caso a tendência seja ver o direito à saúde como absoluto e atender demandas relacionadas com a construção social do patológico, precisa-se aumentar a reserva do possível e assim, possivelmente, aumentar a carga tributária. A sociedade precisa analisar se o custo benefício compensa.


Palavras-chave: construção social do patológico, direito à saúde, Poder Judiciário, orçamento, reserva do possível.


Abstract: The broad concept of the WHO health and the phenomenon of the social construction of the pathological made demands on medicines and treatments increases. The minimum existential needs to be answered always, however, from the moment that the demand for drugs are situations that until recently were viewed as natural facts of life, the judiciary must review and consider the reasonableness, as capital invest in the state is the plaintiff would no longer apply in population health. Budget and possible reserves are not the exclusive right to health, but this depends on those. If the trend is to see health as an absolute, unrestricted, and thus meet the demands related to the social construction of pathological need to increase the reserve for contingencies and thus possibly increase the tax burden. Society needs to examine whether the cost worth the benefit.


Keywords– social construction of pathological right to health, judiciary, budget, booking possible.


Sumário: 1- Introdução – 2- O conceito de saúde da OMS e a construção social do patológico-  3- O direito à saúde e a intervenção do Poder Judiciário- 4- Reserva do possível e orçamento- 5- Propostas de solução-  6- Considerações finais – 7- Referências bibliográficas.


1. Introdução


É pacifico que a saúde, apesar de direito social, não é norma programática. Este direito é intrínseco ao direito à vida, afinal, quando lutamos pela saúde, lutamos para estarmos vivos ou para tornarmos melhor a qualidade de vida. Vida não é, para o Direito, apenas o contrário de morte.


Essa busca pela melhor qualidade de vida, em todos os aspectos que a saúde engloba (bem-estar físico, mental, espiritual e social, de acordo com a Organização Mundial de Saúde – OMS) fez surgir na sociedade o fenômeno da construção social do patológico. O dia-a-dia corrido de muitas pessoas, a exaltação pela eterna juventude na mídia, as promessas milagrosas que propaganda de medicamentos faz, acarreta na sociedade uma nova visão da saúde e isso se reflete no Poder Judiciário, afinal, se saúde é o completo bem-estar, quase um estado nirvânico, e também “direito de todos e dever do Estado”, o indivíduo tem o direito de demandar.


Porém, essa pesquisa se propõe a mostrar da forma mais realista possível que não pode o magistrado julgar procedente todas as demandas relacionadas à saúde e o porquê que não deve “abraçar” a construção social do patológico sem antes ponderar. Apresentará os reflexos que isso pode causar na sociedade, abordará a questão do orçamento e reserva do possível, e, humildemente, tenta apresentar algumas sugestões de solução, ou, pelo menos, como o juiz deve reagir diante de tantas demandas que abusam do conceito de saúde fornecido pela OMS.


2. O conceito de saúde da OMS e a construção social do patológico


O conceito de saúde fornecido pela Organização Mundial de Saúde é: “estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade.”[1] Este conceito foi divulgado na carta de princípios de 07 de abril de 1948 (desde então, Dia Mundial da Saúde).[2]


Esse conceito é extremamente amplo e isso acarreta consequências no Poder Judiciário, como abordaremos a seguir. Poderia-se, simplesmente, conceituar saúde como o completo bem-estar físico e mental, desconsiderando o espiritual e social, que, de certa forma, estão englobados no bem-estar mental. Este entendimento encontra-se amparado em STEPKE,  que critica esta definição, in fine:


“A máxima da OMS de que a saúde é o bem-estar total e não só a ausência de doença continua a causar problemas. Primeiro, recai sobre o especialista a definição de estado ideal, nirvânico, que supostamente a descreve. Segundo, sugere que saúde é algo, é coisa, que pode ser adquirida, vendida ou transacionada”. [3]


Saúde é algo que se constrói a cada dia, é mais um processo biográfico do que biológico. Para STEPKE, falar em direito à saúde é algo sem sentido, pois esta não pode ser construída sem esforço.[4] Não é o Estado que a dará à alguém, ele apenas pode dispor de recursos e meios para ajudar a construi-la, mas saúde não é algo que pode ser fornecido.


STEPKE prossegue explicando que “saúde não é apenas um direito, mas também um dever. Dever para si e para os outros. A participação consiste justamente em assumir o papel correspondente a cada um na saúde do conjunto.”[5] Dessa forma, entende-se que, antes de exigir a saúde de algum ente, deve a pessoa buscá-la por si, como, por exemplo, através de um modo de vida saudável.


Todavia, percebe-se, com a quantidade de demandas judiciais com diversos objetos: remédio para calvíce, floral de Bach, terapias alternativas, aplicação de botox, etc., que a sociedade não entende dessa forma e busca do Estado todo amparo para seu bem-estar físico, mental, espiritual e social. Esse conceito da OMS abraçou o fenômeno da construção social do patológico, pois além de abarcar todas as necessidades que os indivíduos possuem, dá margem ao argumento para pleitear qualquer objeto em prol de seu bem-estar social e mental que passa longe do mínimo existencial, como se fosse uma das esferas mais externas dos limites imanentes do direito à saúde, uma vez que tratam-se de necessidades não vitais e fundadas em motivos particulares.


Para melhor compreensão sobre os exageros que a construção social do patológico pode apresentar, eis o seguinte exemplo: qualquer doente coronariopata necessita de remédios para coração. Doenças cardíacas sempre foram consideradas doenças. Se uma pessoa que infartou não ingere o medicamento, sua qualidade de vida piorará e poderá vir a falecer. Isso acontece com todo coronariopata. Porém, pelo fenômeno da construção social do patológico, situações comuns da vida como, por exemplo, o envelhecimento, passam a ser objeto de medicalização, logo, como questão patológica. Todavia, não necessariamente qualquer pessoa que envelheça sentir-se-á doente ou considerará afetado seu bem-estar mental ou social se não aplicar botox ou deixar de utilizar um remédio para calvíce.


