Depois de pouco mais de dois anos de vigência do atual Código Civil, apesar de todas as interrogações, dúvidas e questionamentos que surgiram[1], parece que se vem pacificando a interpretação em torno do seu mais intrincado, pouco claro e infeliz dispositivo: o inc. I do art. 1.829 do CC. Afinal, o que quis dizer o legislador?
Recente levantamento levado a efeito entre os doutrinadores de todo o País[2] mostra que a maioria deles entende que o cônjuge sobrevivente concorre com os herdeiros aos bens particulares do cônjuge falecido[3]. Alguns sustentam que o direito de concorrência incide tanto sobre os bens particulares como sobre os bens comuns.[4] Entre os partícipes deste rol, fico vencida, mas não convencida. Sou a única que, teimosamente, continua sustentando que, havendo bens particulares, o cônjuge sobrevivente não tem direito sobre eles. O direito de concorrência incide exclusivamente sobre os bens amealhados durante o casamento.[5]
Claro que a posição majoritária levou em conta a interpretação dos mais renomados professores da Língua Portuguesa que se debruçaram sobre o mal-elaborado texto e analisaram minuciosamente os seus “salvo se”, “ou se”, vírgulas e ponto-e-vírgulas. E, diante dos argumentos de ordem semântica e sintática dos gramáticos, os juristas não conseguiram chegar a outra interpretação que não a literal. A doutrina, então, passou a afirmar que, diante do texto da lei, não há outra saída. Nenhuma crítica é tecida ao malfadado dispositivo. Nenhuma voz se levanta para mostrar o caráter desarrazoado de seu enunciado. Seguindo a orientação dos doutos, a jurisprudência vem determinando a divisão dos bens particulares entre herdeiros e cônjuges.[6] Inclusive quando já separado o casal há mais de um ano, foi assegurado ao sobrevivente o direito de concorrer ao bem adquirido pelo de cujus antes do casamento.[7]
Assim, todos se curvaram ao que o legislador disse, ou ao que acharam que o legislador quis dizer: legem habemus.
Diante do que está posto na lei e do que vem sendo professado e ensinado, confesso que não sei como os dedicados advogados, para assegurar um teto à prole, vão continuar aconselhando seus clientes a deixarem com quem vai ficar com a guarda dos filhos (geralmente a mãe) o imóvel do casal, às vezes o único bem amealhado durante a convivência. Às vezes, inclusive, adquirido por herança. Porém, na hipótese de vir a ex-mulher a casar e posteriormente a falecer, parte do referido bem ficará, a título de direito de concorrência, com o novo marido. Jamais voltará aos filhos, nem quando da morte do viúvo sobrevivente. Tal bem irá aos herdeiros dele. Assim, formar-se-á um condomínio entre os filhos e o viúvo (e posteriormente seus sucessores) sobre, por exemplo,o imóvel que pertenceu à família do ex-marido. Se a solução parece ser jurídica, é no mínimo inusitada!
Também não sei qual será o conselho que dará o advogado a alguém que tem filhos e patrimônio e resolve casar. Quem não tiver o cuidado de procurar um profissional cauteloso que elabore um intrincado pacto antenupcial e um minucioso testamento certamente deixará os filhos em situação bastante surpreendente. Com a morte do genitor, perderão uma parte do patrimônio que ele havia amealhado mesmo antes do casamento.
Em qualquer um desses singelos exemplos, por demais freqüentes, não se pode deixar de reconhecer que a solução preconizada pelo legislador, além de ser contrária à vontade das partes, simplesmente gera enriquecimento sem causa. Alguém vai ganhar bens sem que tenha colaborado na sua formação e sem que tenha havido manifestação de vontade nesse sentido, quer por meio de pacto antenupcial, quer por testamento.
Não se pode olvidar que dispõem os nubentes, antes do casamento, do direito de estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver (CC, art. 1.639). O silêncio é uma forma de manifestação de vontade, pois revela que a opção é pelo regime da comunhão parcial de bens (CC, art. 1.640). Este regime, eleito pelo legislador para vigorar quando da omissão dos noivos, é o mais ético, pois deixa a cada qual o que é seu – adquirido por esforço individual, por herança ou doação – e manda dividir o que for amealhado em comum, partindo do pressuposto de que há colaboração mútua na sua formação.
Tendo eles se quedado silentes, significa que desejam a comunicação somente dos bens adquiridos durante o casamento, ficando excluídos da comunhão os bens particulares. Claro que essas previsões vigoram apenas quando acaba o casamento: separação ou morte. Ou seja, antes de casar, os noivos já estipulam como será a divisão dos bens depois de findo o casamento. Ora, se a vontade foi manifestada em um determinado sentido, de todo descabido que o legislador, em sede de direito sucessório, de forma arbitrária e desarrazoada e com afronta à vontade das partes, acabe por gerar o enriquecimento sem causa, pois confere bens a quem não contribuiu para sua aquisição.
