Resumo: O presente trabalho almeja realizar uma abordagem da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.54, ora em análise no Supremo Tribunal Federal brasileiro, sob a perspectiva civil-constitucional. É consensual o entendimento de que os efeitos do neoconstitucionalismo influenciaram o tradicional direito privado, e, por conseguinte, o Direito Civil. Conceitos relacionados ao Direito de Personalidade e sua tutela foram remodelados, primando agora pela supremacia da Constituição e a efetividade dos direitos humanos fundamentais. Neste contexto, cumpre analisar a questão da anencefalia, prezando pelas teorias civilistas do nascituro, sem olvidar outros valores a serem refletidos pelos intérpretes da Lei Maior, quais sejam: a integridade psíquica e emocional da gestante e o suposto direito à vida do feto anencéfalo, todos envolvidos pelo princípio maior da dignidade da pessoa humana. Este trabalho foi orientado pela Professora Keila Pacheco Ferreira.
Palavras- chave: Anencefalia. Neoconstitucionalismo. Personalidade.
Abstract: This work aims to perform a approach about a ADPF n.54, in analysis in the brazilian Supremo Tribunal Federal, about the perspective civil-constitutional. The understanding about the neoconstitucionalism’s effects that influenced the traditional private law and consequently the civil law is consensual. Concepts connected at the personality law it was refurbished, prioritizing the constituition’s supremacy and the effectiveness of human’s right. In the context, it’s important to analyze the anencephaly’s question valuing the civil theory about the unborn, without forget other principles like: psychic’s integrity pregnant and the supposed anencephaly’s right to live, everything envolved by the dignity human principle.
Keywords: Anencephaly. Neoconstitucionalism. Personality.
Sumário: 1. Introdução – 2. A constitucionalização do Direito Civil: Aspectos evolutivos do Direito Privado e o Neoconstitucionalismo – 3. Propositura da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54 e suas reflexões no âmbito civil – 4. A instalação da polêmica: Teorias civilistas sobre direito de personalidade – 4.1. Considerações iniciais – 4.2. O direito subjetivo e a personalidade civil – 4.3. A personalidade civil – 4.4. A figura do nascituro – 4.5. Direito da personalidade e sua relação com teorias da personalidade – 5. Conclusão – 6. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O Direito é, além da ciência “kelseniana” do dever-ser, uma ciência do espírito humano. Partindo desta premissa, é válido que se estabeleça uma inter-relação dos conhecimentos do mundo jurídico com o universo envolvido por outros ramos do saber. Isto favorece a melhor compreensão de temas complexos como a anencefalia, cerne do emblema jurídico suscitado com a propositura da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.54, ora em análise na Corte Suprema brasileira.
Debates desta alçada questionam, sobretudo, o que é a vida do ser humano – quando se inicia e cessa, inspirando um estudo sobre os direitos de personalidade. O homem, protagonista de um enredo incerto passado no mundo, vive o novo paradigma da pós-modernidade (ou alta modernidade).
Luís Roberto Barroso observou que disto temos uma paisagem social complexa e fragmentada, que no plano internacional acompanha a decadência do tradicional conceito de soberania, em virtude dos efeitos da globalização. No meio econômico-social o progresso da ciência e da tecnologia trazem, concomitantemente, a expansão da informática e as dúvidas morais e éticas acerca da engenharia genética. A desconstrução da concepção de Estado tradicional, igualmente, imprimiu mudanças na ordem jurídica dos países. No direito privado, por exemplo, o surgimento de microssistemas, tais como o biodireito, “atacou” a supremacia dos códigos civis.
A transição do Estado liberal (pré-moderno) para o social (moderno) e, em uma terceira fase, um Estado neoliberal (pós-moderno) representa, para muitos, o Umbruch (rompimento) com uma era, desconhecendo- se o porvir – algo que incita o ceticismo nas pessoas, a derrocada do racionalismo, o vazio teórico e a insegurança jurídica (MARQUES apud BARROSO, 2001, p. 2).
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman sustenta a tese de que vivemos, de fato, em uma sociedade líquido-moderna, ou seja, em um meio social intimamente relacionado com uma vida líquida. Esta seria uma vida “precária, vivida em condições de incerteza constante” (BAWMAN, 2001, p.8). Os bens são logo descartados ou substituídos, pois nesta “modalidade” do viver a constância e a aderência são repugnáveis. Destarte, a indústria de remoção de lixo atinge o máximo de seu desenvolvimento em uma economia também líquida. É a almejada “destruição criativa” do capitalismo que, ocultamente, arrasa outros modos de vida e, por conseguinte, outras pessoas.
O interessante nesta crítica – e o igualmente assustador – é que o temor de ser deixado para trás nesse sistema, no qual as mudanças são céleres e o “não se modernizar” representa uma forma de exclusão, torna as ligações frouxas e os compromissos revogáveis entre os indivíduos. As pessoas são materialmente ricas, porém de espírito empobrecido e fatigado. As possibilidades de reinício e de inovação, acenados a princípio, endossam as desigualdades afinal, e passaram a ser acompanhadas pelo medo de transformar-se em ser dispensável. Sem vínculos firmes e desprovidos de profundidade, o homem teme ser um dejeto, digno apenas do lixo no qual está desprezado aquilo que foi ultrapassado tecnologicamente.
Com tamanhas mudanças e incertezas, as instituições e os modelos tradicionais relacionados à composição das identidades coletivas – Estado Nacional, classes sociais, crenças religiosas, partidos políticos, sindicatos e até mesmo as Universidades – foram abalados (MORAES, 2009, p. 63). O desafio de se estabelecer e efetivar um Estado Democrático de Direito surge para superar momentos anteriores da história e das leis humanas marcadas pela arbitrariedade e pelo estrito legalismo, que a legitimou. Atribuir normatividade a princípios jurídicos e desenvolver uma teoria de direitos fundamentais calcada na dignidade da pessoa humana são tarefas dos legisladores e intérpretes nesse modelo de Estado, e aqueles fatores são primordiais para o constitucionalismo moderno e para a consolidação de um Direito Civil realmente comprometido com a plena autonomia individual.
