Autores:
1) Alana da Silva Amorim: Bacharelanda do Curso de Direito da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (FACAPE). E-mail: alanaamorim123@hotmail.com
2) Nara Leticia Vieira de Carvalho: Bacharelanda do Curso de Direito da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (FACAPE). E-mail: nara_carvalho25@hotmial.com
3) Rafael Lopes Dias: Bacharelando do Curso de Direito da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (FACAPE). E-mail: rafaelcobain02@gmail.com
Orientador: Nadielson Barbosa da França: Professor Esp. Titular do colegiado de Direito da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (FACAPE). E-mail: nadielson@gmail.com
Resumo: Este artigo tem por objetivo explorar a temática da regulamentação do transporte individual privado por aplicativos de maneira a interpretar as mudanças trazidas aos profissionais do setor e a toda a população que usufrui do serviço. Tendo em vista, assim, as diretrizes trazidas pela Lei Federal 13.640/2018 e os desafios em moderar a intervenção estatal a este setor privado. No presente artigo, realizou-se uma pesquisa exploratória tendo como metodologia utilizada a abordagem qualitativa, através de pesquisas bibliográficas. Essa última caracterizada pelo emprego da análise de documentos como procedimento de construção do vigente estudo. Esteve também presente a observância das alterações acarretadas pela regulamentação dos aplicativos de transporte privativos no sertão nordestino, trazendo como exemplo a cidade de Petrolina-PE. Após a realização de tal análise, é claramente demonstrado que houveram significativas mudanças no funcionamento do serviço de caronas pagas, tendo sido atribuída a discricionariedade aos municípios para criar leis que regulamentem esse serviço de mobilidade urbana.
Palavras-chave: Regulamentação. Aplicativo. Transporte. Intervenção estatal.
Abstract: This article has the objective to explore the thematic of the regulamentation of the private individual transport by apps in order to interpret the changes given to the professionals of the sector and the whole populations that uses the service. In view of the Federal Law 13.640/2018 and the challenges to moderate the state intervention on the private sector. In the presente article was realized a research having as metodology a qualitative approach, beyond bibliographic researches. This last one characterized by the use of the analysis of documents as proceeding of construction os this review. The observance of the modifications done by the regulamentation of the transport apps was present too, having as example the city of Petrolina. After the realization of that analysis, it has been clearly demonstrated that has occured significative changes in the operation of “paid rides” system, being atributed discrecion to the municipies in order to build laws to regulate this urban mobility service.
Keywords: Regulamentation. Apps. Transport. State Intervention.
Sumário: Introdução. Desenvolvimento. 1. O Direito perante a dominação tecnológica na sociedade. 2. O histórico da Lei nº 13.640/2018 e suas diretrizes. 3. O comportamento resistivo dos taxistas ao reconhecimento do serviço de transporte digital. 4. A implementação da regulamentação no município de Petrolina. Conclusão. Referências.
Introdução
O tema de pesquisa proposto teve como principal estímulo para o presente estudo, o histórico e as diretrizes da Lei nº 13.640/2018, que atribuiu aos municípios a competência para legislar sobre a regulamentação e fiscalização dos aplicativos de transporte particular. Procurou-se também compreender os efeitos gerados com a regulamentação, trazendo um enfoque para a repercussão e mudanças causadas ao município de Petrolina-PE após a aprovação da Lei nº 3.094/2018 e do Decreto nº 073/2018.
É evidente que os instrumentos digitais adentraram rapidamente no cotidiano dos indivíduos, tornando praticamente indissociáveis o meio real e virtual. O poder da tecnológica atribuiu ao celular a capacidade de informação e comunicação, como também, a possibilidade de ser usuário de diversos serviços contactados via aplicativos. Dessa forma, é fácil notar a utilidade dessas ferramentas virtuais no dia a dia, a exemplo da empresa iFood (aplicativo que atua no setor de alimentos); do Instagram (rede social de comunicação) e da Uber (aplicativo que opera no ramo de transportes privativos remunerados).
Ao restringir-se à temática dos aplicativos que prestam o serviço de transporte individual privado de passageiros, vivenciou-se, nos últimos anos, um crescimento e conquista de espaço no mercado, advindo do baixo custo e eficiência exercidos por essa classe. Diante disso, e em meio a muitas pressões por parte de outros ramos do setor de transportes urbanos, o Estado brasileiro instituiu a Lei nº 13.640/2018 que estabeleceu normas atinentes à regulamentação desses aplicativos. Assim, respaldado pela Lei Federal, o município pernambucano de Petrolina aprovou a Lei nº 3.094/2018 trazendo requisitos que devem passar a ser seguidos pelos profissionais desse ramo, legitimando suas atuações.
