1. Introdução
Na sociedade de risco, os crimes culposos representam o injusto penal mais importante da Teoria do Crime.[1] A incontrolável transformação da sociedade em escala mundial e a conseqüente introdução de atividades e de serviços cada vez mais arriscados e perigosos tornaram indispensável estender aos fatos culposos a compreensão do injusto penal[2]. A extensão da análise do injusto penal ao crime culposo pretende ajustar a ação do agente ao conteúdo da norma de cuidado. A importância dessa análise se justifica na necessidade de se traçar uma linha divisória entre o lícito e o ilícito penal.
Esta separação entre o lícito e o ilícito é uma condição de garantia da liberdade da pessoa humana frente ao direito punitivo estatal; e, só pode ser satisfeita por meio de um processo claro quanto ao conteúdo das proibições legais[3]. Assim sendo, este artigo, subordinado aos questionamentos da Teoria da Imputação Objetiva, tem como objetivo investigar o nexo causal como ação e como resultado juridicamente relevante na constituição do injusto penal culposo no contexto da sociedade de risco.
Na legislação penal há previsão de crimes materiais os quais englobam a ação humana e a conseqüência por ela produzida de tal forma que, só haverá consumação quando o resultado se concretizar. Em razão dessa integração na descrição típica de ação e de resultado, surge a necessidade de identificar-se o nexo causal. Mas, entre o simples nexo causal físico há o “dever objetivo de cuidado” como terceiro elemento na configuração dos crimes culposos. A vida humana, pois, por ser perigosa, deve ser vivida com a observância de um dever geral de cuidado, objetivamente verificável. Esse dever é imposto a todas as pessoas, e sua inobservância constitui comportamento proibido pelo direito.
Diante deste quadro, o nexo causal físico encarna uma estrutura complexa em razão da característica aberta e normativa do desatendimento ao cuidado objetivo exigível ao agente.[4] O dever objetivo de cuidado constitui, portanto, o limite jurídico-formal da causalidade física porque lhe atribui relevância penal. Pois bem, a inobservância do dever objetivo de cuidado manifestada numa ação produtora de um resultado não querido e objetivamente previsível constitui o tipo de injusto culposo.Todavia, como definir de forma mais específica o tipo de injusto culposo? Ou seja, como conceber o injusto penal culposo no contexto da sociedade de risco?
Do ponto de vista da Teoria da Imputação Objetiva, o injusto penal culposo deverá ser concebido no conteúdo do dever de cuidado de modo que a causalidade seja valorada. Nos dias de hoje em que a vida incorpora, cada vez mais, modernos e também perigosos mecanismos destinados a facilitar a vida do homem, todos têm um dever geral de adotar toda a cautela. O tráfego de veículos, a construção civil, as intervenções médico-cirúrgicas são algumas das mais variadas atividades humanas que trazem em sua essência determinados graus de perigo. No entanto, as necessidades cotidianas de locomoção, de moradia e de cura autorizam a assunção de certos riscos que são da própria natureza dessas atividades.
A importância atribuída a essas atividades pela sociedade constitui uma necessidade vital do ser humano. Desse modo, a sociedade não pode prescindir de uma escala de valores quando resolve eleger certas atividades como algo indispensável. No âmbito das atividades eleitas, há ações humanas aceitáveis; outras inaceitáveis em sociedade. Somente as ações humanas inaceitáveis são juridicamente relevantes. Esse é o mundo dos valores jurídicos. E é justamente nesse mundo que será preciso conceber o injusto penal culposo. Ou seja, a permanente atividade valorativa é quem vai ditar o conteúdo do dever objetivo de cuidado em uma relação de causalidade.