Nesta diapasão de medicalizar fatos naturais, DWORKIN usa a expressão felicidade artificial quando aborda o uso banal de antidepressivos para tratar questões de ordem emocional que não são doenças, mas, meramente, problemas cotidianos. Ele critica o fato de, através de remédio, a vida e a cabeça de uma pessoa não ficar em sintonia. O autor exemplifica através de diversas histórias essa situação, uma delas é a do advogado John Green, que brigava constantemente com sua esposa e não se divorciava porque temia perder a custódia do filho. “Através do remédio Prozac, ele conseguiu viver feliz em um casamento sem amor. Esperava tomar o medicamento até o filho crescer. Embora leve uma vida insuportável, Green tem a cabeça feliz. Sua vida e sua cabeça não estão em sintonia.”[6]


A ideologia de medicalizar e transformar o corriqueiro em patológico surgiu em meados de 1960, mais fortemente no campo dos remédios psicotrópicos, conforme explica DWORKIN:


“Os médicos assumiram a responsabilidade de curar a infelicidade – não a depressão – mas a infelicidade comum – usando meios artificiais. A revolução da prática da medicina começou na assistência primária, no final da década de 1960, quando a profissão enfrentou uma séria ameaça. Os pacientes reagiram contra a tendência centenária em favor da medicina científica, acusando os médicos de ignorar seus problemas psicológicos do dia-a-dia. As pessoas viam os problemas psicológicos comuns como um problema de atenção primária. Os médicos reagiram com uma nova ideologia. Essa nova ideologia, que via a infelicidade como uma doença, levou a um grande aumento na prescrição de drogas psicotrópicas, ou seja, drogas que modificavam o comportamento, como antidepressivos, ansiolíticos, estimulantes e narcóticos”.[7]


Essa nova ideologia causou a reação de outros grupos de médicos contra o uso abusivo de drogas psicotrópicas, alguns defendiam a medicina alternativa e outros recomendavam os exercícios físicos obsessivos[8], porém, “a biotecnologia e o avanço tanto dos medicamentos quanto da medicina atrai as pessoas pelas promessas de bem-estar e longevidade, o que as tornam consumidoras acríticas.”[9]


A crescente solução para diversos problemas biológicos unido ao desenvolvimento socioeconômico da sociedade que leva os indivíduos a trabalharem cada vez mais, induz ao comodismo que a construção social do patológico oferece. Nem todas as famílias possuem tempo para educarem e conversarem com seus filhos como gostariam, daí considerar a criança levada como doente é mais cômodo. Páram as reclamações na escola, os pais continuam trabalhando e a criança “bem”. Assim como é menos trabalhoso para algumas pessoas não lidar com a tristeza e recorrer à tratamentos para depressão. “Para tudo busca-se “remédio” (que é solução), para toda situação há diagnóstico e prognóstico.”[10]


Com o fenômeno da construção social do patológico, as pessoas, a cada dia, estão mais dependentes de remédio e isso reflete no Poder Judiciário, visto que nem todos têm dinheiro para acompanhar tal fenômeno. Reclama-se a igualdade. Afinal, se saúde equivale a todo bem-estar físico, mental, espiritual e social, deve o cidadão reclamá-la do Estado quando não tem condições de adquirir por suas rendas qualquer remédio que supra o bem-estar em quaisquer dos aspectos impostos pela OMS. Apesar de não concordarmos com isso, é o que o conceito de saúde da OMS permite concomitantemente com o artigo 196 da Constituição Federal de 1988[11], que dispõe que a saúde é direito de todos e dever do Estado, mas não mostra qual a gradação.


Em paralelo à Constituição Federal, a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que trata das condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e funcionamento dos serviços correspondentes, em seu artigo 2o dispõe que o Estado deve “prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.” O parágrafo único do artigo 3o abarca o conceito de saúde da OMS uma vez que reza que “dizem respeito também à saúde as ações que (…) se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social”(grifamos).


Sendo assim, fica evidente que nem mesmo a Lei Ordinária em questão foi capaz de definir exatamente o que é o direito a saúde, praticamente reiterando o conceito (falho e extenso) da OMS, o que resulta em ações com pedido de diversos tratamentos e medicamentos para os mais diversos males físico, mental, espiritual e social com base no artigo 196 da Constituição Federal. E então, eis que a construção social do patológico invade o Palácio da Justiça e a Administração Pública, que é condenada a fornecer medicamentos e obrigada a analisar seu orçamento para cumprir a sentença.


3.  O direito à saúde e a intervenção do Poder Judiciário


Após discorrermos sobre o fenômeno da construção social do patológico que gera mudança no comportamento dos indivíduos, abordaremos agora um setor no qual é comum o reflexo de mudanças na sociedade – o Poder Judiciário.


O direito à saúde, por estar previsto no artigo 6o da Constituição Federal, está dentro dos direitos e garantias fundamentais. O artigo 5o, §1o da mesma dispõe que normas definidoras de direitos e garantias fundamentais possuem aplicação imediata, ou seja, independe de interposição legislativa ou administrativa para que gozem de plena eficácia.[12]


Uma vez que surgem novos remédios para atender a novas necessidades e tecnologias em prol do bem-estar do indivíduo, é comum que todos queiram o mesmo acesso a tais novidades. Nem todos os segmentos da sociedade possuem dinheiro para arcar com os custos que o conforto da construção social do patológico traz. Se certa pessoa consegue seu bem-estar físico, mental, espiritual ou social,  (desdobramentos do conceito de saúde da OMS) com vitaminas para combater os males do envelhecimento ou com remédio para calvíce, o raciocínio inevitável é de que: todos tem direito à isso. Se isso é saúde, a princípio, conclui-se que é direito de todos e dever do Estado, e assim, o indivíduo vê-se constitucionalmente autorizado a demandar contra o ente federativo buscando uma condenação para o fornecimento do item que acredita necessitar.