Além de tudo isso, cabe lembrar que a união estável, por força de lei, se sujeita ao regime da comunhão parcial de bens (CC, art. 1.725). No entanto, em sede de direito sucessório, o regramento é diametralmente oposto e bem mais coerente do que parece ter sido regulamentado para o casamento. Concorrendo o companheiro sobrevivente com filhos do de cujus, sua participação é sobre os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável (CC, art. 1.790).
Esse tratamento diferente a dois institutos que receberam da Constituição Federal igual e especial proteção esbarra frontalmente com o princípio da igualdade e só pode levar ao reconhecimento da inconstitucionalidade da diferenciação.
Porém, a solução preconizada no julgamento levado a efeito pela justiça paulista[8] não pode prevalecer. Em face da existência de bens particulares, sob a alegação de que não poderia a companheira sobrevivente perceber mais direitos do que se casada fosse com o de cujus, foi excluído o direito de concorrência. Assim, para equiparar a limitação imposta ao casamento, o Tribunal acabou afastando o direito de concorrência expressamente assegurado à união estável. Ora, de todo descabido fazer analogia para limitar direitos. Quando verificada tal assimetria, para evitar afronta ao princípio da igualdade deve-se estender o direito a quem não foi contemplado, e não ceifá-lo de quem expressamente foi lembrado pelo legislador.
Mas a inconstitucionalidade do indigitado dispositivo não cessa ante esse tratamento diferenciado. Excluir o direito de concorrência no regime da separação obrigatória de bens e mantê-lo no regime da separação convencional também não tem justificativa. Igualmente afastá-lo em uma hipótese no regime da comunhão parcial de bens – a depender da existência ou não de bens particulares – sem fazer qualquer referência ao regime da participação final de aqüestos é tratamento díspar que não resiste ao teste da constitucionalidade, pois são regimes que não se diferenciam em seu resultado.
Portanto, inconstitucionalidades não faltam a evidenciar a falta de efetividade deste absurdo dispositivo legal. O fato é que todos reconhecem que a interpretação que vem sendo dada à lei tem sido fonte de enormes injustiças. E, quando há afronta ao princípio da razoabilidade, não dá para se conformar e somente suspirar à espera da reforma da lei para, então, se começar a fazer justiça.
O Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, atendendo ao seu papel institucional, já encaminhou projeto de lei sugerindo a alteração do indigitado dispositivo legal.[9] Mas é de todos conhecida a extrema demora do processo legislativo.
A postura passiva aguardando a mudança da lei nunca foi a atitude de quem lida com o Direito. Aliás, para cegamente aplicar a lei, bastaria colocar a toga no computador! A responsabilidade pelo resultado ético da atividade jurisdicional pertence aos operadores do Direito, que jamais se submeteram a ser a boca da lei.
Exemplos existem e são muitos:
– apesar da vedação legal, a atribuição de efeito às uniões extramatrimoniais pela jurisprudência é que levou a Constituição Federal a inserir a união estável como entidade familiar;
– ninguém duvida que a Súmula 377[10] simplesmente alterou o regime da separação obrigatória de bens (CC, art. 1.641);
– também é criação pretoriana a atribuição de efeitos jurídicos à separação de fato em absoluta afronta ao que diz a lei que somente atribui o fim do regime de bens à separação judicial (CC, arts. 1.575 e 1576);
– a consagração da filiação socioafetiva e a adoção à brasileira ilustram com perfeição a força criadora da justiça;
– a relativização da coisa julgada em sede de investigação de paternidade é talvez a mais recente amostra da supremacia da jurisprudência inclusive sobre princípio de ordem constitucional.
Esses são alguns exemplos que evidenciam a absoluta intolerância da Justiça em conviver com situações que ensejam o enriquecimento injustificado, ferem o senso de justiça ou levam a resultado que infirme elementares princípios e afronte a lógica do razoável.
É necessário que os doutrinadores assumam a responsabilidade de mostrar o absurdo do texto legal despertando a consciência da necessidade de se interpretar a lei sob a ótica constitucional. A jurisprudência só cumprirá sua finalidade interpretativa a partir do trabalho dos juristas. Só assim haverá a possibilidade da edição de súmula ditando a melhor leitura de um texto legal. Aliás, esta é a função da doutrina: alertar os operadores do Direito das conseqüências que a singela aplicação de confuso texto legal pode ensejar. De todo descabido cruzar os braços e aguardar a alteração da lei.
Está na hora de a Justiça cumprir sua missão e começar a fazer justiça.
Esta é uma tarefa de todos nós!
Advogada, Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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