Tendo em vista a problemática abordada, esta pesquisa contribuirá para com toda a população brasileira, em especial aos residentes localizados no Vale do São Francisco, na compreensão dos efeitos trazidos pela Lei Federal nº 13.640/2018, que regulamenta os aplicativos usados nos serviços de caronas pagas, voltando-se à análise da intervenção do Estado nesse setor, como também, a observação das premissas efetivadas pela Lei municipal nº 3.094/2018 e das consequências geradas no funcionamento do serviço.
No que diz respeito à relevância científica, esse estudo investigou o tema numa perspectiva sociológica e jurídica, destacando os efeitos da regulamentação dos aplicativos de transporte, como também, a forma como estão sendo dispostas aos motoristas e consumidores de tais serviços, tendo como exemplo a realidade vivenciada pelo município de Petrolina. Referente à contribuição científica, foi escolhido um assunto com relevância social e acadêmica, que ofereceu maiores esclarecimentos acerca do fato, e deu um parâmetro geral sobre as mudanças atinentes à regulamentação.
Referente aos objetivos contidos nesse artigo, no que se referiu ao aspecto geral, buscou-se conhecer as diretrizes trazidas pela Lei nº 13.640/2018, entendendo as consequências geradas ao atribuir competência aos municípios para a instituição de seus próprios regulamentos, dando enfoque no antagonismo entre a intervenção estatal e os princípios da livre concorrência, da livre iniciativa e da liberdade profissional. Já no que se explana sobre os objetivos específicos, averiguou-se a postura do Direito frente à dominação tecnológica na sociedade, explanou-se sobre o histórico e diretrizes advindas da Lei nº 13.640/2018, destacou-se a conduta dos taxistas em relação ao serviço de transporte digital e analisou-se os requisitos trazidos à cidade de Petrolina, por meio da Lei municipal nº 3.094/2018, e suas repercussões.
O problema enfrentado e refletido nesse presente artigo referiu-se à busca de respostas para o motivo e a maneira em que se realiza a intervenção estatal, ao regulamentar-se os aplicativos que prestam o serviço de transporte individual privado de passageiros, e as consequências geradas aos consumidores, como também, aos motoristas desses aplicativos na perspectiva do município de Petrolina-PE.
Procurando compreender a realidade trazida pela regulamentação dos aplicativos de transporte privado, o presente estudo se objetivou em reconhecer as mudanças, entendendo as consequências geradas aos profissionais da área e aos consumidores do serviço. Por meio desse propósito, lidou-se com a seguinte hipótese: a regulamentação dos aplicativos de caronas pagas, que vem tornando-se uma realidade recorrente, trouxe alterações positivas e negativas ao funcionamento do serviço. Dessa forma, a regulamentação se fez conduzir à reflexão de até que ponto a intervenção do Estado acarreta em benefícios à coletividade. Ademais, teve-se a preocupação com os possíveis problemas gerados aos profissionais e consumidores do serviço, sendo analisado as diretrizes regulamentadas pela cidade de Petrolina-PE, localizada no sertão nordestino.
Desenvolvimento
A descoberta do fogo durante o período paleolítico ressaltou a capacidade do homem em sobressair-se perante os demais seres vivos. Essa conquista, como muitas outras no decorrer dos séculos, constatou a aptidão racional do homem para dominar a natureza, possibilitando a sua adequação a diferentes situações. A inteligência e a capacidade de consciência, veio sendo explorada no decorrer da história, permitindo que fossem criadas ferramentas que nos auxiliaram na dominação da cadeia alimentar. O surgimento da tecnologia digital tornou-se uma das descobertas mais úteis e propagadas na vida humana, possuindo uma evolução crescente e descontrolada que gerou uma dependência, dificultando a separação do que é real ou virtual.
Cada vez mais o ser humano vem aperfeiçoando e integrando, nas mais diversas atividades, mecanismos modernos que dão facilidade e praticidade ao cotidiano. Hoje em dia, consegue-se fazer praticamente tudo nos meios virtuais, desde compras a contratações de serviços, efetuando-os apenas com poucos toques em uma tela de celular.
