O incidente de deslocamento de competência: história e aspectos conceituais

Resumo: O incidente de deslocamento de competência mais conhecido como a federalização das graves violações aos direitos humanos é um mecanismo que permite o deslocamento de processo ou inquérito do âmbito estadual para o âmbito federal, desde que se esteja diante de uma grave violação aos direitos humanos e sob o risco de responsabilização internacional. O presente trabalho pretende apresentar a história de surgimento do instituto, assim como trabalhar aspectos conceituais do mesmo, possibilidades de proposição e legitimados para a mesma, relacionando o surgimento do instituto com a história brasileira de constantes violações institucionais aos direitos humanos.*


Palavras-Chave: Direitos Humanos; Graves Violações; Incidente de deslocamento de competência;


1. Histórico


A Constituição Federal de 1988, produto do processo de negociação de transição democrática brasileira, encerrou vinte e cinco anos de ditadura militar e inaugurou uma nova ordem jurídica: a de um Estado democrático de direito assentado na dignidade da pessoa humana, na cidadania e na soberania popular.


Esta nova ordem gerou grande entusiasmo na sociedade brasileira. Nunca na história do país a palavra cidadania fora tão amplamente difundida, chegando, como aponta José Murilo de Carvalho (2006, p.7), a substituir o próprio povo na retórica política do período, ao ponto da carta magna passar a ser conhecida como Constituição cidadã. As possibilidades que se descortinavam no processo de transição democrática geraram no povo uma série de expectativas.   


“Havia a crença de que a democratização das instituições traria rapidamente a felicidade nacional. Pensava-se que o fato de termos reconquistado o direito de elegermos nosso prefeitos, governadores e presidente da República seria garantia de liberdade, de participação, de segurança, de desenvolvimento, de emprego, de justiça social” (CARVALHO, 2006, p.7).


Esse é entusiasmo logo foi perdido com o passar dos anos, em parte, pelas próprias características do processo de transição da ditadura para a democracia no Brasil. Esta foi, antes de um processo de clamor popular, uma negociação fardada, conformadora de diversos interesses, deixando marcas de um modelo político que se desejava superar. Os militares coordenaram todo o processo de transição, o que fez com que esta fosse longa e assumisse um caráter “controlado e gradual” (KINZO, 2001, p.6). Os civis só começaram a interferir de forma mais contundente a partir do ano de 1982. Mesmo assim esta intervenção não conseguiu se converter num processo de ruptura.


“Como de resto tem ocorrido em outros momentos de nossa história, a democratização que se iniciou com a restauração do governo civil não foi o produto de uma ruptura com a antiga ordem. Isto implica que a reconstrução do sistema político deu-se através de acomodações e do entrelaçamento de práticas e estruturas novas e antigas, combinação esta que estruturou as opções e estratégias seguidas pelos principais atores do processo político. Salientar este ponto não significa desconsiderar os avanços democráticos conquistados, os quais são, em grande medida, o produto da dinâmica política introduzida pelo próprio processo de democratização” (KINZO, 2001, p. 6).


Apesar desse caráter conformador de interesses que é ainda hoje bastante caro a nossa democracia, os caminhos para a participação popular estavam sendo abertos e o país passou a vivenciar um período de reorganização política, centrada nos partidos políticos e movimentos sociais.


 O processo de discussão da nova constituição foi tão complexo quanto o cenário político do período, no que se refere a sua elaboração a estrutura constituinte foi dividida em subcomissões, prezando-se pela completa descentralização e facilitando a participação dos constituintes em variadas fases, a imprensa cobriu todos os passos dados, existiu abertura para a intervenção da sociedade e para a participação de grupos organizados.


As forças políticas do período encontravam-se bastante fragmentadas e com uma organização ainda frágil, posto que recente, fato que tornou a Constituinte “bastante permeável às pressões dos interesses de grupo, sendo que a decisão da maioria era precedida de longas negociações acerca de praticamente cada item específico” (KINZO, 2001, p.6).