No atual estágio da sociedade, o conteúdo do dever objetivo de cuidado constitui-se mediante processo e produto da atividade valorativa. O injusto culposo, como violação desse conteúdo, representa ao mesmo tempo um processo e um produto. Como processo, é uma atividade valorativa que investiga, nas especiais circunstâncias da ação do agente, os elementos que seriam penalmente relevantes. Como produto, encarna o resultado da investigação dos elementos penalmente relevantes da ação praticada pelo agente. Pensado deste modo, o injusto penalmente relevante para a reprovação deverá ser uma totalidade axiológica, historicamente concebida entre o desvalor da ação e o desvalor do resultado[5].
Concebido o injusto penal culposo a partir do conteúdo do dever de cuidado, o nexo causal torna-se valorado. Com a valoração do nexo causal, a ação torna-se relevante para produzir um resultado, também, relevante. Deste modo, o conteúdo da norma de cuidado exigível ao agente funcionará como limite jurídico material da causalidade natural; instrumento científico indispensável para o desenvolvimento de uma dialética fecunda para a compreensão dos crimes culposos no século XXI.
2. A Teorização do Nexo Causal
Na dogmática jurídico-penal, o crime culposo ocupava posição secundária devido ao formalismo exagerado das teorias elaboradas[6]. A Teoria Causalista apenas se preocupou com a construção de um sistema jurídico penal lógico para que os operadores do direito tivessem um instrumento para a aplicação da lei penal. Na Teoria Causal, a tipicidade era formal. Assim, a mera subsunção do fato praticado ao modelo legal de crime implicaria na tipicidade da ação, sem qualquer outra avaliação.
A Teoria Causal da ação limita-se a perguntar o que foi causado pelo agente, isto é, qual o efeito produzido pela sua ação. Todavia, em relação aos crimes culposos, a teoria não teve êxito, pois o decisivo do injusto culposo não é o desvalor do resultado, e sim o desvalor da ação. Como fruto do positivismo científico, o causalismo queria garantir o máximo de segurança jurídica, mediante o tipo puramente objetivo e o formalismo nos conceitos das categorias dogmáticas do crime. Embora não neguem que a conduta implica uma finalidade, os causalistas entendem que, para se concluir pela existência da ação típica, deve-se apreciar o comportamento sem qualquer indagação a respeito de sua ilicitude ou de sua culpabilidade, ou seja, consideram que a ação é a manifestação da vontade sem conteúdo finalístico. Esse conteúdo – fim da conduta – deve ser apreciado na culpabilidade, como elemento dela.
Opondo-se ao conceito causal de ação, especialmente à insustentável separação entre a vontade e seu conteúdo, Welzel elaborou o conceito finalista de ação. Com a Teoria Finalista, o rigor formal foi amenizado já que o tipo legal passou a ser composto das dimensões objetiva e subjetiva. Esta última era integrada pelo dolo ou pela culpa, que foram deslocados da culpabilidade para a tipicidade, transformando, assim, o injusto naturalístico em injusto pessoal. Contudo, tais mudanças não foram significativas, pois o reflexo da visão lógico-formal do causalismo e do finalismo, manteve-se nas legislações penais que adotaram a Teoria da Equivalência dos Antecedentes Causais, a qual visava solucionar o processo de imputação nos crimes materiais.
Segundo esta teoria, o resultado lesivo só é imputado a quem lhe deu causa, considerando esta toda a ação ou omissão sem a qual o evento não teria ocorrido. Em muitos casos não surgem dúvidas acerca da causalidade entre uma ação e um determinado resultado como, por exemplo, quando o agente dispara vários tiros contra a vítima que morre instantaneamente em conseqüência dos ferimentos. Logo, a mera relação de causalidade naturalística mostrar-se-ia suficiente para a responsabilização penal. Não obstante a grande aceitação e contribuição desta teoria para a solução dos problemas na seara penal; é certo que o rigorismo da causalidade puramente naturalística conduz a situações injustas, além de se mostrar impotente à solução de alguns problemas derivados do universo de possibilidades das ações humanas, porque nem todas as relações entre ação e resultado são tão fáceis de serem resolvidas.