Prezando estes ideais é que iniciamos uma abordagem sobre o caso da anencefalia. Apresentando conceitos biológicos da patologia no contexto da medida judicial que a inseriu em debates de diversos meios sociais, empreendemos um breve escorço histórico no sentido de ordenar os acontecimentos, partindo de considerações que dimanam do neoconstitucionalismo.
2. A constitucionalização do direito civil: aspectos evolutivos do direito privado e o neoconstitucionalismo
O termo “neoconstitucionalismo” foi um conceito formulado em países como a Espanha, onde se publicou a coletânea organizada pelo mexicano Miguel Carbonell. Conforme aponta o título da obra – “Neoconstitucionalismo(s)” – não há uma definição precisa ou fixa de tal fenômeno: ocorreu a reunião de “denominadores comuns relevantes”, embora, a princípio, seja chocante notar posicionamentos “jusfilosóficos” distintos como o positivismo e o pós-positivismo agrupados em um mesmo conceito.
A corrente neoconstitucionalista, desenvolvida com o fim das ditaduras de direita nos países ibéricos no período pós-Segunda Guerra Mundial, insurgiu com a promulgação de constituições repletas de normas de alta densidade axiológica no ordenamento europeu, aliados a direitos individuais e políticos, mais os sociais de natureza “prestacional”. A interpretação extensiva e abrangente, pelos tribunais, dessas normas abertas e de proeminentes indeterminações semânticas ensejou o desenvolvimento de técnicas de ponderação e proporcionalidade. Ademais, para que tais decisões fossem mais bem legitimadas no contexto de sociedades pluralistas, exaltou-se a argumentação jurídica, agora fundamentada em considerações morais ou pautada no empirismo das normas.
Sarmento preleciona que tal corrente reforçou teorias de democracia mais substantivas, que legitimam amplas restrições aos poderes do legislador em nome dos direitos fundamentais e da proteção das minorias, justificando, por conseguinte, a fiscalização dos Poderes públicos por um Judiciário composto por membros não eleitos – o que, aliás, constitui uma das objeções ao movimento, pois tal atuação ativista de agentes públicos não investidos em seus cargos por voto popular seria antidemocrática, imbuída de preferências políticas e valorativas.
As outras duas críticas, alinhavadas por Daniel Sarmento, seriam a de que a prática de ponderação de princípios na cultura jurídica brasileira, acostumada à subsunção, poderia ser perniciosa, e que isto geraria a “panconstitucionalização” do Direito, “em detrimento da autonomia pública do cidadão e da autonomia privada do indivíduo” (SARMENTO, 2009, p.13).
A visão neoconstitucionalista prevê, ainda, a centralidade da Constituição no ordenamento jurídico, a irradiação das normas constitucionais pelas leis deste ordenamento e a existência de uma jurisprudência criativa. As duas características primeiramente citadas são tratadas como novo paradigma do Direito Civil. O código, um produto criado pelo Estado Liberal para garantir a separação entre o Estado e sociedade civil, assegurando a autonomia individual nas relações econômicas, assume novas feições na busca de unidade hermenêutica com a Constituição que, historicamente, nasceu para limitar o poder político estatal.
O Direito Civil rende-se a uma “humildade epistemológica”, o que indica o abandono de uma “visão estática, atemporal e ‘desideologizada’ do âmbito privado” (LÔBO, 2003, p.198). Inserir o Direito Civil na leitura constitucional é perquirir pelos fundamentos da validade jurídica dos institutos e formulações tipicamente privados, como a personalidade, dotando-o de valores que cumpram, no caso brasileiro, com os princípios basilares do diploma civil de 2002 – sociabilidade, “eticidade” e operabilidade.
Cumpre frisar que a constitucionalização do direito, todavia, é fenômeno distinto da “publicização” do direito civil. Aquela é “o processo de elevação ao plano constitucional dos princípios ‘fundantes’ do direito civil” (LÔBO, 2003, p.199), ao passo que a “publicização” consiste na intervenção ou no dirigismo do legislador, próprio do Estado Social do século XX, para que a ação do Poder Público reduza o espaço da autonomia privada, a fim de garantir a “tutela jurídica dos mais fracos” (LÔBO, 2003, p.199).
Arrematando tal linha de raciocínio, anotamos a didática síntese elaborada por Luís Roberto Barroso, de que o referido processo de transposição do privado para o público atravessou três fases. A primeira, denominada “mundos apartados”, no qual as Constituições eram meras Cartas políticas desprovidas da normatividade direta do Código Civil, portador de tradição “romanística” e protetor da autonomia da vontade e o direito à propriedade (BARROSO, 2007, p.230).
Depois, a fase da “publicização do direito privado”, que elevou as “normas de ordem pública”: regras e princípios que tutelam partes fragilizadas da relação jurídica, como o consumidor, inaugurando o “dirigismo contratual” (BARROSO, 2007, p.231). Por derradeiro, a fase da “constitucionalização do direito civil”, que passa pelo crivo das Constituições as outras disposições legais e que, sobretudo, prioriza o princípio da dignidade da pessoa humana (argumento principal dos argüentes da ADPF n.54) e aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas (BARROSO, 2007, p.231-233).