A Constituição Federal de 1988, a despeito das dificuldades enfrentadas para sua elaboração, significou avanços para a estrutura política brasileira pois estabeleceu como fundamento os valores da dignidade da pessoa humana e um amplo rol de direitos humanos, divididos em: direitos e liberdades individuais, direitos sociais, direitos difusos e direitos étnicos. Devolveu ao povo brasileiro as garantias do processo eleitoral, como o direito ao voto, estabelecendo um regime democrático representativo, com aspectos de democracia direta (plebiscito, referendo, iniciativa popular, etc), onde a soberania pertence ao povo.


“É incontestável que, com a edição da vigente Constituição, em 5 de outubro de 1988, os direitos humanos passaram a ocupar uma posição de supremacia no ordenamento jurídico brasileiro. Pela primeira vez em nossa história constitucional, eles são regulados no início do documento, logo após a declaração dos princípios fundamentais. Nas Constituições anteriores, essa posição de precedência formal era ocupada pelas normas de organização do Estado, como se fora este o principal objetivo da carta constitucional.” (COMPARATO, 2008, p.17)


Pela primeira vez os direitos humanos ocuparam posição de destaque no texto constitucional. Contudo, a promessa democrática de uma ordem política de promoção e respeito a esses direitos ainda não conseguiu suplantar na sociedade brasileira a herança de um passado autoritário de profundo desrespeito aos mesmos e de preponderância de interesses que estão muito aquém das necessidades concretas dos excluídos e oprimidos socialmente. Em virtude das peculiaridades do contexto social e político do processo de democratização, “o novo estava fadado a conviver com o velho”. (KINZO, 2001, p.8).


A realidade social brasileira continua com assustadoras desigualdades sociais, com a esfera política marcada por escandalosos casos de corrupção que não apenas dizem apenas respeito ao espaço do poder executivo, quanto também mostram o envolvimento dos poderes legislativo e judiciário. A mudança política não se converteu em mudança social, velhas práticas oligárquicas, de mandonismo e de ingerência privada no espaço público convivem e deturpam a democracia brasileira.


“A verdade é que o peso negativo do passado continua a manter, em nosso país, uma das situações de mais profunda desigualdade social do mundo. (…) Três fatores, estreitamente ligados entre si, contribuíram no passado para produzir esse efeito negativo: a escravidão, o latifúndio e a privatização do espaço público. Eles estão na origem do nosso regime político oligárquico e explicam a tradição de violência letal das forças policiais de segurança, bem como o velho costume dos interrogatórios sob tortura nas delegacias de policia. O regime militar adotou e ampliou essas práticas, com a invenção dos “desaparecimentos” de opositores.” (COMPARATO, 2008, p.17).


A situação dos direitos humanos no Brasil é bastante grave. Organizações da sociedade civil, movimentos sociais, dentre outros atores denunciam cotidianamente a condição de violência que vive a maioria dos brasileiros. Não existe sequer um único Estado brasileiro sem registro de graves violações.


No 3° Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil, produzido pelo Núcleo de Estudos de Violência – NEV da Universidade de São Paulo – USP, constatou-se que o quadro pode ser ainda mais grave do que o registrado, pois há imensa precariedade nos sistemas de registro de informações, estes “quando existem, são limitados e parciais, o que leva a crer que a magnitude e a importância dos problemas ainda é sub-estimada pelos governos e pela sociedade” (NETO; ALVES, 2006, p.11).


Dado alarmante é a forte participação do Estado brasileiro (compreendido como União e Estados membros) como agente violador dos direitos humanos. Este, que deveria priorizar pelo desenvolvimento e promoção, tem atuado como um dos maiores desrespeitadores desses direitos. Exemplo disto são os números crescentes de denúncias internacionais frente ao Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos contra o Brasil. (PIOVESAN, 2009, p.14).


