Sumário: 1. Direito Administrativo Disciplinar Militar. 2. Processos Regulares no âmbito da PMESP. 3. Rito do Conselho de Disciplina e Processo Administrativo Disciplinar. 4. Interrogatório do acusado. 5. Considerações finais
1. Direito Administrativo Disciplinar Militar
O Direito Administrativo Disciplinar sempre foi objeto de estudo pelos mais renomados publicistas pátrios, os quais se debruçaram sobre seus mais intrínsecos aspectos, tanto na órbita dos estatutos federais como nos estaduais. O que não se pode olvidar, entretanto, é que há necessidade de se distinguir, igualmente, face à separação constitucional dos servidores públicos em funcionários públicos civis e militares (estaduais e federais), a existência de matéria administrativa afeta única e exclusivamente a esta última classe, principalmente no que tange ao exercício do poder disciplinar.
“A competência disciplinar do Poder Público consiste no dever-poder de apurar ilícitos administrativos e aplicar penalidades às pessoas que se vinculam, de alguma forma, à Administração Pública. O exercício dessa atribuição também é encontrado numa relação profissional, mediante a instauração de um processo administrativo para examinar se infrações funcionais foram cometidas por agentes no âmbito do Poder Público. Observe-se que o poder do Estado de punir seus agentes deve ser exercido quando necessário, mas deverá sempre ser apurado por meio de um processo adequado”[1].
Havendo o cometimento de uma falta disciplinar pelo servidor, deve a autoridade que tiver ciência do fato promover a sua imediata apuração, através do devido processo legal, seja através de sindicância ou processo administrativo disciplinar, sendo a matéria regida no âmbito federal pelas Leis nº 8.112/90 e 9.784.99 e no âmbito do Estado de São Paulo pelas Leis nº 10.261/68 e 10.177/98.
A Administração Militar, por sua vez, particularmente fundada num regime constitucional e legal diferenciado, estabelece um rigorismo maior de lisura e idoneidade na conduta dos seus agentes, insculpindo tipos trangressionais e ritos processuais ainda mais específicos[2], e, ao estabelecerem sanções específicas e, com grande medida, severas, obedecem aos preceitos constitucionais, tutelando os valores militares (patriotismo, civismo, hierarquia, disciplina, profissionalismo, lealdade, constância, verdade real, honra, dignidade humana, honestidade, coragem etc.) e viabilizando a eficiência institucional dos órgãos castrenses[3].
No âmbito da Polícia Militar do Estado de São Paulo a Lei Complementar nº 893, de 09 de março de 2001, instituiu o seu regulamento disciplinar, estabelecendo as normas disciplinares a serem observadas pelos seus integrantes, inclusive disciplinando as sanções e os ritos procedimentais a serem observados para sua imposição.
2. Processos Regulares no âmbito da PMESP
O RDPM (Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo) divide os processos regulares em razão do posto/graduação ocupado pelo militar e de acordo com o tempo de serviço prestado à Corporação, de tal forma que o Oficial PM é submetido ao Conselho de Justificação (CJ) e a praça ao Conselho de Disciplina (com dez ou mais anos de serviço) e ao Processo Administrativo Disciplinar (com menos de dez anos de serviço).
O Conselho de Justificação, previsto no inciso I do artigo 71 e nos artigos 73 usque 75 do RDPM, é um processo regular especial ético de rito bifásico que tem por escopo apurar e declarar a incompatibilidade do oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo, decidindo sobre a incapacidade moral ou profissional para permanecer no serviço ativo ou na inatividade, assegurando-lhe o contraditório e a ampla defesa.[4]
As disposições contidas no referido codex são aplicadas complementarmente ao previsto em legislação específica, mormente a Lei Federal nº 5.836/72 e Lei Estadual nº 186/73, as quais disciplinam o rito procedimental e a sua aplicação à PMESP.
O Conselho de Disciplina é o processo regular a que se submetem as praças com dez ou mais anos de serviço e se destina a declarar a incapacidade moral da praça para permanecer no serviço ativo da Polícia Militar[5], sendo expressamente previsto no inciso II do artigo 71 e nos artigos 76 usque 83 do RDPM, em cuja composição participam 03 Oficiais PM ocupando as funções de presidente, interrogante e relator.
O seu rito é previsto, interna corporis, nas I-16-PM (Instruções do Processo Administrativo da Polícia Militar), a qual se aplicam, subsidiariamente e no que couber, as disposições do Código Penal Militar (CPM), do Código de Processo Penal Militar (CPPM), do Código de Processo Civil (CPC) e o Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado (Lei nº 10.261/68).