A rápida transformação das relações sociais conduzida, sobretudo pelo próprio avanço tecnológico e científico, fez surgir um número inimaginável de condutas humanas em situações de perigo e de risco. Para resolver casos complicados, elaboraram-se outras teorias importantes como: a Teoria da causação adequada e a Teoria da causa juridicamente relevante. Para a teoria da adequação, nem toda condição do resultado concreto é causa em sentido jurídico, somente aquela que geralmente é adequada para produzir o resultado.
Uma ação será adequada para produzir um resultado quando pessoas normais colocadas na mesma situação que o agente, puderem prever que o resultado se produziria objetivamente. Mas previsível objetivamente é quase tudo. Por isso, a teoria da adequação recorre a outro critério limitador da causalidade: o dever de cuidado. Assim, se a ação se realiza com a diligência devida, mesmo que seja previsível um resultado, ela se mantém no âmbito do permitido juridicamente e não apresenta nenhum problema. Previsibilidade objetiva e dever de cuidado são critérios seletivos que servem para precisar o momento em que a ação é adequada para produzir um resultado, e, por isso, causa do mesmo.
Mas a Teoria da Adequação tem o inconveniente de confundir o plano ontológico – ação é causa do resultado – com o plano normativo em que a causa deve ter relevância penal. Com efeito, o fato de uma causa não ser adequada para produzir um resultado por ausência de previsão objetiva, não significa que ela não seja uma causa. Ser causa faz parte da natureza de uma ação. Assim, a teoria da causa juridicamente relevante diferencia entre a determinação da causalidade e a questão em saber se uma causa é ou não é relevante penalmente.
Desde o ponto de vista ontológico, toda condição é causa de um resultado em sentido natural. Mas, desde o ponto de vista jurídico, esta causalidade natural deve ser limitada com ajuda de critérios jurídicos, de tal forma que o problema causal se converta em um problema jurídico para ser incluído na categoria do injusto. Com o seguinte exemplo, poderemos compreender melhor o alcance dessas teorias. Suponha que determinado motorista, conduzindo cuidadosamente seu veículo, atropela a vítima que atravessa a rua sem prestar atenção à luz vermelha do semáforo. Para a teoria da equivalência das condições, a ação do motorista é causa do resultado; para a teoria da adequação, a ação do motorista não é causa; para a teoria da causa juridicamente relevante, a ação do motorista, apesar ser causa do atropelamento, não é típica. Percebe-se que esta teoria não negaria a causalidade da ação do motorista, senão que sua relevância jurídica.
Parece, pois, preferível articular a Teoria da adequação com a Teoria da relevância jurídica. Todavia, a previsibilidade objetiva e o dever de cuidado são elementos normativos vagos e imprecisos para delimitar os processos causais juridicamente relevantes. Por isso, as teorias da causalidade, em suas distintas vertentes, vêm sendo completadas, em sua maior parte, pela Teoria da Imputação Objetiva, elaborada na Alemanha por Claus Roxin. Esta teoria restringe o âmbito da imputação àquilo que é juridicamente relevante. Neste caso, por força da intervenção mínima do Direito Penal, as ações somente serão culposas na medida em que produzirem determinados resultados.
Neste contexto, a atual visão do crime culposo sob o enfoque tanto da Teoria Causalista quanto da Teoria Finalista mostra-se inadequada para orientar as diversas relações jurídicas do cotidiano. São teorias inadequadas, porque elas estão presas a um raciocínio puramente lógico capaz de manter o crime culposo à margem da dogmática jurídico-penal e assim, sacrificar o ideal de justiça, fim da Ciência Jurídica.