Vários fatos históricos evidenciam a atuação do Estado como grande agente violador dos direitos humanos. Casos como o Carandiru, a Chacina da Candelária e Eldorado de Carajás não apenas demonstram a existência do arbítrio e da impunidade, como também do comprometimento de amplos setores dos Estados membros nessas violações, com a participação de chefes do executivo, juízes, parlamentares, policiais, dentre outros. Estes não apenas provocam descrença e falta de identificação da população brasileira com os direitos humanos, como também repercutem negativamente para o Brasil em âmbito internacional.


A sociedade brasileira nessas primeiras décadas de agir democrático tem enfrentado situações que colocam em cheque a confiança nas instituições políticas que foram fundadas com Carta Constitucional de 1988. Esse desprestígio e desconfiança institucional estão intrinsecamente relacionados com a não concretização dos direitos e garantias fundamentais e medem a qualidade da democracia vivenciada (BEETHAN, 2009, p.109). A título de exemplo, vejamos um panorama dos casos acima citados.


O massacre do Carandiru (CARANDIRU, 2010), nome que ficou conhecido o incidente ocorrido em 1992, onde para conter uma rebelião no pavilhão nove da maior casa de detenção da América Latina, a força policial invadiu o presídio matando 111 detentos. Relatos de presos contam que para escapar da morte se misturaram aos corpos dos outros mortos. Este evento escancarou a política prisional realizada pelo Brasil: uma política que não reabilita, mas que apenas castiga e animaliza.


“a decisão tomada pelo coronel Ubiratan Guimarães na ação do Carandiru foi consensuada por todas as autoridades presentes e consultadas, com “o respaldo do governador, com apoio do secretário de Segurança Pública, na presença do juiz corregedor, do juiz aposentado e então secretário adjunto de Segurança Pública, e com a complacência de Ismael Pedrosa, diretor do presídio, assassinado recentemente pelo PCC. O coronel Ubiratan é um bode expiatório de um crime pelo qual ninguém ainda foi julgado”, disse. “Não há uma linha nos autos que diga que o coronel tenha dito ou induzido alguém à violência. Se não tivesse invadido o presídio, estaria descumprindo seu dever legal. Um dos peritos disse que, se a polícia não tivesse entrado, os outros dois mil presos teriam morrido intoxicados pelo fogo que queimava”, afirmou” (BARBOSA, 2010).


 O caso foi a julgamento, de todos os envolvidos apenas uma pessoa enfrentou o júri popular e foi considerado culpado: o comandante da Polícia Militar Ubiratan Guimarães condenado a 632 anos de prisão. Em sede recursal, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por vinte votos a dois absolveu o acusado, manchando a história da justiça do país.


“Seguindo o voto do desembargador Walter Guilherme, que depois de afirmar que aquele se tratava de um julgamento com pano de fundo político, afirmou que não é possível haver excesso na ordem e nem quando se tem o estrito cumprimento de um dever legal. Que a vontade do júri popular era absolver, portanto, o coronel, e que o julgamento de 2001 deveria ter acabado naquele momento. “Considero, portanto, que o coronel está absolvido”, disse.” (BARBOSA, 2010)


O massacre de Eldorado dos Carajás ocorrido em 1996, sem dúvida, marcou profundamente os meados dos anos noventa. Oito anos após a promulgação da carta magna brasileira, assistimos à morte de vários trabalhadores rurais sem terra no Estado do Pará, em virtude da violência policial. O caso envolveu políticos locais, chefes e agentes da polícia, delegados, dentre outros.


Apesar do envolvimento descarado de agentes do Estado, mais assustadora foi à situação do judiciário paraense. À época do julgamento dos indiciados, dentre os dezoito juízes criminais da comarca de Belém do Pará, dezessete informaram ao presidente do tribunal de justiça que não aceitariam presidir o julgamento, alguns chegando a alegar simpatia pelos policiais e aversão aos trabalhadores rurais sem- terra pertencente ao Movimento dos Sem Terra – MST (MST, 2010).