Neste item, em particular, podemos considerar os critérios para a ponderação de interesses elencados pelo insigne jurista supramencionado como convenientes para a lide ora analisada, e pormenorizada mais adiante. São estes fatores, a saber: (i) a igualdade ou a desigualdade material entre as partes; (ii) a manifesta injustiça ou falta de razoabilidade do critério; e (iii) risco para a dignidade da pessoa humana (BARROSO, 2007, p.233).
A dignidade da pessoa humana, princípio e fundamento da República Federativa do Brasil, é uma expressão de acontecimento recente no mundo do Direito. Ademais, é termo de difícil elaboração conceitual por ser vago, fluido e indeterminado – adjetivos recorrentes na caracterização de princípios jurídicos – e dificilmente esgotado, por compreender uma série de valores.
Tal expressão, polissêmica e indiscriminadamente utilizada às vezes, “pressupõe o imperativo categórico da intangibilidade da vida humana” (MORAES, 2006, p.12) e origina três preceitos, em seqüência hierárquica: (i) respeito à integridade física e psíquica das pessoas; (ii) consideração pelos pressupostos materiais mínimos para o exercício da vida; e (iii) respeito pelas condições mínimas de liberdade e convivência social igualitária (AZEVEDO apud MORAES, 2006, p.12).Observando esta concepção é que os argüentes da ação constitucional em foco colocaram em relevo tal princípio, para resguardar o direito de liberdade de escolha da gestante do feto anencéfalo.
3. Propositura da argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) nº 54 e suas reflexões no âmbito civil
O início da controvérsia judicial gerada pela propositura da ADPF n.54 deu-se com abertura de precedente pelo caso Gabriela Alves Cordeiro. A jovem gestante de 18 anos ajuizou, por intermédio da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, pedido de liminar que lhe autorizasse a interrupção da gestação em virtude de haver diagnóstico médico atestando que o feto era anencéfalo.
O termo “anencéfalo” deriva do prefixo grego “an”, que significa privação, combinado com “ enckephalos”, que quer dizer “cérebro” (PEIXOTO, 2010, p.807).A anencefalia, portanto, equivale a “uma malformação fetal congênita caracterizada pela ausência de grande parte de ambos os hemisférios cerebrais, do córtex, dos ossos que compõem a calota craniana (frontal, occipital e parietal) e da pele que a reveste” (PEIXOTO,2010, p.807), fazendo com que os tecidos nervoso e “fibrótico” fiquem expostos. Ocorre, nesta alteração, defeito no fechamento do tubo neural, a estrutura formadora do cérebro e a espinha, “expondo os hemisférios cerebrais ao líquido amniótico que dissolve toda ou a maioria da massa encefálica, impedindo seu desenvolvimento” (DINIZ; VÉLEZ apud PEIXOTO, 2010, p.807).
Nota-se que a anencefalia não é a mera ausência do cérebro, pois fragmentos dele podem existir. O feto anencefálico sofre de uma malformação, ou seja, de um “defeito morfológico de um órgão, parte de um órgão ou de uma região maior do corpo que resulte de um processo de desenvolvimento intrinsecamente anormal” (MOORE; PERSAUD apud PEIXOTO, 2010, p.807). Em tese, o defeito origina-se da “interação entre genes e fatores ambientais, em especial dos genes ligados ao metabolismo do ácido fólico” (PEIXOTO, 2010, p.807).
A anencefalia se manifesta geralmente no período resultante entre 23 e 28 dias da gestação (PENNA apud PEIXOTO, 2010, p.807). O diagnóstico da anencefalia, bem como de outras malformações fetais (a espinha bífida e a “encefalocele”) é feito durante o segundo trimestre da gestação, mediante uma ecografia (exame de ultrassom). Francisco Davi Fernandes Peixoto adverte, contudo, que “a anencefalia é um defeito fatal para o feto”, ao passo que com a espinha bífida este poderia sobreviver, embora apresente sérias complicações, tais como “paralisia dos membros inferiores, da bexiga e dos intestinos, bem como dificuldades de aprendizado” (PEIXOTO, 2010, p.807).
O autor supramencionado assevera, ainda, que “do ponto de vista obstétrico não há chance de sobrevivência extrauterina” do feto portador da anencefalia. Citando outra lição, ele sustenta:
“[…] não há estruturas cerebrais (hemisfério e córtex), havendo apenas tronco cerebral. Há ausência de todas as funções superiores ligadas ao sistema nervoso central, responsável pela consciência cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Restam apenas funções vegetativas que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e as funções dependentes da medula espinhal.” (RIBEIRO apud PEIXOTO, 2010, p.808).
Salienta-se, igualmente, que a anencefalia prejudica a saúde da gestante. Além de prováveis complicações no trabalho de parto, “a possibilidade de convulsões e desmaios aumenta sensivelmente, bem como o risco de eclampsia” (PEIXOTO, 2010, p.808), fora os outros abalos psíquicos que afligem a mulher tanto durante quanto após a gravidez. O fundamento jurídico do pedido de Gabriela Oliveira Cordeiro, aliás, referiu-se a este transtorno emocional, respaldado pela alegação de que isto ofendia a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal).
No mesmo novembro no qual a ação judicial foi interposta, o juiz de direito da Comarca de Teresópolis (RJ) extinguiu o processo sem julgamento de mérito, pois a hipótese suscitada no pedido não estava inserida nas arroladas no artigo 128 do Código Penal. A Defensoria Pública aviou recurso de apelação ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ), e em 19 de novembro de 2003, a desembargadora Gizelda Leitão Teixeira concedeu medida liminar para o aborto do nascituro (BENTO, 2006, p.15).
Outros advogados, estranhos ao processo, interpuseram Agravo Regimental, no que foi negado o provimento. Em 21 de novembro de 2003, foi impetrado o Habeas Corpus nº 32.159, e a argumentação do impetrante deste era a de que a decisão do TJ-RJ ofendia os artigos 3º, inciso IV, art. 5º e 227, da Carta Magna, assim como o artigo 2º do Código Civil e o artigo 128 do Código Penal, autorizando o crime de aborto.