A distinção entre ação, como simples manifestação de vontade, e resultado, como conseqüência externa derivada da manifestação de vontade, tem grande importância dogmático-penal. Nos crimes materiais, a ação sempre provoca uma modificação exterior. O resultado, numa concepção naturalística, é esse mundo exterior modificado. Por isso, o tipo de injusto objetivo somente se realiza quando entre a ação e o resultado houver um nexo de causalidade. Assim sendo, o nexo causal nada mais é do que a imputação física do crime ao autor da conduta produtora do resultado presente no tipo objetivo.[7]
Trata-se de concepção tradicional da causalidade, como elemento necessário e suficiente de todo crime material, tanto para o injusto dos tipos dolosos quanto para o injusto dos tipos culposos. A causalidade é concebida, previamente, como elemento da ação, num enfoque puramente naturalístico da teoria do crime, que considera a relação entre ação e resultado como categoria ontológica e pré-jurídica, isto é, não valorativa.
Em relação ao injusto dos tipos culposos, Bitencourt (2003, 84) afirma que o finalismo é a teoria que permite sua melhor compreensão. Entretanto, ele mesmo admite que o resultado produzido, elemento essencial do crime culposo, fica fora da ação finalista. Ora, pensamos que se o resultado fica fora da ação voluntária do agente nos crimes culposos, então o finalismo não é a melhor doutrina para que o nexo causal seja adequadamente examinado.
3. O Nexo Causal Penalmente Relevante
Neste artigo, torna-se indispensável examinar o penalmente relevante da cadeia causal produzida. Analisar se é uma cadeia causal adequada ao tipo. Inicialmente, a relevância da causalidade é aferida por meio de um juízo comparativo entre a ação realizada pelo agente e aquela que era imposta pelo dever objetivo de cuidado, pois, o essencial no tipo de injusto culposo não é a simples causação do resultado. Ou seja, a observação da cadeia causal naturalística deixa de ser elemento suficiente na apreciação típica para respaldar a responsabilidade penal do agente. Isto ocorre porque não nos importa mais a tradicional análise mecânico-natural do tipo de injusto objetivo.
Ademais, devemos considerar a advertência de Wessels (1976, 40), para quem:
“nos delitos de resultado a existência do nexo causal é o mais importante, mas não o único pressuposto da imputação. Fundamento da imputação objetiva do resultado socialmente danoso é a causalidade da ação para a ocorrência do resultado típico, mas nem toda causação é, na espécie, juridicamente relevante, de forma que fundamente a responsabilidade jurídico-penal.”
No processo de seleção e depuração dos fatores causais, impõe-se a utilização de elementos de caráter normativo extraídos do próprio Direito Penal que permitam, já no plano objetivo, delimitar a parte da causalidade juridicamente relevante. A previsibilidade objetiva, por exemplo, é elemento normativo; porém, é fórmula abstrata que pouco serve para resolver os casos mais difíceis. Previsível e resultado objetivamente evitável é quase tudo, sobretudo quando ocorre a violação da diligência devida pelo agente. Por isso, o âmbito da proibição penal ou da depuração dos fatores causais relevantes, só deve começar onde se possa constatar a realização de uma ação que exceda o juridicamente permitido.
Toda ação é suficiente para responsabilizar o agente, quando cria ou aumenta um risco não permitido, com a conseqüente produção do resultado jurídico. Em alguns casos excepcionais, a criação de um risco não permitido pode ser irrelevante penalmente se não produz o risco proibido. Assim, transportar pessoas assentadas na carroceria de um caminhão é certamente criar um risco não permitido. Embora, a ação tenha violado o dever de cuidado quanto ao transporte de pessoas, não parece que entre no âmbito do conteúdo do dever do motorista cuidar das pessoas transportadas, à exaustão. Assim, se a vítima, que ao se levantar voluntariamente e conscientemente para embriagar-se, cai do veículo e morre, o resultado jurídico não poderá ser atribuído ao motorista. Na verdade a vítima incrementou, com o seu comportamento, o risco já criado anteriormente pelo motorista.