Dos 152 acusados do massacre de Eldorado dos Carajás, apenas dois foram julgados e condenados e se encontram hoje em liberdade, sem terem cumprido a pena. O processo apresentou uma série de irregularidades, arduamente denunciadas pelas vítimas e demais envolvidos como, por exemplo, a permissão de jurados se manifestarem durante o processo favoráveis aos acusados, além do indeferimento de provas da acusação juntadas devidamente no prazo legal estabelecido.


“Durante três dias de sessão, o juiz Ronaldo Valle sistematicamente cerceou os poderes da acusação, impedindo a utilização em plenário de documentos juntados no prazo legal, permitindo manifestações públicas de jurados criticando a tese da acusação e defendendo pontos de vista apresentados pela defesa, além de permitir  à defesa críticas grosseiras ao promotor de justiça. Por fim, o juiz Ronaldo Valle manipulou o resultado da votação do Conselho de Sentença, obtendo assim a absolvição dos réus pelo placar de quatro votos a três. Com a pronta atuação do Promotor, dos assistentes de acusação, do MST e de entidades de defesa dos direitos humanos, os julgamentos dos demais 152 réus foram imediatamente suspensos. Os meios ilegais que o juiz Ronaldo Valle utilizou para obter a absolvição dos réus foram tão óbvios que o Tribunal de Justiça do Pará  determinou a anulação do julgamento em abril de 2000, decisão mantida em um segundo julgamento em outubro de 2000.O juiz Ronaldo Valle solicitou o afastamento do caso, o que acorreu em abril de 2000. Durante o processo de substituição do juiz, dos 18 juízes criminais da Comarca de Belém, 17 informaram ao Presidente do Tribunal de Justiça que não aceitariam presidir o julgamento por terem simpatia aos policiais acusados e aversão ao MST e aos trabalhadores rurais.” (CARVALHO, 2001)


É diante desse quadro de violência e impunidade, de comprometimento das estruturas estaduais e de forte repercussão internacional das violações perpetradas pelo Brasil que na década de noventa começa a se esboçar a idéia de federalização das graves violações contra os direitos humanos.


“Esse cenário negativo acabou por ser o catalizador que faltava para o efetivo estabelecimento de uma nova vertente processual para a defesa dos direitos da pessoa humana, quando violados no Brasil, em consonância com a internacionalização do direito humanitário e com a admissão da personalidade jurídica internacional da pessoa humana” (ARAS, 2005, p.3).


A idéia aparece pela primeira vez, em 1996, nas discussões em torno do primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH que possuía como objetivo identificar os principais obstáculos à promoção e proteção dos direitos humanos, para poder “eleger prioridades e apresentar propostas concretas de caráter administrativo, legislativo e político-cultural que busquem equacionar os mais graves problemas que hoje impossibilitam ou dificultam a sua plena realização” (PNDH, 1996). O programa indicou na sessão “combate à impunidade” a seguinte medida:


“Atribuir à Justiça Federal a competência para julgar (a) os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob a tutela de órgão federal de proteção a direitos humanos (b) as causas civis ou criminais nas quais o referido órgão ou o Procurador-Geral da República manifeste interesse” (PNDH, 1996).


 Ainda nesse ano, por iniciativa da Presidência da República, representada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, foi encaminhada à assembléia legislativa o projeto de emenda constitucional – PEC de n° 368/96, para acréscimo ao art. 109 da Constituição Federal de dois incisos, redigidos da seguinte forma:


 “XII – os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob a tutela de órgão federal de proteção aos direitos humanos; XIII – as causas civis ou criminais nas quais órgão federal de proteção aos direitos humanos ou Procurador Geral da República manifeste interesse” (CASTILHO,2006).


A PEC de n° 368/96 justificava na exposição de motivos a necessidade da existência da federalização devido ao fato de que historicamente, por fatores sociais, econômicos e culturais os Estados membros tinham desenvolvido uma postura mais distante do respeito aos Direitos Humanos e que a adoção desse instrumento poderia significar um combate à impunidade e um maior controle dos conflitos sociais, de maneira a evitar a violência generalizada. Ainda foi alegado que a Justiça e o Ministério Público Federal encontravam-se mais distantes das influências de poder locais, o que significava a garantia imparcialidade na condução das investigações das graves violações aos direitos humanos(CASTILHO, 2006).