Em 25 de novembro de 2003, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu medida liminar que sustava a decisão de autorização de aborto e, em 17 de fevereiro do ano seguinte, julgou-se o Habeas Corpus citado acima, concedendo-se “a ordem para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto” (BENTO, 2006, p.17) de forma unânime. Já na ementa do acórdão constava a alegação de que faltava amparo legal para a liberação do abortamento – o máximo que “os defensores da conduta proposta” poderiam fazer era “lamentar a omissão” do legislador, papel que o magistrado usurparia caso anuísse com a interrupção da gravidez do feto anencéfalo (BENTO, 2010, p.17).
Com posicionamento diverso ao prolatado no acórdão acima, a ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero) impetrou no STF o Habeas Corpus nº 84.025-6, insistindo na necessidade de tutela à saúde física e mental da paciente em reverência ao princípio da dignidade humana. O relator da causa foi o Ministro Joaquim Barbosa, que em seu pronunciamento já revelou a tendência hodierna das Cortes Supremas de empreenderem interpretações mais concretistas, ou seja, que aproximam as normas à realidade, utilizando a ponderação de valores e a técnica da proporcionalidade. Eis um trecho do que foi dito pelo notável jurista:
“(…) A antecipação desse evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva de liberdade, da intimidade e autonomia privada Nesse caso, a eventual opção pela interrupção da gravidez poderia ser considerada crime. Entendo que não (…).” (BARBOSA apud BENTO, 2006, p. 17).
Como o julgamento do writ pelo STF foi realizado em março de 2004, o julgado foi prejudicado por perda de objeto, já que a criança de Gabriela Oliveira Cordeiro nasceu em 27 de fevereiro de 2004.
Pressupõe-se a colisão dos princípios constitucionais liberdade (da gestante) e vida (do nascituro, ainda que esta seja ligeira). Urge, neste hard case a aplicação do princípio da proporcionalidade, erigido a partir de três requisitos básicos:
“(a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; (b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para ser atingir os fins visados; e (c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos.” (BARROSO, 1999, p.219-220).
Destarte, apresenta-se como demasiadamente apegada à hermenêutica clássica as decisões idênticas a do juiz de direito de segunda instância da Justiça carioca. Em situações como a do julgamento da anencefalia, a estrita utilização de métodos lógico-formais de interpretação da lei torna o parecer judicial menos justo e desvinculado dos dados do caso concreto. A rígida aplicação dos meios gramatical, lógico e analógico (BONAVIDES, 2002, p.399), assim como os resultados cuja interpretação é declarativa, extensiva e restritiva, é válida, porém incompleta diante da nova dinâmica das sociedades pluralistas, abarrotadas de demandas que necessitam menos de subsunção restrita ou de posicionamentos que menosprezam fatores extrajurídicos.
Tendo em vista tal consideração, mais a necessidade de instituir como ilegal ou não a interrupção de gravidez de anencéfalos, a Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde (CNTS) interpôs, mediante o advogado Luís Roberto Barroso, a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54-8 perante o Supremo Tribunal Federal, com base no artigo 103 da Constituição Federal, combinado com o artigo 1º, caput, da Lei n. 9.882/1999.
Na decisão monocrática da liminar, o Ministro Relator Marco Aurélio apresentou a assertiva elaborada pela CNTS na petição inicial: como não há potencial vida extrauterina do feto, a antecipação terapêutica do parto de anencéfalo é figura distinta do aborto. Deste modo, a não antecipação conferia ofensa “aos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade em seu conceito maior, da liberdade e autonomia da vontade, bem como os relacionados com a saúde”. Requer-se a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, autorizando a interrupção da gestação nos casos de anencefalia diagnosticados por médicos habilitados, prescindindo de alvarás judiciais para tanto.
Em julho de 2004, o Ministro Relator deferiu o pedido de liminar para tal antecipação, o que não foi referendado pelo Plenário do STF. Houve a cassação da referida liminar, com efeitos ex nunc, sobrestando os demais processos e decisões não transitados em julgado sobre o mesmo tema (BENTO, 2006, p.19-20).
Ainda permanece pendente a data para julgamento da causa, o que indica que qualquer interrupção de gravidez não permitida pelo artigo 128 do diploma penal configura como crime de aborto. A questão da anencefalia segue como assunto de saúde pública, uma vez que, se não existe entendimento pacífico na jurisprudência, nem liberação de alvarás ou qualquer permissão específica do ente público, as gestantes de fetos anencéfalos recorrem a procedimentos abortivos de clínicas clandestinas, tornando mais emblemática a situação.
4. A instalação da polêmica: teorias civilistas sobre o direito de personalidade
4.1. Considerações iniciais
Antes de adentrarmos o cerne do tema acima proposto, é necessária uma análise de elementos básicos da disciplina jurídica, pertinentes ao direito civil, que são fundamentais para um melhor estudo acerca da aquisição da personalidade civil. Para tal, iremos dividir a análise desses elementos em duas etapas.
A princípio, devemos buscar o surgimento do “fenômeno” Direito enquanto ciência jurídica. Para tanto, devemos considerar a vida em sociedade como o fator crucial para que haja o Direito, uma vez que este surge onde há o convívio de pessoas. Desta forma, por mais que uma sociedade seja rudimentar, há um “código de conduta” a ser observado por seus integrantes, sob pena de sanção.
Um exemplo do exposto acima é o caso das tribos indígenas nativas presentes no Brasil que, distantes de todo o formalismo das leis e códigos da nossa sociedade moderna, mantém suas regras e costumes de forma rígida – que em caso de descumprimento importará em punições, assim como na sociedade moderna – o que permitiu a existência de sua cultura ao longo dos anos.