Uma objeção feita quanto a intervenção do Poder Judiciário na concretização do direito à saúde é a respeito da independência e harmonia entre poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. De acordo com SALAZAR & GROU:


“Valendo-se da tripartição e independência dos poderes, vários argumentos são construídos, entre eles a invasão do Judiciário em competência do Executivo, quebrando a harmonia que deve haver entre os poderes; a ausência de condições do Judiciário avaliar o impacto de suas decisões no todo da administração pública; e a falta de legitimidade do Judiciário para fixar políticas públicas, o que apenas o Executivo e o Legislativo teriam, porque eleitos democraticamente”.[13]


No Brasil, a teoria da separação dos poderes encontra-se no artigo 2o da Constituição Federal de 1988[14], que prevê o relacionamento harmônico de tais poderes que devem respeitar o âmbito de atuação e autonomia dos outros.


Desse entendimento, não podemos concluir que o Poder Judiciário não deve controlar atos do Poder Executivo ou do Legislativo que ameacem ou lesione o direito do cidadão, pois isso violaria o princípio do livre acesso ao judiciário, positivado no artigo 5o, XXXV da Constituição Federal[15], ainda mais quando se trata de direitos humanos fundamentais, como o direito à saúde. Neste caso, não há que se falar em ingerência indevida do Judiciário em funções alheias. Leciona GRINOVER:


“Não se pretende atribuir ao Judiciário o desempenho de funções que são próprias do Legislativo- ou seja, a de produção de ato legislativo- ou do Executivo- ou seja, a de produção de ato administrativo. O que se sustenta – sob o manto do princípio da supremacia da Constituição- é, meramente, cumprir ao Poder Judiciário assegurar a pronta exequibilidade de direito ou garantia constitucional imediatamente aplicável”.[16]


Assim, entende-se que o Poder Judiciário não deve interferir no âmbito de atuação dos demais poderes substituindo seus juízos de conveniência e oportunidade, todavia, a partir do momento em que o legislador ou o administrador se mostrarem incapazes de garantir um cumprimento razoável dos preceitos constitucionais, deve atuar (quando acionado pelo cidadão) em prol da prestação de serviço de relevância pública, como o é o direito à saúde. Eis os dizeres de GRINOVER:


“A separação de poderes tem como razão de ser justamente a efetivação dos direitos humanos fundamentais. O Judiciário deve atuar na preservação da supremacia da Constituição, especialmente quando os Poderes Legislativo e Executivo brasileiros se mostrarem incapazes de garantir um cumprimento racional dos preceitos fundamentais, sem que caracterize ofensa à separação de poderes.”[17]


A separação dos poderes não é um fim em si mesmo e o controle judicial dos atos administrativos é legítimo. A dignidade da pessoa humana pode e deve ser objeto de controle judicial. ABRAMOVICH & CURTIS defendem que: “a execução das políticas públicas que lhes darão cumprimento pode ser imposta pelo Poder Judiciário e as sentenças obtidas podem se constituir em importantes instrumentos de orientação dos agentes políticos para as necessidades da população.”[18]


Indaga-se: – Diante da indefinição de até onde a saúde deve ser tutelada, como deve comportar-se o juiz? Pois bem, é crescente o número de demandas judiciais pretendendo a condenação do Estado à prestações de medicamentos e tratamentos não previamente elencados nas listas do sistema de saúde e nem sempre indicados por profissionais vinculados ao sistema público. Para SARLET & FIGUEIREDO, o juiz deve assumir um papel mais ativo neste tipo de demanda.


“Mesmo se o tratamento postulado não se inclui em nenhuma das listas oficiais, nem tenha sido abarcado por uma das hipóteses de falta de razoabilidade, parece-nos inarredável que o juiz deva assumir um papel mais ativo na condução da demanda. Deve formular dúvidas quanto ao receituário médico e, se necessário, solicitar o auxílio de profissional especializado, no sentido de certificar-se da eficiência e segurança do tratamento requerido pela pessoa interessada. Se não há protocolos clínicos ou diretrizes terapêuticas estabelecidas, há necessidade de prova científica robusta que embase a postulação feita, o que não resta atendido apenas mediante apresentação de receituário firmado pelo profissional da saúde que tem relação direta com o interessado.”[19]


Desta forma, o juiz estará atendendo (ou pelo menos, buscando atender) aos princípios da precaução e prevenção, especialmente quanto à observância de critérios científicos e garantias de segurança e eficácia do tratamento e preocupando-se com a racionalização e otimização dos recursos públicos.


4. Reserva do possível e orçamento


Após estudarmos a atuação do Poder Judiciário e demonstrarmos que o direito à saúde é norma de eficácia imediata, abordaremos a reserva do possível e o orçamento, itens intimamente vinculados ao cumprimento da sentença condenatória proferida em demanda cujo objeto é a saúde.


Ainda que o direito à saúde possua eficácia imediata e não seja tratado como norma programática pelo STF, não podemos ignorar que trata-se de um direito social (apesar de individualmente pleiteável), e, por isso, reclama prestações estatais vinculadas diretamente à destinação, distribuição e redistribuição, e que possui dimensão economicamente relevante.[20]


Conforme HOLMES & SUSTEIN, “levar os direitos à sério é sempre também levar a sério o problema da escassez.”[21] Sendo assim, os responsáveis pela efetivação de direitos fundamentais, inclusive no caso dos direitos sociais, onde a insuficiência ou inoperância causa impacto mais direto e expressivo, deverão observar critérios parciais de adequação (aptidão do meio com a finalidade almejada), necessidade (menor sacrifício do direito restringido) e da proporcionalidade, em sentido estrito (avaliação da equação custo benefício).[22] 


Desta forma, especialmente quanto ao fenômeno citado, no qual questões naturais da vida são vistas como patológicas, que acarretam demandas por botox, floral de Bach, cirurgias estéticas, implantes capilares, em nome da saúde, faz-se necessário ponderar. O Poder Judiciário não pode entender, literalmente, a saúde como conceitua a OMS, que trata de questões espirituais e sociais, inclusive. Deve aplicar a sugestão de SARLET e analisar se o pedido é adequado para a SAÚDE do cidadão; necessário, devendo julgar improcedente o que for mero apelo estético ou modismo, e proporcional, analisando custo benefício e, dessa forma, a reserva do possível.