A PEC n° 368/96 foi incorporada à de n° 96/92, que versava sobre a reforma do poder judiciário de autoria do Deputado Federal Hélio Bicudo, projeto de emenda que também recebia uma série de críticas de diversos setores do poder judiciário (CASTILHO, 2006), pois introduzia na Constituição Federal modificações como ampliação do rol de requisitos para a vitaliciedade, criação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, ampliação do rol de legitimados para propor ação direta de constitucionalidade – ADC, dentre outras medidas.


Esta PEC possuía como relatora a Deputada Federal Zulaiê Cobra. O projeto inicial que dispunha sobre a federalização foi bastante criticado por argumentos que serão esmiuçados no capítulo seguinte, o que fez com que a relatora modificasse o texto, deixando-o da seguinte forma:


“Nas hipóteses de graves violações de direitos humanos, o Ministério Público poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, na forma prevista na lei processual” (CASTILHO, 2006).


Percebe-se que a idéia original foi completamente modificada com a limitação dos legitimados a proporem tal medida. Ocorre que foi suprimida a possibilidade de requerimento do IDC por órgão federal, passando a ser o responsável pelo seu requerimento o Ministério Público. Outra importante alteração se encontra no uso da terminologia “graves violações de direitos humanos”[1], indicando que a medida só poderia ser suscitada quando a violação cometida contra os direitos humanos fosse extremamente onerosa à sociedade.


Na Câmara dos Deputados a redação ainda sofreu alterações no sentido de limitar ainda mais o rol dos legitimados a proporem tal ação, que passou a ser atribuição exclusiva do Procurador Geral da República. Além disto, adicionou o requisito da necessidade da grave violação ser decorrente de violação a tratado internacional do qual o Brasil seja signatário, ou seja, há a necessidade de risco de responsabilização internacional do Brasil pela violação cometida. A redação ficou a seguinte:


“Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência” (CASTILHO, 2006).


Essa redação foi aprovada pelo Senado Federal e publicada junto com a Emenda de n. 45/2004, acrescentada ao art.109, que trata da competência dos juízes federais, no parágrafo 5°.


2. O Incidente de Deslocamento de Competência: requisitos para implementação


O incidente de deslocamento de competência, mais conhecido como a federalização das graves violações aos direitos humanos, é a possibilidade de transferência da competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal, nas hipóteses de graves violações aos direitos humanos que afrontem obrigações assumidas pelo Brasil em tratados internacionais. Este instrumento só poder ser suscitado pelo Procurador Geral da República ao Superior Tribunal de Justiça – STJ.


Há uma tendência de entender a natureza do incidente de deslocamento de competência como processual penal, de forma que se aplicaria exclusivamente a condutas criminosas, tanto que muitos autores[2] substituem o termo “violações” pelo termo “crimes”, chamando o IDC de federalização dos crimes contra os direitos humanos.


“Pode-se conceituar o IDC como um instrumento político-jurídico, de natureza processual penal objetiva, destinado a assegurar a efetividade da prestação jurisdicional em casos de crimes contra os direitos humanos, previstos em tratados internacionais dos quais o Estado brasileiro seja parte. Cuida-se de ferramenta processual criada para assegurar um dos fundamentos da República: a dignidade da pessoa humana (artigo 1°, III, CF) e para preservar um dos princípios pelos quais se guia o País nas suas relações internacionais e obviamente também no plano interno: a prevalência dos direitos humanos” (ARAS, 2005).


Acreditamos neste trabalho ser esta uma interpretação restritiva do instrumento. O IDC pode abranger violações de direitos humanos que não sejam necessariamente caracterizadas como conduta criminosa. Na exposição dos motivos da PEC 368/96 afirma-se que devem ser incluídos na esfera da competência da justiça federal “as causas civis ou criminais nas quais o mesmo órgão ou Procurador-Geral da República manifeste interesse” (CAZZETA, 2009, p.164).