“Seria tolo e irresponsável culpar as engenhocas eletrônicas pelo lento mas constante recuo da proximidade contínua, pessoal, direta, face a face, multifacetada e multiuso. E no entanto a proximidade virtual ostenta características que, no líquido mundo moderno, podem ser vistas, com boa razão, como vantajosas — mas que não podem ser facilmente obtidas sob as condições daquele outro tête-à-tête, não-virtual. Não admira que a proximidade virtual tenha ganhado a preferência e seja praticada com maior zelo e espontaneidade do que qualquer outra forma de contiguidade” […]. (BAUMAN, 2004, p.60)
Essa realidade adentrou nas pautas do Direito, forçando-o a, cada vez mais, adequar-se e propor novas normas que regularizem essas novatas atividades. É sabido que o Direito tem uma grande representatividade no contexto social, sendo esse ideal difundido pela “teoria da função social do direito” que consiste em uma convicção jusfilosófica, na qual o legislador objetiva a efetivação de políticas públicas que possam repercutir em todo o meio social. Dessa forma, uma das funções do Direito é garantir a seguridade do arranjo social, no qual as novas tecnologias se tornaram um desafio por estabelecerem diferentes práticas de convivência.
A “teoria tridimensional do Direto”, criada por Miguel Reale, também constata a importância dos operadores do Direito enxergarem o seu ramo com uma funcionalidade além da norma, visualizando a existência de três aspectos (fato, valor e norma) que constituem o direito e estão em constante entrelaçamento. Dessa forma, para o autor, o Direito está em constante mutação, característica que o permite adequar-se as diferentes temporalidades. Referente a esse tema, o jusfilósofo brasileiro afirma: “O Direito é um processo aberto exatamente porque é próprio dos valores, isto é, das fontes dinamizadoras de todo o ordenamento jurídico, jamais se exaurir em soluções normativas de caráter definitivo.” (REALE, 2000, p.575).
Como demonstrado nas duas teorias supramencionadas, o Direito está inteiramente ligado ao contexto social e detém da capacidade de adequar-se às diferentes realidades. Diante disso, o Direito necessita reconhecer os desafios que são trazidos pelos meios tecnológicos e assim buscar ajustar-se para que não se transforme em uma ciência ultrapassada. A constante emergência de aplicativos de celular que oferecem serviços, despertaram a necessidade de regulamentação como um importante tema no cenário jurídico da Administração Pública.
“Ocorre que a atuação do Estado não se limita aos serviços públicos; ele às vezes sai da órbita de ação que lhe é própria e vai atuar no âmbito de atividade reservada essencialmente à iniciativa privada; trata-se da atividade de intervenção, que compreende, além da regulamentação e fiscalização da atividade econômica de natureza privada (intervenção indireta), também a atuação direta no domínio econômico, o que se dá por meio de empresas estatais (intervenção direta).” (DI PIETRO, 2018, p.581)
O setor de transporte remunerado privado individual de passageiros vem ganhando notórias discussões destinadas à sua regulamentação jurídica, tendo difundindo-se rapidamente no cotidiano dos brasileiros por oferecer um serviço prático, eficiente e de baixo custo. Os diversos aplicativos de transporte existentes no mercado obtiveram, nos últimos anos, um grande crescimento, tornando-os alvo de muitas críticas por partes dos demais serviços de mobilidade urbana, principalmente vindas dos taxistas. Dessa forma, surgiu uma grande pressão perante o Estado para a regulamentação desses serviços virtuais de transporte, com o embasamento de possibilitar uma maior igualdade de concorrência e trazendo aos passageiros maior segurança, como também, servindo como uma nova forma de arrecadação de tributos pela máquina estatal. A fim de solucionar as polêmicas e lacunas referentes a esse tema, o Brasil finalmente o regulamentou por meio da Lei Federal 13.640/2018.
2 O histórico da Lei nº 13.640/2018 e suas diretrizes
A Lei Maior, a Constituição Federal de 1988, principal norteadora do Direito brasileiro, que rege a todos indiscriminadamente, prevê em seu artigo quinto a igualdade de todos perante a lei, sendo vedada a distinção de qualquer teor. Mais à frente, no inciso XIII, estabelece que é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, contanto que atenda às qualificações que a lei estabeleça.