Constituído pelo risco não permitido e pelo resultado jurídico produzido, o conteúdo da norma de cuidado é um limite material aplicável ao nexo causal físico. Este limite serve para solucionar casos em que, mesmo que o nexo causal físico tenha ocorrido, este não deve ser imputado a ele, se é constatado que a ação não produziu um resultado jurídico. Cite-se, por exemplo, a circulação de automóveis. O dever de cuidado, neste caso, tem um conteúdo relacionado apenas à ação e ao resultado lesivo dos participantes no trânsito. Por isso, torna-se impossível atribuir responsabilidade penal ao motorista envolvido no acidente, se a mãe morre por infarto ao saber da morte do filho no acidente.
Os casos são diversos e complicados e vão desde crimes culposos no trânsito com morte ou lesão corporal até a ação negligente do agente que deixa a arma ao alcance de um depressivo que se suicida com ela. Estas ações e resultados estão fora do conteúdo do dever de cuidado e, por isso, devem ser excluídos do penalmente relevante. Estes problemas se apresentam com mais freqüência nos crimes culposos, já que uma série de circunstâncias mais ou menos imprevisíveis determina a produção de um resultado, às vezes completamente distinto e contrário ao pretendido pelo agente causador.
A inobservância do dever objetivo de cuidado é elemento fundamental na apreciação do limite jurídico-formal do nexo causal culposo, pois constitui questão preliminar no exame da responsabilidade, quando resulta da comparação da direção finalista real com a direção finalista exigida para evitar a violação ao direito alheio. Mas, o exame da responsabilidade penal deve estar além da simples apreciação do limite jurídico-formal, porque uma ação meramente arriscada ou perigosa não implica necessariamente a violação do direito alheio, principalmente quando o risco é permitido.
Comprovam-se cada vez mais as insuficiências dos conceitos ônticos e pré-jurídicos para fundamentar por si só, mesmo que seja no plano puramente objetivo, a imputação de um resultado a uma pessoa. Ademais, em uma sociedade em que o progresso e as necessidades quotidianas autorizam a assunção de certos riscos, a infração do dever de cuidado por si só não é suficiente para configurar o injusto típico dos crimes culposo. Será necessário que o agir descuidado ultrapasse os limites de perigos socialmente aceitáveis na atividade desenvolvida, como por exemplo, na médico-cirúrgica.[8]
Conexões causais equivalentes, como, por exemplo, matar alguém disparando uma arma; impedindo que a pessoa se alimente; ou, matar sob a influência do estado puerperal, são ações valoradas de forma diferente pelo Direito Penal, porque mortes, derivadas de uma omissão ou de um infanticídio, só são imputadas a quem tinha um especial dever de evitar o resultado ou tinha uma especial condição pessoal[9]. O conceito de causalidade só adquire sentido no Direito Penal na medida em que é objeto de valoração no contexto do socialmente aceitável ou inaceitável. [10]
O dever de cuidado é um componente normativo do tipo objetivo culposo. Mas, esse juízo normativo não surge da comparação entre a ação de um homem razoável e prudente e a ação realizada pelo agente. Neste sentido, afirmam Zaffaroni & Pierangeli (1997, 514) que o fato da lei remeter a pautas sociais de cuidado, não significa que o faça referindo-se a fórmulas gerais como a do homem normal, o reasonable man dos anglo-saxões. Dois são os elementos do componente normativo nos crimes culposos. O primeiro é intelectual, tendo em vista a previsibilidade objetiva do resultado. O outro é valorativo, segundo o qual só é contrária ao conteúdo do dever de cuidado, a ação que fica fora do adequado socialmente. E, exigência de comportamento adequado é um conceito estritamente jurídico porque deve estar de acordo com o dever de cuidado.
Certamente, a previsão objetiva do resultado é insuficiente e também de nada serve se for avaliada a partir da prudência de um homem normal, pois nem toda ação, que objetivamente pode produzir resultado lesivo, é culposa. Conduzir um automóvel em uma avenida movimentada é uma atividade perigosa da qual se pode prever a ocorrência de um acidente, mas ainda não se pode falar em culpa do motorista. Segundo um juízo intelectual, nem toda ação que cria um perigo infringe o cuidado devido, pois do contrário o Direito Penal criaria obstáculos para quase todas as ações no âmbito social. A participação no tráfego repita-se, é completamente impossível sem se assumir certo risco.
