Resumo: A expressão boa-fé comporta duas espécies: a boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva. A primeira é aquela encontrada na consciência do agente e representa o conhecimento ou desconhecimento de algum vício, inexistindo do agir a intenção de a outrem lesar. A segunda consiste numa regra objetiva de conduta, fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e na transparência, sendo a análise desse instituto, mesmo que preliminar, nossa proposta.
Abstract: The expression good-faith holds two species: the subjective good-faith and the good-faith aims at. The first is that found in the agent’s conscience and it represents the knowledge or ignorance of some addiction, inexisting of acting the intention of the somebody else to harm. Monday consists of a rule aims at of conduct, founded in the honesty, in the rightness, in the loyalty and in the transparency, being the analysis of that institute, even if preliminary, our proposal.
Sumário: 1. O princípio da boa-fé. Considerações iniciais; 1.2 A boa-fé como regra de interpretação dos contratos; 1.3 A boa-fé como fonte de deveres de conduta; 1.4 A boa-fé como limitadora do exercício de direitos; 2. Considerações finais.
1. O princípio da boa-fé. Considerações iniciais
A boa-fé, segundo Álvaro Villaça Azevedo (2002, p.26), é um estado de espírito que leva o sujeito a praticar um negócio em clima de aparente segurança, sendo esta a razão de todos os sistemas jurídicos serem escudados no princípio da boa-fé, que supera até, o princípio da nulidade dos atos jurídicos, uma vez que, os atos nulos, em certas ocasiões, produzem efeitos, como é o caso da validade do pagamento ao credor putativo ou dos efeitos em favor do cônjuge de boa-fé no casamento putativo. Nessas situações, não vigora o princípio segundo o qual o que é nulo não produz efeito – quod nullum est nullum effectum producit.
Conquanto assim seja, vale frisar que a expressão boa-fé comporta duas espécies: a boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva. A primeira é aquela encontrada na consciência do agente e representa o conhecimento ou desconhecimento de algum vício, inexistindo do agir a intenção de a outrem lesar. A segunda consiste numa regra objetiva de conduta, fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e na transparência.
A boa-fé objetiva é um padrão genérico, objetivo, de comportamento, que exige do contratante uma atuação refletida, preocupada com a outra. Cuida-se de um princípio que impõe a cada uma das partes a observância de comportamento respeitoso com a outra parte, que seja leal, não abusivo, nem lesivo (Rocha, 2002).
Daniel Ustárroz (2003, p.88) diz que foi na Alemanha (1900) que os juristas encontraram terreno fértil para concretizar a fórmula geral contida no § 242 do BGB – as partes, na realização da prestação jurídico negocial, obrigam-se a envidarem boa-fé, detendo-se sempre aos usos e costumes do tráfico – permitindo ensejo à ampla aplicação do instituto (princípio da boa-fé objetiva) nas relações intersubjetivas, em face da aceitação da jurisprudência e da doutrina.[1]
Tanto é que na esteira do alemão o legislador italiano de 1942 acabou por destacar no artigo 1337 de seu código civil regra geral no sentido de que no desenvolvimento das tratativas e na formação do contrato, devem os contratantes comportar-se segundo a boa-fé.
Nessa direção, também, seguiu o legislador civil português de 1967, ao esquadrinhar em seu artigo 227 o seguinte enunciado: “quem negocia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nas preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena der responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”.
Entre nós, tornou-se expresso o princípio, só agora em 2002, com a edição do novo código civil, impondo-se aos contratantes a obrigatoriedade de guardarem, quer na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé (art. 422).[2]
Clóvis do Couto e Silva (1976, p.42) explica que a aplicação do princípio da boa-fé na relação contratual no novo código civil irroga função harmonizadora, uma vez que concilia o rigorismo lógico-dedutivo da ciência do direito do século passado com a vida e as exigências éticas atuais, abrindo, por assim dizer, no hortus conclusus do sistema do positivismo jurídico, janelas para o ético.
