O inconcebível litisconsórcio passivo em mandado de segurança

Doutrina e jurisprudência, há muito consolidada, afirmam impositiva, em sede de mandado de segurança, a formação de litisconsórcio passivo entre a autoridade impetrada e aqueles que serão afetados em caso de eventual decisão concessiva da ordem, ou seja, os beneficiários da omissão ou do ato reputado ilegal, que, em sendo cassado ou corrigido, deixará de proporcionar indevido benefício. Isso, sob pena de extinção do mandamus sem julgamento do mérito.

Nessa linha tem decidido o STJ: “Consoante entendimento firmado no Superior Tribunal de Justiça, aqueles que podem ter suas esferas jurídicas afetadas por decisão proferida em mandado de segurança devem ser chamados a ingressar na lide na condição de litisconsortes passivos necessários, sob pena de nulidade do julgamento. Inteligência do art. 47 do CPC.” (RMS 19096-MG, DJ 12.04.2007).

Há, inclusive, recente súmula do STF em tal sentido (nº 631): “Extingue-se o processo de mandado de segurança se o impetrante não promove, no prazo assinado, a citação do litisconsorte passivo necessário.”

Celso Agrícola Barbi, para citar apenas um dentre plêiade de doutrinadores com mesma opinião, em lição muito presente na jurisprudência, sustenta que “toda vez que o mandado de segurança implicar modificação da posição jurídica de outras pessoas, que foram diretamente beneficiadas pelo ato impugnado, ou, mais precisamente, quando a sentença modificar direito subjetivo criado pelo ato impugnado pelo favor de outras pessoas, haverá litisconsórcio necessário, e a sentença não poderá ser dada sem que esses terceiros sejam citados como partes passivas na ação.”

Tal entendimento, que fragiliza garantia constitucional, não resiste à análise mais detida à luz de postulados básicos da Teoria Geral do Processo. Na verdade, é de difícil compreensão como tantos doutos sustentaram por tanto tempo, e ainda hoje sustentam, a insubsistente tese.

Mandado de segurança é ação constitucional sui generis. É ação tão especial que não há réu. A autoridade impetrada não é citada, portanto, não contesta a inicial. Simplesmente é notificada para prestar informações sobre a omissão ou ato reputado ilegal. Ou seja, é tão-só instada a informar ao julgador porque agiu ou se omitiu.

Essa peculiar característica, por si só, evidencia a inviabilidade lógica e técnica de formação de litisconsórcio passivo necessário, que, nos termos do art. 47 do CPC, só se dá entre réus, em ações cuja lide deva ser decidida de forma uniforme. Como não há réus, logo, não há lide típica, e a ação é decidida tendo em conta, estritamente, a verificação da legalidade ou ilegalidade da omissão ou do ato da autoridade impetrada, inconcebível a formação de qualquer espécie de litisconsórcio passivo.

Tanto assim, que também na hipótese de ato complexo não se dá litisconsórcio passivo necessário entre as autoridades impetradas, pois, como acima anotado, não se tratam de réus, não são citados, não contestam, não há lide entre eles e o impetrante, tão-só prestam informações, dada à responsabilidade compartilhada em relação ao ato, comissivo ou omissivo, impugnado.

Aliás, tampouco entre pessoa jurídica e autoridade impetrada a ela vinculada forma-se litisconsórcio passivo, vez que o agente coator “é fragmento dela”, na locução de Otto von Gierke. Aqui também evidenciando a ausência da figura de réu nessa peculiar ação constitucional de rito sumário, em que nem mesmo a entidade pública que irá suportar as conseqüências da decisão judicial é citada para contestá-la.

A não-citação do ente público, justamente por gozar de privilégios processuais, diz com a observância da celeridade, tônica do mandado de segurança, que, em verdade, trata-se de uma garantia constitucional instrumentalizada em ação de procedimento ágil. No ponto, a lei de regência é taxativa: findo o prazo de 10 dias para as informações do impetrado, e após ouvido o Ministério Público, com ou sem informações, a decisão deve ser proferida em 5 dias (art. 10), enquanto nos tribunais deve ser levado à julgamento na sessão imediatamente posterior à conclusão ao relator (art. 17).

Nessa especialíssima ação, o ente estatal, que como visto é quem efetivamente irá suportar os efeitos da sentença, tão-somente virá tornar-se parte – recorrente ou recorrida – em eventual fase recursal, se interposto recurso da decisão concessiva ou denegatória da ordem.