O segundo elemento do juízo normativo, ou seja, o valorativo, acrescenta e restringe aqui o elemento intelectual: a previsibilidade objetiva. Assim, contrária ao conteúdo do dever objetivo de cuidado é somente a ação criadora de um risco que exceda, por exemplo, o socialmente adequado para o tráfego. Para definir o socialmente adequado ou do “risco moderado” não nos serve mais a imagem do homem prudente encontrada em algumas sentenças de nossos tribunais tais como, motorista responsável e cuidadoso.[11]
Para além da imagem do homem prudente, a previsibilidade objetiva só terá importância se for avaliada a partir de uma ação humana que crie ou incremente um risco que esteja no âmbito do conteúdo do dever de cuidado. Isto é relevante porque o dever de cuidado precisa ser analisado de acordo com a situação jurídica e social de cada homem. Não são semelhantes, por exemplo, os deveres de cuidado de um motorista particular se comparado a um motorista de transporte coletivo, por mais que ambos participem do trânsito, precisem ser prudentes e tenham deveres de cuidado a observar.
O agente que age com desrespeito ao conteúdo do dever de cuidado estará atuando conforme o socialmente inaceitável e, por isso, atua no espaço do juridicamente relevante. E a definição do socialmente inaceitável deve considerar a maior ou a menor gravidade da ação do agente a partir das circunstâncias em que foi realizada. Implica dizer que a ação depende de circunstâncias concretas, tais como o modo, o lugar, o tempo e os meios de execução selecionados pelo agente. Somente quando negativa, surge a reprovabilidade da ação.
A avaliação do socialmente inaceitável erigido à condição de crime sob o enfoque de especiais circunstâncias demonstra que não basta que a ação seja violadora do dever de cuidado e que cause no plano físico o resultado; mas, que a violação do cuidado seja determinante do resultado. E isto só ocorrerá quando a violação atingir o conteúdo valorativo do dever de cuidado; isto é, se o resultado puder ser evitado sob determinadas e especiais circunstâncias e, mesmo assim, o agente não age para evitá-lo[12].
A ação do indivíduo que, do terceiro andar de um prédio, joga um objeto de sua janela, atingindo e matando um transeunte, terá o mesmo desvalor da ação de um motorista que, dirigindo à noite com os faróis apagados e em excesso de velocidade, colhe e mata a vítima? Não temos dúvida de que o resultado natural é o mesmo: a morte. A ofensa do bem jurídico também é o mesmo: a vida humana. Mas o modo de realizar cada uma das ações não é igual. A avaliação desta especial circunstância da ação realizada pelo agente é determinante para o resultado jurídico de um crime. Implica dizer que a interação entre ação e resultado surge no momento de avaliar cada uma das circunstâncias. Este raciocínio, importante para a valoração do nexo casual, relaciona o injusto culposo à ação e ao resultado.
4. Considerações Finais
A dogmática penal limitou o conceito de injusto ao resultado causado pela ação. No entanto, a evolução dos estudos da teoria do crime, comprovou que o injusto não se esgota na desaprovação do resultado, mas que o especial modo de produção desse resultado, juridicamente desaprovado, também deve ser incluído no juízo de desvalor. Surgiu, assim, na dogmática atual a distinção entre o desvalor da ação e do desvalor do resultado. De acordo com a dogmática contemporânea, na ofensa do bem jurídico reside o desvalor do resultado, enquanto na modalidade de concretizar a ofensa situa-se o desvalor da ação.