SARLET & FIGUEIREDO discorrem sobre as demandas não razoáveis, in fine:


“O princípio da proporcionalidade deve servir de critério para a decisão judicial. Nesse sentido, não se mostra razoável, por exemplo, compelir o Estado a fornecer ou custear medicamentos e tratamentos experimentais, assim compreendidos aqueles não aprovados pelas autoridades sanitárias competentes, ou que o foram para finalidade diversa daquela pretendida pelo interessado, e que sequer constituíram objeto de testes minimamente seguros, de tal sorte que o autor da demanda, em alguns casos, pode estar servindo como mera cobaia. Igualmente não se configura razoável a condenação do Estado em obrigação genérica, ou seja, o custeio de todo medicamento ou tratamento que vier a ser criado ou descoberto, conforme a evolução científica, ainda que oportunamente aprovado pelo órgão sanitário técnico competente. Nem sempre o “novo” é sinônimo de melhor. Não é razoável, ademais, a imposição de prestação de determinada marca de remédio, quando existente outra opção, similar em segurança e eficiência, mas de menor custo econômico.”[23]


Isso não significa condicionar o direito á saúde à reserva de cofres cheios, pois isso equivaleria a nenhuma vinculação jurídica.[24] A discussão não é apenas da reserva do possível, mas a falta de definição de até onde a saúde deve ser tutelada. SARLET discorre que: “embora a sua dupla dimensão negativa e positiva, é certo que, com relação ao direito à saúde, o texto constitucional, salvo algumas pistas, não define até que ponto a saúde há de ser tutelada negativa e positivamente.”[25] E essa indefinição abre portas para demandas nas quais indaga-se se o objeto é a saúde ou a estética ou a cisma por um determinado medicamento da moda.


Quando pensamos nos reflexos da construção social do patológico, não podemos desprezar a questão do orçamento, intimamento ligado ao conceito de reserva do possível, que é o condicionamento da efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais à dependência de recursos econômicos.


SALAZAR & GROU tratam da reserva do possível fática e jurídica, in fine:


“A reserva do possível jurídica, que traz o empecilho da falta de previsão orçamentária para o gasto demandado pelo fornecimento de medicamento por meio de decisão judicial, por exemplo, pode ser superada, devendo prevalecer o direito fundamental à saúde, seja para determinar a inclusão no plano plurianual da despesa apta a concretizá-lo, seja para determinar a realização de uma despesa sem previsão na lei orçamentária anual. Não se trata de menosprezar o orçamento, mas somente de não deixar argumentos formais se sobreporem à materialização da essência da Constituição. Já o argumento da incapacidade (fática) do Estado de arcar com determinada despesa, não pode ser alegado totalmente desvinculado de qualquer comprovação”.[26]


O direito à saúde e à vida assumem posição prioritária, uma vez que sem esta garantia, todas as outras perdem sentido, afinal, o direito à saúde faz parte do núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, integrando o mínimo existencial vital.


Já quanto ao orçamento, vale explicar, inicialmente, que discricionariedade é a margem de liberdade que algumas normas conferem ao administrador, “para escolher, segundo critérios de razoabilidade, um, dentre os comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal.”[27]


Ainda que a decisão de quais despesas devam fazer parte do orçamento público tenham natureza política, há limites constitucionais que devem ser respeitados na elaboração do orçamento. FIGUEIREDO destaca que:


“O orçamento não é uma peça livre para o administrador. Há valores que são priorizados pelas Constituições Federal e Estadual. Por vezes, o  administrador não tem qualquer discricionariedade, pois, do contrário, seria lhe dar o poder de negar, pela via transversa, a escala de prioridades e de urgência que foi constitucionalmente fixada.”[28]


Os princípios orçamentários e as regras aplicáveis à elaboração do orçamento público norteiam a atuação do Poder Executivo, contudo, as prioridades em matéria de gastos públicos são as fixadas pela Constituição Federal, que possui como um dos objetivos fundamentais, a dignidade da pessoa humana e a este objetivo as autoridades públicas estão vinculadas, desta forma, o direito à saúde é exigível dos administradores públicos, sob pena de não concretização da dignidade humana.


Indaga-se: O que deve prevalecer: princípio da sujeição da Administração às decisões do Poder Judiciário ou o princípio da legalidade da despesa pública? De acordo com GRAU, prevalece o primeiro em relação ao último. A sujeição da Administração às decisões judiciais consubstancia “axioma de direito público”.


“Assim, ao princípio da Administração às decisões do Poder Judiciário, quando em confronto com o princípio da legalidade da despesa pública, há de ser atribuído peso maior. O acatamento ao princípio da legalidade da despesa pública mediante o sacrifício da sujeição da Administração às decisões do Poder Judiciário resultaria inteiramente insustentável.” [29]


Quando o Judiciário profere uma sentença pela concretização de um direito social não originalmente previsto no orçamento do poder público demandado e que implica aumento de custos para o Erário, está proferindo uma sentença chamada de aditiva.[30] SCAFF critica esse tipo de sentença por transformar o Judiciário e o STF em “ordenadores de despesa pública”[31], o que dificulta o planejamento governamental.