Daí a razão do porque se afirmar que na interpretação do pactuado é necessário ater-se mais à intenção das partes do que ao sentido literal da linguagem – otimização do conteúdo contratual –, competindo aos contraentes, a seu turno, o agir com transparência, lealdade e confiança recíprocas na formação, execução e extinção do contrato.
“Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos e costumes do lugar de sua celebração” (CC, art. 113).
Portanto, se na relação jurídico-contratual as partes se movimentam por interesses contrapostos, não podem persegui-los com dissimulação e deslealdade, muito pelo contrário, “são obrigadas a dirigir a manifestação de vontade dentro dos interesses que as levaram a se aproximarem, de forma clara e autêntica, sem o uso de subterfúgios ou intenções outras que não as expressas no instrumento formalizado. A segurança das relações jurídicas depende, em grande parte, da lealdade e da confiança recíproca” (Rizzardo, 1988).
“Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (CC, art. 187).
Ademais, insta salientar que o princípio da boa-fé exerce três funções essenciais: a) ora fornece os critérios para a interpretação do contrato ou da declaração de vontade; b) ora funciona como fonte de deveres instrumentais, secundários ou anexos; c) ora funciona como limitadora do exercício de direitos subjetivos (Martins-Costa, 2000).
Em qualquer situação, porém, não deve ser desprezada a boa-fé subjetiva, dependendo seu exame sempre da sensibilidade do juiz. Não se esqueça, contudo, que haverá uma proeminência da boa-fé objetiva na hermenêutica, tendo em vista o novo descortínio social que o novo Código assume francamente. Nesse sentido, portanto, não se nega que o credor pode cobrar o seu crédito; não poderá, no entanto, exceder-se abusivamente nessa conduta, porque estará praticando ato ilícito (Venosa, 2003).
1.2 A boa-fé como regra de interpretação dos contratos.
A primeira função, a hermenêutica-integrativa, segundo Judith Martins-Costa (2000, p.428), é a mais conhecida, pois, aí atua a boa-fé como um kanon hábil ao preenchimento de lacunas, uma vez que a relação contratual consta de eventos e situações, fenomênicos e jurídicos, nem sempre previstos ou previsíveis pelos contratantes.
Daí se dizer permitir o princípio da boa-fé objetiva que, das cláusulas contratuais predispostas, e notadamente da causa de contratar, estabeleça-se a melhor interpretação para as dúvidas do pacto suscitadas ou dele surgidas se, porventura, não puderem as disposições nele expressadas, ou a lei, dar o devido esclarecimento.
Não se quer dizer com isso que poderá o magistrado, ao seu livre arbítrio ou discricionariedade, deixar-se conduzir individualmente, pelo seu próprio sentido de justiça, ditando normas que, a priori, fugiram à intenção dos contraentes no momento da declaração de vontades.
Ao magistrado, portanto, não cabe criar obrigações ou rever o contrato, com o intuito de dar-lhe interpretação, muito pelo contrário. Ao recorrer à boa-fé – recurso à interpretação que somente tem lugar quando o aplicador do direito não encontrar na lei ou no contrato previsão da situação concreta que, eventualmente, exsurja no decurso da relação jurídico-contratual – “o juiz de direito estará simplesmente conferindo ao ajuste as exatas dimensões que a operação econômica por ele formatada reclama, segundo a sua função social e econômica e as legítimas expectativas das partes retratadas em um sinalagma (uma relação que possui prestações opostas e equilibradas)” (Melo, 2003).
E assim o é, porque do contrário, a se permitir ingresse o juiz no mérito do contratado para livremente o interpretar, segundo o princípio da boa-fé como regra de hermenêutica, estar-se-ia a promover a total degradação do negócio jurídico, tornando-o sem subsistência, em vista do completo enfraquecimento dos princípios da força obrigatória da convenção e da autonomia da vontade, vigas ainda essenciais e vigorantes na relação contratual.
Desse modo, aos contraentes, não restaria uma só garantia de que os efeitos advindos do negócio jurídico iriam surtir, principalmente porque, a cada um deles, abrir-se-ia a oportunidade da impugnação do pactuado pela via jurisdicional, ficando à dependência e ao arbítrio do julgador a sorte do contratado, o que não se pode admitir.