Além da positivação do princípio da igualdade na Carta Magna, há também de ser ponderado o imprescindível princípio da indisponibilidade do interesse público, que visa atender aos interesses coletivos em detrimento de interesses particulares, e que, em certas decisões tomadas pelo administrador, acaba sendo posto como um contraponto ao princípio da supremacia do interesse público (outra base principiológica que fundamenta as decisões da Administração Pública). Como mencionado por Léo Jorge Ferreira, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello: “na administração os bens e interesses não se acham entregues à livre disposição da vontade do administrador”. Dessa forma, deveria haver fundamento em tais decisões baseado no interesse coletivo, todavia, muitas vezes, o que acaba havendo é uma supremacia de interesse por parte da administração, cujo qual representa uma minoria ante o interesse da coletividade.
De acordo com o artigo 170 da Carta Maior, é resguardado a todos, dentro da ordem econômica, a existência digna da livre concorrência, em seu inciso IV. Princípio esse que assegura a todos a proibição de qualquer impedimento que não seja legalmente previsto e autorizado que impossibilite as livres concorrência e iniciativa, disponibilizando a todos o direito de escolher qual meio utilizar para os fins almejados.
A polêmica em torno de uma possível proibição dos aplicativos de mobilidade se configura como aviltamento aos princípios da livre concorrência, da livre iniciativa e da liberdade profissional, pois impossibilita que os consumidores que preferem tais serviços para locomover-se, em virtude de facilidade de acesso ou custo mais acessível, tenham seu direito de escolha cerceado e restringido a utilizar uma quantidade limitada de serviços disponíveis nesse âmbito, além de também ferir a liberdade profissional do indivíduo que decide acolher profissionalmente o serviço on-line de transporte particular, algo que é usado como meio de obtenção de renda por milhares de pessoas que vivem em um país assolado pelo desemprego, e que veem o “boom” desses serviços como uma oportunidade de se sobressair ante essa realidade. Vale destacar que também há pessoas que trabalham em outros ramos e utilizam esse dispositivo como forma secundária de angariar renda, por muitas vezes o que adquirem financeiramente com seu ramo principal ser insuficiente para suprir suas despesas.
Ademais, uma possível proibição desses serviços teria impacto negativo na economia a nível nacional, fomentando mais ainda o desemprego, por acabar com várias oportunidades em torno da modalidade, a qual é explorada por diversas empresas nacionais e internacionais, e, em decorrência disso, abortando o crescimento de tais empresas brasileiras que atuam nesse mercado.
Diante dessa polêmica discussão acerca dos serviços digitais de transporte, surgiu a ideia de regulamentá-lo, a fim de que, a partir disso, houvesse uma maior fiscalização em torno dos aplicativos e, consequentemente, fosse dado um fim às controvérsias que giram em torno desse tema, principalmente advindas de disputas comerciais, como uma forma de “equilibrar” as condições de competição, sob o pressuposto de que a nova modalidade de transporte teria “privilégios” por não ser a ela imposta a obrigação de cumprir certos requisitos. Com isso, sob pressão, os municípios brasileiros passaram a criar leis regulamentando esses aplicativos, restringindo suas atuações e impondo condições às suas práticas. Contudo, os Tribunais de Justiça declararam essas leis inconstitucionais, sob o simples argumento de que essas leis violavam os princípios da livre iniciativa, livre concorrência e da liberdade profissional, todos angariados e previstos na Constituição. Ademais, a Procuradoria-Geral da República emitiu um parecer onde constava que os municípios não tinham a competência para legislar sobre o assunto, cabendo exclusivamente à União tratar do assunto.
Após a falta de sucesso dos municípios em legislar sobre o assunto e, com isso, impor regulamentações aos aplicativos, iniciou-se uma forte pressão para que o Congresso Federal editasse norma sobre o tema, pressão essa que se dividia em duas correntes. A primeira queria que a regulamentação passasse a qualquer custo, utilizando das prerrogativas já mencionadas como embasamento. Já a segunda, atendendo aos interesses dos beneficiários desses aplicativos, queria que houvesse uma flexibilização quanto a essa regulamentação. Diante da intensa discussão referente aos benefícios e malefícios trazidos com uma possível regulamentação, no ano de 2015, a diretora jurídica da Uber no Brasil, admitiu a importância da normatização do serviço:
“É importante entender que o serviço de transporte privado individual prestado pelos motoristas parceiros da Uber também precisa ser disciplinado para dar segurança jurídica ao sistema e para tornar o ambiente ainda mais legítimo para trabalhadores e usuários.” (Ana Pellegrini).