Em segundo lugar, buscaremos uma definição do que é o Direito. Para tanto, deve-se ater somente aos aspectos relevantes ao direito civil uma vez que a conceituação de Direito na conjuntura filosófica, social e sociológica é tarefa pertinente à Filosofia do Direito. Assim o Direito pode ser visto como um conjunto de normas que regulam a vida social.[1]
O Prof. Washington de Barros Monteiro, em sua conhecida doutrina afirma:
“Pertence a questão ao âmbito da filosofia jurídica, desta constituindo um dos problemas fundamentais. Por isso, neste ensejo, fugindo intencionalmente às suas complexidades, limitar-nos-emos a uma única definição, talvez a mais singela, mas que, desde logo, por si só, fala ao nosso entendimento. É a de Radbruch: ‘ o conjunto das normas gerais e positivas, que regulam a vida social’”.(MONTEIRO apud GAGLIANO;PAMPLONA FILHO, 2009, p.2)
A outro giro, podemos afirmar que, tradicionalmente, o Direito se subdivide em áreas, de acordo com sua especificidade: Direito Público e Direito Privado, Direito Objetivo e Direito Subjetivo, entre outras classificações. Interessa-nos, aqui, a segunda subdivisão citada: Direito Objetivo x Direito Subjetivo.
O ordenamento jurídico brasileiro se apresenta através de princípios e normas a serem seguidas por todos os seus destinatários no território nacional. Tais normas e princípios têm a Constituição Federativa do Brasil de 1988 como lei suprema, a qual subordina as demais disposições normativas: é a chamada supremacia constitucional.
A Constituição Federal, bem como o restante do ordenamento jurídico vigente, têm o condão de ser dirigir a todos e os vincular, de modo possuir o status de Direito Objetivo. Em termos mais claros: o direito objetivo é aquele caracterizado por normas e princípios que devem ser impostos a todos de forma coercitiva, sob pena de sanção. Venosa, em sua doutrina, traz a definição da visão do ordenamento jurídico como Direito Objetivo ou norma agendi, “vendo-o como um conjunto de normas que a todos se dirige e a todos vincula, temos o direito objetivo” (VENOSA, 2002, p.13).
Em contrapartida, o Direito Subjetivo é uma faculdade (ou seja, facultas agendi), dada ao indivíduo para exercer determinado direito. Esta faculdade só se torna possível graças à existência do Direito Objetivo – este confere a existência daquele. Devido a esta dependência do direito subjetivo para com o objetivo, há muitas controvérsias doutrinárias sobre tema, levando alguns juristas a negarem a existência do direito subjetivo. Sobre esse tema, César Fiuza cita dois juristas: Duguit e Kelsen. Aquele defende que: “o que há na realidade são situações geradas pela norma. O que existe é apenas o Direito Objetivo” ”(DUGUIT apud FIUZA, 2003. p.46). Para o segundo:
“No entendimento do austríaco, Hans Kelsen, o que se denomina Direito Subjetivo nada mais é que uma forma de encarar a norma jurídica, isto é, o Direito Objetivo, o único que conta. Pode-se encará-lo de forma objetiva, quando a norma se diz abstrata; e pode-se encará-lo de forma subjetiva, quando a norma se diz concreta, uma vez que aplicada a caso concreto.” (FIUZA, 2003.p. 46)
4.2. O direito subjetivo e a personalidade civil
No item anterior foram tecidas algumas ideias fundamentais para se entender corretamente o conceito de personalidade civil e como ocorre sua aquisição. Segundo dispõe o artigo 1º do Código Civil de 2002: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” , o que nos traz um dado relevante para este estudo pois, realizando uma interpretação literal, chegamos à conclusão de que o referido dispositivo traz a ideia de faculdade para exercício de um direito, ou seja, a ideia de direito subjetivo.
O Direito subjetivo, facultas agendi, como dito anteriormente, confere uma faculdade de o indivíduo exercer determinado direito advindo de uma norma ou princípio – é a denominada norma agendi do direito objetivo. Mas para que tal faculdade seja exercida é necessária, à priori[2], a presença personalidade civil que é um atributo de qualquer ser humano vivente.
4.3. A personalidade civil
A personalidade civil, na sociedade brasileira atual, é concedida a todos que nascem com vida. Tal atribuição, entretanto, não foi uma constante na ordem jurídica nacional. O Brasil escravocrata, por exemplo, era bem restrito quanto à delegação de personalidade: escravos não tinham quaisquer direitos na órbita civil, pois a eles não eram atribuídos a personalidade humana, uma vez que eram tidos como propriedade de seus senhores.
Posto fim à breve comparação entre a sociedade brasileira contemporânea e a antiga desenvolveremos o conceito de personalidade que está presente no artigo 2º do Código Civil de 2002: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. O estudo desse artigo pode ser feito em duas etapas.
A primeira etapa refere-se ao momento da aquisição da personalidade civil que é um tema muito controverso entre as ciências médicas. O desenvolvimento da medicina tem trazido muitos estudos com o escopo de se determinar quando começa e termina a vida. Porém, para o Direito Civil brasileiro, a vida começa quando o aparelho cardiorrespiratório começa a funcionar. O exame médico responsável por verificar se o recém-nascido chegou a respirar é denominado de “docimasia hidrostática de Galeno”.[3] Acerca desta afirmação, GAGLIANO E PAMPLONA FILHO afirma:
“No instante em que principia o funcionamento do aparelho cardiorrespiratório, clinicamente aferível pelo exame de docimasia hidrostática de Galeno, o recém nascido adquire personalidade jurídica , tornando-se sujeito de direito, mesmo que venha a falecer minutos depois.” (GAGLIANO, PAMPLONA FILHO, 2009, p.81)
Desta forma, a aquisição da personalidade civil fica restrita a seguinte regra: se ficar comprovado que o recém-nascido respirou, ele terá personalidade civil, mesmo que poucos minutos depois ele venha a falecer. Porém, se ficar comprovado o contrário, ele não terá personalidade e será considerado natimorto[4], logo, não se aplicará a regra contida no artigo 1º do Código Civil de 2002.