Daí a razão de ser vedado ao aplicador do direito modificar a essência do contrato. A ele incumbe apenas o dever de “não permitir que o contrato atinja finalidade oposta ou divergente daquela para o qual foi criado, e que, à vista, de seu escopo socioeconômico, seria razoável e licitamente esperada pelos contratantes” (Martins-Costa, 2000, p.437).
1.3 A boa-fé como fonte de deveres de conduta.
Relevantíssimo papel que também desempenha o princípio da boa-fé modernamente é o de fonte de deveres acessórios ou laterais[3] que compõem a relação jurídica obrigacional conjuntamente com os clássicos deveres principais e secundários.
Ditos deveres caracterizam-se por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes, servindo, ao menos as suas manifestações mais típicas, o interesse na conservação dos bens patrimoniais ou pessoais que podem ser afetados em conexão com o contrato (Pinto, 2000).
Entre os deveres com tais características – deveres de conduta acessória – selecionados por Judith Martins-Costa, encontram-se:
“a) os deveres de cuidado, previdência e segurança, como o dever do depositário de não apenas guardar a coisa, mas também de bem acondicionar o objeto deixado em depósito; b) os deveres de aviso e esclarecimento, como o do advogado, de aconselhar o seu cliente acerca das melhores possibilidades de cada via judicial passível de escolha para satisfação de seu desideratum, o do consultor financeiro, de avisar a contraparte sobre os riscos que corre, ou o do médico, de esclarecer ao paciente sobre a relação custo/benefício do tratamento escolhido, ou dos efeitos colaterais do medicamento indicado, ou ainda, na fase pré-contratual, ou do sujeito que entra em negociações, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que podem ter relevo na formação da declaração negocial; c) os deveres de informação, de exponencial relevância no âmbito das relações jurídicas de consumo, seja por expressa disposição legal (CDC, arts. 12 in fine, 14, 18, 20, 30 e 31, entre outros), seja em atenção ao mandamento da boa-fé objetiva; d) o dever de prestar contas, que incumbe aos gestores e mandatários, em sentido amplo; e) os deveres de colaboração e cooperação, como o de colaborar para o correto adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela negativa, o de não dificultar o pagamento, por parte do devedor; f) os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte, com, v.g., o dever do proprietário de uma sala de espetáculos ou de um estabelecimento comercial de planejar arquitetonicamente o prédio, a fim de diminuir os riscos de acidentes; g) os deveres de omissão e de segredo, como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato ou de negociações preliminares, pagamento, por parte do devedor etc.”
Desse modo, importa-nos dizer que, constituindo deveres que incumbem tanto ao devedor quanto ao credor, não estão ligados diretamente à realização da prestação principal, mas antes à exata satisfação dos interesses globais envolvidos na relação obrigacional complexa (Costa, 1988).
Daí o por que de estarem impedidos os contraentes de engendrarem ações que contrariem o caráter finalístico do processo que se desenrola no vínculo contratual, dando ensejo tanto à obstaculização do resultado por eles almejado, como a do conjunto social.
O fato é que deverão as partes comprometidas pelo vínculo obrigacional agir com lealdade e cooperação, a fim de tutelar os interesses recíprocos e o sucesso da contratação.
No mais, a boa-fé ainda serve para impedir o exercício de direitos subjetivos quando estes possam de alguma forma ocasionar danos abusivos aos partícipes do vínculo contratual.
1.4 A boa-fé como limitadora do exercício de direitos.
Segundo Ruy Rosado Aguiar Júnior (1991, p.248) a boa fé veda ou pune o exercício de direito subjetivo, quando caracterizar abuso da posição jurídica. De acordo com o autor, exemplo significativo dessa função limitadora é o da proibição do exercício do direito de resolver o contrato por inadimplemento, ou de suscitar a exceção de contrato não cumprido, quando o incumprimento é insignificante, em relação ao contrato total.
Isto porque, continua o festejado mestre, e agora ancorado na doutrina de Clóvis do Couto e Silva (1976), o princípio do adimplemento substancial, derivado da boa-fé, exclui a incidência da regra legal que permite a resolução quando não observada a integralidade do adimplemento.