Em meio a esse conturbado cenário, surgiu a Lei nº 13.640/2018, que estabeleceu novas diretrizes sobre essa questão e deu um novo capítulo a essa polêmica. A mencionada Lei, aprovada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo, trouxe novas disposições e determinou, principalmente, que a competência para legislar sobre a regulamentação dos aplicativos de transporte particular será, de agora em diante, dos municípios, não competindo mais exclusivamente à União. Previu também a cobrança de tributos municipais sobre esses serviços, como, por exemplo: ISS e taxas, exige também que o motorista seja devidamente inscrito no INSS, além de condições impostas exclusivamente aos motoristas desses serviços, como possuir a Carteira Nacional de Habilitação na categoria B, emitir e manter o Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo, apresentar certidão negativa de antecedes criminais, etc. Com o advento da supramencionada Lei, o não cumprimento dos requisitos previstos por parte dos condutores desses serviços poderá caracterizar-se como transporte ilegal de passageiros.
Com isso, passou-se a ser permitido que os municípios detenham de liberdade para criar suas próprias regulamentações, e a discricionariedade de decidir criá-las ou não, adquirindo total competência para legislar sobre o assunto. Esse poder discricionário deliberado aos municípios, faz-se refletir em até que ponto a intervenção estatal, interferindo diretamente nas relações privadas, é benéfica à iniciativa privada e como esse ato repercute na população, além de avaliar se não ocorre a violação dos princípios da livre concorrência, da livre iniciativa e da liberdade profissional. Referente à intervenção do Estado no domínio econômico e social, Bandeira de Mello (2008, p.662) explana:
“Conquanto o segmento da atividade econômica seja da alçada dos particulares no exercício da livre iniciativa – em contraposição aos serviços públicos que se alocam no universo estatal – o Poder Público, de fora parte providências de fomento ou de assegurar a obediência à disciplina legal do setor, em certas hipóteses raras, constitucionalmente admitidas, pode também atuar como protagonista do mundo empresarial. Demais disto, o Estado interfere também na esfera social, seja por via dos serviços públicos sociais, seja fomentando a atividade de particulares cm tal setor.”
A necessidade de regulamentação do serviço de transporte remunerado privativo individual de passageiros demonstra a expansão do uso das ferramentas digitais na vida dos indivíduos, que necessitam apenas de um dispositivo (smartphone, tablet, etc.) e acesso à internet para contratar múltiplos serviços que proporcionam maior praticidade no cotidiano.
A grande problemática dos congestionamentos enfrentada nas diversas capitais brasileiras forçou a adequação dos cidadãos a novas alternativas de transporte que colaborem para a diminuição do tráfego de automóveis nas cidades e, consequentemente, o tempo gasto no trânsito. Os aplicativos usados nos serviços de caronas pagas obtiveram um grande impulso nos últimos anos, tornando-se uma excelente alternativa para a problemática do trânsito brasileiro, agregando preço e serviço eficientes. Diante do significativo crescimento desse serviço virtual, outros setores do ramo de transporte se viram ameaçados.
A empresa Uber, por ser pioneira, é uma das mais populares nesse setor, tornando-se o maior alvo das críticas e protestos dos taxistas. Diante desse embate entre os serviços de condução particular, relatou-se o extremo de haver confronto físico, como o ocorrido relatado pelo site de informações G1, em março de 2018, no aeroporto de Fortaleza, no Ceará, onde taxistas e motoristas da Uber trocaram agressões físicas e verbais. Esse lamentável episódio é um dos exemplos da intensa rivalidade entre essas duas classes, compostas por pessoas que buscam honestamente atuar no mercado de trabalho, e que por essas condutas, acabam por gerar uma repercussão negativa sobre ambas as modalidades de serviço de carona.
Um dos principais fundamentos da classe taxista do porquê se deveria regulamentar o serviço digital de transporte particular é o de que não há paridade de condições em relação a ambos, disparidade essa que acaba servindo como fator determinante de privilégio à nova modalidade do setor. Cabe ponderar as principais diferenças que existiam entre os dois serviços, antes das legislações atuais que tratam sobre a matéria. De um lado, os profissionais de serviço de táxi têm o dever de pagar uma taxa aos órgãos públicos, fixada a critério de cada município, e ainda adquirir licença frente à prefeitura do município que exercem a função, além do mais, alguns municípios exigem curso específico para atuar como taxista. Já os motoristas de serviço digital de condução particular não tinham a obrigação de pagar taxa similar, nem a obrigatoriedade de requerer licença, tampouco a exigência de curso (algo que agora compete ao município impor tais exigências, como ocorre em muitas capitais, por exemplo). De outro lado, os taxistas têm isenção de alguns impostos na compra de veículos (como, por exemplo, IOF e IPI), além de descontos em concessionárias, a depender do local. Já os profissionais de serviço on-line de transporte têm que arcar com todo o custo do automóvel ao comprar, além de não disporem de isenção tributária, tendo que arcar, por exemplo, com o ISS.