Assim, o organismo público ao qual está vinculada a autoridade impetrada, ou seja, quem sofre os efeitos diretos da sentença, quem possui interesse jurídico, e, não raro, econômico, no resultado do processo, não é citado, portanto não contesta a inicial, não defende a omissão ou ato impugnado, não forma litisconsórcio passivo com o coator, mas, pasme-se, terceiros que poderão deixar de se beneficiar da omissão ou do ato, se reconhecido ilegal, estes sim, haveriam de ser todos citados, formar um inusitado litisconsórcio passivo necessário com quem não é réu, para ‘contestarem’ a inicial, isso sob pena de extinção do processo ou nulidade do julgamento.

José Frederico Marques, discorrendo acerca de conceitos processuais básicos, sublinha que o “Destinatário da citação é sempre o réu, porquanto a ele é que cumpre defender-se, como litigante, no processo iniciado pelo autor. Por esse motivo, determinado vem que se fará ‘a citação pessoalmente ao réu’ (idem, art. 215, caput), admitindo o aludido preceito que também a receba o ‘procurador legalmente autorizado’.”, também evidenciando o despropósito da formação do litisconsórcio passivo ora em exame. Afinal, em sede de mandado de segurança, qual é a lide entre impetrante e beneficiários do ato impugnado? Qual é a pretensão do impetrante a ser satisfeita por aqueles? Devem ser, os referidos, citados para defenderem-se do que?

Citação, consoante De Plácido e Silva, é “o ato processual pelo qual se chama ou se convoca para vir a juízo, a fim de participar de todos os atos e termos da demanda intentada, a pessoa contra quem é ela promovida.”. Qual demanda é promovida contra os beneficiários do ato impugnado?

Na gênese da questionada tese vislumbra-se exegese falha do art. 19 da Lei 1.533/51, que dispõe: “Aplicam-se ao processo do mandado de segurança os artigos do Código de Processo Civil que regulam o litisconsórcio”. É injustificável que se faça a leitura desse artigo com vistas a desnaturar o mandado de segurança, admitindo-se a existência de uma inconcepta lide entre impetrante e beneficiários da reputada ilegalidade, que devam ser necessariamente ‘citados’ para, em litisconsórcio passivo, virem a juízo ‘contestar’ o writ, algo que, vale repisar, nem mesmo a autoridade coatora está autorizada a fazer.

Inequívoco que o disposto no artigo 19 da lei de regência refere-se, exclusivamente, a possibilidade de diversas pessoas prejudicadas por um mesmo ato ilegal, comissivo ou omissivo, praticado por autoridade, formarem litisconsórcio ativo para fins de impugnação de tal ato, hipótese em que serão aplicadas as disposições do CPC pertinentes ao referido instituto.

A figura de direito mais adequada à condição que ostentam os beneficiários do ato ilegal seria a de assistentes simples, a teor do art. 50 do CPC, que assim dispõe: “Pendendo uma causa entre duas ou mais pessoas, o terceiro, que tiver interesse jurídico em que a sentença seja favorável a uma delas, poderá intervir no processo para assisti-la”.

Contudo, sequer como assistentes simples do impetrado os beneficiários do ato impugnado podem ser admitidos na ação mandamental, vez que a LMS não prevê qualquer espécie de assistência em seu rito sumário e específico. Ademais, vale lembrar, assistência só é possível de ser prestada a autor ou réu, e a autoridade impetrada, como visto, não é ré.

De forma que, se terceiros estão a se beneficiar de ato, comissivo ou omissivo, reconhecido como ilegal, cassado ou corrigido o ato, ou sanada a omissão, deixarão de desfrutar do benefício indevido, sem que tenham de, anomalamente e a qualquer título, ingressar na ação mandamental.

Isso deve ocorrer não apenas porque nessa espécie sui generis de ação não se estabelece lide entre impetrantes e beneficiários do ato impugnado, daí resultando descabido cogitar-se em ampla defesa e contraditório, ou porque a lei de regência não prevê qualquer espécie de assistência à autoridade impetrada, que limita-se a prestar informações, mas, fundamentalmente, em respeito à celeridade e efetividade da proteção constitucional ao direito líquido e certo violado ou ameaçado por autoridade, garantia inafastável da cidadania.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Thomaz Thompson Flores Neto

 

Advogado

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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