O Processo Administrativo Disciplinar é previsto no inciso III do artigo 71 e artigo 84 do RDPM e se destina a declarar a incapacidade moral da praça com menos de dez anos de serviço para permanecer no serviço ativo da Corporação, presidido por um Oficial PM que será seu presidente, sendo que este deverá ter rito próprio ao qual se aplicam algumas das disposições previstas para o Conselho de Disciplina, porém, em virtude da inexistência de normatização do seu rito próprio, se lhe aplica o rito previsto para o Conselho de Disciplina.
Verifica-se, portanto, que o processo regular não se destina a comprovar a infração disciplinar imputada ao militar, mas tão somente a verificar se o acusado se encontra moralmente apto a continuar a pertencer às fileiras da Corporação, uma vez que o requisito primordial para a sua instauração é que a referida infração já esteja devidamente apurada, ou seja, desde que esta já tenha sido delimitada no espaço e no tempo e seja certa a sua autoria.
3. Rito do Conselho de Disciplina e Processo Administrativo Disciplinar
Os processos administrativos disciplinares, normalmente, apresentam as seguintes fases: instauração, instrução, defesa, relatório e julgamento. Na órbita federal, após a instauração, segue-se a instrução mediante inquérito administrativo, de cunho contraditório, findo o qual, se comprovada a infração disciplinar, o servidor público é citado para apresentar sua defesa, seguindo-se o relatório da comissão processante e o julgamento pela autoridade competente.
No âmbito da PMESP podem servir de supedâneo fático à instauração de um processo regular o Inquérito Policial Militar, a Investigação Preliminar, a Sindicância ou o Procedimento Disciplinar, entre outros.
O rito procedimental a ser observado para o Conselho de Disciplina e o Processo Administrativo Disciplinar é o previsto no RDPM e nas I-16-PM, seguindo-se a instauração, interrogatório do acusado, oitiva de testemunhas de acusação e de defesa, relatório e julgamento, sendo que será feito um breve resumo sobre o seu desenlace.
A instauração inicia-se com a elaboração da Portaria pela autoridade competente, contendo a identificação do presidente, e dos membros nos órgãos colegiados; a qualificação do militar; a exposição resumida do fato censurável de natureza grave, suas circunstâncias e antecedentes objetivos e subjetivos, precisamente delimitado no tempo e no espaço; a tipificação legal da conduta; o rol de testemunhas; indicação de seu local de funcionamento; citação dos documentos anexos que comprovam a apuração de autoria e materialidade da transgressão disciplinar e os fundamentos de convicção da autoridade instauradora.
A citação encaminhada ao militar é acompanhada de uma cópia da portaria, indicando a data de seu interrogatório nos autos do processo regular, podendo o militar, se assim o desejar, se fazer acompanhar de defensor legalmente constituído. O interrogatório do militar, objeto do presente artigo, será tratado adiante.
Após o interrogatório do militar seguem-se as oitivas das testemunhas de acusação e as testemunhas de defesa, findo o qual é aberto prazo de cinco dias para apresentação de requerimentos e diligências. Vencida essa fase é aberto o prazo de oito dias para apresentação de razões finais de defesa, encerrando-se a instrução do processo regular com a elaboração do relatório pelo Presidente (PAD) ou pelo órgão colegiado (CD).
Segue-se, igualmente, a elaboração de parecer pela autoridade instauradora, a qual encaminhará os autos ao Comandante Geral da PMESP, que é a autoridade competente para decidir, em instância única, sobre a aplicação das penas de caráter não exclusório, reforma administrativa disciplinar, demissão, expulsão ou sobre a improcedência das acusações.
4. Interrogatório do acusado
O interrogatório do acusado é previsto nos artigos 160 usque 165 e é realizado num só ato, no lugar, dia e hora designados pelo Presidente. Divide-se em duas partes: subjetiva e objetiva, de tal forma que se inicia com a qualificação do militar (subjetiva) e prossegue com a formulação de perguntas pelo Presidente no Processo Administrativo Disciplinar e pelo Oficial Interrogante, seguido pelos demais membros, no Conselho de Disciplina.
Em havendo mais de um militar acusado, será cada um deles interrogado separadamente, não devendo ser formuladas perguntas de cunho subjetivo, geradoras de respostas que impliquem na formulação de juízo de valor, devendo estas versar exclusivamente sobre os fatos, as faltas e as circunstâncias contidas na acusação.
O militar interrogado deve ser cientificado de que não está obrigado a responder as perguntas que lhe forem formuladas, sob a garantia de respeito ao seu direito constitucional de permanecer em silêncio, devendo ser consignadas as perguntas que o acusado deixar de responder e as razões que invocar para assim proceder.
É expressamente proibida a interferência do defensor constituído, dativo ou “ad-hoc” no interrogatório ou nas respostas do militar acusado.