Destaca-se que os serviços de taxi são conhecidos como serviços públicos impróprios, sendo essa definição considerada equivocada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por não serem funções assumidas nem executadas pelo Estado, seja direta ou indiretamente, mas apenas por ele autorizados, regulamentados e fiscalizados.
“Na realidade, essa categoria de atividade denominada de serviço público impróprio não é serviço público em sentido jurídico, porque a lei não a atribui ao Estado como incumbência sua ou, pelo menos, não a atribui com exclusividade; deixou-a nas mãos do particular, apenas submetendo-a a especial regime jurídico, tendo em conta a sua relevância. São atividades privadas que dependem de autorização do Poder Público; são impropriamente chamadas, por alguns autores, de serviços públicos autorizados.” (DI PIETRO, 2018, p.183)
Além disso, muitas pessoas preferem os serviços digitais de carona ao serviço de táxi, em virtude de uma maior acessibilidade e um custo mais baixo em relação ao outro, e há também quem ainda opte pelo táxi por conta de uma maior confiança no serviço, principalmente por ser algo mais antigo, tendo já estabelecido confiança em algumas pessoas, havendo uma certa resistência no quesito confiabilidade em relação a essa “modernização” do serviço. Contudo, com o passar dos anos, o serviço de táxi também buscou sua modernização com o advento de aplicativos para smartphones, onde os clientes conseguem solicitar o serviço com maior facilidade, no entanto, mesmo com essa aproximação no mercado digital, os serviços de táxi e de transporte digital ainda se diferenciam.
Vale salientar que o mais importante ante toda essa discussão entre os dois serviços é o respeito às livres iniciativa e concorrência, não havendo aviltamento a esses dois princípios fundamentais à ordem econômica, possibilitando que essa competição possa ser feita de forma respeitável.
Portanto, a regulamentação de ambos os serviços deve ser realizado pela Administração Pública, que, ao fazê-la, exerce o chamado poder de polícia, fiscalizando e impondo limitações a atividades particulares a fim de atender aos interesses públicos, como bem definido pelo renomado jurista Bandeira de Mello (2009, p.815):
“A atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-as aos interesses coletivos designa-se “poder de polícia”. A expressão, tomada neste sentido amplo, abrange tanto atos do Legislativo quanto do Executivo. Refere-se, pois, ao complexo de medidas do Estado que delineia a esfera juridicamente tutelada da liberdade e da propriedade dos cidadãos” […].
Em 2017, chegou ao município de Petrolina, no sertão pernambucano, um moderno meio de transporte particular, intitulado Uber, algo que naquele momento era novidade para muitas pessoas, apesar do crescimento do serviço em todo o país, principalmente nas capitais. Logo, a possibilidade de solicitar um serviço de carona paga através de um smartphone, o baixo custo e com transparência (função visualizada antes mesmo de solicitá-lo) atraíram os públicos de Petrolina e sua cidade vizinha, Juazeiro, localizada na Bahia. Com o crescimento rápido do ramo, culminou-se um grande debate sobre a necessidade de regulamentá-lo, sendo uma discussão já presente nas cidades onde o serviço funcionava há mais tempo.
Em vários municípios brasileiros foram estabelecidas regulamentações através de legislações próprias, todas subsequentes à Lei n° 13.640/2018, que concedeu a competência aos municípios para legislar sobre a matéria. O principal ponto que as várias regulamentações municipais têm em comum é o estabelecimento do pagamento de uma taxa destinada ao órgão público competente. Cidades como Vitória-ES e Rio de Janeiro-RJ estabeleceram em suas legislações as contribuições de 1% (um por cento) no valor total das viagens realizadas. A primeira cidade a regulamentar o serviço digital de transporte particular foi a capital de São Paulo, onde instituiu-se uma polêmica Resolução (n° 16) que proibia a realização do serviço utilizando automóveis com placas de outros municípios, contudo, essa resolução acabou sendo derrubada pela Justiça sob a alegação de inconstitucionalidade.