“As decisões judiciais podem ter impacto nas finanças do Estado e influenciar na escolha das prioridades para aplicação dos recursos públicos escassos. Para ficar no exemplo do direito à saúde, em 2007, os Estados gastaram, em média, R$ 500 milhões por ano para cumprimento de decisões judiciais. Os gastos com medicamentos do Ministério da Saúde do Brasil originados por decisões judiciais aumentaram 211,4% de 2005 a 2006, e em 2008 alcançou a cifra de R$ 52 milhões em 2008”.[32]


Percebe-se que o gasto é consideravelmente alto e por isso, os direitos sociais, assim como os outros direitos fundamentais, não podem ser encarados como se tivessem conteúdo absoluto e aplicável para todos os casos de modo definitivo, mas devem ser delimitados pela colisão de interesses verificados no caso concreto.[33]


Além disso, os próprios entes federativos possuem seus custos, que não são pequenos. De acordo com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, somente a despesa total dos municípios com a função legislativa, em 1996, ficou em torno de 2 bilhões de reais.[34]


O mero fornecimento irracional de tudo o que pode ser considerado como veículo de saúde afeta a própria população. Uma vez que o Poder Executivo é condenado a pagar, seja um tratamento experimental no exterior ou um conjunto de demandas que não sejam a respeito do direito à saúde como mínimo existencial, a sociedade é quem arca com estes custos, uma vez que, se os recursos são públicos, eles são decorrentes da arrecadação de tributos pagos por ela.


“Julgar que uma única pessoa tem direito à saúde, conforme prescrito na Constituição, e determinar que o Estado despenda vários milhões em seu tratamento não implementa este direito social, mas o atribui a uma única pessoa, ou grupo de pessoas, que teve acesso àquele magistrado e àquela decisão. O exercício de um direito social que gera benefícios a um indivíduo ou a um pequeno grupo certamente não foi aplicado de forma adequada. É confundir o sentido do que é um direito social, tratando-o como um direito que possa ser fruído de forma individual ou coletiva, e não pelo conjunto dos cidadãos que dele necessitem.”[35]


Apesar de SCAFF entender que dar ao direito à saúde ares de direito individual não é a melhor interpretação possível, o STF entende que “o direito à saúde é um direito individual, que pode ser gozado diretamente por cada indivíduo, e não através de implementação de uma política pública. Aprisiona-se o interesse social e concede-se realce ao direito individual”.[36]


No Brasil, em situação de condenação judicial, há o bloqueio de dinheiro público disponível nos bancos, através de ordem judicial, com ameaça de prisão dos responsáveis em caso de desobediência desta ordem. Para SCAFF, essa não é a melhor forma de atuação, pois “destrói a possibilidade de planejamento financeiro público. Não há como fazer planejamento financeiro em caso de ordens judiciais para imediato desembolso de valores sem que haja um mínimo de previsão orçamentária.”[37]


O Ministro Celso de Mello, em grau de recurso de uma decisão que condenava o Estado de Santa Catarina a desembolsar US$ 63 mil para custeio de um tratamento experimental para um menino portador de Distrofia Muscular de Duchene, após ver os motivos do recurso (falta de amparo orçamentário, falta de lei que o determinasse e violação ao princípio da separação de poderes) decidiu pelo respeito indeclinável à vida, considerando a questão do orçamento como um interesse financeiro e secundário do Estado.


WANG discorda do Ministro Celso de Mello, pois defende que o orçamento não é um mero interesse financeiro e secundário do Estado.


“Causa estranheza dizer que o interesse financeiro é um “interesse secundário do Estado”. Se os direitos sociais, para serem efetivados, precisam de recursos estatais, então a questão financeira está intrinsecamente ligada ao direito à saúde. É uma dicotomia falsa, pois direito à saúde e questões financeiras não são conflitantes e nem excludentes, mas aquela depende desta”.[38]


Em uma pesquisa, WANG observou que antes de 2007, todas as decisões analisadas por ele concediam o medicamento ou tratamento pelo impetrante. “Não havia sequer um voto divergente nos acórdãos encontrados. Em nenhuma decisão, o STF admitiu a escassez de recursos como argumento aceitável para impedir a concessão de um medicamento ou tratamento médico.”[39]


WANG critica o fato das decisões analisadas não aprofundarem no assunto orçamento, simplesmente alegavam, por exemplo “problemas orçamentários não podem obsculizar o implemento do que previsto constitucionalmente.” Decisões deste tipo, evidentemente, não consideram o orçamento público como um meio para se realizar políticas públicas, mas como um obstáculo a elas.


Após 2007, a mentalidade do STF começou a mudar e a questão da escassez passou a ser empecilho à certas demandas relativas ao direito à saúde.


“Diferentemente do entendimento dominante, a STA 91 e a SS 3073, julgadas pela Ministra Ellen Gracie, foram as primeiras decisões determinando a não obrigatoriedade do Estado em fornecer o medicamento ou tratamento pedido. O fundamento foi o da limitação de recursos e da necessidade de racionalização dos gastos para um atendimento de um maior número de pessoas. A Ministra reconheceu que a “execução de decisões com a ora impugnada afeta o já abalado sistema público de saúde”, e que a política de saúde deve ser feita de forma a buscar maior racionalização entre custos e benefícios dos tratamentos gratuitamente fornecidos, com o intuito de atingir o maior número possível de cidadãos’.[40]


Após esta decisão, a Ministra, quando decidia julgar improcedente a demanda fundamentava com um ou mais destes motivos: lesão à ordem pública e administrativa ou ao sistema de saúde e à economia pública; ao alto custo do pedido; ao seu não pertencimento a uma política pública existente.