Os dois aspectos desvaliosos são considerados, conjuntamente, na configuração do injusto típico.[13] Mas, é indiscutível que o desvalor do resultado só tem importância na integração do conteúdo do injusto culposo ao lado do desvalor da ação e vice-versa. Isto significa que existe entre ambos uma relação de interdependência. Aquilo que aparece como ação desvaliosa nada mais é do que a apreciação do resultado desvalioso a partir da valoração do especial modo da ação realizada pelo agente. Ação e resultado são coisas distintas, embora façam parte de uma unidade dialética, pois estão inseridos na teoria do crime numa relação de complementaridade que muda conforme o ponto de vista pela qual as circunstâncias específicas de uma ação são examinadas.
Quando o Código Penal brasileiro pune mais severamente, por exemplo, o homicídio qualificado pelo modo, motivo, forma ou meio de execução em relação ao homicídio simples; temos a sensação de que o legislador priorizou o desvalor da ação em relação ao desvalor do resultado. Entretanto, não há nenhuma prioridade. Na verdade, essa prioridade só existiria se constatássemos que resultado jurídico do crime seria o mesmo tanto para o homicídio qualificado quanto para o homicídio simples. Ora, se a ação é uma atividade dinâmica que se altera conforme a valoração de especiais circunstâncias ligadas ao agente e se o resultado jurídico decorre desta valoração, não se pode imaginar que o injusto possua sempre o mesmo resultado jurídico.
Com a devida consideração ao entendimento contrário, a ofensa à vida humana por si só não constitui resultado jurídico relevante para justificar a punição diferenciada em um e em outro crime. É indiscutível que para além da vida humana ofendida, existe um fundamento penalmente relevante, até porque as ações são diferentes. É diferente matar alguém de forma qualificada, e não de forma simples, como diferente é matar alguém acidentalmente no trânsito.
Welzel (1976, 183) sustenta que o desvalor da ação tem importância preponderante sobre o desvalor do resultado, como por exemplo, nos crimes culposos em que o resultado é o mesmo que o produzido pela ação dolosa, mas é sancionada com menor penalidade. Ora, a menor sanção penal dos crimes culposos se comparados aos crimes dolosos está no maior desvalor da ação destes. Mas esta reflexão não é conclusiva para afirmar a preponderância da ação. Se há um maior desvalor da ação nos crimes dolosos é porque o resultado jurídico é diferente se comparado ao resultado jurídico dos crimes culposos.
Mourullo (1978, 332) defende a preponderância do desvalor do resultado, embora admita a relevância do desvalor da ação. O autor lembra que na Espanha a tentativa é punida diferentemente da consumação como na maioria dos Códigos Penais contemporâneos, onde a ação desvaliosa é a mesma, mas o resultado é absolutamente diferente, determinando menor punição. Entretanto, não concordamos com o autor porque no crime, por exemplo, de roubo, a ação desvaliosa tentada e a consumada são diferentes e, por isso, produzem resultados jurídicos também diferentes.
O desvalor do resultado tem relevância no Direito Penal somente dentro de uma ação pessoalmente antijurídica. Mas, o desvalor da ação também tem relevância penal somente dentro de um resultado pessoalmente antijurídico. Há nesse entendimento a busca pelo equilíbrio na fundamentação do injusto penal, pois, segundo Conde & Arán (2000, 322) é supérflua a polêmica sobre a prioridade de um e de outro, pois eles contribuem no mesmo nível para constituir a antijuridicidade de um comportamento.
Enfim, o ordenamento jurídico valora os dois aspectos. Na composição do injusto penal culposo, a doutrina aceita de um lado a seleção de determinadas ações intoleráveis e, de outro lado, o desvalor do resultado. Todavia, o Direito Penal não pode proibir a causação de determinado resultado, isto é, não se pode proibir a violação de direitos alheios, mas apenas a realização de ações dirigidas ou que levem consigo a possibilidade concreta de violação. Esta afirmativa assenta-se no fato de que o injusto tem um conteúdo mais amplo que a matéria de proibição. O injusto penal culposo contém o conteúdo que fundamenta a matéria de proibição.
Doutor em Ciências Penais pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor de Direito Penal e Pesquisador do CNPq
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