À primeira análise essa verificação – se o recém-nascido terá personalidade ou não – parece tola. Porém, a importância é verificada quando há a questão da sucessão. Um exemplo, dado por STOLZE, pode ilustrar o exposto:
“Seguindo essa diretriz doutrinária e legal, que tem importantes reflexos práticos e sociais, se o recém – nascido – cujo pai já tenha morrido – falece minutos após o parto, terá adquirido, por exemplo, todos os direitos sucessórios do seu genitor, transferindo-os para sua mãe. Nesse caso, a avó paterna da referida criança nada poderá reclamar.” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2009, p.82)
A segunda etapa está relacionada com os direitos que o nascituro goza, relacionados com o direito à vida – criminalização do aborto – , direitos relativos a uma gestação saudável, dentre outros. Porém é de suma importância ressaltar que essas expectativas não contemplam os direitos patrimoniais. Isto se deve ao fato de que nosso Código Civil ter adotado a teoria natalista, como veremos a seguir.
Concluindo esta discussão, devemos nos ater a algumas teorias acerca da aquisição da personalidade. Inicialmente temos a teoria natalista, adotada pelo legislador civil, a qual determina que o recém-nascido só será sujeito de direito, isto é, ser capaz de direito e deveres na ordem civil, se nascer com vida.
Já a teoria da personalidade condicionada pode ser considerada como uma intermediária entre a natalista e concepcionista – que será a próxima a ser analisada -, pois ela afirma que o recém- nascida não nasce com personalidade, porém, se ele vier a nascer com vida, sua personalidade “retorna” ao tempo de concepção. Desta maneira, o nascimento com vida seria uma condição para que o recém-nascido pudesse ter personalidade desde o seu nascimento. Por fim, a teoria concepcionista, adotada pelo Código Civil francês, prevê que a personalidade civil se inicia desde o momento da concepção.
4.4- A figura do nascituro
De antemão devemos analisar a previsão do artigo 2º do Código Civil de 2002. Neste dispositivo legal, há a presença da figura do nascituro, que é definido por VENOSA:
“Nascituro é o ser já concebido, mas que ainda se encontra no ventre materno. A lei não lhe concede personalidade, a qual só lhe será conferida se nascer com vida. Mas, como provavelmente nascerá com vida, o ordenamento jurídico desde logo preserva.” (VENOSA, 2002, p. 35 -36)
Em outros termos, nascituro é aquele é está por nascer, que ainda se encontra em gestação. O direito não lhe confere a personalidade em seu sentido amplo[5] – devido à adoção da teoria natalista – pois ainda não nasceu. O que ocorre é apenas uma mera expectativa de direitos que pode ser compreendida como o direito à vida – que neste caso se manifesta não apenas como uma mera expectativa de direito, mas um direito garantido – ou direito a uma gestação sadia, entre outras acepções.
Maria Helena Diniz se manifesta acerca do tema de maneira oportuna:
“Poder-se-ia mesmo afirmar que, na vida intra-uterina, tem o nascituro personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos personalíssimos e aos da personalidade, passando a ter a personalidade jurídica material, alcançando os direitos patrimoniais, que permaneciam em estado potencial, somente com o nascimento com vida. Se nascer com vida, adquire personalidade jurídica material, mas se tal não ocorrer, nenhum direito patrimonial terá.” (DINIZ apud GAGLIANO, PAMPLONA FILHO, 2009, p. 83 – 84)
Segundo a renomada jurista, o nascituro, tem personalidade jurídica ao ser concebido. Porém essa personalidade é apenas formal, conferindo direitos da personalidade. Tais direitos, segundo a visão clássica de Pontes de Miranda, foram elencados por MELO e AMARAL:
“Citemos a clássica divisão de Pontes de Miranda, para quem os principais direitos da personalidade são: a) direito à vida, b) o direito à integridade física, c) à integridade psíquica, d) o direito à liberdade, e) à verdade, f) o direito à igualdade formal (isonomia), g) à igualdade material, h) o direito de ter nome e o direito ao nome, i) o direito à honra e j) o direito autoral de personalidade.” (MIRANDA apud MELO E AMARAL, p. 5)
Vale ressaltar que com a evolução do direito como reflexo da mudança das relações sociais, estes direitos da personalidade tendem a se expandir saindo dos limites da clássica divisão proposta por Pontes de Miranda.
Além da personalidade formal, Maria Helena Diniz também cita a personalidade material. Esta, do seu ponto de vista, estaria relacionada com os direitos patrimoniais e só seria adquirida se houvesse o nascimento com vida do recém-nascido. Em síntese, a jurista nos ensina que o recém-nascido desde a sua concepção goza de personalidade – formal – o que confere direitos da personalidade como o direito à vida e não apenas mera expectativa de direito. Caso este recém-nascido nasça com vida ela adquirirá, além da personalidade formal, a personalidade material que lhe dará direitos patrimoniais.
4.5. Direitos da personalidade e sua relação com as teorias da personalidade
Em tópicos anteriores apresentamos três teorias acerca da aquisição da personalidade civil: teoria natalista, da personalidade condicional e a concepcionista. Agora veremos como as referidas teorias afetam os direitos da personalidade.