Em diversas decisões, os Tribunais Superiores proclamam a importância do direito fundamental à saúde para: admitir a aplicabilidade imediata do artigo 196 da Constituição Federal; reconhecer a possibilidade de intervenção judicial diante recusa ou desídia das autoridades governamentais e determinar o bloqueio de contas públicas para dar efetividade ao cumprimento das decisões judiciais.[41]


Não é mais possível deixar de lado os impactos econômicos que uma decisão que impõe o direito à saúde a um indivíduo causa no orçamento. O impacto econômico das decisões judiciais foi abordado pelo Ministro Celso de Mello:


“não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais, além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização- depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política”.[42]


Isso não é transformar o Direito em uma máquina insensível operada por economistas, porém, faz-se necessário a responsabilidade no exercício dos direitos. “O reconhecimento de que os direitos possuem custos quase sempre elevados e de que os recursos públicos são insuficientes para a promoção de todos os ideais sociais, implica também que os direitos devem ser exercitados com responsabilidade.”[43]


Não podemos desconsiderar o princípio da impessoalidade, que encontra-se no caput do artigo 37 da Constituição Federal e, de acordo com o STF, deve ser observado no âmbito do Executivo, do Legislativo e também do Judiciário.[44]


Este princípio traz a ideia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminação, seja benéfica ou detrimentosa, e por isso, para LUPION, “resulta-se inquietante a questão do tratamento diferenciado para aqueles que vão à juízo reclamar uma prestação positiva e individualizadado Estado.”[45]


BARCELLOS entende que “o único ponto que distingue o autor de uma demanda judicial dessas milhares de pessoas (sociedade) é que estas não têm capacidade de mobilização, nem diante do Judiciário e nem diante da mídia. Se todos são igualmente dignos, não é possível proceder a qualquer distinção com base em argumentos pessoais ou particulares.” [46]


“Na medida em que um indivíduo obtém o direito de receber determinado medicamento ou o equivalente em dinheiro, provavelmente alguém ficará privado de idêntica providência, dada a conhecida escassez dos recursos públicos. O aumento das demandas que envolvem o exercício incondicional do direito de pleitear tratamento individual de saúde certamente comprometerá as finanças públicas. O aumento indiscriminado dessas demandas resultará no uso da verba orçamentária prevista para atender uma política de padronização dos medicamentos para satisfação de uma coletividade, para compra e fornecimento de determinado e especial medicamento para um cidadão que obteve provimento jurisdicional. Não é aceitável e compreensível que o atendimento do direito à saúde de um cidadão possa ser feito com o sacrifício de idêntico dos demais.’ [47]


E, a nosso ver, nada mais particular do que demandas com pedidos relacionados à construção social do patológico, que fogem da esfera do mínimo existencial. Como o aumento das demandas relacionadas ao direito à saúde é inevitável, uma vez que a população está a cada dia mais esclarecida acerca de seus direitos, faz-se urgente pensar em soluções para que ou contenha-se o avanço dessas demandas ou para criar meios para atender ao maior número possível de litigantes. 


5. Propostas de solução


Ainda não há uma solução específica para conter os avanços do fenômeno da construção social do patológico na seara do Poder Judiciário. O Direito é vivo e os três poderes precisam acompanhar sua evolução sob pena de tornar-se ineficiente, ineficaz e injusto. Sendo assim, não pode o Judiciário ficar perdido diante de tal fenômeno, sem saber quando julga procedente ou improcedente certa demanda.


Este fenômeno tem acarretado aumento da despesa em diversos Estados. Exemplo disso é o Rio Grande do Sul que, conforme TORRES, “está vivendo uma nova fase da disputa judicial pelo fornecimento de remédios não disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde e acumula 20 mil ações envolvendo medicamentos e as despesas com ordens judiciais saltou de R$ 11 milhões em 2005 para 30 milhões em 2009.” [48]


TORRES sugere que a solução para orientar o juiz que está prestes a julgar uma demanda relativa ao direito à saúde pode estar na distinção entre mínimo existencial e direitos sociais e na percepção do limite dentro do qual é obrigatório prever e implementar a entrega de prestações públicas.[49]


“A principal distinção é que a proteção do mínimo existencial não se encontra sob a reserva do possível, pois sua fruição não depende do orçamento nem de políticas públicas, ao contrário do que acontece com os direitos sociais. O Judiciário pode determinar a entrega das prestações positivas, eis que tais direitos fundamentais não se encontram sob a discricionariedade da Administração ou do Legislativo. Se, por absurdo, não houver dotação orçamentária, a abertura de créditos adicionais cabe aos poderes políticos (Administração e Legislativo), e não ao Judiciário, que apenas reconhece a intangibilidade do mínimo existencial.”[50]


Quando se tratar de questões referentes a prestações não autorizadas no orçamento e não compreendidas nas despesas gerais dos órgãos públicos, interessante seria um instrumento semelhante ao mandado de injunção americano, que permite ao Judiciário vincular o Legislativo na feitura do orçamento do ano seguinte para a consecução dos direitos fundamentais sociais (mínimo existencial).[51]


De acordo com LIMA, o Judiciário tem feito forma individual o que deveria ser implementado através de políticas públicas, pois o fato de a saúde não mais ser vista como norma de caráter programático levou a seguinte consequência:


“Essa situação acabou conduzindo a atuação de alguns setores do Poder Judiciário à aplicação do direito à saúde como um verdadeiro poder individual, absoluto e irrestrito do indivíduo contra o Estado. De uma situação em que se propugnava que o Estado não tinha qualquer dever de oferecer prestações materiais a indivíduos que o demandassem, se passou a uma situação em que qualquer indivíduo tem o direito a qualquer prestação do Estado, sob o argumento exclusivo de que o direito à saúde, assegurado na Constituição Federal, é um direito subjetivo público a ser exercido contra o Estado. Essa atuação transformadora do Poder Judiciário, se levada ao extremo, sem a possibilidade de aplicação universal de forma racional, poderá ser entendida como voluntarismo irracional.”[52]