Ou seja, muito embora se admita a resolução do contratado sempre que comprovado o inadimplemento da obrigação, vêm doutrina e jurisprudência relativizando tal interpretação, com intuito de salvaguardar o resultado útil do negócio jurídico pelas partes entabulado e evitar que, da conduta faltosa perpetrada por uma delas, surja um direito à resolução do vínculo, sem que os efeitos mais amplos visualizados pelos contratantes sejam alcançados.
Desse modo, ainda que imperfeito o adimplemento, permite-se em situações tais se prefira mais à manutenção do vínculo à sua pura resolução, forçando-se a assegurar a função social do pactuado.
No mais, há se mencionar, consoante o magistério de Franz Wieacker (1991), que é no ambiente dessa função limitadora do princípio da boa fé objetiva que também são estudadas e analisadas as situações de venire contra factum proprium; suppressio; surrectio, tu quoque.
Várias são as hipóteses, portanto, contempladas por esse campo funcional limitador do exercício de direitos subjetivos. A vedação do venire contra factum próprium, por exemplo, obriga o sujeito da relação a não adotar conduta contraditória ao comportamento preliminarmente assumido, sob pena de quebra dos princípios da lealdade e da confiança. Espera-se sim adote a parte uma conduta confiável, transparente e esmerada, abstendo-se de ingerir incorretamente no feito contratual, em prejuízo à contraparte.[4]
Na supressio, um direito ou uma pretensão não realizada no lapso de tempo determinado sofre limitação ao seu exercício, tornando-se assim irrealizável, por contrariar o princípio da boa-fé. É o caso, por exemplo, do adquirente que relega ao vendedor, por tempo indeterminado, a guarda das mercadorias que não retirou. O que comprou não pode obrigar o que vendeu a assumir tal compromisso, demonstrando-se inaceitável o comportamento.
A surrectio, de modo inverso a supressio, consiste na constituição, criação de um direito, em virtude da prática continuada de determinados atos; é fonte de direito subjetivo. Imagine-se, por exemplo, que a habitual e duradoura distribuição de dividendos por sociedade empresária a um sócio minoritário, além de sua participação societária e não prevista contratualmente, pode gerar para o beneficiário o direito de reclamá-los futuramente.
Finalmente, aquele que afrontou cláusula contratual ou imperativo de lei e, de algum modo, tenha afetado determinado posicionamento jurídico, não pode exigir da contraparte o comportamento que tampouco fora observado (tu quoque).
Pois, consistindo o contrato um instrumento formalizado sob o pálio da livre manifestação de vontades, não inquinado a vícios ou máculas que o possam anular e sujeito à realização dos deveres e obrigações das partes, resta inadmissível àquele que contrariar regras contratuais, aproveitar-se de sua torpeza ou ilicitude e exigir do alter obediência ao preceito que ele próprio já desrespeitara.
2. Considerações finais
Desse modo, considerados os argumentos nesta seção assentados, há de se perceber que “boa-fé é tanto forma de conduta como norma de comportamento, com correlação objetiva entre meios e fins, como exigência de adequada e fiel execução do que tenha sido acordado pelas partes, o que significa que a intenção destas só pode ser endereçada ao objetivo a ser alcançado, tal como esse se acha definitivamente configurado nos documentos que o legitimam. Poder-se-ia concluir afirmando que a boa-fé representa o superamento normativo, e como tal imperativo, daquilo que no plano psicológico se põe como intentio leal e sincera, essencial à juridicidade do pactuado” (Reale, 2003).
Boa-fé é assim uma das condições fundamentais da atividade ética, nela inserta a jurídica, distinguindo-se pela probidade, sinceridade e transparência dos que dela são partícipes, qualquer que seja a fase negocial (pré-contratual, contratual, pós-contratual), haja vista ter-se em mira sempre o resultado frutífero do pactuado pelas partes, sem distorções, prevaricações ou tergiversações.
Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Direito Processual e em Administração de Negócios. Advogado militante em São Paulo. Professor Universitário
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