No dia 28 de agosto de 2018, foi aprovado por 17 votos a zero, pela Câmara de Vereadores do município de Petrolina (casa Plínio Amorim), o projeto de lei (cuja autoria é do Poder Executivo municipal) que versa sobre a regulamentação do serviço de transporte particular por aplicativos, que se tornara a Lei n° 3.094/2018. Várias mudanças foram trazidas com a Lei, dentre elas, que a regulamentação ficará a cargo da Autarquia de Mobilidade Urbana do Município de Petrolina (AMMPLA), órgão responsável pela fiscalização do trânsito no município. Além do mais, foi estabelecido a obrigatoriedade de vinculação da prestação de Serviço de Transporte Individual Privado de Passageiros (STIP) à obtenção de um certificado intitulado de Certificado Anual de Autorização (CAA), emitido pelo órgão responsável, a AMMPLA, que requer ao prestador do serviço a posse da Carteira Nacional de Habilitação (na categoria B), a apresentação do veículo que será utilizado no exercício da atividade para fins de cadastro, a apresentação de que nada consta na Certidão Criminal expedida pelo órgão competente, a comprovação de certificação ou inscrição em um curso de formação realizado pelo município em parceria com o SENAT e a AMMPLA, e, por fim, estar devidamente inscrito no INSS. Vale ressaltar, que a expedição e a renovação do certificado dependem do pagamento de taxas estabelecidas para ambas.
A Lei também impõe a idade máxima de cinco anos para veículos a gasolina, álcool e afins (combustíveis fósseis), e de oito anos para veículos híbridos, elétricos e afins (combustíveis não fósseis), a exigência de que tenha sido licenciado no município de Petrolina, que o veículo tenha identificação da empresa realizadora do serviço de forma visível e externa, além de outras exigências específicas sobre o veículo. Outra imposição trazida que deve ser salientada é a da proibição da utilização de pontos destinados a táxi e serviços de transporte público urbano do município. Foi estabelecido também a fixação da cobrança de ISSQN (Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza) pelo município em um percentual de 5% (cinco por cento) sobre o valor total da viagem.
Após a aprovação da Lei nº 3.094/2018, mais precisamente no dia 20 de setembro daquele mesmo ano, surgiu o Decreto n° 073/2018 que regulamentou a Lei, sob a justificativa de que o serviço digital de transporte particular é uma novidade no município, sendo necessário um período de adequação por parte de todos às mudanças trazidas pela regulamentação. Esse Decreto trouxe uma nova disposição acerca da idade máxima do veículo, alterando de cinco para oito anos o requisito de idade dos veículos movidos a combustíveis fósseis, até o ano de 2021. Ademais, estabeleceu que os prestadores do serviço tivessem até o dia primeiro de janeiro de 2019 para adequar-se às demais disposições que foram trazidas pela Lei.
A regulamentação disposta na Lei fez com que houvesse indignação por parte dos motoristas do serviço, especialmente aqueles que trabalham para a empresa Uber, ocasionado manifestações em oposição à Lei. Na tentativa de apaziguar as polémicas, o prefeito do município de Petrolina, Miguel Coelho, convocou uma audiência pública para ouvir os anseios da classe e esclarecer certos pontos da Lei. É válido mencionar que a audiência pública é um importante dispositivo que se encontra respaldado no princípio da publicidade dos atos da Administração Pública.
“A adoção do princípio da publicidade dos atos da Administração Pública, que assegura ao público em geral a possibilidade de conhecer os atos do seu interesse, salvo hipóteses de sigilo previamente declarado; assegura-se também a participação do cidadão no procedimento de elaboração dos regulamentos, mediante consultas e conferências para conhecer a opinião dos grupos econômicos interessados, audiências públicas, publicação prévia dos projetos.” (DI PIETRO, 2018, p.62)
Com o advento dessas medidas trazidas na regulamentação, entende-se que, com tais mudanças, existe a possibilidade de os preços das corridas subirem, em virtude das cobranças das taxas e do ISSQN, além de, consequentemente, haver uma declinação de condutores que prestam tal serviço em virtude da alteração da idade máxima de veículos.
Diante do exposto, as opiniões acerca das diretrizes trazidas pela supramencionada Lei se dividem em duas correntes: aqueles que criticam vários pontos, sob o pressuposto de que são burocracias que prejudicarão os serviços de transporte particular na região, e aqueles que defendem a necessidade de regulamentação como forma de estabelecer iguais condições de concorrência ao serviço de táxi.