Desta forma, diante de abuso na utilização do conceito de saúde criado pela OMS, o juiz deve julgar improcedente o pedido. Não deve o Judiciário embarcar na construção social do patológico, sob pena de desnaturar um direito, que apesar de ter aplicabilidade imediata e de não ser norma programática, é social. Se o Judiciário passa a julgar procedente todas as ações relacionadas à saúde em todos seus aspectos e não apenas a ausência de doença, o Executivo, simplesmente, não terá como garantir a saúde da coletividade e sim apenas daqueles que pleiteiam, isto é, se tiver capital para cumprir com todas as sentenças. De acordo com AMARAL & MELO, “ no campo da saúde, a escassez, em maior ou menor grau, não é um acidente ou um defeito, mas uma característica implacável.”[53]


Vale mencionar, a respeito da razoabilidade, uma decisão da Corte Constitucional Alemã, que firmou jurisprudência no sentido de que: “A prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável.”[54]


O magistrado deve levar em conta, ao se deparar com uma pretensão relacionada ao direito à saúde, “(i) a efetiva existência de recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; (ii) a disponibilidade jurídica de dispor desses recursos, em função da distribuição de receitas e competências; (iii) a razoabilidade daquilo que está sendo pedido.”[55]


Para LIMA, a solução reside no bom senso para alcançar um direito à saúde nos moldes propostos:


“Algumas condutas que revelam prudência e bom senso merecem ser indicadas. Os tratamentos custeados pelo Poder Público devem ser realizados em estabelecimentos nacionais, e não através de depósitos de valores para tratamentos no exterior[56] ou em locais de preferência do médico ou paciente, sob pena de ser ferido o preceito do acesso universal e igualitário. Os medicamentos devem ser preferencialmente genéricos ou aqueles de mais baixo custo, não podendo ser admitidas preferências arbitrárias ou injustificadas por determinadas marcas, o que viola o princípio da igualdade, nem importações de substâncias não autorizadas no país. Deve verificar-se se o beneficiário efetivamente é carente de recursos, pois, apesar de a saúde ser um direito de justiça social, ela não é dever somente do Poder Público. Sendo possível que a prestação seja suportada pelo particular, sua família ou outro ente, o Estado deve ser desonerado”.[57]


Procedendo desta forma, o Poder Judiciário, provavelmente, conterá os estragos no orçamento público que o fenômeno da construção social do patológico acarretaria caso todas as ações fossem julgadas procedentes, pois oferecerá uma forma científica de garantir o direito fundamental à saúde, ultrapassando o paradigma individualista.


Por fim, SCAFF traz uma sugestão de solução para o aumento da reserva do possível. Uma vez que quem paga as contas dos gastos realizados é a sociedade, seja através de tributos que paga diretamente na condição de contribuinte, seja indiretamente na aquisição de bens ou serviços, a solução estaria na própria sociedade.


“O Estado é financiado por tributos, pagos de forma desigual entre as pessoas – e aqui se encontra uma primeira possibilidade de implementação de justiça, pois se deve cobrar mais de quem pode pagar mais. Se a sociedade demanda a presença maior do Estado, deve arcar com maior cobrança de tributos – e se esta cobrança for efetuada de modo mais equânime, muito melhor.”[58]


A tributação fornece os elementos para os direitos fundamentais sejam realizados, expandindo a esfera de possibilidade de cumprimento desses direitos. Tal situação se realiza quando são criados tributos como modelo de financiamento, por exemplo, a CPMF.[59]


Se o objetivo for garantir a saúde nos moldes da OMS, é inevitável que haja aumento da receita do ente federativo. Se o preço para ter um direito à saúde irrestrito e que atenda à todas as exigências da construção social do patológico for o aumento do valor dos tributos, a sociedade deve analisar se compensa e se está disposta a arcar com os custos que  fenômeno analisado traz ao invadir o Poder Judiciário.


6. Considerações finais


Uma vez que levar os direitos a sério é não desconsiderar a questão da escassez de recursos, não deve-se conceder todo e qualquer pleito demandado perante o Poder Judiciário sob pena de a sociedade entrar em colapso.


O Poder Judiciário precisa acompanhar a evolução da sociedade, e uma das mudanças ocorridas foi a construção social do patológico, que é tratar fatos comuns como doenças passíveis de medicamentos, tais como o processo natural de envelhecimento, a grande energia das crianças, a calvíce, a tristeza comum. O mercado se utiliza do sonho de eterna juventude e longevidade e cria diversos medicamentos e quase todos os desejam.


Consequentemente, este fenômeno desemboca no Palácio da Justiça através de demandas cujo objeto são medicamentos ou tratamentos para conter o que antes eram meros fatos naturais da vida e, na verdade, passam longe de ser o mínimo existencial.


Não se discute que este mínimo existencial pode ser diferente para cada pessoa, todavia, o direito à saúde é social e, INQUESTIONAVELMENTE, ligado à reserva do possível e orçamento, afinal, é um direito que, para ser fornecido a alguém, gera gastos para o ente federativo. Muitos autores criticam o fato de à saúde ser dado contornos de direito individual a um direito social. Ao Judiciário cabe reconhecer a dignidade da pessoa humana e o direito à saúde, porém não pode-se desprezar questões de ordem orçamentária.


A OMS entende a saúde como um estado, praticamente inatingível, ninguém está sempre em dia com seu bem-estar físico, mental, social e espiritual, por isso dizem que é um conceito amplo, quase nirvânico. Com o passar dos anos, o fenômeno da construção social do patológico, que é transformar questões naturais da vida em patologias passíveis de medicamentos, fez com que a demanda por remédios aumentassem.


A lei constitucional e infraconstitucional não definiram também qual exatamente é a saúde a ser tutelada. Porém, a partir de 2007, através da Ministra Ellen Gracie, as decisões passaram a considerar as questões orçamentárias, que não é um interesse secundário do Estado e nem dicotômico ao direito à saúde, mas sim, interligados.