Apesar das diversas alterações que o referido projeto de emenda sofreu até se configurar no parágrafo 5° do art. 109 da Constituição Federal, acreditamos que a preferência legislativa pelo termo “violações” e não pela expressão “crimes” mantêm o espírito inicial que corresponde às questões tanto criminais quanto cíveis.


“De fato, a abertura da proteção constitucional também aos feitos de natureza civil mostra-se consentânea com o sistema que se introduziu, que, é bom frisar, busca evitar a responsabilização internacional do Brasil pelo descumprimento dos compromissos assumidos quanto aos direitos humanos” (CAZZETA, 2009, p.164).


Ubiratan Cazzeta (2009, p. 10) afirma ser necessário compreender as expressões fazem parte do IDC. A primeira deles é a “graves violações de direitos humanos”. Esta foi bastante criticada pela doutrina por sua abrangência, dando margem a uma série de interpretações, tanto pela grande dimensão do termo “graves violações” quanto pela definição de “direitos humanos”.


Direitos Humanos é um conjunto de garantias e condições mínimas que assegurem aos indivíduos e à coletividade uma vida com dignidade. É preciso ter em mente que os direitos humanos são fruto de uma afirmação histórica e que, esta, nem sempre é linear e coerente (COMPARATO, 2008, p.10). Quando falamos de direitos humanos neste trabalho partimos de uma perspectiva que engloba todas as dimensões desses direitos: individual, social, coletiva, cultural e econômica. Ainda se faz necessário afirmar que a concepção contemporânea de direitos humanos reconhece que esses direitos como universais, indivisíveis e interdependentes.


É importante ter em mente esta definição ampliada de direitos humanos. O que vai dar o alcance e significado ao IDC é o termo graves violações. Alguns autores questionam se toda violação aos direitos humanos não seria por si só uma grave violação? Como medir se uma violação é mais grave que a outra? Neste sentido, interessante o posicionamento de Ubiratan Cazzeta (2009, p. 151).


“O que se deve buscar é o elemento diferencial, o ponto de inflexão que demande a excepcional necessidade de alteração da competência. É bem por isso, aliás, que o texto constitucional requer a “grave violação” de direitos humanos, a transmitir a noção de que o fato há de ser dotado de características adicionais, capazes de atrair o interesse federal. Tais elementos podem derivar da conjugação de várias situações (objetivas e subjetivas), como o contexto que atuava a vítima em defesa de direitos humanos, a vinculação da ofensa a uma reiterada atuação estatal ilícita ou, mesmo, a uma tentativa de intimidação de minorias étnicas, prática de racismo ou como mecanismo de manutenção do poder”.


Importante observar que o IDC é uma medida excepcional, de forma que a violação aos direitos humanos deve estar circundada de fatos que a tornem especial, diversa das outras violações de direitos humanos, ou seja, “há de se agregar um elemento diferencial, que demonstre a inação ou a inadequação da apreciação de tais lides em seu locus de competência original” (CAZZETA, 2009, p. 154).


 Atualmente tramita no Congresso o projeto de lei de n°6.647/2006, de autoria da Deputada Federal Iriny Lopes, onde se pretende regular a aplicação do instituto. O projeto, contudo, não especificou quais seriam as violações de direitos humanos consideradas graves, mantendo a textura aberta do texto constitucional.  


O último requisito existente para que possa existir a federalização é que a grave violação esteja relacionada com o descumprimento de tratados internacionais ratificados pelo Brasil. É necessário, então, que exista o risco de responsabilização do país internacionalmente pela violação cometida. Contudo, isto não significa que seja exigida a existência de contencioso internacional específico da violação que se pretende federalizar.


“O objetivo do IDC não é, apenas, buscar alterar a situação de lides internacionais já instaladas ou de descumprimento já configurado; é antes estabelecer um mecanismo preventivo, para evitar a própria configuração da responsabilidade internacional ou, em outros termos, garantir que a efetivação dos direitos humanos seja plena em território nacional, afastando a crítica internacional” (CAZZETA, 2009, p.155).  