É evidente que certos requisitos trazidos com a regulamentação prejudicam o setor, podendo ocasionar em malefícios aos consumidores, como, por exemplo, o aumento das corridas. Todavia, a intervenção do Estado é necessária para conceder segurança jurídica e uma maior igualdade de concorrência no ramo de transportes urbanos. Portanto, essa intervenção estatal deve conduzir-se paralelamente aos interesses da coletividade, não exercendo uma interferência prejudicial e abusiva ao serviço.
Conclusão
O presente estudo expõe uma retrospectiva histórica da constante evolução do homem ao “facilitar” o cotidiano através de descobertas e avanços tecnológicos, como também a sua relação com o Direito, que deve buscar moldar-se a tais transformações, para que não se torne ultrapassado. Um grande exemplo do avanço tecnológico e sua problemática frente às relações jurídicas é o serviço digital de transporte particular, algo que surgiu na segunda década do século XXI e vem sendo alvo de diversas controvérsias, como apresentado nesse artigo, tendo como foco, principalmente, o município de Petrolina-PE, que, no final do ano de 2017, deparou-se com a chegada desse novo serviço.
O advento dos aplicativos de condução particular em Petrolina logo atraiu a população, devido à facilitação de acesso a um transporte particular e pelo baixo custo fornecido. Contudo, a novidade gerou polêmica em torno de uma possível regulamentação, sob a perspectiva de que a concorrência com o serviço de táxi era injusta, por não haver uma igualdade de condições e deveres para ambos os serviços. Com isso, foi aprovada e sancionada a Lei 3.094/2018, que trouxe novas diretrizes e impôs condições às empresas que prestam serviços on-line de caronas pagas e aos seus condutores, atendendo às pressões feitas pela classe taxista.
Diante disso, alguns problemas poderão surgir em virtude da regulamentação dos serviços de caronas pagas, sendo um deles o possível aumento do custo do serviço para os usuários (que tem o baixo custo como um dos principais fatores que atraem o público para essa modalidade), e o declínio dos profissionais que trabalham para as empresas de aplicativos, com o aumento de exigências que não podem ser cumpridas por parte desses, como, por exemplo, a estipulação de uma idade máxima de veículos a serem utilizados para os fins da atividade exercida.
Ante o problema apresentado, sugere-se que a Administração Pública realize mais ainda a audiência pública (meio pelo qual se torna público os atos administrativos), sendo utilizada para ouvir os anseios populares, respondendo a esses e procurando resolver os possíveis problemas ocasionados pela regulamentação dos serviços digitais de transporte particular, além de estimular a participação popular nas audiências, explicando eventuais dúvidas que possam surgir acerca do que está contido na Lei 3.094/2018. Ademais, é de suma importância que a população esteja sempre fiscalizando as mudanças proporcionadas pela supramencionada Lei, em parceria com a Administração, sendo essa responsável por reparar os problemas que porventura venham a surgir em consequência da regulamentação.
Em relação a trabalhos futuros, o presente estudo fornece algumas opções no que diz respeito aos avanços tecnológicos e sua relação com o Direito, bem como papel da Administração Pública frente às atividades decorrentes dessas transformações. Pois, através do estudo em questão, chegamos à conclusão de que o Estado possui um papel imprescindível no tocante à regulamentação de tais atividades, com a finalidade de atender ao interesse público. Com isso, propomos a realização de novos estudos mais aprofundados que explorem mais essa temática, abordando o papel intervencionista do Estado ao limitar as relações privadas.
Portando, a regulamentação dos aplicativos que prestam serviço de transporte individual privado de passageiros está relacionado ao papel que tem a Administração Pública de intervir nas atividades particulares, restringindo-as, a fim de atender aos interesses coletivos, em detrimento de interesses particulares, exercendo, dessa forma, o seu poder de polícia. Esse intervencionismo está relacionado aos princípios da indisponibilidade do interesse público e da supremacia do interesse público, ambos imprescindíveis para Administração Pública, e responsáveis por reger as ações do administrador, devendo sempre fundamentá-las em tais princípios. E, para que essa interferência do Estado não seja prejudicial, entendemos que essa regulamentação deve estar em conformidade com os princípios da livre iniciativa, livre concorrência e liberdade profissional, cabendo à Administração Pública prezar e garantir o cumprimento de tais princípios, e não aviltá-los mediante a imposição de burocracias desnecessárias, gerando consequências negativas tanto aos prestadores desse serviço quanto aos seus usuários.
Referências
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