Prioritariamente, insta saber qual o significado do termo “direitos da personalidade”. Estes direitos se relacionam com os direitos fundamentais no sentido de que ambos visam proteger direitos considerados intrínsecos a existência humana digna. Os direitos da personalidade têm a mesma finalidade que os direitos fundamentais previstos pela Constituição, porém se diferem quando à origem: os direitos da personalidade são direitos subjetivos privados, enquanto que os fundamentais são direitos subjetivos públicos.
A diferenciação anteriormente exposta perde o vigor quando nos deparamos com os novos rumos do direito civil, que tende à se tornar público com o fenômeno constitucionalização do direito privado.
O Código Civil de 2002 utilizou o capítulo II para tratar deste assunto. De início, o artigo 11 da referida codificação apresenta-nos algumas características: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.
Porém com o desenvolvimento da doutrina acerca deste tema, novas características podem ser apontadas. Maria Helena Diniz, em conjunto com outros doutrinadores, propõe uma alteração da redação do artigo 11 do Código Civil de 2002, introduzindo outras características importantes dos Direitos da Personalidade:
“Art. 11. O direito à vida, à integridade fisico-psíquica, à identidade, à honra, à imagem, à liberdade, à privacidade e outros reconhecidos à pessoa são inatos, absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis.
Parágrafo único. “Com exceção dos casos previstos em lei, não pode o exercício dos direitos da personalidade sofrer limitação voluntária.” (DINIZ, 2008. p.22)
O novo texto introduz um aspecto importantíssimo dos direitos da personalidade: o direito à vida. Essa importância se deve ao fato de haver muitas questões éticas, jurídicas e bioéticas envolvendo temas como a anencefalia e outras de ordem biológica, gerando questionamentos como: a vida e a personalidade começam no momento da concepção? Se sim, seria constitucional a retirada do feto anencéfalo?
Se adotarmos a teoria concepcionista, afirmaríamos que a vida e a personalidade – tanto a material como a formal – começa desde o momento da concepção. Desta forma, um feto, mesmo que anencéfalo, teria sua vida e sua personalidade resguardadas pelo direito desde o momento em que fora concebido. Logo, um aborto poderia ser considerado um atentado a seus direitos da personalidade.
Em contrapartida a essa linha de pensamento, que tem por primazia a vida do anencéfalo, devemos levar em consideração alguns aspectos estatísticos do caso, que apontam que 25% das crianças anencéfalas que vivem até o fim da gravidez morrem durante o parto; 50% têm uma expectativa de vida de poucos minutos ao 1º dia e 25% vivem além de 10 dias. Portanto, a mãe, certamente, viverá uma angústia de saber que nunca poderá ver seu rebento crescer.
Tendo outro enfoque em questão, podemos nos ater à teoria natalista – adotada por nosso Código Civil – a qual defende que a personalidade só se inicia após o nascimento com vida, porém, os direitos do nascituro são resguardados. Esta teoria não se difere muito da primeira, pois, apesar de não conferir personalidade para o recém-nascido na sua totalidade[6] confere expectativas de direito que, na visão de Maria Helena Diniz, podem ser vistas como direitos da personalidade formais, ou seja, garantia do direito à vida, à integridade física, entre outros do gênero.
A diferença entre a teoria natalista e a concepcionista se dá no sentido de que para a última, o feto já é personalidade jurídica formal e material desde quando foi concebido. Assim sendo, já é considerado sujeito de direito mesmo quando ainda é uma mórula[7], sendo capaz de adquirir direitos e obrigações na ordem civil. A conseqüência imediata disso recai sobre o direito sucessório, uma vez que o feto já goza de personalidade material.
Apesar de o Código Civil brasileiro ter adotado a teoria natalista, a concepcionista é que tem prevalecido na doutrina – possuindo grandes adeptos, como Nelson Rosenvald, Gustavo Tepedino, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona. A jurisprudência também tem tomado algumas decisões embasadas nesta teoria. Prova disso é um julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, citado por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona:
“EMENTA: Seguro – obrigatório. Acidente. Abortamento. Direito à percepção indenização. O nascituro goza de personalidade jurídica desde a concepção. O nascimento com vida diz respeito apenas à capacidade de exercícios de alguns direitos patrimoniais. Apelação a que se dá provimento (5fls.)” [8] (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2009, p.84)
Terminando esta análise, discorreremos brevemente acerca da teoria da personalidade condicionada, que tem Washington de Barros Monteiro como adepto, e suas relações com os direitos da personalidade.
Esta última teoria, conforme já anotado, trata-se de um ponto intermediário entre a natalista e a concepcionista. Sua principal diferenciação entre a primeira é a de que a concessão de personalidade retroage ao momento da concepção desde haja o nascimento com vida. Na teoria natalista, por sua vez, mesmo que ocorra o nascimento com vida, a concessão de personalidade não retroagirá ao momento da concepção. Já em relação à corrente concepcionista, a teoria da personalidade condicionada há a seguinte diferenciação: na primeira, o feto goza de personalidade desde o momento da concepção, independentemente de ter nascido com vida ou não.
Devemos evidenciar, finalmente, o principal efeito dessa teoria, que é o deslocamento da personalidade material para o momento da concepção, desde que haja o nascimento com vida. Um recém-nascido ao nascer com vida,portanto, gozará da personalidade formal e da personalidade material,sendo que esta se projetará para o momento da sua concepção. Cumpre ressaltar que, desde a concepção, o recém-nascido já gozava de personalidade formal do mesmo modo que ocorre em todas as outras teorias estudadas.
5. Considerações finais
Ao solicitar a manifestação do Poder Judiciário sobre o tema da anencefalia, as partes legitimadas da ADPF n. 54 permitiram uma leitura do tema supracitado sob a ótica dos direitos humanos. O assunto, concernente aos direitos reprodutivos, saiu do estrito âmbito das problematizações religiosas e das pautas dos movimentos sociais para um debate exposto pela mídia à toda população brasileira.