Julgar improcedente certas demandas fruto da construção social do patológico é um ato de prudência a partir do momento em que percebe-se que o pedido não se enquadra naquilo que razoavelmente pode o indivíduo exigir da sociedade. A solução ou é o juiz levar em conta a razoabilidade daquilo que é pedido ou o Estado aumentar valores de tributos para que a reserva do possível passe a ser suficiente para um direito á saúde total e irrestrito, afinal, uma sociedade que demanda a presença maior do Estado, deve arcar com maior cobrança de tributos para que os direitos que pleiteiam tenham maior possibilidade de serem atendidos.



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Notas:

[1] CONCEITO DE SAÚDE. Disponível em: www.oms.org. Acesso em 02 de julho de 2011.

[2] SCLIAR, Moacyr. História do conceito de saúde. Physis: Revista Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, 17 (1), 2007, p. 36.

[3] STEPKE, Fernando Lolas. Muito além do corpo – a construção narrativa da saúde. Minas Gerais: Edições Loyola, 2006, p. 85.

[4] Ibidem, p. 85.

[5] Ibidem, p. 85.

[6] DWORKIN, Ronald. Felicidade artificial São Paulo: Planeta, 2007, p. 11.

[7] Ibidem, p. 10.

[8] Ibidem, p. 10.

[9] KLEVENHUSEN, Renata Braga. Sociedade global tecnocientífica, direitos humanos e responsabilidade intergeracional. In.: KLEVENHUSEN, Renaga Braga (coord.). Temas sobre direitos humanos. Em homenagem ao professor Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 140.

[10] STEPKE. Op. Cit., p. 72.

[11] Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

[12] TJRJ.Apelação cível 0003326-56.2009.8.19.0063. 2a Câmara Cível. Desembargardor Carlos Eduardo Passos. Julgamento em 19 de julho de 2011.

[13] SALAZAR, Andrea Lazzarini, GROU, Karina Bozola. A defesa da saúde em juízo. São Paulo: Verbatim, 2009, p. 95.

[14] Artigo 2º- São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

[15] Artigo 5o, XXXV- A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

[16] GRINOVER, Ada Pellegrini. A ordem econômica na Constituição de 1988. 5a ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 82.

[17] Ibidem, p. 107.

[18] ABRAMOVICH, Victor, COURTIS, Christian.. In.: SALAZAR & GROU. Op. Cit., p. 83.

[19] SARLET & FIGUEIREDO. Op. Cit., p. 45.

[20] SARLET, Ingo Wolgang, FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In.: SARLET, Ingo Wolgang (coord.). Direitos Fundamentais: orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p.31.

[21] HOLMES, Stephen; SUSTEINS, Cass. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. New York- London: W. W. Norton & Company, 1999, p.  94.

[22] SARLET & FIGUEIREDO. Op. Cit., p. 33.

[23] Ibidem, p. 45.

[24] GRAU, Eros. Realismo e utopia constitucional. In.: SARLET. Op. Cit., p. 34.

[25] SARLET & FIGUEIREDO. Op. Cit., p. 39.

[26] SALAZAR & GROU. Op. Cit., p. 95.

[27] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2a ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 48.

[28] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Ação Civil Pública- Gizamento Constitucional. MILARÈ, Edis (coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 498.

[29] GRAU, Eros Roberto. Despesa pública – princípio da legalidade – decisão judicial. Boletim de Direito Administrativo, 1994, p. 101.

[30] SCAFF, Fernando Facury. Sentenças aditivas, direitos sociais e reserva do possível. In.: SARLET. Op. Cit., p. 133.

[31] Ibidem, p. 133.

[32] WANG. Op. Cit., p. 350.

[33] ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, 2001, p. 498.

[34] BRASIL, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Municípios: quanto custam as câmaras de vereadores. Informe da Secretaria para Assuntos Fiscais do BNDES, Brasília: nº 21, 2000.

[35] Ibidem, p. 137.

[36] Ibidem, p. 146.

[37] Ibidem, p. 147.

[38] WANG, Daniel Wei Liang. Escassez de recursos, custos dos direitos e reserva do possível na jurisprudência do STF. In.: SARLET. Op. Cit., p. 355.

[39] Ibidem, p. 353.

[40] Ibdem, p. 357.

[41] LUPION, Ricardo. O direito fundamental à saúde e o princípio da impessoalidade. In.: SARLET. Op. Cit., p. 312.

[42] STF, RE nº 410.715. Relator Ministro Celso de Melo. Julgamento em 22 de novembro de 2005.

[43] HOLMES & SUSTEIN. Op. Cit., p. 214.

[44] STF, ADI nº 2472-8. Relator Maurício Correa, julgamento em 11 de novembro de 2004.

[45] LUPION. Op. Cit., p. 315.

[46] BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro:Renovar, 2002, p. 279.

[47] LUPION. Op. Cit., p. 317.

[48] TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios de natureza orçamentária. In: SARLET. Op. Cit., p. 77.

[49] Ibidem, p. 73.

[50] Ibidem, p. 74.

[51] TORRES. Op. Cit., p. 76.

[52] LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Direito à saúde e critérios de aplicação. In.: SARLET. Op. Cit., p. 247.

[53] AMARAL & MELO. Op. Cit., p. 91.

[54] LUPION. Op. Cit., p. 323.

[55] SARLET & FIGUEIREDO. Op. Cit., p. 30.

[56] Vale mencionar que somos contra essa posição do autor quanto à não custear tratamento no exterior. Somos da opinião de que se o tratamento necessário existe apenas no exterior, este deve ser custeado.

[57] LIMA. Op. Cit., p. 251.

[58] SCAFF. Op. Cit., p. 152.

[59] CALIENDO, Paulo. Reserva do possível, direitos fundamentais e tributação. In.: SARLET. Op. Cit., p. 184.

Informações Sobre o Autor

Simone Alvarez Lima

Advogada, pós graduada em Direito e Processo Civil, Mestranda em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá.


Equipe Âmbito Jurídico

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