Chega-se, assim, ao objeto do presente artigo, cuja finalidade se presta a verificar a possibilidade de aplicação das inovações trazidas pela Lei nº 10.792/03, a qual introduziu novas alterações no Código de Processo Penal, notadamente quanto ao interrogatório judicial do réu.
O artigo 87 do RDPM prevê expressamente que as disposições do Código de Processo Penal Militar se aplicam subsidiariamente ao Conselho de Disciplina, com o permissivo contido no § 2º do artigo 2º das I-16-PM, silenciando-se quanto ao Código de Processo Penal.
Ocorre que no âmbito do processo penal militar não houve a referida alteração, no que não andou bem o legislador, que poderia ter incluído o CPPM a mudança prevista para o interrogatório judicial, uma vez que o caput de seu artigo 303 proíbe, igualmente, a interferência do defensor do réu no interrogatório.
Ensina o ilustre jurista Teodoro Silva Santos que “no passado o interrogatório do acusado foi considerado pelo legislador ordinário como meio de prova, enquanto que a doutrina majoritária, além de visualizá-lo meio de prova, compreendia que ele configurava um lídimo ato de defesa”[6].
Prossegue, ainda, asseverando que “não há exagero algum em asseverar que a legislação processual penal pátria, recepcionada pela novel Carta Política de 1988, até a edição da Lei nº 10.792/03 não admitia no ato de interrogatório do acusado a aplicação do princípio do contraditório e da ampla defesa, segundo a amplitude concedida pelo art. 5°, LV, do vigente texto constitucional. …
Acontece que o mencionado princípio da ampla defesa e do contraditório, configurando dupla tutela ao indivíduo, projeta-se tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade e propriedade quanto no âmbito formal. Por intermédio dele assegura-se ao acusado a paridade total de condições ofertadas ao Estado-acusador. Isto é implementado ao se garantir a plenitude do exercício do direito de defesa, que necessariamente reclama a publicidade do processo, a regular citação, a possibilidade de ampla produção de provas etc., podendo chegar até à revisão criminal. …
Ainda em busca da aplicação plena do princípio do contraditório no interrogatório judicial, o legislador ordinário viabilizou à acusação e à defesa a possibilidade de participação ativa e efetiva na colheita dessa prova, formulando perguntas ao acusado, conforme bem vislumbra o artigo 188, caput, do CPP, cuja nova redação é a seguinte, verbis:
‘Art. 188 – Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante’”[7].
O § 7º do artigo 160 das Instruções proíbe, em verdade, a interferência do defensor no interrogatório e nas respostas do acusado, silenciando-se quanto à possibilidade do defensor elaborar quesitos ao militar findo o seu interrogatório, aliando-se as argumentações de autodefesa à defesa técnica.
Ainda que se entenda que a aplicação subsidiária do CPPM poderia vedar tal possibilidade, é igualmente perceptível que o parágrafo único do artigo 303 permite, findo o interrogatório, que as partes levantem questões de ordem, que o juiz resolverá de plano, fazendo-as consignar em ata com a respectiva solução, se assim lhe for requerido.
Nada obsta, portanto, que seja concedida a possibilidade de que o defensor, constituído, dativo ou “ad-hoc”, possa elaborar quesitos a serem respondidos pelo militar acusado, sempre por intermédio do Presidente, coadunando-se com as modernas normas processuais penais preconizadas na Lei nº 10.792/03 e na hipótese aventada no permissivo contido no parágrafo único do artigo 303 do CPPM.
5. Considerações finais
Diante do acima exposto, face às novas considerações acerca do interrogatório judicial, pode se conceder ao militar acusado em processo administrativo disciplinar o direito de seu defensor formular perguntas findo o seu interrogatório, buscando delinear as argumentações de autodefesa com a linha defensiva adotada pela defesa técnica de forma a garantir a mais ampla produção de provas.
Essa possibilidade visa dar maior amplitude aos direitos e garantias constitucionalmente assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, harmonizando-se o princípio da constitucional do contraditório e da ampla defesa com o princípio processual da verdade real.
O § 7º do artigo 160 das I-16-PM, numa visão sistêmica e teleológica, pode ser interpretado de forma a garantir ao defensor constituído a elaboração de quesitos complementares, nos termos preconizados no artigo 188 do CPP, utilizando-se do permissivo contido no caput do artigo 2º das mesmas instruções.
Com tal atitude estaremos reforçando cada vez mais o compromisso inabalável de observância aos preceitos constitucionais e à incessante busca da verdade real nos processos administrativos disciplinares.
Oficial da Polícia Militar de São Paulo. Especialista em Segurança Pública pela PUC/RS e em Direito Administrativo pela UNORP
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