 A federalização das graves violações aos direitos humanos é um instituto constitucional ainda novo no ordenamento jurídico brasileiro. Em virtude disto, percebe-se que sua utilização e os requisitos para sua aplicação ainda estão em construção.


Apenas dois pedidos de federalização de graves violações de direitos humanos foi apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça, o primeiro deles sobre a apuração do crime da defensora de direitos humanos Dorothy Stang em 2005 e o segundo pedido realizado no ano de 2009 para apuração do assassinato do defensor de direitos humanos Manoel Mattos.


Ambos foram julgamentos bastante importantes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tendo o primeiro deles sido indeferido, ao passo que o segundo marca o nascimento da utilização do instituto e está construindo os caminhos processuais do mesmo.


 Tanto no julgamento do IDC n° 1 (Dorothy Stang) quanto no do IDC de n° 2 (Manoel Mattos) o Superior Tribunal de Justiça argumentou/utilizou do entendimento de que a grave violação aos direitos humanos deveria ser causada por uma ação/omissão do Estado federado, provando-se a leniência ou até mesmo o envolvimento direto de agentes estatais na perpetração destas graves violações.


3. Considerações Finais


A federalização das graves violações dos direitos humanos articula sérias discussões sobre a democracia brasileira, como: a confiança da população nas instituições, a corrupção, a deturpação do espaço público pela vida privada, a disputa entre centralização e descentralização do poder e a luta pela concretização dos direitos humanos.


A realidade brasileira mostra por si só o comprometimento das estruturas estatais com as graves violações de direitos humanos. Neste sentido, acredita-se ser o incidente de deslocamento de competência uma dos instrumentos possíveis de combate à violência e à impunidade.


Diante da abertura dos requisitos para suscitar o Incidente de deslocamento de competência, percebe-se que só a violação concreta pode dar significação à necessidade ou não de federalização. É só a análise do caso concreto que permite compreender este instituto e seu verdadeiro alcance.


Como já dito, o IDC se insere dentro das próprias contradições da democracia que vem sendo construída no Brasil, uma democracia que urge soluções para as gritantes desigualdades sociais e para o quadro de violência sistemática vivenciada pela maioria da população.


Acredita-se que a verdadeira dimensão histórica do instituto só será conhecida com a sua aplicação prática. Se este vai confirmar ou contrariar as críticas realizadas só saberemos nas páginas próximas da história. Páginas que estamos escrevendo.


 


Referências

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VILHENA, Oscar; DIAS, José Carlos. Monopólio da impunidade. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/17416/16980>. Acesso em: 25 nov. 2010.


Notas:
*
O presente artigo fez parte da pesquisas que resultaram no trabalho monográfico defendido em 2010, intitulado “Entre a responsabilização internacional e o federalismo: o incidente de deslocamento de competência” sob a orientação do professor Ms. Eduardo Fernandes de Araújo.

[1] O termo “graves violações aos direitos humanos” é bastante criticado pelos setores contrários ao IDC, pois o consideram bastante aberto. Em que medida uma violação aos direitos humanos é mais grave do que outras? Ver: SARLET, Ingo Wolfgan; FURIAN, Leonardo; FENSTERSEIFER, Tiago. A reforma (deforma?)do judiciário e a assim designada “federalização dos crimes contra os direitos humanos: proteção ou violação de princípios e direitos fundamentais?. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-4-DEZEMBRO-2005-INGO%20SARLET.pdf > Acesso em: 19.jun.2010;

[2] Ver: ARAS (2005); SCHEREBER (2005); BONSAGLIA (2005).

Informações Sobre o Autor

Gilmara Joane Macêdo de Medeiros

Mestranda em Ciências Jurídicas na Universidade Federal da Paraíba, área de concentração em Direitos Humanos


Equipe Âmbito Jurídico

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