Conforme apresentado nos primeiros tópicos, o referido debate foi permeado por uma análise jurídica assentada na Teoria dos Princípios e na conseqüente aplicação da ponderação de valores, da proporcionalidade e da razoabilidade. Tal aplicação principiológica, fomentada pela onda neoconstitucionalista que atingiu várias ordens legais dos países europeus e americanos após a Segunda Grande Guerra, influenciou as decisões prolatadas pelas Cortes Superiores mundo afora e é fundamental para a elaboração do acórdão sobre a antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos no Brasil.
Ainda mencionando exposição anterior a estas considerações, procuramos avaliar o caso a partir dos estudos do direito de personalidade na seara civil, abordando o tipo de hermenêutica- moderna ou constitucional- que torna imprescindível a interpretação das previsões infraconstitucionais à luz da Carta Maior (filtragem constitucional). Reiteramos o posicionamento da atual doutrina civilista que afirma ser imperiosa tal perspectiva, a fim de que se defendam os bens da vida e, sobremaneira, as qualidades essenciais para a promoção de uma vida digna.
Com base nas teorias civilistas sobre personalidade civil, procuramos descobrir quando ocorre o início desta, levantando conceitos teóricos imprescindíveis para o estudo da questão da anencefalia, bem como estudando o caráter contemporâneo dos direitos da personalidade. Ao findar este debate civilista da questão, concluímos que, independentemente da teoria adotada sobre a aquisição da personalidade, o direito à vida sempre será preservado.
Porém, no caso do anencéfalo, tal prerrogativa não pode ser aplicada, já que este nunca poderá usufruir a vida. Isto porque, mesmo que nosso Código Civil utilize o critério do funcionamento do aparelho cardiorrespiratório como determinante para se declarar a vida, sabemos que a formação do sistema nervoso é de importância fundamental para que haja a formação completa do ser humano e, consequentemente, o torne apto à existência.
Devemos considerar ainda que o Projeto do Código Civil de 2002 “dormitou no Senado Federal”, não acompanhando os reflexos dos grandes avanços das ciências da saúde ; tampouco o diploma penal vislumbrou tal avanço, haja vista que data de 1940. Consonante a isto, a retirada do anencéfalo não pode ser vista como um atentado ao direito à vida, mas como uma faculdade dada à mãe gestante, uma vez que não há vida presente, mesmo que o feto venha a respirar após o nascimento. Por fim, dados estatísticos reiteram, no mundo concreto, todas essas conclusões expostas anteriormente; o tempo de “vida” dos fetos anencéfalos é ínfimo, em torno de dez dias, na melhor das hipóteses.
Embora não tenhamos aprofundado em abordagens especializadas sobre tão rico assunto, nosso entendimento é de que a decisão dos ministros do STF deve resvalar apenas em apontamentos jurídicos e médicos. Isto porque temos um ordenamento embasado em uma certeza científica: o ser humano morto é aquele que não possui atividade cerebral. Neste sentido, aliás, está a legislação acerca dos transplantes (Lei nº 9.134/1997). Destarte, não haveria colisão entre os princípios liberdade da mulher e vida do nascituro, já que “o feto desprovido de cérebro não apresenta vida humana atual ou potencial” (GUIMARÃES, 2009, p. 78).
Prosseguindo em uma abordagem científica, acatamos o argumento da promotora de justiça Lucrécia Cristina Guimarães de que, se o legislador do Código Penal de 1940 estabeleceu apenas duas exceções ao crime aborto, sem prever a hipótese de anencefalia do feto, deve-se ao fato de que a ciência não havia vislumbrado um avanço que permitia o diagnóstico médico dessa patologia no período gestacional,como já havíamos anotado. Ela acredita que, ao legitimar outro caso para interrupção de gravidez, o legislador estaria “tornando imediatamente eficazes direitos fundamentais das gestantes, previstos pela própria Constituição, e que, de acordo com a vontade do constituinte, gozam de aplicabilidade imediata” (GUIMARÃES, 2009, p. 78).
Sendo truísmo que a anencefalia consiste em um mal que inviabiliza a vida pós-parto, torna-se incontestável também que manter a gravidez de um feto anencefálico é infringir a integridade física, moral e psicológica da mãe, praticamente torturando-a e atentando contra sua dignidade. O ideal, assim, seria a uniformização jurisprudencial no sentido de atribuir à mulher (ou casal) a discricionariedade para optar ou não pela interrupção da gravidez no caso em tela.
A interferência estatal deve ser reduzida ou afastada quando eivada de concepções religiosas, tendo em vista a laicidade do Estado. Acreditamos, assim como a Promotora de Justiça Lucrécia Cristina Guimarães , que, ao legitimar outro caso para interrupção de gravidez, o legislador estaria “tornando imediatamente eficazes direitos fundamentais das gestantes, previstos pela própria Constituição, e que, de acordo com a vontade do constituinte, gozam de aplicabilidade imediata” (GUIMARÃES, 2009, p. 78).
A atuação do Estado é desejável para criar políticas sociais preventivas para casos de saúde pública como este, ou de auxílio à mulher que se submete à prática abortiva. E o papel do Judiciário é, mediante a representação dos juízes, sopesar os valores de situações que, mesmo não previstas em lei, devem ser efetivadas, haja vista a necessidade de se aproximar o Direito da realidade. Encerramos, então, com a bela frase de Débora Diniz: “Sofrimento, remorso ou luto são todas expressões do acaso que é a existência humana, mas cabe a cada pessoa, da tranqüilidade de suas crenças morais, decidir o rumo do sentido de sua vida” (DINIZ apud GUIMARÃES, 2009,p. 80).
Estudante de Direito.
Estudante de Direito.
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